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A cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento estadual de política macroeconômica

A cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento estadual de política macroeconômica

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A cobrança pelo uso dos recursos hídricos é um instrumento econômico de reduções de externalidades negativas, adotando o princípio do usuário-pagador que tem como pressuposto o valor econômico da água e a negociação entre o poder público e a coletividade sobre sua fruição.

Resumo:

             Ensaio inicial da investigação sobre a cobrança sobre o uso dos recursos hídricos como instrumento de política macroeconômica estadual, em especial do Estado de Mato Grosso. A cobrança pelo uso dos recursos hídricos é um instrumento econômico de reduções de externalidades negativas, adotando o princípio do usuário-pagador que tem como pressuposto o valor econômico da água e a negociação entre o poder público e a coletividade sobre sua fruição. Observando o aspecto econômico da água, a sua regulação intervirá no mercado, logo o Estado pode utilizar essa cobrança como meio de execução políticas econômicas. Atenta-se para a perda, nos últimos anos, pelos Estados-membros, da maioria dos seus instrumentos tradicionais de intervenção econômica. Logo, em uma interpretação sistêmica, há condições jurídicas, políticas e econômicas, para que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos seja uma ferramenta de atuação estatal na economia, suscitando mais pesquisas e estudos sobre sua natureza e efeitos.

Palavras-Chaves: Recursos hídricos; cobrança; externalidades; política macroeconômica; economia; direito econômico; direito ambiental.

Sumário: Introdução; I - Água, Escassez, Valor Econômico e Externalidades; II - Fases Históricas do Combate Estatal para Diminuição das Externalidades Causadas pelo Uso dos Recursos Hídricos; III - Da Legislação Instituidora da Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos e Sua Interpretação pelos Tribunais; IV - Classificação Econômica da Cobrança sobre o Uso dos Recursos Hídricos como Instrumento de Intervenção Econômica; V - Perda da Autonomia dos Estados Membros para Definirem suas Políticas Macroeconômicas; Aspectos Finais: Primeiras Hipóteses e Problemas a Serem Respondidos; Referências Bibliográficas.


Introdução

            O presente ensaio representa o início de uma investigação sobre um dos mais novos instrumentos estatais de intervenção ambiental e econômica: a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, conforme instituído pela Lei Federal n. 9.433/1994. Além da possibilidade sua implementação e utilização pelo Estado do Mato Grosso, conforme dispõe a Lei Estadual n. 6.945/1995. Inclui-se nesta investigação a análise de tal exação como um instrumento de efetivação de políticas macroeconômicas a serviço dos Estados-membros brasileiros.

            Basicamente, o tema a ser investigado pode ser resumido da seguinte forma: A cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento estadual de política macroeconômica. O objeto desse trabalho é a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, conforme instituído pela Lei Federal n. 9.433/1994 e a Lei Estadual n. 6.945/1995, prevendo a sua interpretação pelos tribunais. Já o objetivo é iniciar a análise do papel da cobrança pelo uso dos recursos hídricos na política macroeconômica, em especial do Estado de Mato Grosso para os próximos quatro anos, (execução do Plano Plurianual de 2004-2007, aprovado pela Assembléia Legislativa).

            Para detalhar no que consiste a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e sua relação com a política econômica estadual, é necessária a introdução em alguns conceitos que, numa interpretação sistêmica, demonstrarão a própria relevância do tema. Assim, primeiramente, (1) será explanado sobre o relacionamento de quatro elementos: Água, Escassez, Valor Econômico e Externalidades.

            Depois da planificação relacional, (2) serão relatadas as fases históricas do intervencionismo estatal para a diminuição das externalidades causadas pelo uso dos recursos hídricos. Segue-se a (3) interpretação dos textos legais sobre o que consiste a cobrança pelo uso dos recursos hídricos e os requisitos básicos para sua implantação, bem como (4) a sua classificação econômica como instrumento de intervenção.

            E por último, neste ensaio, (5) teremos uma breve reflexão sobre a perda da autonomia dos Estados-Membros para definirem e executarem suas políticas macroeconômicas, e o surgimento de um novo instrumento para a atenuação de tal perda.


I - Água, Escassez, Valor Econômico e Externalidades.

