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Os fundamentos epistemológicos do pensamento político moderno

por uma leitura a partir de Michael Foucault

Os fundamentos epistemológicos do pensamento político moderno: por uma leitura a partir de Michael Foucault

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I

A fundação da política, entendida como regulação das relações de poder no interior da polis nos remete, necessariamente, à instigante contradição entre um poder propriamente despótico e um poder político como seu oposto. É bem sabido que a "invenção" e o aperfeiçoamento da política na Grécia Antiga cumpriram a função de equalizar os conflitos de classe instaurados no interior da polis os quais, por sua vez, podem ser explicados, ainda que parcialmente, pela expansão demográfica e pela divisão do trabalho operadas pelo regime escravocata-militar. Tem-se que, deste modo, o poder político funciona como uma mudança de paradigma em relação ao poder despótico mítico-religioso, no qual a ordem e a lei estão inscritas no corpo e na palavra do déspota. O surgimento da polis, nesta ótica, pode traduzir-se como pulverização do poder que, até então, seria centralizado numa figura (ou numa família, linhagem ou até mesmo casta). Esta pulverização dá-se na medida em que, na Grécia, há a separação de três atributos essenciais ao poder os quais não estão dissociados nos regimes despóticos: o poder de legislar, o poder de administrar (o qual se confunde também com o moderno poder de julgar) e o poder de fazer a guerra e a paz (o exército). Sem entrar em discussões a respeito da democracia grega – ou melhor, se esta pulverização implica, necessariamente na instauração de uma democracia – o que queremos assinalar é o fato de que esta "separação de poderes" ocorreu juntamente à criação de um espaço público investido de forte apelo ao convívio dos políticos envolvidos por um horizonte comunitário onde afloravam discussões (e deliberações) a respeito das leis, da estruturação da polis e das guerras e das conquistas.

Não se trata aqui de fazer uma apologia do mundo greco-romano, de demonstrar como eram "felizes", como este espaço comunitário proporcionava um ambiente agradável para um convívio deleitoso e harmonioso – o que, de resto, é bem pouco provável – mas sim de revelar que a existência mesma da polis está estruturada sobre um ethos e que este remete, esquematicamente, ao conceito de virtude o qual objetiva proporcionar aquilo que, de Platão a Aristóteles, foi designado por vida boa. A virtude, para os gregos, era a qualidade mais importante de um indivíduo, vez que estruturava toda a vida em comunidade. Virtuoso é aquele ser moral que age em conformidade com a razão, que domina os impulsos e os apetites do desejo, que conduz sua alma em conformidade com a ordem do cosmos, ou seja, virtuoso é aquele que evita o caos, a desordem dos sentimentos.

Comunidade e indivíduo eram, para os gregos, partes intercomunicáveis de um todo, de uma totalidade designada por cosmos. Com efeito, pode-se dizer mesmo que havia a crença na existência de uma ordem cosmológica universal e que tudo o que existia no universo tinha um fim predeterminado no cosmos: tudo tendia a um fim.

No que diz respeito às relações entre indivíduos e entre estes e a comunidade na qual estão inseridos, a cosmologia também predomina como forma de pensar este convívio. A finalidade do homem justo é realizar o bem comum e a realização do bem comum é agir de forma racional proporcionando a felicidade da polis. Em outras palavras, como bem observa Barzotto (1), para a antropologia clássica o ser humano possui uma essência, cujos atributos são racionalidade e sociabilidade, que define seu telos: viver segundo a razão na sociedade (comunidade). Esta visão antropológica ou, em outros termos, a ética que pautava a conduta política da tradição clássica, por sua vez, estava intimamente imbricada, não só com a metafísica, mas também com a "ciência" deste período. Com efeito, a física aristotélica a qual, seguindo as pegadas de Charles Taylor (2), podemos afirmar como paradigma da física clássica, é elucidativa da forma com a qual o pensamento pré-moderno lidava com os fundamentos do Ser (metafísica) e com o movimento dos entes (todas as relações entre ato e potência (3)) como partícipes de uma mesma essência cosmológica onde os movimentos dos seres tinham uma causa eficiente (o motor imóvel) e tendiam a um fim específico na ordem do cosmos. Resumindo: física e metafísica eram incondicionalmente relacionadas.

Tudo isso, para afirmarmos o seguinte: na época clássica as práticas políticas eram subordinadas a uma concepção ética que, por sua vez, era fundamentada numa concepção científico-metafísca do universo. Científico-metafísica porque buscava fundamentar a phisis numa origem necessária (numa causa de todo o movimento) e porque derivavam todas as ações (lógicas ou ilógicas, boas ou más) desta causalidade necessária. Assim, virtude e vida boa estão intimamente ligadas à cosmologia imanente ao ethos clássico, motivo pelo qual homem/sociedade/cosmos partilhavam a mesma essência e tendiam ao mesmo fim: o bem comum.


II

Se a cosmologia é um traço fundamental do modus vivendi do mundo clássico, o mesmo não se pode dizer da modernidade pós-iluminista. Sem entrarmos em detalhes sobre uma suposta evolução do pensamento político durante o período pré-moderno, nos permitimos cristalizar um corte histórico, na esteira de Michel Foucault (4), para situarmo-nos no abrupto surgimento da filosofia política moderna.

Gostaríamos aqui de situarmo-nos no surgimento mesmo de uma epistemologia fundadora de uma ética que relaciona-se com os problemas aos quais a filosofia moderna ao longo dos três últimos séculos vê-se envolvida incessantemente a busca de respostas.

Para isso seria necessário admitirmos como premissa de nossa argumentação o fato de que todo o pensamento político desenvolve-se sobre uma concepção ética e de que esta, por sua vez, há de partir de uma teoria do conhecimento. Assim caberia a pergunta: em que pressupostos epistemológico-éticos está fulcrado o pensamento político moderno, quais as implicações entre os problemas políticos e o ethos moderno?

Na transição para a modernidade, o que podemos notar é, antes de mais nada, uma quebra na correlação metafísica(epistemologia)-ética-política. Uma cosmologia, um universalismo que dava conta de servir como princípio unificador da ética e da política é retirado de cena, dando ensejo à fragmentação dos universos ético e político.

Tal constatação parece-nos bastante óbvia. Parece-nos bastante evidente que a curta história do período que se convencionou chamar de "modernidade" é marcada sobretudo por uma crescente fragmentação das várias esferas (ou melhor: pela criação de várias esferas) da atuação humana. É bastante evidente que, a partir do surgimento do Estado moderno, os saberes tendem cada vez mais a uma pulverização. Tem-se, por exemplo, a relativização dos valores morais através do estudo e da constituição de várias regiões ônticas relativas ao agir humano; o surgimento de um campo específico para o direito e para a reflexão sobre o direito (filosofia do direito, epistemologia jurídica, teoria geral do direito), assim como tem-se uma independência procedimental da esfera do direito perante a dimensão ética – já que existem vários sistemas morais, ou seja, já que a moral varia no espaço e no tempo, manter o direito dependente de uma concepção moral específica é relativizar também a validade do direito, deste modo, a saída plausível é descolar o direito de qualquer moral, criando um campo procedimental independente – o grande sonho do positivismo jurídico seria um exemplo perfeito desta fragmentação.

Por outro lado, tem-se a autonomia do político frente ao moral delineada já por Maquiavel o qual pressentia que a arena política, pela forte carga de poder que a envolve, teria de se desvincular da virtude moral, i.é, não cabe ao plano político de atuação uma adequação ao ideal de bom e justo, mas sim a administração da res pública, dando o máximo de coesão ao corpo social. Assim, também, podemos evidenciar, corroborando a autonomia da esfera política, o surgimento dos "profissionais da política", por um lado os Administradores (aqui também entendidos os legisladores) voltados a gerir com a maior eficácia possível a máquina pública, de outro lado os "pensadores" que dão sustentação "ideológica" àqueles.

Teríamos, então, a partir do racionalismo moderno, esta espetacular dissociação do átomo e do cosmos. O átomo não mais está preso ao cosmos, mas sim está livre para seguir seu próprio desiderato, associando-se com outros átomos livremente, experimentando novos sistemas, novos valores.

O que se opera, na realidade, é uma transição de um sistema espistemológico-ético-político conjuntivo, para outro sistema (disjuntivo) que tem como ponto central a dissociação, a independência (ainda que relativa) destas três esferas. Teríamos, assim, conforme nos demonstra, Barzotto (5): (a) uma epistemologia relativista que, ao afirmar "(...)a prioridade do sujeito de conhecimento sobre o ser o torna independente de toda a metafísica", i.é, de um princípio unificador/universal. (b) uma ética normativista/subjetivista ou deontológica, desvinculada de qualquer teleologia, ou, dito de outra forma, a constatação de que "(...) o fenômeno moral fica reduzido à experiência de seguir regras. A moral esgota-se na obediência àquelas regras que permitem a cada um buscar os seus próprios fins." (6); o que pode traduzir-se pela busca de uma justificação racional das regras morais. Por outro lado e na mesma senda relativista, teríamos o ceticismo moral, o qual nega à razão a possibilidade de fundamentar a moral jogando esta para o plano da subjetividade ou da emotividade. (c) por fim, a racionalização do poder, que pode traduzir-se pela recusa "(...) de uma finalidade da política ou do Estado. O Estado é definido não pelo seu fim, mas pelo meio que se utiliza para alcançar qualquer fim que se proponha." (7) Este meio é a coerção. Assim, não há uma finalidade abstrata da esfera política como, v.g,, a realização de bem comum, mas tão-somente finalidades específicas, variáveis, inconstantes, alternando-se ao sabor da oscilação das conformações de poder: a burocracia esgota-se em si mesma na tarefa de gerir as populações.

