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A inconstitucionalidade do art. 50 da Lei nº 10.931/2004

(Lei de Proteção aos Bancos)

A inconstitucionalidade do art. 50 da Lei nº 10.931/2004. (Lei de Proteção aos Bancos)

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SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Apontamentos relevantes do caput do artigo 50 da Lei 10.931/04 e seus parágrafos – 3. Implicações com o Código Civil – 4. Implicações com o Código de Defesa do Consumidor – 5. Algumas decisões e interpretações de Juízes na Justiça Federal de 1° Grau e do TRF da 5ª. Região – 6. Orientação Jurisprudencial do STJ 7. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional e acesso à justiça – 8. Da dicotomia entre norma de direito material e direito processual – 9. A inconstitucionalidade do artigo 50 da Lei 10.931/04 – 10. Considerações finais – 11. Bibliografia.


1. Introdução

Com o advento da Lei 10.931, de 31/08/2004, que dispõe sobre patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera-se o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, as Leis nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, nº 4.728, de 14 de julho de 1965, e nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Muitas inovações ocorreram em nosso ordenamento jurídico. Alguns dispositivos já faziam parte do nosso sistema através de medidas provisórias. Em outros, há, à evidência, verdadeiros retrocessos, e, choques com outras normas legais, além de abusos que, certamente, deverão ser objeto de argüição de inconstitucionalidade. A mudança à qual será dado enfoque reside no artigo 50, pertinente às demandas judiciais que questionam revisão de cláusulas de contratos bancários.

A análise terá como objetivo proporcionar uma visão crítica à Lei. Estabelece aquele dispositivo no seu caput que, "nas ações judiciais que tenham por objeto obrigação decorrente de empréstimo, financiamento ou alienação imobiliários, o autor deverá discriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, quantificando o valor incontroverso, sob pena de inépcia." E em seus parágrafos assim dispõe:

"§ 1º. O valor incontroverso deverá continuar sendo pago no tempo e modo contratados.

§ 2º. A exigibilidade do valor controvertido poderá ser suspensa mediante depósito do montante correspondente, no tempo e modo contratados.

§ 3º. Em havendo concordância do réu, o autor poderá efetuar o depósito de que trata o § 2º deste artigo, com remuneração e atualização nas mesmas condições aplicadas ao contrato:

I - na própria instituição financeira credora, oficial ou não; ou,

II - em instituição financeira indicada pelo credor, oficial ou não, desde que estes tenham pactuado nesse sentido.

§ 4º O juiz poderá dispensar o depósito de que trata o § 2º em caso de relevante razão de direito e risco de dano irreparável ao autor, por decisão fundamentada na qual serão detalhadas as razões jurídicas e fáticas da ilegitimidade da cobrança no caso concreto.

§ 5º É vedada a suspensão liminar da exigibilidade da obrigação principal sob a alegação de compensação com valores pagos a maior, sem o depósito do valor integral desta".

Talvez seja esta uma das inovações que mais vêm preocupando os operadores do direito, principalmente aqueles que militam no direito bancário, haja vista que a Lei adotou, neste artigo, a obrigatoriedade de só poder discutir dívida bancária nos casos de estar o devedor adimplente ou, caso contrário, pagar ou depositar em Juízo, independentemente da existência de cláusulas abusivas ou de valores eivados de onerosidade.

Adotou-se, assim, com esta novidade, a valoração demasiada do princípio pacta sunt servanda, tendo nos banqueiros os seus maiores defensores, sem precisar declinar o porquê. Trata-se de limitar o acesso à justiça, negar ao consumidor de serviços bancários o direito de questionar a onerosidade excessiva da cláusula dos juros, da comissão de permanência; implica negar vigência a um direito e garantia fundamental.

Há, ainda, quem defenda (evidentemente aqueles ligados às Instituições Financeiras) que este dispositivo retroaja para atingir as ações que estão sendo discutidas em juízo, intentadas anteriormente à vigência da Lei. Observa-se no caput da Lei que: nas ações judiciais que discutem cláusulas de empréstimos bancários, o autor deverá discriminar na inicial aquilo que pretende controverter, quantificando o incontroverso, sob pena de inépcia. A lei versa, assim, sobre as demandas que venham a ser impetradas, pois aquelas que estão tramitando hão de ser apreciadas à luz da legislação vigente na época dos fatos.