            A escolha dos fatores supra indicados decorre justamente por ser a água objeto da relação jurídico-econômica resultante de sua manipulação; a escassez é elemento gerador de conflitos que representa a impossibilidade de todos se servirem ilimitadamente de tal bem; o valor econômico é o resultado do segundo, para possibilitar a distribuição do bem escasso; e, as externalidades são justamente as conseqüências emanadas da manipulação, conforme a relação jurídico-econômica do bem em questão.

            Água. A água como conhecemos e necessitamos encontra-se a cada dia mais escassa. Não importando a corrente teoria a ser seguida, é certo que todo aquele bem que é útil e escasso têm valor econômico, e, quanto maior a sua utilidade e escassez, maior será o seu valor. (1) Voltando, a utilidade da água não necessita ser comentada, ainda mais das águas doces. O segundo elemento para a valoração econômica da água (escassez), principalmente no Centro-Oeste brasileiro, é falseado pela impressão de abundância e regularidade de abastecimento, estimulando a sua qualificação como a de um bem inferior, sem que seu valor real seja percebido pelos usuários locais.

            Entretanto, a realidade presente e futura tem nos mostrado o inverso de tal impressão. Sob os auspícios do uso desordenado da água, sob a crença de eterna renovação, a verdade tem-se mostrado perversa. A taxa de renovação (renovação marginal (2)) dos corpos d’água, para as suas mais diversas funções (abastecimento urbano e rural, nutrição humana e animal, esgotamento e outros), apresenta-se muito inferior a taxa de seu uso (uso marginal). Logo a sua qualidade para os usos mais genéricos tem caído a níveis nunca vistos. A água com qualidade, além de útil, torna-se escassa. A tenebrosidade dessa realidade é tanta que, em janeiro de 1993, na Conferência de Dublin, a água passou a ser considerada um recurso natural finito e vulnerável (3).

            Introduzido o problema geral da água, cumpre-nos esclarecer qual o aspecto e classificação da água de que se está tratando, para evitar-se generalismos. Como já colocado anteriormente, por causa dos usos indevidos da água, a mesma perde várias de suas funções ou utilidades, logo podemos definir espécies de água. Para o nosso caso, identificaremos uma espécie de água como recursos hídricos, relevando o aspecto econômico dos volumes de água. Ou seja, quando a água entra no processo econômico-produtivo como elemento de troca, fator de produção ou, inclusive, como produto, vislumbramos a sua face econômica.

            Considerando que, com a degradação e a escassez das fontes (manguezais, rios, olhos d’água, lençóis freáticos, e outros), do volume de recursos hídricos, e com sua extrema utilidade, temos um cenário de alta valorização econômica dos mesmos. Entretanto, por incapacidade de apropriação (no sentido de propriedade e domínio) dos recursos hídricos presentes na natureza, eles são considerados livres, mesmo que apresentando alta valoração econômica. Em face de tal realidade, o Estado, visando regular tal situação desde a metade do século XIX, tem criado progressivamente instrumentos para fazer com que os recursos hídricos tenham reconhecido o seu valor econômico. O motivo destes esforços tem o objetivo de fazer os usuários desse bem interiorizem os custos dos prejuízos causados a terceiros, mesmo que não expressamente percebidos individualmente. Em suma, essa interferência causada a terceiros por certa atividade e que não é normalmente contabilizada é conhecida de externalidades.

            As externalidades podem ser positivas ou negativas. As primeiras são aquelas benéficas, como o exemplo de uma indústria que irá ter 100 empregos diretos em uma comunidade, onde as externalidades positivas serão os empregos indiretos e a maior circulação de valores na comunidade. As externalidades negativas traduzem-se nas interferências prejudiciais, em que, no mesmo exemplo, podemos indicar a poluição da indústria (resíduos jogados no ar e no córrego que abastece a cidade), ocasionando maior ocupação hospitalar por problemas respiratórios e custos com tratamento da água. Isso é, as externalidades são os efeitos negativos ou positivos não contabilizados monetariamente pelos agentes econômicos. [NUSDEO, 1997, p. 176-178]


II - Fases Históricas da Intervenção Estatal para Diminuição das Externalidades Negativas

            O Estado, por meio de instrumentos jurídicos e econômicos, busca diminuir as externalidades negativas, redirecionando os efeitos para os agentes causadores. Tal fenômeno é conhecido como o processo de internalizar as externalidades. Consideram-se três fases históricas [CANEPA, 2000] por quais passou a interferência estatal na busca de reduzir as externalidades causadas pelo uso dos recursos hídricos.