Para além destas características da modernidade, ainda somos tentados a ver o esforço, não de uma reunificação do ético com o ontológico – o que seria um retorno à Grécia – mas sim vários discursos que vão de encontro ao relativismo ético, com a instrumentalização da razão e com o antropologismo, se contrapondo, oferecendo resistência a estes discursos. Teríamos, assim, algumas correntes discursivas que – ainda que heterogêneas – buscam fundar as ações do indivíduo em princípios transcendentais a priori, válidos em todas as culturas e que subjazem a todos os momentos epistemológicos; teríamos, por outro lado, toda uma filosofia política que sustenta, na esteira de Hegel talvez, o Estado como realização da razão na história e que vê a política como locus de realização da consciência, da formação do citzen livre e participativo. E, por fim, poderíamos encontrar um antropologismo holista que – ainda que prescreva o princípio da autonomia da vontade – busca uma justificação para a natureza humana na razão prática, i.é, propugna que ser humano é ser solidário, é realizar a máxima da moral kantiana – ainda que através da linguagem, com o objetivo de construir um universo artificial de relações onde reine a maior franqueza possível entre os indivíduos (busca por um sentido profundo das práticas sociais. Sentido não manifesto e transcendente à razão).

Este seria o diagnóstico das práticas discursivas que emergem na modernidade. O que resta-nos, agora, é estabelecer as condições de possibilidade da emergência de tais práticas discursivas, i.é, o que nos inquieta é esta constatação mesma: como podem existir discursos diametralmente opostos tais como o do Liberalismo e o do Comunitarismo por exemplo e porque estes discursos, como pretendemos mostrar, em que pese sejam tão díspares, servem, ao final das contas, para liberar as mesmas práticas políticas? Como podem existir discursos tão diferentes como a hermenêutica da razão prática de Ch. Taylor, onde são traçados princípios de "evaluación fuerte", princípios transculturais da razão prática, como subjacentes a toda e qualquer cultura, mas subordinados às práticas sociais e às condições culturais de cada comunidade (8), bem como tentativas liberais, como a de Rawls por exemplo, de traçar uma Teoria da Justiça como um universal a priori baseado numa situação contratual originária? E por que, ainda devemos insistir, tanto um discurso como o outro parte de um pressuposto comum – o progresso da razão – e chegam a um mesmo fim: a democracia moderna e os direitos humanos como garantias políticas universalmente (a priori, portanto) válidas para todas as culturas?

Gostaríamos de traçar neste artigo algumas breves considerações sobre o surgimento destes discursos, sobre a viabilidade destes discursos ainda hoje. Gostaríamos de situar tais práticas discursivas desde sua emergência até sua erupção na atualidade; descrever como elas se articulam, se excluem mutuamente, se reencontram, re-combinam e possibilitam o surgimento de novos discursos, tematizando, sempre e eternamente, os mesmos problemas a serem resolvidos e oferecendo sempre as mesmas soluções (com variadas matizes) a estes problemas postos.

Seria o caso de situar nossa argumentação levantando uma questão sobre a qual ainda não temos um "distanciamento histórico" suficiente – e mesmo por não termos este distanciamento – tal qual a chamada "reconstrução do Iraque", no último ( desejamos que seja realmente o último) pós-guerra.

Se perguntarmos para qualquer pessoa o que ela pensa sobre a presença dos Estados Unidos no Iraque e sobre a proposta de "reconstrução" das bases políticas deste país – a qual vai desde a proposta de constituição de novas lideranças locais "legítimas", até a inclusão de aulas de democracia no currículo escolar (cartilhas elaboradas em Washington que ensinam como funciona uma sociedade democrática) – provavelmente ouviremos uma destas duas respostas: (a) aquela que podemos chamar de liberal e que consiste em acreditar que a essência humana é a liberdade da razão e que, onde existir uma deturpação desta essência livre (onde esteja ameaçada a autonomia da vontade), aqueles que estão em condições mais avançadas no que pertine ao grau de liberdade e autonomia, têm o direito de intervir nesta sociedade para libertá-la de seus grilhões; (b) Por outro lado, teríamos uma resposta a qual poderíamos chamar de "comunitarista" (na qual, em certa perspectiva nos incluiríamos), que consiste em defender que cada sociedade é livre para fazer suas escolhas políticas baseadas em seus padrões de moralidade específicos e que estes padrões não têm, necessariamente, que coincidir com a razão técnica e que, portanto, não se tem o direito de interferir em sociedades como o Iraque (mesmo que seja sob o pretexto de libertar o povo iraquiano de seus opressores).

Em que pese uma contradição inicial entre estes dois discursos, se formos além, questionando-nos sobre se, numa sociedade onde as mulheres são tratadas como seres inferiores ou onde existe um governo despótico, há necessidade de mudanças político-culturais, tanto o discurso "a" como o discurso "b" concordarão que há necessidade de garantia de igualdade entre homens e mulheres (negação da discriminação através da afirmação dos direitos humanos), quanto da efetivação desta igualdade através do princípio democrático (sufrágio universal, etc.). Investigar as condições de possibilidade destes discursos, o campo de regularidades discursivas de onde emergem os discursos que põem-se como problema a natureza humana, os valores que orientam a sociedade, enfim, os discursos que emergem como tematização do Homem, este será nosso objetivo.


III

Partimos, como não poderia deixar de ser, de dentro do "discurso filosófico da modernidade" para buscar compreender como este discurso engendrou os principais temas (principais problemas) com os quais – quer na filosofia, quer nas ciências humanas – ele vem se defrontando nos três últimos séculos, propondo e refazendo análises, teorias, sistemas e projetos que procuram descobrir a verdade no e o funcionamento do Homem, quer isoladamente, quer em grupo.

É difícil conceituar o que seja a "modernidade" para podermos estabelecer o que se entende pelo seu "discurso filosófico" (ou os seus discursos filosóficos) e, talvez, seja isso mesmo o que nos seduz ao nos voltarmos para os "novos tempos" ou para os "tempos modernos"; essa fluidez, essa maleabilidade de uma época que se define furtando-se da própria definição, que caracteriza-se (quem sabe?) por estar aberta para o futuro: a modernidade é algo a ser construído, é o progresso, é o devir. Parece difícil estabelecer, enfim, o que é este "discurso da modernidade" do qual todos nós emergimos e, por mais que tentemos escapar, estamos enredados.

Alguns atribuem ao racionalismo cartesiano o marco da era moderna. Ali, no instante em que a razão tomou consciência de sua maioridade, no momento em que a razão se deu conta de que era capaz de construir universos, de criar objetos, de "fazer" a realidade, exatamente ali, estava o germe da modernidade. Obviamente que não podemos prescindir do racionalismo filosófico se quisermos caracterizar a "modernidade", porém atribuir ao Idealismo metafísico a capacidade de rompimento com a cosmologia que precede a modernidade é levar Descartes mais longe do que ele pretendia ir por si próprio.

Outros, como Simone Goyard-Fabre, vêem já na filosofia política de Maquiavel a aurora da modernidade. O rompimento com uma teologia herdada dos antigos pela escolástica – como a separação entre o "político e o moral", o fim de uma cosmologia própria da Idade Média seria o alvorecer da modernidade: "Esse primeiro nascimento não é nada menos que uma revolução. Maquiavel não pede mais nada à tradição clássica, nem à filosofia eternitária dos antigos, já que é a política em seu devir que ele disseca; nem ao horizonte teológico-político da escolástica medieval, já que, com seu realismo, ele se prende à maneira pela qual os homens cumprem a tarefa que lhes cabe de governar o Estado e de fazer a história". (9) Nele haveria, portanto, "[...] mais do que os sinais precursores da modernidade político-jurídica". (10)

Obviamente Maquiavel rompeu com a tradição política que o precede, sobretudo ao propor uma teoria inaudita das formas de governo. Entretanto, não podemos atribuir a este autor a abertura para a modernidade, a não ser que estejamos falando estritamente da modernidade "político-jurídica", ou seja, se desejemos reduzir a modernidade às novas formas de organização política que lhe são inerentes: a formação dos Estados nacionais, centralização estatal da coerção, separação dos poderes, etc. Agora, se pretendermos ir um pouco mais a fundo, devemos aceitar que esta "revolução", em que pese sua enorme importância para a caracterização da modernidade, está ligada a questões que merecem um maior escrutínio.