Dar-se-á enfoque, também, ao momento que se operam os efeitos da norma de direito processual no direito material - onde será abordado o entendimento equivocado dado por alguns de nossos magistrados na consecução da aplicação correta da norma processual.

Assim, para uma melhor compreensão deste novo dispositivo, dissecaremos cada parágrafo, analisando suas expressões no contexto e suas implicações com a Constituição Federal, com o novo Código Civil, com o Código de Defesa do Consumidor, bem como a construção jurisprudencial que até então, consolidada pelo recente acórdão proferido pelo STJ, por sua 2ª. Seção, no julgamento do REsp 527618-RS, datado de 24.11.2003, de lavra do eminente ministro César Asfor Rocha, vinha sendo referendada por toda a doutrina, por sua pertinência a matéria bancária, e, também, estudaremos os novos posicionamentos adotados por alguns juízes da Justiça Federal e do TRF.


2. Apontamentos relevantes do caput do artigo 50 da Lei 10.931/04 e seus parágrafos

No caput do artigo vimos que o legislador consolida o entendimento de que o bacharelismo puro está morto - não encontra mais guarida no meio jurídico peticionar alegando cláusulas abusivas com o único fim de limpar o nome do devedor nos cadastros negativos de crédito. Este posicionamento já vinha sendo adotado pela atual orientação do STJ através do Resp 527618. A princípio não traz nenhuma novidade.

"A tendência do direito moderno é embasar qualquer pretensão com opiniões, laudos e pareceres dos experts em uma escala sem precedentes. Não se cogita mais de esperar a fase processual em que se designam os peritos, do juiz e das partes, a formulação de quesitos etc. Hoje, cada qual, já ingressa com sua fundamentação técnica." [1]

Em contraponto – não se estará limitando o acesso à justiça? A hipossuficiência do consumidor é patente nas relações negociais com as Instituições Financeiras, haja vista a prática corriqueira da recusa destes em fornecer dados relativos às operações bancárias aderidas através de contratos padronizados.

Outra situação gravosa da nova disciplina: como ter acesso ao judiciário se o consumidor terá inicialmente que contratar uma auditoria para indicar o que pretende controverter quando, em regra, sequer detém uma cópia do contrato? Com efeito, o CDC impõe, para facilitar a defesa dos direitos do consumidor, a inversão da prova desde que, constatando-se a presença de verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor, o juiz deverá inverter o ônus da prova. Aí já se vê a necessidade de uma interpretação sistemática das normas – situação imperativa nas mãos dos nossos magistrados para aplicar a melhor interpretação dos dispositivos centrados do restabelecimento do equilíbrio entre as partes.

No § 1º do artigo em tela, temos que, "o valor incontroverso deverá continuar sendo pago" ou seja, aquele valor em que a parte julga devido deverá continuar sendo pago. Já no § 2º, o legislador estabeleceu que "a exigibilidade do valor controvertido poderá ser suspensa mediante depósito do montante correspondente", podendo ser feito diretamente a instituição financeira. Em outras palavras, o depósito do valor integral das prestações ou o pagamento total da obrigação passou a ser indispensável para a suspensão da exigibilidade da dívida, a não ser que exista relevante razão de direito e risco de dano irreparável ao autor, apto a legitimar a dispensa judicial do depósito em referência - isto porque no § 4º o juiz terá a faculdade de dispensar o depósito que trata o § 2º, por decisão fundamentada.

O § 3º cria uma consignação-pagamento que representa o depósito das quantias controvertidas a serem pagas no próprio banco credor ou por outro indicado por ele, aplicando-se as mesmas regras do contrato. Ou seja, nada muda.

O § 4°, como já comentamos, abre a faculdade ao juiz para dispensar o depósito/pagamento da parcela controvertida em caso de relevante razão de direito e risco de dano irreparável num processo de cognição exauriente bem fundamentada.

O § 5º proíbe, veda a suspensão da exigibilidade da obrigação principal através de liminar, sob a alegação de compensação com valores pagos a maior, sem o depósito do valor integral desta. Assim como pactuado, deverá continuar sendo pago ao tempo e modo contratados. A intenção desse artigo é condicionar a exclusão do nome do devedor nos cadastros de restrição ao crédito mediante o depósito integral do valor em discussão.