            Primeira fase. Anterior a 2ª Guerra Mundial. A forma preponderante de atuação do Estado foi a intervenção específica nas questões dos recursos hídricos, que por sinal foram as primeiras questões ambientais normatizadas. Tal intervenção era efetuada por meio das disputas nos tribunais, onde as vítimas diretas das externalidades buscavam a o ressarcimento de seus danos. Observe-se que a legislação de tal época referente ao meio ambiente é de caráter fortemente privatista e individualista, muito arraigada aos princípios dos direitos de primeira geração (direitos individuais e políticos públicos).

            Segunda fase. Ao verificar a incapacidade do simples sistema individualizado de ajuste ambiental, o Estado exerceu um controle mais efetivo do meio ambiente, que recebeu o nome de Política de Mandato-e-Controle, assumindo características bem definidas: i) a imposição, pela autoridade ambiental de padrões de emissão incidentes sobre a produção final (ou sobre o nível de utilização de um insumo básico) do agente poluidor; ii) a determinação da melhor tecnologia disponível para abatimento da poluição e cumprimento do padrão de emissão. Está clara a política de intervencionismo direto do Estado, muito característico do projeto do Well Fare State, ou implementação dos direitos sociais de segunda geração.

            Terceira fase. Hoje em estágio de implementação, adotando um sistema misto de intervenção e participação dos particulares. Em que a imposição nem sempre é acompanhada de uma punição, busca-se por meios econômicos a implementação de uma Política Ambiental cujo conteúdo permita a inserção da restrição a ser imposta. Sem qualquer restrição absoluta à atividade econômica, mas sim uma negociação, influenciando diretamente os custos de produção. Ou também, a adoção de padrões de qualidade em complementação aos, antes adotados, padrões de emissão, bem como a utilização de outros instrumentos econômicos (exemplo tributos, subvenções e cessões de direitos), procuram induzir condutas menos agressivas ao meio ambiente.


III - Da Legislação Instituidora da Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos e Sua Interpretação pelos Tribunais

            O foco de análise do estudo estará direcionado para o posto na última fase histórica exposta acima, pois foi nela que o Estado imbuído de novos conceitos econômico-jurídicos instituiu a Política Nacional e Estadual de Recursos Hídricos, instrumentalizando a gestão dos aqüíferos, criando a figura da outorga do direito de uso e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos.

            Assim, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos está definida nos seguintes artigos da Lei Federal 9.344/1994:

            DA COBRANÇA DO USO DE RECURSOS HÍDRICOS

            Art. 19. A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva:

            I - reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;

            II - incentivar a racionalização do uso da água;

            III - obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos.

            Art. 20. Serão cobrados os usos de recursos hídricos sujeitos a outorga, nos termos do art. 12 desta Lei.

            Parágrafo único. (VETADO)

            Art. 21. Na fixação dos valores a serem cobrados pelo uso dos recursos hídricos devem ser observados, dentre outros:

            I - nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação;

            II - nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico-químicas, biológicas e de toxidade do afluente.

            Art. 22. Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão utilizados:

            I - no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos;

            II - no pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

            § 1º A aplicação nas despesas previstas no inciso II deste artigo é limitada a sete e meio por cento do total arrecadado.

            § 2º Os valores previstos no caput deste artigo poderão ser aplicados a fundo perdido em projetos e obras que alterem, de modo considerado benéfico à coletividade, a qualidade, a quantidade e o regime de vazão de um corpo de água.

            § 3º (VETADO)

            Essa estrutura foi repedida pela legislação mato-grossense, conforme a Lei Estadual no. 6.945/1995:

            Art. 13 A cobrança pelo uso da água é um instrumento gerencial que visa:

            I - conferir racionalidade econômica ao uso da água, dando ao usuário uma indicação de seu real valor;

            II - disciplinar a localização dos usuários, buscando a conservação dos recursos hídricos de acordo com sua classe de uso preponderante;

            III - incentivar a melhoria dos níveis de qualidade dos efluentes lançados nos mananciais; e

            IV - promover a melhoria do gerenciamento das áreas onde foram arrecadados os recursos.