Há, por outro lado, a tese da "revolução científica" advinda, sobretudo, do Heliocentrismo e da mecânica de Copérnico, como momento de transição para um novo paradigma científico, superior à astrologia e à física desenvolvidas na Antigüidade e levadas à frente durante a Idade Média. Com certeza a transição operada pela mecânica copernicana é um forte componente daquilo que podemos chamar de "modernidade", entretanto, atribuir à cinemática esse poder de produzir a abertura de uma nova conjuntura histórica (como se pretende a modernidade) é deixar de lado as causas mais profundas de tal ruptura. Não que o espírito científico, não que o surgimento das ciências físico-matemáticas não tenham uma grande importância para o surgimento da era moderna, mas sim que devemos buscar a forma pela qual o discurso moderno se serve deste novo paradigma científico para se auto tematizar.

Habermas atribui a Hegel a introdução da modernidade como tema central da filosofia. O problema fundamental da filosofia hegeliana seria o da "auto certificação" da modernidade. "A inquietação causada pelo fato de a modernidade, na ausência de modelos, ser forçada a encontrar o seu equilíbrio nas bipartições por ela provocadas, é considerada por Hegel a ‘fonte de necessidade de filosofia’". (11) Não que a modernidade em si tenha surgido com Hegel, não que Hegel tenha sido o "filósofo da modernidade", mas sim no sentido de que foi Hegel o primeiro filósofo a – objetivando uma abordagem crítica – tematizar a modernidade; inserir a modernidade, os "tempos modernos", como tema fundamental de toda e qualquer filosofia possível. Portanto, Hegel teria, pela primeira vez, colocado-nos o insolúvel problema: "o que é nosso tempo?"

É importante traçarmos sumariamente e seguindo as pegadas de Habermas, de que forma Hegel estabelece uma caracterização da modernidade a partir, sobretudo, do criticismo kantiano, vez que, tal como Hegel, procuraremos em Kant: (a) o surgimento da ruptura "epistemológica" para a modernidade; (b) o alicerce do Humanismo filosófico e das ciências humanas, donde emergem as práticas discursivas relativas à ética e à filosofia política (sem nos esquecermos dos discursos afins: ciência política, teoria geral da política, filosofia do direito, entre outras). Obviamente que procuraremos aqui utilizar-nos de uma pista aberta por Michel Foucault, segundo a qual poderemos tratar do plano de imanência do qual brotam os discursos sobre a ética e sobre a política de nossa "Era".

É o tema da subjetividade auto-referencial que interessa a Hegel, na medida em que se põe a questão de "saber se o princípio da subjetividade e a estrutura da autoconsciência que é inerente a esta subjetividade são suficientes como fontes de orientações normativas – se são suficientes para ‘fundar’ não apenas a ciência, a moral, e a artes de uma forma geral mas para estabilizar uma formação histórica que se libertou de todos os compromissos históricos." (12) O Homem como epicentro da história, como local onde se inscreve a razão universal e o Homem como ser finito, contingente, ser empírico que deve buscar, quotidianamente, se auto-compreender e compreender sua época; este sujeito é questionado por Hegel, ou melhor, este princípio da subjetividade e a estrutura da auto-compreensão, vez que desde Kant o mundo moderno é idealizado como um edifício de pensamentos, são postos à prova por Hegel que objetiva investigar se "[...]da subjetividade e da autoconsciência se podem extrair critérios colhidos no mundo moderno e servindo ao mesmo tempo de orientação dentro dele (do mundo moderno) o que significa porém igualmente que possa servir para criticar uma modernidade em conflito consigo própria." (13) Assim, a modernidade tematizada por Hegel passa, antes, pela crítica à razão fragmentária do sistema kantiano o qual, ao elevar o entendimento (o conceito) ao nível de faculdade legislador, relega a um segundo plano a noção de totalidade e, com isso e por isso, faz da modernidade um incansável buscar a si determinado pela eterna tematização do presente ( no qual o próprio Hegel, afinal de contas, estaria emaranhado).

Foge de nossa alçada traçar os passos através dos quais Hegel edifica seu projeto de unificação da razão e assegura uma totalidade sistemática que envolve o "real" e o "ideal" um como complementação do outro na realização do progresso da história. O que realmente gostaríamos de ressaltar aqui é: (a) a constatação da modernidade como auto-tematização da subjetividade (do sujeito); (b) a colocação de Kant na origem da problematização da modernidade a partir da razão centrada no sujeito.

Ao tratar do problema pertinente à modernidade, Foucault inscreve-se na mesma senda aberta por Hegel: a necessidade de auto-certificação do sujeito própria da modernidade e a conceituação da Äufklarung – principalmente as reflexões de Kant enquanto "filósofo do Iluminismo" – como marco da modernidade. Assim, gostaríamos de traçar, a partir dessas premissas e seguindo as pegadas de Foucault, o surgimento da modernidade como problema filosófico e as implicações entre espistemologia, ética e política abertas pela modernidade.


IV

O nascimento do Homem é o centro da reflexão de Foucault (influência do estruturalismo), para chegar a uma caracterização das relações políticas modernas. Tal como Hegel, Foucault procurará nas reflexões filosóficas de Kant o surgimento do Homem e da modernidade como auto-certificação (de sua existência e de sua "época"); talvez, por isso, o próprio Foucault, ao assumir a cátedra de História dos sistemas de pensamento no Collège de France, projetando o rumo de suas pesquisas para os próximos anos, tenha observado que

"[...] escapar realmente a Hegel supõe apreciar exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que nos permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar." (14)

Foucault ocuparia, então e conforme constatação de Habermas, um espaço dentro do discurso filosófico da modernidade e seria herdeiro de algumas reflexões hegelianas sobretudo no que diz respeito ao limites do humanismo kantiano.

No entanto as semelhanças param por aí, pois, enquanto Hegel se dispõe a edificar um projeto de razão universal que superaria o criticismo transcendental kantiano, Foucault será um crítico tanto do discurso antropológico, como empreenderá, com grande energia e ambição, uma critica da razão, conforme veremos.

Existem vários modos de abordar o pensamento de Foucault. Podemos tentar inscrevê-lo, numa perspectiva linear, naquela linhagem de pensadores que falam de dentro do "discurso filosófico da modernidade" e, envolvidos que estão na tradição da filosofia do sujeito, são completamente absorvidos pelas "aporias da razão" mesmo quando da razão tentam desvencilhar-se. Poderíamos, também, procurar tratá-lo como um sistema progressivo onde haveria dois "pensamentos" de Foucault: a primeira fase, a arqueológica e a segunda genealógica e que abandona por completo as investigações da primeira. Poderíamos, por fim, tratá-lo como filósofo comprometido em justificar suas posições que pertenceriam à dinastia dos filósofos da modernidade; em outras palavras, poderíamos tratar o pensamento de Foucault como uma teoria (primeiro do discurso, depois do poder e, por fim, do sujeito) comprometida com a busca de uma completude totalitária. Não cremos, entretanto, que estes caminhos sejam profícuos. Acreditamos poder encontrar em Foucault uma "caixa de ferramentas" a qual podemos abrir e retirar o(s) instrumento(s) que necessitamos para desenvolver nosso trabalho.

Nosso trabalho aqui consiste em evidenciar como se articulam epistemologia, ética e política a partir da emergência da modernidade. Nossa pergunta seria: como têm surgimento práticas (e discursos) políticas como as nossas, de que forma emergiram historicamente relações políticas tão complexas como as do racionalismo ocidental? Para tentar dar resposta a estas questões pensamos ser interessante trazer à tona duas questões fundamentais da arqueologia foucaultiana: (a) o Humanismo como local de surgimento do Homem como sujeito cognoscente por excelência e, ao mesmo tempo, como objeto de conhecimento para o qual se voltarão todas as ciências humanas; (b) a crítica da razão entendida como auto-certificação do presente que procura um sentido historicamente dado para a existência humana enquanto ser no mundo (Dasein).

Para Foucault não é em Galilleu ou em Descartes que tem origem a modernidade, não é numa viragem espistemológica operada pelo mecanicismo (um progresso científico em relação à física dos Antigos) que vivenciaríamos o "nosso tempo", o "nosso discurso"; na periodização das descontinuidades históricas idealizadas pelo autor, estes pensadores ainda estariam presos ao saber clássico (renascentista) o qual "atribui (...) um privilégio absoluto à mecânica, que supõe uma organização geral da natureza, que admite uma possibilidade de análise bastante radical para descobrir o elemento ou a origem." (15) Em suma, na idade clássica, em que pese alguns indícios da modernidade, ainda estaríamos imersos no universo da representação (homem como representação da natureza, por exemplo (16)).