Residem nos §§ 2º e 5º as maiores aberrações deste artigo. A uma, porque só será suspensa a exigibilidade da parcela controversa mediante o depósito do montante integral da dívida, na própria instituição financeira do mesmo modo e tempo contratado. A duas, porque é vedada a concessão de liminar sob o principal sob o argumento de compensar parcelas pagas a maior.

Ora, da forma com a questão está colocada pelo artigo 50 da Lei 10.931/04, o consumidor jamais poderá valer-se das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor, principalmente do artigo 6°, V, para questionar, por exemplo, juros bancários "pactuados" em 1.000% ao ano!!! Impedir ao consumidor o direito de questionar a onerosidade excessiva da cláusula dos juros implica negar vigência a um direito e garantia fundamental [2], como se fosse dada à instituição financeira uma carta branca para livremente explorar sua propriedade sem atentar-se para sua função social.

Com efeito, esta nova disciplina é um verdadeiro retrocesso diante do avanço da nova teoria do direito obrigacional no nosso ordenamento jurídico. Encontra-se articulado o direito contratual, regulado pelo novo Código Civil e pelo CDC, que celebram a primazia da função social do contrato (arts. 421 e 422, CC e art. 51, IV, do CDC), da proteção ao hipossuficiente da relação contratual, atinentes aos contratos por adesão (arts. 423 e 424, CC e art.s 6°, VIII, 51, VI e 54 do CDC), da resolução por onerosidade excessiva e da cláusula rebus sic stantibus (arts. 478 e 480, CC e art. 51, X, do CDC), do enriquecimento sem causa (art. 884, CC e art. 6°, V, do CDC), da lesão (art. 156, CC), e do estado de perigo (art. 156, CC).


3. Implicações com o Código Civil.

Entre as diversas discussões que se trava no judiciário acerca de ações revisionais de contratos bancários, destaca-se entre as maiores argüições os seguintes conflitos: existência ou não de anatocismo (capitalização de juros), onerosidade excessiva nas taxas de juros remuneratórios, sistema de amortizações, elevadas taxas de comissão de permanência, repetição do indébito, renegociação de dívidas, novação de contratos, entre outros.

Uma espécie de contrato que merece uma discussão mais aprofundada refere-se aos financiamentos pelo SFH – que hoje representa na Justiça Federal a maior demanda por ações, ensejando na cidade de Curitiba "varas especializadas em ações que envolvem o SFH". Será abordado em outro momento os fatores que oneram excessivamente estes financiamentos, que na sua grande maioria possuem amortizações negativas, motivo pelo qual a dívida torna-se vitalícia, eterna, infinita.

O novo Código Civil renovou a cláusula rebus sic stantibus. "A irrevogabilidade do pacta sunt servanda sede lugar a uma relativa dogmática, a reprimir a falta de idêntica liberdade entre as partes contratantes, o proveito injustificado, a onerosidade excessiva, admitindo a correção dos rigores contratuais ante o desequilíbrio contratual."[3].

O que vem a ser um fato imprevisível. A desvalorização do real perante o dólar? A alteração de uma alíquota de importação? Os diversos planos econômicos? Cláusulas potestativas? Amortizações negativas na evolução do saldo devedor (anatocismo)? Na verdade, para a modificação de um contrato, basta que a base do negócio jurídico tenha sido alterada, ou seja, que ocorra um desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação da avença entre o consumidor e a instituição financeira.

O princípio da autonomia da vontade sofre, portanto, restrições, trazidas pelo dirigismo contratual, que é a intervenção estatal na economia do negócio jurídico contratual, por entender-se que, se se deixasse o contratante estipular livremente o contrato, ajustando qualquer cláusula sem que o magistrado pudesse interferir, mesmo quando uma das partes ficasse em completa ruína, a ordem jurídica não estaria assegurando a igualdade econômica.[4].

A "função social do contrato" acentua a diretriz de "sociabilidade do direito", de que nos fala, percucientemente, o eminente Prof. Miguel Reale, como princípio a ser observado pelo intérprete na aplicação dos contratos. Por identidade dialética a função social do contrato guarda intimidade com o princípio da "função social da propriedade" previsto na Constituição Federal.[5].

A leitura do art. 478 nos revela que o Código Civil condiciona a resolução do contrato, por onerosidade excessiva, entretanto, parece-nos evidente que, embora não o diga expressamente, a regra do artigo referendado também poderá ser invocada, caso prefira a parte prejudicada apenas modificar ou rever a cláusula que se desequilibrou.