            Art. 14 Serão cobrados os usos de recursos hídricos sujeitos à outorga.

            Parágrafo único Resolução do Conselho Estadual dos Recursos Hídricos estabelecerá os procedimentos relativos à cobrança pelo uso da água, a ser implementada de forma gradual, a partir da vigência desta lei.

            Art. 15 O cálculo do custo da água, para efeito de cobrança, observará:

            I - a classe de uso preponderante em que for enquadrado o corpo d’água objeto de uso;

            II - as características e o porte de utilização;

            III - as prioridades regionais;

            IV - tipo de consumo;

            V - o nível de quantidade e da qualidade dos efluentes;

            VI - a disponibilidade hídrica local;

            VII - o grau de regularização assegurado por obras hidráulicas.

            § 1° No caso de utilização dos corpos d’água para diluição, transporte e assimilação de efluente, os responsáveis pelos lançamentos ficam obrigados ao cumprimento das normas e padrões legalmente estabelecidos, relativos ao controle da poluição das águas;

            § 2° A utilização dos recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e transporte hidroviário reger-se-á pelas legislações pertinentes.

            É interessante comentar que, por força do disposto no artigo 19, do diploma federal citado, é deixado claro que um dos fins do instrumento estudado é justamente reforçar o valor econômico da água, ressaltando a sua natureza de recurso ou bem econômico.

            Deve ser ressaltado, de forma a evitar confusões, o real objeto dessa cobrança. Ele consiste na cobrança de valores monetários em função da utilização dos recursos hídricos por quem é detentor da outorga nos direitos de uso. A cobrança não será efetuada contra o consumidor da prestação de serviços de tratamento, de abastecimento, de coleta e esgotamento de dejetos (rede de esgotos), mas daqueles que utilizam os recursos hídricos por meio de captação direta dos corpos d’água, incluindo em sua atividade econômica, ou daqueles que os utilizam em sua atividade econômica para, posteriormente, esgotá-lo diretamente no corpo d’água (exemplos: produtores rurais (4), companhias de abastecimento, empresas geradoras de energia elétrica, indústrias, etc.)

            Segundo o sistema proposto, os valores cobrados serão variáveis de acordo as condições de captação e devolução à bacia hídrica, após a determinação do Conselho Estadual/Nacional de Recursos Hídricos sobre a quantidade de recursos financeiros necessária para manter o sistema e o nível de qualidade do corpo d’água. Ou seja, a fixação de valores para utilização da água tem a finalidade de distribuir custos de administração entre os usuários, para proporcionar incentivos adequados ao sue uso eficiente e, conseqüentemente, como restrição efetiva ao mau uso, aos despejos e à contaminação dos recursos hídricos [POMPEU, 2000, p. 46.47].

            Com todos esses aspectos legais e fáticos, o tema deverá sofrer reflexões sobre a interpretação a ser dada pelo Poder Judiciário, pois, por ser um instrumento novo e pouco utilizado pelo corpo estatal brasileiro, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos poderá perder ou ganhar importância como instrumento de política macroeconômica. Isso, principalmente, sobre a falta de clareza quanto à natureza jurídica da exação: tributária (taxa ou contribuição de melhoria) ou civil (preço-público). E esse ponto não poderá no futuro ser deixado de lado, pois o regime jurídico de uma exação não é vinculada ao seu nomen iuris, mas a sua real natureza jurídica. Adiantadamente, pode-se colocar a possibilidade de maximizar o potencial de intervenção macroeconômica caso a cobrança em comento tenha natureza civil, porque permitirá a sua rápida manipulação (5). Cumpre-nos ressaltar que, quanto maior a incerteza existente nas questões jurídicas, maior é o nível de insegurança e risco das relações econômicas [PINHEIRO, 2003, p. 21-23].