Por outro lado, no plano político, não é com Maquiavel que estaríamos diante de uma forma propriamente moderna de pensar a relação do sujeito com a polis; com Maquiavel ainda estaríamos imersos no quadro da representação, da ordem, da série, da articulação. O Príncipe constitui-se como tal em decorrência daquilo que representa; é a uma Natureza Humana em oposição à Natureza que estamos falando. Se é certo que Maquiavel desloca sua abordagem para as práticas políticas com uma aparente dissociação destas ao plano ético, o certo é que ainda trata-se de um discurso sobre o território enquanto representação do corpo do Príncipe. Expliquemo-nos: Maquiavel ainda preocupa-se com as estratégias do Príncipe para manter e ampliar seu território (seu corpo político) e, por mera decorrência, acaba por elaborar alguns preceitos em relação à arte de ordenar o corpo social: não é ao Homem como lugar da representação que Maquiavel se refere. Não é, portanto, em termos antropológicos que as coisas estão colocadas, não é sobre o Homem que Maquiavel teoriza, mas sim, e isso é o mais importante, sobre a virtude do monarca.

Somente na dobra do século XVIII para o século XIX, quando surge o Homem como centro da preocupação do saber no ocidente é que abre-se propriamente a "era moderna".

Segundo Foucault, a partir do momento em que os seres humanos passaram a ser interpretados como sujeitos de conhecimento ao mesmo tempo que objeto deste mesmo conhecimento, seguindo um caminho aberto sobretudo por Kant, teve vazão aquilo chamado pelo nome de modernidade. Assim, o Homem passa a ser o centro de uma nova forma de investigação que tem início com as filosofias do sujeito (Fenomenologia, Hermenêutica, Estruturalismo) e com as ciências humanas.

A idéia central de Foucault, segundo atestam Rabinow e Dreyfus, é a de que, na dobra do século XVIII para o século XIX,

"Kant introduziu a idéia de que o Homem é o único ser totalmente envolvido pela natureza (seu corpo), pela sociedade (relações históricas, políticas e econômicas) e pela língua (sua língua materna), e ao mesmo tempo, encontra uma sólida base para todos estes envolvimentos em sua atividade organizadora e doadora de sentido." (17)

No nível arqueológico, isto é, no nível das investigações que buscam descobrir "[...] apenas as regras estruturais que dirigem o discurso"., (18) no nível do discurso, portanto (seguindo os limites propostos por nosso estudo), podemos distinguir com Foucault, duas formações epistêmicas (19) que darão lugar a duas figuras epistemológicas distintas: a da época clássica e a da modernidade.

No nível discursivo, o que caracteriza a modernidade é o surgimento das ciências empíricas; estas, por sua vez, têm sua condição de possibilidade naquilo que Foucault chamou de a priori histórico, i.é, no surgimento do Homem como representação, como objeto ao mesmo tempo que sujeito do conhecimento; sendo investigado como objeto pelas ciências humanas e servindo de fundamento de todo o conhecimento possível enquanto sujeito filosófico.

No plano do discurso científico (saberes) há uma descontinuidade entre a episteme clássica e a moderna. Enquanto esta é marcada pelo surgimento da biologia, da economia e da filologia (que estudam a vida, o trabalho e a linguagem), a primeira é voltada para a história natural, a análise das riquezas e a gramática geral. São duas formas de saber que, em que pese a aparente justaposição, não têm correlação epistêmica – a primeira será marcada pela primazia da representação enquanto mediação entre os objetos no mundo; a segunda, pelo desaparecimento da representação como mediação entre duas coisas, sendo colocada na relação do homem com o vivido, com a linguagem, etc.

Foucault desenvolve sua argumentação referente ao surgimento da modernidade estabelecendo uma oposição entre três saberes da era clássica (história natural, análise das riquezas e teoria do discurso) e suas correlatas ciências empíricas na era moderna ( biologia, economia e filologia) por um lado; por outro lado estabelece uma oposição entre a filosofia clássica (à que podemos chamar de filosofia da representação) e a filosofia moderna, ou analítica da finitude.

Enquanto saber clássico, a história natural desenvolve-se como representação do visível pela linguagem. Assim, o estudo dos seres vivos na época clássica se constituirá como observação e descrição dos seres. O conhecimento clássico dá-se na superfície, o que há de visível na natureza, é o que serve como classificação. O conhecimento não pretende penetrar nos objetos, i.é, dá-se de forma completamente bidimensional (reduz-se ao olhar e ao tato), desprezando a experiência sensível. O importante para a história natural são o analisar e o descrever (20) o objeto. A análise, por sua vez, dá-se por intermédio do conceito de estrutura, entendida esta como as formas primárias do objeto excluído todo o conteúdo empírico. Estas formas primárias podem ser traduzidas como a extensão visível essencial do objeto: linhas, superfícies e volumes.

Destarte, trata-se de um conhecimento analítico, que decompõe a estrutura em seus elementos constitutivos segundo quatro variáveis: figura ou forma, número ou quantidade, proporção ou grandeza, situação ou distribuição espacial; em outras palavras, o visível é dito pela colocação do objeto num espaço como num quadro classificatório (identidade/diferença). O saber clássico é um saber taxonômico, ideal e que procura descrever a ordem das coisas segundo uma incansável classificação em categorias, gêneros e espécies cada vez mais detalhadas. Resumidamente, poderíamos afirmar que a história natural, enquanto inscrita na ordem do saber clássico, é uma ciência taxonômica que analisa e classifica em gênero e espécie os seres vivos, a partir de sua estrutura visível (superficial e, portanto, bidimensional).

A mudança fundamental para a episteme moderna, no final do século XVIII, opera-se na relação entre o conhecimento e as dimensões de superfície e de profundidade (a representação e o objeto); assim, "[...]deixando de privilegiar a estrutura visível dos seres, o conhecimento torna-se empírico; não é mais a análise de uma representação, não tem mais idéias como objeto: torna-se sintético; seu objeto é uma coisa concreta, não mais ideal, mas real, tendo uma existência independente do próprio conhecimento." (21)

Na época moderna caráter e estrutura se dissociam. Enquanto a segunda diz respeito ao nível visível do objeto, o primeiro obedece a um princípio interno (a organização dos seres) e o conhecimento volta-se para o interior do objeto, para a profundidade – os objetos ganham uma profundidade, um sentido profundo a ser desvendado; há um deslocamento do visível para o invisível, deslocamento para o conhecimento da profundidade dos seres vivos: o plano bidimensional dá lugar ao tridimensional do volume.

Deslocando-se e alojando-se no invisível, o caráter não mais tem correlação com a estrutura visível, não mais sendo desta dependente, ele fundamenta-se numa organização interna (escapando à representação, portanto). Abre-se, assim, este espaço de opacidade, do volume da espessura constituída de órgãos e funções que dão vazão à vida. Quando se passa a relacionar o visível com o invisível, quando se passa a fazer depender o caráter de uma organização interna e profunda, há a viragem para a modernidade. Não há mais uma representação na superfície dos seres, o caráter não remete mais ao formal, mas sim à função do órgão dentro de um sistema, de uma totalidade. O conhecimento se desloca para o interior do espaço tridimensional e empírico da vida. A organização não depende da forma, mas sim é definida pela função que exerce dentro de um sistema ou aparelho mais geral: conhecimento que aloja-se no interior do vivido.

Ainda no plano das ciências empíricas, a economia moderna diverge totalmente da análise das riquezas da época clássica. Enquanto esta volta-se para uma teoria geral do valor de troca das mercadorias, classificando, segundo um quadro geral de classificação, equivalências entre um objeto de troca e outro, a economia enquanto ciência empírica, volta-se, desde Adam Smith e Ricardo, para o trabalho enquanto constitutivo de todo e qualquer valor. Isto significa dizer que, doravante, todas as mercadorias postas em circulação terão seu valor determinado em conformidade com o trabalho despendido pelo Homem para colocá-la em circulação. É o trabalho como atividade de produção que é a fonte de valor, ou seja, "[...] na economia o trabalho é o conceito fundamental capaz de explicar a troca, o lucro e a produção." (22)

Assim, as ciências empíricas somente são possíveis na medida em que tem surgimento um saber que volta-se para a profundidade de um ser que vive (biologia), trabalha (economia) e fala (linguagem). Só se pode falar em ciência empírica moderna, segundo Roberto Machado, "quando os seres vivos, riquezas e as palavras não são mais analisadas a partir da representação, mas tornam-se coisas, objetos que têm uma profundidade específica enquanto vida, produção e linguagem." (23) Ao penetrar na profundidade das coisas o conhecimento outrora analítico, transforma-se em conhecimento empírico.