Observa-se que o dispositivo inserto no art. 884 do CC trata do enriquecimento sem causa. Neste aspecto o Código Civil trás uma inovação louvável, uma vez que consolida na lei civil a matéria, não ficando ela sujeita às interpretações da jurisprudência.

Na clássica definição de Orlando Gomes: "Há enriquecimento ilícito quando alguém, a expensas de outrem, obtém vantagem patrimonial sem causa, isto é, sem que a tal vantagem se funde em dispositivos de lei, ou em negócio jurídico anterior. São necessários os seguintes elementos: a) o enriquecimento de alguém; b) o empobrecimento de outrem; c) o nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento; e d) a falta de causa justa". [6]

É de domínio público que as taxas de juros cobradas no setor privado no Brasil são os maiores do mundo. Um estudo realizado pelo Instituto de Estudos para Desenvolvimento Industrial (Iedi) revela que os juros no Brasil só perdem para o de Angola.

O Banco Central divulgou o balanço com as informações contábeis dos 50 maiores bancos do País. O lucro das instituições financeiras foi recorde se comparado com o crescimento econômico do Brasil em 2003. O setor registrou lucro líquido de R$ 12,563 bilhões no ano passado contra R$ 10,134 bilhões em 2002.

Dentro desse diapasão, são evidentes as implicações que o malsinado art. 50 vem tentar proteger, favorecer, mais ainda os banqueiros, em detrimento do já tão explorado consumidor de serviços bancários. Assim, segundo os dispositivos do Código Civil, bastar que se demonstre a onerosidade excessiva, o enriquecimento sem causa, a lesão, para se postular ações revisionais de contratos bancários.

É preciso ter em conta que, ao viabilizar a circulação da riqueza, o contrato não pode aumentar de forma desproporcional a concentração de renda, porque aí o contrato estaria incrementando a desigualdade social, militando assim contra o próprio objetivo do Estado que é a promoção da justiça social.


4. Implicações com o Código de Defesa do Consumidor.

O CDC é uma normatização que visa a dar eficiência plena ao preceito constitucional do artigo 5º, XXXII – inova consideravelmente o espírito do direito das obrigações, relativo à máxima pacta sunt servanda. O CDC reduz o espaço, antes reservado para a autonomia da vontade, proibindo que se pactuem determinadas cláusulas, impõe normas imperativas, que visam a proteger o consumidor, reequilibrando o contrato, garantindo as legítimas expectativas que depositou no vínculo contratual. [7].

"O microssistema do CDC é lei de natureza principiológica. Não é nem lei geral nem lei especial. Estabelece os fundamentos sobre os quais se erige a relação jurídica de consumo, de modo que toda e qualquer relação de consumo deve submeter-se à principiologia do CDC. Conseqüentemente, as leis especiais setorizadas ( v.g. seguros, bancos, calçados, transportes, serviços, automóveis, alimentos etc.) devem disciplinar suas respectivas matérias em consonância e em obediência aos princípios fundamentais do CDC. Não seria admissível, por exemplo, que o setor de transportes fizesse aprovar lei que regulasse a indenização por acidente ou vício do serviço, fundada no critério subjetivo (dolo ou culpa), pois isso contraria o princípio da responsabilidade objetiva, garantido pelo artigo 6° do CDC. Como o CDC não é lei geral, havendo conflito aparente entre suas normas e alguma lei especial, não se aplica o princípio da especialidade (Lex specialis derogat generalis): prevalece a regra principiológica do CDC sobre a lei especial que o desrespeitou. Caso algum setor queira mudar as regras do jogo, terá de fazer modificações no CDC e não criar lei à parte, desrespeitando as regras principiológicas fundamentais das relações de consumo, estatuídas no CDC."[8].

Um exemplo clássico que caracteriza bem a aplicação do preceito insculpido no inciso V do art. 6º do CDC se deu por conta da crise cambial de janeiro de 1999, quando a desvalorização da moeda nacional, frente à moeda estrangeira que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impediu o consumidor de solver as obrigações pactuadas.

Poder-se-ia, ainda, citar o art. 6°, V, juntamente com as idéias do artigo 4º, III, os princípios da boa-fé, equilíbrio das relações de consumo e função social do contrato. Com as idéias de lesão enorme, práticas abusivas, prestações desproporcionais e excessivamente onerosas, enfim, um diálogo sistemático e coerente com os princípios e normas do Código Civil.