IV - Classificação Econômica da Cobrança sobre o Uso dos Recursos Hídricos como Instrumento de Intervenção Econômica

            Entre os autores atuais brasileiros que mais repercussão têm apresentado em questões econômico-ambientais, podemos colocar a dupla Rabah Benakouche e René Santa Cruz que nos trazem a seguinte ligação entre instrumentos econômicos e padrões ambientais:

            Os instrumentos econômicos constituem meios para atingir determinadas metas prefixadas, no caso, certos padrões ambientais. Esses instrumentos podem ser utilizados paralelamente ou em complemento com outros instrumentos (regulamentações legais, acordos com indústrias, etc.).

            Diferentemente de outros instrumentos, os de natureza econômica influem sobre vantagens e custos dos agentes econômicos, modificando suas ações no sentido favorável ao Meio Ambiente. Traduzem-se em transferência financeira dos agentes privados ao governo ou permitem a criação de novos mercados (mercados de "direitos de poluição", por exemplo). [1994, p. 162]

            Os mesmos autores agrupam os principais instrumentos econômicos de política ambiental em duas categorias: princípio do poluidor pagador (PPP) e as taxações (6). A primeira categoria pode ser resumida da seguinte forma:

            Do ponto de vista econômico, o PPP significa a "internalização" das externalidades. Foi Pigou, como foi dito anteriormente, que formulou esse princípio. Partindo-se do fato de que a "gratuidade" do Meio Ambiente é, fundamentalmente, responsável pela degradação ambiental. Pode-se conseguir internalizar as externalidades, ou seja, passa-se a incorporar o MA na esfera do mercado. Equivale a dizer que há restabelecimento da "verdade dos preços", ou seja, o dano ambiental tem um custo e deve ser suportado pelo poluidor. Do ponto de vista da justiça, seria correto, certo e líquido que o poluidor arcasse, pelo menos, com o custo da despoluição. [1994, p.164].

            E a segunda categoria, a qual, por motivos de técnicas de planejamento público, preferimos chamar de exacionais, podem ser consideradas como sendo o preço da poluição, por conduzir os agentes econômicos a internalizar os custos ambientais em sua atividade.

            Dessa, poderíamos classificar as seguintes exações utilizadas pelos países da OCDE:

            - por emissão de poluentes;

            - por serviços prestados por entes públicos/privados para reparação/prevenção de danos ambientais;

            - sobre produtos mais nocivos ao meio ambiente (sobre taxação);

            - administrativas;

            diferenciadas para estimular feitos/produtos mais adequados e menos agressivos ao meio ambiente.

            Segundo Cánepa [2000], o preço (valor) ideal a ser utilizado por tais exações é o representativo pelo custo marginal de recuperação dos danos ambientais e sociais equivalente à utilidade marginal desejada pela sociedade/Estado.

            Entretanto, podem-se apresentar outros instrumentos econômicos de políticas econômico-ambientais, que se alinham mais facilmente ao conceito do PUP, como: Subsídios, Sistema de Consignação (espécie de depósito prévio de agentes potencialmente poluidores), Mercado de direitos de poluição (disposição de cota de poluição), Incentivos Financeiros. Podendo-se inclusive assemelhar tais instrumentos, com exceção dos subsídios, com instrumentos de políticas monetaristas de manipulação macroeconômica. (7)

            Cabe ressaltar que o conjunto de todas essas medidas estatais, somadas à análise de investimento considerando aspectos estratégicos associados ao meio ambiente, têm sido tema de capital importância para o ciclo econômico atual, tanto no curto quanto no longo prazo [MOURA, 2000].

            A cobrança sobre o uso dos recursos hídricos, ao verificar-se a literatura econômico-jurídica existente, encaixar-se-ia, em primeira analise, dentre os instrumentos econômicos exacionais, entretanto pode adquirir um viés de Mercado de direitos de poluição (8), dependendo da regulamentação a ser dada pelo ente estatal instituidor. Isso devido à possibilidade da cobrança pelo uso dos recursos hídricos servirem como venda de cota de poluição.