Essa mudança fundamental é assim descrita por Foucault:

"Se se estuda o custo da produção e se não se utiliza mais a situação ideal e primitiva da troca para analisar a formação do valor, é porque, ao nível arqueológico, a produção como figura fundamental do espaço do saber substitui a troca, fazendo aparecer, por um lado, novos objetos cognoscíveis (como o capital) e prescrevendo, por outro, novos conceitos e novos métodos (como a análise das formas de produção). Como também, se se estuda, a partir de Cuvier, a organização interna dos seres vivos, e se, para faze-lo, se utilizam os métodos da anatomia comparada, é porque a vida, como forma fundamental do saber, fez aparecer novos objetos (como a pesquisa das analogias). Enfim, se Grumm e Bopp procuram definir as leis de alternância vocálica é porque o Discurso como modo de saber foi substituído pela Linguagem, que definiu objetos até então inaparentes (famílias de línguas em que os sistemas gramaticais soam análogos) e prescreveu métodos que não tinham ainda sido empregados (análise das regras de transformação das consoantes e das vogais)." (24)

O nascimento das ciências empíricas é uma das condições – em nível epistemológico – do surgimento da modernidade. Ao voltarem-se para este ser que vive, trabalha e fala, tais ciências colocam o Homem no centro de sua investigação; assim sendo, todo o saber moderno terá como objeto este ser. Mas não é só: estas ciências somente podem surgir na medida em que descobrem no homem a finitude que lhe é própria. Somente quando volta-se para o homem enquanto ser finito que tem em sua vivência sua existência é que pode surgir a biologia. Da mesma forma, a economia somente passa a existir quando passa a tematizar o trabalho como medida de todos os valores. O trabalho, por sua vez, somente pode ser ligado à necessidade de um ser finito que, buscando sua subsistência (buscando suprir suas necessidades) trabalha com o intuito de postergar seu fim: "O homem, do ponto de vista da economia, é este ser cuja vida é procurar escapar, pelo trabalho, à eminência da morte. A economia moderna se articula com uma ‘antropologia como discurso sobre a finitude natural do homem.’" (25) Com a linguagem se dá o mesmo, ela só tem surgimento quando faz referência ao ser que fala, que articula um sentido no uso dos enunciados e somente tem sentido enquanto a continuidade através da qual se articula o ser finito (o Homem).

A ruptura é patente, então. Se na época clássica, conforme afirmam Rabinow e Dreyfus, "...o homem não era o produtor, o artífice-Deus; mas enquanto foco do esclarecimento, ele era um dos artífices. E se "...havia um mundo em si criado por Deus". Sendo o papel do homem "...esclarecer a ordem do mundo" (26), na modernidade o homem com sua finitude passa a ser, por intermédio das ciências empíricas, objeto de conhecimento ao mesmo tempo em que, por intermédio da filosofia, o fundamento de todo o conhecimento possível, o fundamento de toda a representação possível.

No plano filosófico – o qual, de certa forma, orienta a ruptura operada pelas ciências empíricas – Foucault situa a crítica kantiana como ruptura com o discurso de Descartes. Foucault se detém num dos aspectos da filosofia de Descartes, o qual, segundo ele, caracteriza a filosofia clássica: a noção de que o conhecimento é, de modo geral, um ato de comparação pela ordem. Em outras palavras, para descartes conhecer é ordenar as coisas a partir do objeto mais simples até os compostos, por intermédio do procedimento da análise: a filosofia clássica é, portanto, uma filosofia analítica no sentido de que sua função primordial é ordenar os objetos no mundo e servir de base, de paradigma para todo o conhecimento, para todo o saber – inclusive para os saberes relativos à história natural, análise das riquezas e análise do discurso. Como bem chama a atenção Machado, "Foucault pretende encontrar na teoria cartesiana o fundamento não só de um conhecimento do tipo da matemática ou da física, mas de saberes como a história natural, a análise das riquezas ou a gramática geral. Descartes teria codificado as regras de conhecimento que serviriam de princípios metodológicos não só para as ciências, como a física e a matemática, mas até para saberes que não tivessem estatuto de cientificidade." (27) Assim, a filosofia clássica, conforme já salientado, é uma filosofia da análise, presa à superfície da representação: uma idéia representa outra que é condição de representação da idéia anterior, etc... O homem é, deste modo, mero espectador diante da representação em quadro. Vale dizer: perante a ordem do mundo o homem pretende ordenar suas idéias com o objetivo que as mesmas correspondam, da forma mais fiel possível, aquela que é preexistente. Destarte, o homem não coloca a si mesmo como objeto desta representação, não questiona-se sobre como é possível a ele representar a representação ao mesmo tempo em que não tem necessidade de fundar o conhecimento das coisas num sujeito de conhecimento onde supostamente se alojaria a representação.

Segundo Rabinow e Dreyfus, "...na opinião de Foucault, este sujeito emergirá com o surgimento do homem de Kant." (28), o que se dará somente com o surgimento da filosofia moderna como analítica da finitude. É quando Kant instaura o homem como sujeito transcendental, como condição de todo o conhecimento possível, é nesse momento que fecha-se o círculo da episteme moderna. Temos, então, por um lado as ciências empíricas que voltam-se para o homem como objeto de conhecimento e, a partir de seus temas, constatam a finitude própria do objeto de seu conhecimento. Por outro lado, a filosofia crítica vislumbra no homem, em que pese sua finitude, a condição de possibilidade de todo o conhecimento: "...o homem, conforme o compreendemos hoje, aparece na mudança essencial com a qual estamos preocupados, tornando-se medida de todas as coisas... Ele se torna o sujeito e o objeto do seu conhecimento". (29) Se, do lado das ciências empíricas, o homem se revela – pelo limite de sua finitude – como objeto de um saber anterior a sua própria existência que lhe atravessa como se ele fosse apenas um objeto da natureza, do lado da filosofia este limite é o que possibilita todo o conhecimento positivo:

"(...) O limite não se manifesta como determinação imposta do exterior ao homem (porque ele tem uma natureza ou uma história), mas como finitude fundamental que repousa apenas sobre o seu próprio fato e se abre sobre a positividade de todo limite concreto." (30) A partir do momento em que a linguagem não é mais a responsável pela representação, possibilitando o conhecimento, a função de representar se torna um problema. A tarefa de tornar possível a representação recai sobre o homem." (31)

O pensamento moderno é uma analítica da finitude justamente porque coloca o homem ao mesmo tempo como sujeito e objeto de todo o conhecimento e, além disso, coloca-o como organizador do espaço de representação onde surgem este sujeito e este objeto. A analítica da finitude é o que possibilita ao homem voltar-se para si mesmo e descobrir-se ao mesmo tempo como objeto de investigação, como portador de uma finitude que o escraviza, o sobrecarrega, bem como, e por isso mesmo, fonte de todo o conhecimento possível: "A Modernidade começa com a incrível e finalmente aproveitável idéia de um ser que é soberano precisamente pela virtude de ser escravizado, um ser cuja finitude lhe permite tomar o lugar de Deus. Esta idéia surpreendente, que aparece em Kant, de que ‘os limites do conhecimento fundam positivamente a possibilidade do saber.’" (32)

Destarte, o homem dá-se a si mesmo como objeto finito, ao mesmo tempo em que fundamenta a possibilidade do conhecimento sobre si justamente na finitude de seu ser. A vida, o trabalho e a linguagem vêm do exterior marcar o homem como finitude que somente é possível de existir enquanto constituído pela fala, pelo trabalho e pelo vivido. Por outro lado, sua própria finitude, ao denunciar suas limitações enquanto ser que fala, trabalha e vive, o constitui como sujeito constituinte da linguagem, do trabalho e da vida, enquanto soberano que dá sentido a estas dimensões da experiência: o surgimento do homem é a eterna repetição do Mesmo, na medida em que as positividades repetem seu fundamento e vice versa:

"De um extremo ao outro da experiência, a finitude responde a si mesma; ela é, na figura do Mesmo, a Identidade e a Diferença das positividades e de seu fundamento. Vê-se como a reflexão moderna, desde o primeiro esboço dessa analítica, se inclina em direção a certo pensamento do Mesmo – em que a Diferença é a mesma coisa que a Identidade.. " (33)

Assim, a partir do momento em que coloca o homem como centro da reflexão da modernidade, Foucault é capaz de traçar a forma pela qual a episteme moderna sobrecarrega este ser fazendo-o passar de um extremo ao outro da representação, ou seja, das positividades empíricas ao fundamento transcendental sendo que um não cessará de tematizar e referir-se ao outro.

Ao voltar-se para esta analítica da finitude o que Foucault pretende, pondo entre parênteses o problema da verdade da teoria das ciências (vez que para ele o que estabelece a verdade são as práticas discursivas de uma disciplina específica), é voltar-se para a análise dos discursos fundamentais sobre o homem e mostrar de que forma eles estão fadados à desintegração. Conforme afirmam Rabinow e Dreyfus:

"Foucault desenvolve uma forte argumentação para esse pretenso declínio. Ele tenta mostrar que com a tentativa do homem de afirmar plenamente sua finitude e, ao mesmo tempo, negá-la totalmente, o discurso abre um espaço no qual a analítica da finitude, condenada desde o começo , debate-se numa série de estratégias fúteis. Cada nova tentativa deverá afirmar uma identidade e uma diferença entre finitude como limitação e finitude como fonte de todos os fatos, entre o positivo e o fundamental. Visto sobre este duplo aspecto, o homem aparece: (1) como um fato, entre outros fatos, para ser estudado empiricamente e, além disso, como a condição transcendental de possibilidade de todo conhecimento; (2) como cercado por aquilo que não pode se esclarecer (o impensado) e, além disso, como um cogito potencialmente lúcido, fonte de toda inteligibilidade; e (3) como o produto de uma longa história cujo início nunca poderá alcançar e, além disso, paradoxalmente, como a fonte desta mesma história." (34)

Daí a existência de três duplos (35) nos quais se estende toda a reflexão moderna: (a) empírico-transcendental; (b) cogito-impensado e (c) recuo-retorno da origem, "...todos característicos do modo de ser do homem e do discurso antropológico que tenta fundamentar uma teoria deste modo dual de ser." (36) Assim, conforme um lado de cada duplo absorve o outro, diferentemente funcionará o discurso da modernidade; em que pese esta diferença, ela se debate sobre o Mesmo que, ao discursar sobre o Outro, está sempre a referir-se ao homem como limite e transposição deste limite, ou como limitado/ilimitado.

Com a distinção kantiana entre o empírico e o transcendental, tem surgimento um inaudito problema para a reflexão filosófica: ao submeter o conteúdo empírico à forma a priori do conhecimento, Kant põe em evidência o problema do re-investimento do empírico sobre o transcendental, ou seja, das influências empíricas no conhecimento formal. (37)

Toda a "teoria do conhecimento" posterior a Kant procurou fundar o transcendental no empírico. É todo um positivismo acrítico que volta-se para a sensibilidade empírica como fonte de todo o conhecimento o qual deve seu fundamento à percepção: há uma verdade em si, somente acessível pela percepção. Seguindo o caminho aberto pela estética transcendental, teríamos, assim, um positivismo que procura estabelecer as bases do conhecimento, o acesso à verdade, numa intuição empírica a priori, uma Natureza Humana capaz de aplicar-se a todos os objetos do e no mundo. De outro lado, teríamos todo um conhecimento voltado para a fundação da verdade na história; um conhecimento que, seguindo as linhas gerais da dialética transcendental, procuraria tornar a verdade acessível pela história – que seria o transcendental onde se inscreve um empírico o qual reduplica o primeiro – pela dimensão histórica do homem: teríamos aí a verdade escatológica da dialética. Dialética e positivismo, deste modo, apresentam-se como alternativas uma a outra, mas, na verdade, não passariam de dois momentos da mesma tensão entre o empírico e o transcendental, operada pelo discurso antropológico moderno. Foucault aponta uma alternativa a estes discursos: a fenomenologia existencial a qual buscaria uma nova analítica do sujeito tentando conciliar o empírico e o transcendental "...uma disciplina que tem um conteúdo empírico e é, ao mesmo tempo, transcendental, um a priori concreto, que poderia descrever o homem como uma fonte auto-produtora de percepção, cultura e história." (38) Esta análise do vivido, por sua vez, antes de superar os discursos anteriores, insere-se nos mesmos deslocando para o corpo (finito) a condição de existência todo o conhecimento, de todo o saber.

O duplo cogito-impensado, por sua vez, perpassa a analítica da finitude moderna inscrevendo-se no caminho aberto por Kant no que pertine à forma e ao conteúdo do pensamento e da ação; Rabinow e Dreyfus assim descrevem a origem kantiana das reflexões sobre o pensado/impensado:

"Mais uma vez Kant estabelece as regras básicas do jogo, afirmando a clareza como forma do pensamento e da ação, e anunciando o imperativo para obter tanta clareza quanto possível no que concerne ao conteúdo." (39)

O ser que fala, trabalha e vive, somente o faz na medida em que pode e deve pensar este impensado que lhe constitui enquanto homem. A tarefa do pensamento moderno é, então pensar o impensado, refletir na forma do "Para-si" o conteúdo do "Em-si", descobrir a essência oculta do homem, desalienando-o, descortinando para ele as bases de seu pensamento e de sua ação. O ápice das reflexões sobre o impensado será encontrado na filosofia de Husserl como uma analítica do vivido. A tese é a de que Husserl procurou uma base de práticas fundamentais sobre as quais é garantido o surgimento dos objetos para a consciência; da mesma forma a experiência humana deveria ser completamente acessível ao conhecimento, deveria ser inteligível. A Epoché, ou redução fenomenológica, é capaz de situar o fenomenólogo fora de todo o conteúdo vivido, de todo o fundamento da experiência, o qual "...aparece originariamente como o impensado e o impensável, formando um conjunto de crenças verdadeiramente sedimentado, e que o fenomenólogo deve apenas ‘despertar’ para tratá-los como um sistema de crenças." (40) A virtude do fenomenólogo é situar-se no dentro/fora de seu campo cultural e perceptivo. Assim, o fenomenólogo pode situar-se como puro espectador de sua relação com o mundo e analisar o impensado que constitui suas práticas culturais. Na relação com o impensado, a Modernidade toca o solo da moral, na medida em que esta (a moral) consiste em "...obter uma clareza cada vez maior destas forças obscuras, seja na sociedade (como em Marx e Habermas), seja no inconsciente (como em Freud e Merleau-Ponty), que motivam a ação." (41) Elucidar o impensado através do conhecimento é o que constitui a ética moderna, ou melhor, constitui o conteúdo e a forma da ética moderna. Pensar, na medida em que pensar é pensar o impensado e procurar elucidar o fundamento (transcendental) das práticas sociais, constitui-se ele mesmo em prática política promissora de libertação. Nesta senda, o pensamento volta-se para duas direções que correm, ambas, sobre a mesma pista aberta pela analítica da finitude: (a) parte para a busca dos fundamentos impensados do pensado; (b) fundamenta o pensado justamente por poder estabelecer o que há de pensável no impensado, fundamenta as práticas sociais, mas, por outro lado, por advir do impensado – ou melhor, por ter sua condição de existência no impensado – coloca seu significado fora de controle. Remete-se, então na busca profunda do sentido do impensado que investe sobre um infinito de crenças que por sua vez remetem a outras crenças fundamentais e, assim, sucessivamente, à busca de um fundamento sempre mais profundo. Por outro lado, abandona a busca do sentido e cai num niilismo na medida em que descobre que, encontrado o fundamento, a superação destas crenças, estaria configurado o fim da ação significante. Em outras palavras, o discurso sobre o homem reconhece sua condição de possibilidade nesta tensão permanente entre o cogito e o impensado onde toda e qualquer prática carece de fundamento, sendo tarefa deste discurso escrutinar a base fundamental daquelas ações.

A outra duplicação do pensamento moderno constitui-se sobre a tensão inerente ao recuo e o retorno da origem. Quando a linguagem perde sua transparência o homem volta-se para as origens da mesma. O homem que fala, utiliza-se da linguagem que fundamenta a fala e o ser do homem. Entretanto, o surgimento desta linguagem, a origem da mesma, constitui-se num problema insolúvel. Daí um recuo ao passado em busca do fundamento último da significação. Por outro lado, justamente por fundar suas práticas discursivas sobre uma linguagem, o homem pré-existe a esta, vez que, se a compreende e a utiliza, existe algo em si que é pré-linguístico e que é condição da própria linguagem. A tensão dar-se-á entre um homem que descobre-se, como diz Heidegger, já no mundo, ou seja, descobre-se constituído por uma linguagem, rodeado de outros seres, da natureza e um homem que, utilizando a linguagem, preexiste à compreensão.

"Generalizando esta idéia de que a linguagem não pode ser conhecida objetivamente, precisamente porque já é um tipo de saber, a analítica da finitude tenta reapropriar a história, mostrando que o homem já tem sempre uma história, na medida em que suas práticas sociais lhe permitem organizar historicamente todos os acontecimentos, inclusive acontecimentos em sua própria cultura. E, de um modo ainda mais geral, acontece que a própria habilidade do homem de compreender a si mesmo e aos objetos, elaborando projetos baseados no que é dado, tem uma estrutura tripla que corresponde ao passado, presente e futuro." (42)

Tal abordagem dá ensejo à busca do fundamento do ser do homem em sua capacidade de elucidação racional de sua origem – em sua capacidade de descobrir o sentido profundo de suas práticas, de sua existência – remetendo-se a um futuro onde a origem, como retorno, seria acessível ao entendimento, à elucidação do sentido. "O homem descobre que ele não é a fonte do seu próprio Ser – que nunca poderá retroceder até a origem da história – e, ao mesmo tempo, tenta mostrar... que esta restrição não é algo que realmente o limita, mas antes a fonte transcendental da mesma história cuja gênese escapa à investigação empírica." (43)


V

Vemos, após esta longa exposição, como está constituído o pensamento moderno, ou melhor, sobre qual episteme, estão constituídos os discursos e as práticas sociais da modernidade. Podemos, deste modo, elucidar a forma pela qual a episteme moderna coloca o homem como fundamento de toda a investigação, quer quanto ao saber (ciências humanas), quer quanto ao pensamento (filosofia); num e noutro, sempre estará presente a tensão entre o positivo e o fundamental – pense-se na discussão metodológica sobre o primado da teoria em relação à prática e vice-versa, no seio da filosofia marxista, por exemplo.

Assim, o que procuraremos demonstrar a partir destas constatações é a maneira pela qual uma filosofia moral se articula com esta permanente tensão aberta pelo homem e o que esta filosofia moral geralmente deixa de observar ao questionar-se sobre o fundamento das práticas humanas. Da mesma forma, e por estar atrelada a uma concepção moral, procuraremos investigar de que forma as teorias políticas da modernidade constituem-se enredadas nesta tensão permanente e de que forma elas procuram, inutilmente, superá-la.