V - Perda da Autonomia dos Estados Membros para Definirem suas Políticas Macroeconômicas

            Em tempo, deve ser exposto o fato de que todos os Estados-membros da República Federativa do Brasil perderam, nos últimos 6 (seis) anos, quase todos os seus instrumentos clássicos de gerenciamento de políticas macroeconômicas, especialmente de natureza monetária e fiscal. Observa-se que quase todos os Estados-Membros perderam seus bancos estaduais, Companhias de Eletricidade, de Telecomunicações, algumas de Saneamento, vêm sofrendo uma grande limitação no gerenciamento de seus tributos (Emenda Constitucional no. 42/2003, Lei Complementar no. 87/1997, avanços da União em suas receitas por meio da instituição de contribuições sociais e de intervenção de domínio econômico), estão proibidos de lançar no mercado títulos creditícios (Lei Federal Complementar no. 101/2001), entre outras restrições impostas por alterações do texto constitucional brasileiro, a partir da Emenda Constitucional no. 19/1998. (9)

            O Estado do Mato Grosso é um retrato de toda essa perda de autonomia. E tal perda foi agravada pela falta de utilização de meios alternativos disponibilizados pela legislação. Apontando para os pontos supra apresentados, temos, nitidamente, a inter-relação entre meio ambiente e economia, e, mais especificamente, entre recursos hídricos e economia. Até o presente ano de 2003, a política estadual de gerenciamento hídrico esteve praticamente parada, sendo somente este ano com real formação do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (Diário Oficial do Estado de 07 de maio de 2003).

            Acrescenta-se, como fato novo em relação ao gerenciamento dos recursos hídricos, a inclusão de programas para a implantação e efetivação dos Comitês de Bacia e Sub-Bacias Estaduais do Plano Plurianual 2004-2007, conforme Lei Estadual n. 8.064/2003, que teve seu projeto enviado pela Mensagem no. 49/2003, para aprovação da Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso.

            Logo, há condições administrativas e políticas de execução de uma política estadual de gerenciamento de recursos hídricos e a implementação da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, bem como a sua definição dentro de uma política macroeconômica estadual (10).

            Em suma, o Estado-membro pode utilizar as cobranças pelo uso dos recursos hídricos como instrumento de manipulação macroeconômica, podendo aquecer ou desaquecer setores da econômica de acordo com sua importância sócio-econômico-social.


Aspectos Finais: Primeiras Hipóteses e Problemas a Serem Respondidos

            As nossas primeiras hipóteses podem ser enumeradas da seguinte forma:

            1 - A água tem apresentado a cada dia um aumento em seu valor econômico, apresentando sua face de recurso econômico (recurso hídrico);

            3 – A cobrança pelo uso dos recursos hídricos deve ser classificada como instrumento jurídico-econômico para a interiorização das externalidades negativas causadas pelos usuários da água;

            3 – Entre os instrumentos macroeconômicos a cobrança pelo uso dos recursos hídricos pode ser classificada como exação ou criadora de um mercado de direitos de poluição, dependendo de como for disciplinada pelo órgão instituidor;

            4 – A cobrança pelo uso dos recursos hídricos pode ser utilizada como instrumento de políticas macroeconômicas.

            Entretanto, pairam dúvidas sobre qual é o papel da cobrança sobre o uso dos recursos hídricos como instrumento de política macroeconômica estadual. Por esse motivo, para evitarmos previsões sem qualquer base fática, deveremo-nos pautar no Plano Plurianual 2004-2007 do Estado de Mato Grosso, conforme Lei Estadual n. 8.064/2003, no que tangem as políticas macroeconômicas do Estado de Mato Grosso, principalmente, em sua vertente ambiental.

            E qual a importância econômica de tais definições? Está claro que essa exação afetará o mercado como um todo, pois os valores cobrados serão repassados aos preços finais. O principal setor microeconomicamente afetado será o setor produtivo, incluindo indústrias de base, agroindústrias e agricultores, pois todos eles utilizam quantidades consideráveis de água para o exercício de suas atividades econômicas.

            Mais. Novamente na macroeconômica, pode haver criação de demanda efetiva por meio da manipulação da cobrança pelo uso dos recursos hídricos? Ou, a sua manipulação se tornaria semelhante ao instrumento mais adotado pelos defensores da cartilha monetarista, taxa de juros, afetando a oferta de recursos hídricos à semelhança de créditos?


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Notas

            1 Torna-se válida a colocação de ser recente esse raciocínio, já que era paradoxal para o clássico Ricardo a questão do valor dado ao diamante e à água, devido o questionamento de ser o primeiro de alto valor econômico, mas de pouca utilidade, e o segundo o inverso.