Se uma das grandes questões filosóficas no mundo helênico era justamente a pertinente a "qual é o Eros do pensamento?", ou conforme afirma John Rajchman (44), se a questão era saber: qual é a paixão que impele o cidadão a filosofar e o que este filosofar requer dele? Qual o estilo de vida que exigia do homem o filosofar; o que a atividade de filosofar representava nas relações consigo mesmo e com os outros, que atitude implica o fato de pensar(?) a filosofia ética contemporânea, por sua vez está longe de colocar como um de seus temas centrais estas questões. Talvez não signifique mais nada, atualmente, questionarmo-nos sobre o que é em si o filosofar, sobre as alianças que implicam a atividade de pensar a si e aos outros, a paixão que é o móvel de todo o questionamento acerca da nossa prática.

Ao contrário, com o surgimento do homem no pensamento moderno, os questionamentos sobre os problemas acima apontados não cessaram de permanecer presos ao duplo empírico/transcendental conforme descrito por Foucault e a questão, outrora relevante, sobre o Eros do pensamento – e, por sua vez, das relações entre a atividade de pensar e da constituição da polis – deu lugar à reduplicação do sujeito.

É a partir do problema kantiano a respeito de uma Razão prática fundante (Razão pura prática), por um lado; e de uma Razão pura conceitual fenomênica, alheia ao númeno, que podemos estabelecer todo o debate ético moderno. Pensamos poder ir um pouco além das constatações daqueles que enxergam na modernidade tão-somente a relativização própria de uma ética deontológica. Ao contrário, se voltarmo-nos para a senda aberta pelas ciências humanas e pela filosofia do sujeito, veremos se descortinar, também no plano da ética, o mesmo fenômeno apontado por Foucault quando da análise da episteme moderna.

Assim, o debate entre o universalismo ético e o relativismo pode ser tematizado a partir da analítica da finitude como sendo dois momentos do humanismo: (a) um primeiro momento voltado para o homem enquanto objeto de conhecimento e que tem como modelo privilegiado aquele das ciências humanas, da antropologia, da psiquiatria; (b) um segundo momento voltado para o homem enquanto sujeito finito mas fundante de todo o comportamento ético possível. O sujeito capaz de dar sentido às práticas sociais através das máximas morais da Razão prática, de um princípio da Razão. Numa ponta (a) teríamos a contingência da ética deontológica que vislumbra no homem um objeto a ser analisado a partir do ponto de vista externo e que, pelo fato de poder ser analisado, pode ser controlado, contido, através de regras morais contingentes. Noutra ponta (b) o sonho do sujeito fundante, aquele que, senhor de si e do mundo que ele mesmo constitui como um para-si, erige um princípio fundamental da Razão segundo o qual todo o comportamento pretérito ou futuro deverá se enquadrar para ser considerado como justo e, consequentemente, como válido.

Podemos ver aí nitidamente aquilo que Osvaldo Guariglia chama de oposição entre as visões universalistas e particularistas da ética e que, segundo o mesmo autor, "em torno da qual se subordinam os problemas principais da disciplina." (45) Seriam três níveis de "conflitos" que distinguiriam as duas principais visões modernas sobre a ética.

Primeiramente poderíamos encontrar a distinção, num nível metodológico, segundo Guariglia, entre a ética do correto e a ética de bom. Nas palavras do autor:

"[...] a orientação ao correto define a ética deontológica, isto é, uma ética que tem, entre suas propriedades, um método procedimental de decidir a correção das ações morais por meio de sua subsunção sob um princípio, ou uma classe de princípios, universalmente válidos... Por outro lado, a ética de bom tende a sustentar a existência de um ou alguns fins positivos para as vidas dos indivíduos, e, ao mesmo tempo, da sociedade, fins que mobilizam as paixões, interesses e inteligência dos membros de um grupo, na prossecução desses fins." (46)

Num outro nível, poderíamos encontrar uma segunda oposição fundamental no interior da especulação ética própria da modernidade. Esta insere-se diretamente no problema do sujeito e diz respeito à oposição entre autonomia e autenticidade.

[...] a autonomia como um ideal que unifica a autodeterminação, responsabilidade e liberdade...a autenticidade, isto é, uma forma de vida peculiar que prioriza a lealdade a uma escolha particular, seja individual ou coletiva, por ser a escolha de um mesmo... a autonomia está associada com uma ética universalista que garante a todos, por meio de seus princípios e procedimentos, uma igual oportunidade de desenvolver suas capacidades, a fim de selecionar e reforçar sua própria concepção da vida boa. De modo que o eu da autonomia se concebe como um eu impessoal, não involucrado ou livre de travas.

...(a autenticidade) originada no individualismo moderno, evoluiu de tal modo que inclui todas aquelas características que definem certas pessoas segundo suas marcas básicas de identidade, como linguagem, religião, gênero, orientação sexual, etc..." (47)

A concepção ética da autonomia seria mais conceitual, ou, melhor dizendo, mais formal que a noção de autenticidade, uma vez que a primeira seria mera abstração "que deve preencher-se com o material real da vida diária" restringindo-se a "estabelecer os fundamentos e pilares do eu moderno, deixando o resto do edifício em mãos de seu dono, que é livre para completá-lo". Ou seja, esta espécie de ética formal busca ressaltar o livre arbítrio como condição de qualquer conduta material, desde que "sempre respeitemos e contribuamos a fim de que outros, por sua vez, também respeitem o esquema básico de igualdade de direitos e oportunidades para todos, ou sempre que vivamos e contribuamos para viver em democracia." (48)

A autenticidade, por sua vez, seria menos abstrata, voltando-se para os traços constitutivos dos indivíduos ou dos grupos sociais e culturais: buscaria (a) garantir o direito dos indivíduos e/ou grupos se auto-constituírem enquanto sujeitos de direito e (b) assegurar e reconhecer o convívio entre diferentes concepções morais auto-construídas.

A última das oposições apontadas pelo autor diz respeito às concepções de cidadania dos liberais e dos republicanos. Enquanto os liberais, apoiados na noção de autonomia, buscam ver assegurados a cada indivíduo os mesmos direitos, as mesmas liberdades e a igualdade (predominantemente a igualdade formal), atribuindo ao Estado a função de garantir estes direitos e liberdades formais, o republicanismo tem uma concepção de sociedade onde o indivíduo tem papel predominante para participação do governo, ou seja, além de ser governado, o sujeito de direito governa, participa das decisões de governo, assegurando, assim, a igualdade material na distribuição dos bens e das riquezas – da vida boa.

Em todos os três casos, o que vemos é a reduplicação da tensão interna do discurso da modernidade, analisada por Foucault. Assim, a tensão entre o empírico e o transcendental – aqui, melhor especificando, entre o cogito e o impensado, pauta toda a discussão sobre o agir humano, a partir da constatação – ora de que a autonomia do sujeito garante um pensar e um agir incondicionado que partilha uma essência encontrável em todos os níveis das atividades humanas: o sujeito autônomo caracteriza-se pela possibilidade de pensar o impensável e, por isso mesmo, por pensar sobre si mesmo, por constituir-se como objeto de seu pensamento. Enquanto objeto empírico, por sua vez, o homem possui uma autenticidade fragmentária que deve ser construída, apreendida, na medida em que interage com outros sujeitos, com outras culturas, com outros mundos éticos.

Essa tensão permanente entre um Universalismo e um Relativismo éticos, por sua vez, somente tem sentido uma vez que advém de uma episteme própria da modernidade – a qual possui as características já apontadas – onde emergem discursos e práticas sociais instáveis, na medida em que têm de buscar incessantemente uma justificativa, ora transcendental, ora empírica para funcionarem, ao mesmo tempo em que são testadas pelas ciências humanas (antropologia, sociologia) as quais exigem do discurso sobre a ética que seja adequado às suas pesquisas sobre as condições do viver e do pensar dos homens.

Essa tensão permanente aufere um aparente ponto de equilíbrio somente quando abre-se para a filosofia (ou para a teoria) política. Tanto o Universalimo quanto o Relativismo éticos, em que pese discordarem no que pertine à natureza humana e à participação do sujeito na vida da polis, concordam quanto à necessidade de existirem instrumentos democráticos capazes de regrarem as relações sociais e possibilitarem um convívio o mais igualitário possível entre os sujeitos de direito.

Aqui surge um problema. Tanto um discurso quanto o outro deixam em suspenso a questão das relações de poder que subjazem aos jogos democráticos, deixam em suspenso a maquinaria de poder, as alianças, as práticas institucionais que são inerentes à arena política democrática.

Ao nosso ver, isso somente é possível, uma vez que a ética da modernidade dá condições de surgimento a uma concepção formalista de poder. O pensamento político moderno fundamenta-se sobre uma concepção formal de poder a qual pode ser traduzida pelo conceito de poder como mercadoria, i.é., os sujeitos de direito detêm o poder, vendem seu poder, trocam seu poder. Tem-se, assim, um antagonismo entre os que detêm o poder e os que não o tem (os desvalidos, os infames = sem fama). O conceito de poder como objeto leva-nos, inevitavelmente, à constatação de que a democracia (no mais das vezes a democracia formal-burguesa), constitui-se como único instrumento para "repartir o bolo" e distribuir, horizontalizar o poder.

Tal concepção, entretanto, peca por não antever que é no seio do jogo democrático, da arena democrática, que constituem-se as relações de poder, ou seja, que o poder somente existe enquanto relação entre sujeitos e grupos, não como mercadoria que pode ser distribuída, fracionada, compartilhada.

Aqui seria o momento de abrirmo-nos para as pesquisas de Foucault a respeito da analítica do poder e buscarmos estabelecer como as relações de poder, no interior da democracia (quer a formal, quanto a participativa) põem em prática dispositivos de dominação, de comprometimento recíprocos, de sujeições que estão longe (ao mesmo tempo em que muito próximos) dos ideais democráticos propugnados pelas teorias republicana e liberal. Por questões de espaço não nos é possível partir para esta analítica, mas cabe-nos, isso sim, apontar os limites reais das teorias políticas liberais ou comunitaristas, na medida em que, tanto uma quanto a outra, dissipam relações de poder que, partindo do pressuposto da tensão empírico/transcendental, colocam o Homem como um ideal no centro da arena política. este Homem, por sua vez, ora é tido como um objeto a ser explorado, investigado, testado, etc., ora é tido como um sujeito a ser libertado, desalienado, investido em seus direitos. Tanto um sujeito quanto o outro, entretanto, nada mais são do que funções dentro de relações de poder que se estabelecem na disputa sobre a quem pertence o direito de estabelecer os rumos deste sujeito universal.

Neste sentido, e em nome de um ideal democrático nebuloso, é que os Estados Unidos, por exemplo, podem invadir o Iraque e derrubar um regime "despótico" e, "libertando" o povo, estabelecer a democracia capaz de assegurar a liberdade e a equidade para todos os sujeitos – é claro que antes eles terão de "educar" o povo para trabalhar dentro do jogo democrático.

Desta forma é que constitui-se o pensamento político da modernidade, a partir de uma ética em permanente tensão entre o relativismo e o universalismo, a qual, por sua vez, é possibilitada por um solo epistêmico fortemente marcado pela reduplicação do Homem como sujeito e objeto do conhecimento. Daí culminar a política moderna, num incessante discurso vazio sobre a democracia e os direitos humanos, contraditas por práticas totalitárias (reproduzidas diariamente). Isso somente é possível uma vez que todos estes discursos deixam em suspenso as relações de poder que constituem o jogo democrático. Acreditamos, entretanto, ser possível recuperar um debate franco sobre os direitos humanos e sobre a igualdade, a partir do momento em que possamos trazer à tona uma analítica das relações de poder que dão ensejo a este debate, uma analítica capaz de pôr a descoberto as práticas sociais que investem os discursos sobre a igualdade de condições, sobre a inclusão social, sobre os direitos humanos, etc. – o que, de resto, é tarefa para uma outra oportunidade.


NOTAS

  1. BARZOTTO, Luis Fernando. Modernidade e democracia: os fundamentos da teoria da democracia de Hans Kelsen. In Anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, 2001, p. 140.
  2. TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos: ensayos sobre el conocimiento, el lenguaje y la modernidad; 70-71pp.
  3. Para um resumo sobre a teoria aristotélica do movimento veja-se: BORGES, Charles Irapuan Ferreira. Direito e moral em duas perspectivas.
  4. sobretudo em As palavras e as coisas onde Foucault contrapõe a modernidade (da qual ainda seriamos herdeiros) a duas outras descontinuidades históricas: a do renascimento e a da idade clássica – do racionalismo do século XVII – a qual remetendo aos antigos seria o interstício do renascimento e da modernidade.
  5. BARZOTTO, Luis Fernando. Modernidade e democracia....159p.
  6. Modernidade e democracia... 153/154p.
  7. idem. 146p.
  8. para um contato com a "hermenêutica da razão prática" de Charles Taylor, onde o autor procura traças um horizonte de argumentação, senão completamente, em grande parte isento do argumento apodítico, propugnando por um racionamento ad Hominen depurado por um sentido profundo de onde emergem nossas formas argumentativas, veja-se. La explicación y la razón práctica. In Argumentos Filosóficos: ensayos sobre el conocimiento, el lenguaje y la modernidad.
  9. GOYARD-FABRE, Simone. Os príncípios filosóficos do direito político moderno. 15p.
  10. ibidem.
  11. HABERMAS. Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. 27p.
  12. O discurso filosófico da modernidade, 30p.
  13. O discurso filosófico... 30p.
  14. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 72-73pp.
  15. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 417 p.
  16. Se já existe a diferenciação entre uma Natureza Humana e a Natureza como conjunto de outros seres que não o Homem, o certo é que ambas somente podem-se opor uma à outra por estarem inscritas em uma máthesis universalis que confere à primeira uma filhação (ou derivação), ainda que por oposição, à segunda.
  17. RABINOW, Paul & DREYFUS, Hubert. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. XV p.
  18. idem, 18 p.
  19. para o conceito de episteme remetemos o leitor para RABINOW, Paul & DREYFUS, Hubert. Uma trajetória filosófica. 20 p., bem como para MACHADO, Roberto. Ciência e saber. A trajetória da arqueologia de Michel Foucault. 147-158 pp.
  20. descrever significa traduzir em palavras o que é visto pelo olhar, ou seja, representar objetivamente (o que exclui qualquer interpretação) pela forma gramatical aquilo que é observado.
  21. MACHADO, Roberto. Ciência e saber. A trajetória da arqueologia de Michel Foucault. 129 p.
  22. idem. 132 p.
  23. idem. 133 p.
  24. apud. MACHADO, Roberto. Ciência e saber.... 133 p.
  25. MACHADO, Roberto. Ciência e saber... 134 p.
  26. RABINOW & DREYFUS. Op. Cit. 22 p.
  27. MACHADO. Op. Cit. 137 p.
  28. RABINOW & DREYFUS. Op. Cit. 27 p.
  29. RABINOW & DREYFUS. Op. Cit. 30 p.
  30. FOUCAULT apud. RABINOW & DREYFUS. Op. Cit. 31 p.
  31. RABINOW & DREYFUS. Op. Cit. 30 p.
  32. Op. Cit. 32-33 p.
  33. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, 434-435 pp.
  34. RABINOW & DREYFUS. Op. Cit. 34 p.
  35. esses três duplos, na verdade, formam o sistema de pensamento sobre o qual estão fundamentadas as reflexões filosóficas da Modernidade até nossos dias.
  36. RABINOW & DREYFUS. Idem.
  37. Kant mesmo se dará conta deste problema insolúvel e sempre manterá esta tensão interna em sua crítica que pretende ser uma síntese entre empírico e transcendental (juízo sintético a priori), na qual o transcendental estabelece a forma do conhecimento empírico mas só tem validade na medida em que é preenchido pelo conteúdo da experiência.
  38. RABINOW & DREYFUS. Op. Cit. 36 p.
  39. idem. 38 p.
  40. RABINOW & DREYFUS. Op. Cit. 40 p.
  41. ibidem.
  42. RABINOW & DREYFUS. Op. Cit. 42 p.
  43. idem. 45 p.
  44. RAJCHMAN, John. Eros e a verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. 7 p.
  45. GUARIGLIA, Osvaldo. Estabelecendo o debate na ética contemporânea. 607 p.
  46. GUARIGLIA, Osvaldo. Estabelecendo o debate na ética contemporânea. 608 p.
  47. idem, 608-609 p.
  48. idem, 609 p. grifos e omissões de nossa parte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARZOTTO, Luis Fernando. Modernidade e democracia: os fundamentos da teoria da democracia de Hans Kelsen. In Anuário do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, 2001.

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 4ª Edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

BORGES, Charles Irapuan Ferreira. Direito e moral sob as perspectivas positivista e materialista-estrutura. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=2242>. Acesso em: 21 ago. 2003.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. 8ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

__________, A ordem do discurso. 5ª Ed. São Paulo: Loyola, 1999.

GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GUARIGLIA, Osvaldo. Estabelecendo o debate na ética contemporânea. In VERITAS. Revista trimestral de filosofia da PUCRS. V. 45. N.º 4. Dezembro de 2000.

HABERMAS, Jürgem. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa-Portugal: Dom Quixote, 1990.

MACHADO, Roberto. Ciência e Saber: A trajetória da arqueologia de Foucault. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

RABINOW, Paul. & DREYFUS, Hubert L. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além da hermenêutica e do estruturalismo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

RAJCHMAN, John. Eros e verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos: ensayos sobre el conocimiento, el lenguaje y la modernidad. Barcelona-Espanha: Paidós, 1997.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Charles Irapuan Ferreira. Os fundamentos epistemológicos do pensamento político moderno: por uma leitura a partir de Michael Foucault. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 431, 11 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5680. Acesso em: 4 maio 2024.