            2 É interessante esclarecer, para os não acostumados com o vocabulário econômico, que, ao utilizarmos qualquer locução nominal finalizada com marginal, estamo-nos referindo ao acréscimo de alguma unidade valor (custo, satisfação, utilidade) pelo aumento da quantidade de algum outro item a ele relacionado.

            3 Sitio da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, www.abrh.org.br, visitado no dia 18 de setembro de 2003.

            4 Agropecuária comercial.

            5 O papel como instrumento econômico da cobrança dependerá em grande parte de como ela será interpretada pelo Estado-Executivo e o Estado-Juiz. Em que relação a isso, podemos separar a existência de três correntes mais fortes:

            a) Trazida por economistas, a tese de ser a cobrança efetivada por preço público, no Brasil, um dos autores de maior profundidade no assunto CÁNEPA [2000] adota a teoria de J. H. DALES que motiva sua posição na consideração de serem os corpos d’água propriedade da União e/ou dos Estados-membros. Logo, seu uso deve ser valorado pelas regras de mercado. Juridicamente, no Brasil, tem seu principal apoio nos pareceres do civilista CID TOMANIK POMPEU [1999]. Essa corrente foi a introdutora do princípio ambiental do usuário-pagador ao lado do poluidor-pagador. Um precedente jurisprudencial que pode reforçar essa tese é a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.586/DF, da relatoria do Ministro Carlos Velloso do Supremo Tribunal Federal, publicada no Diário da Justiça da União no dia 01.08.2002, referente a exações incidentes sobre a exploração de minérios.

            b) Outro posicionamento, apesar de não direcionar para a questão dos recursos hídricos, mas observado em casos análogos, sugere que as cobranças pelo uso e por serviços públicos envolvendo recursos naturais devem ser efetivadas pelo tributo da espécie taxa, por serem serviços públicos, essenciais, não regidos pelas leis de livre mercado (Recurso Especial n. 127.960 / RS, 1a. Turma do STJ, 01.07.2002);

            c) Existem ainda outros defensores da tese que para a redução das externalidades negativas ocorridas no meio ambiente devem internalizadas por meio de contribuições de melhoria (NUSDEO, 1997);

            6 Esta classificação, apesar de ser a mais difundida, tem sofrido críticas construtivas por parte da doutrina econômica trazida por CANEPA, PEREIRA & LANNA (2000), que adotam as idéias de J.H. DALES. Em sua proposta, deixa-se claro que as taxações são, na verdade, a adoção do Princípio do Usuário Pagador (PUP), de sentido muito mais amplo que o PPP, sendo o ponto em comum entre os dois princípios a necessidade de internalizar as externalidades. Assim, o PPP seria o regente de uma atuação a posteriori, e o PUP seria o regente de uma atuação a anteriori.

            7 Ressalta-se, como será colocado no ponto seguinte, sobre a perda de autonomia dos Estados-Membros da República Federativa do Brasil em definirem a sua política macroeconômica por perdas graduais de seus instrumentos econômicos. Logo, mesmo que para fins econômico-ambientais, não há como o Estado do Mato Grosso atuar em políticas mais assemelhadas ao controle monetário e creditício.

            8 Sobre essa questão da formação de mercados de água há um interessante ensaio de Marcelo F. Guimarães [2001], que relaciona com grande propriedade a relação entre a agricultura e os recursos hídricos, ressaltando formas de solução de conflitos por meio de mercados sobre corpos d’água.

            9 Tais alterações tiveram como base a aplicação de políticas monetaristas, também comumente chamadas de neoliberais, que defendem a livre atuação dos agentes econômicos nos mercados, com a única atuação do estado no controle da moeda e da inflação (Hayek, Friedman, e outros). Tese oposta à linha de pensamento político ligada a Keynes e Kalec, vigorante até metade da década de 70, defensora da intervenção estatal, principalmente, em momentos de baixa atividade econômica.

            10 Estamos utilizando o termo políticas no sentido bobbiano, como conjunto de deliberações, providências, tendentes ao atendimento de uma ética coletiva (BOBBIO, 2000, p. 176-177).


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VETTORATO, Gustavo. A cobrança pelo uso dos recursos hídricos como instrumento estadual de política macroeconômica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 474, 24 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5803. Acesso em: 27 abr. 2024.