Um dos maiores embates que se trava no judiciário frente a revisões contratuais, diz respeito aos contratos de adesão e seus juros remuneratórios. A questão que nos ocupa afasta-se dos extremos. Não se trata de querer reduzir as taxas contratuais para o patamar clássico de 12% ao ano, nem de aceitar taxas de juros de 264% ao ano. Pelo contrário, trata-se de assegurar ao consumidor o direito de modificar a cláusula dos juros pactuados com onerosidade excessiva. Anote-se que nos casos das demandas judiciais o magistrado poderá reduzir a patamar compatível com as taxas médias praticadas pelo mercado, em torno de 20% a 30% ao ano, ou até mantê-la nos níveis pactuados, desde que, no caso concreto, seja demonstrada a ausência da onerosidade excessiva.

Os problemas relativos aos juros atualmente em discussão no Judiciário não são poucos. Espera-se que os Tribunais Superiores dêem a interpretação sistemática coerente aos dispositivos da nova lei (10.931/04) com os outros textos e normas civis que regulam as relações de consumo. A segurança jurídica é essencial para o desenvolvimento econômico, e a persistência das incertezas só traz prejuízos.


5. Algumas decisões e interpretações de Juízes Federais e do TRF da 5ª. Região.

É bom lembrar, ainda, que o dispositivo contido no art. 50, da lei em comento, tem natureza essencialmente material, pois disciplina a conduta dos indivíduos no seu cotidiano, incide no patrimônio do sujeito, criando para este um poder, uma faculdade ou um dever. Com efeito, no caput do artigo se vê cristalino que há uma aplicação de natureza processual a ser praticada na fase postulatória das ações judiciais – que irão realizar a eficácia contida na norma material.

Mesmo assim, alguns juízes hesitam em distinguir o momento do direito material e a função exercida pelo processo, perante o próprio direito material. Bem expressivo nessa hesitação se configurou a decisão interlocutória proferida pelo eminente Juiz Federal Dr. Newton Fladstone Barbosa de Moura:[9]

"Em audiência na "Sala do Círculo de Conciliação", o Juiz Federal Dr. Fladstone, decidiu por "determinar à parte autora que proceda, a partir desta data, na forma do art. 50, §§ 1º e 2º, da Lei 10.931/2004, tomando-se por base o valor de R$ 206,63, referente à prestação atual, devendo apresentar mensalmente o comprovante de depósito judicial. Nestes termos, fica revogada a decisão anterior neste ponto.

Como fundamento de sua decisão o ilustre Juiz Federal invoca que a nova legislação em vigor, a Lei 10.931/04 veio estabelecer norma processual a incidir nas ações judiciais que versem sobre obrigação decorrente de financiamento.

E arremata: "Assim, por se tratar de norma processual, portanto, de aplicação imediata e com base no art. 273, § 4º do CPC, chamo o feito à ordem para modificar a decisão de fls. 107/111, que antecipou os efeitos da tutela."

A interpretação dada pelo ilustre magistrado não traduz a interpretação que se deve ter diante da pretensão do legislador ao definir no caput no artigo 50 da lei em referência que: "Nas ações judiciais que tenham por objeto obrigação decorrente de empréstimo, financiamento ou alienação imobiliários, o autor deverá discriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, quantificando o valor incontroverso, sob pena de inépcia."

A questão que se coloca é no tocante ao curso do processo por ocasião do início da vigência da lei nova. No caso concreto, o processo se encontra na face processual instrutória, que segundo a eminente doutrinadora Ada Pellegrini "a nova lei não atinge os atos processuais já praticados, nem seus efeitos, mas se aplica aos atos processuais a praticar". Dentro deste diapasão, temos que o caput do art. 50 deixa claro que "nas ações judiciais o autor deverá discriminar na petição inicial", ou seja, na fase postulatória - o que não é o caso concreto.

Noutra decisão acerca do tema, a Juíza Federal Paula Emília Moura Aragão de Sousa Brasil, da 6ª. Vara de Fortaleza atropelou todos os diplomas que regulam as relações de consumo de serviços bancários, valorando uma interpretação literal da lei em detrimento de uma interpretação sistemática com o NCC e o CDC. (Processo nº 2004.81.00.072-4)

Assim, a eminente Juíza Federal Dra. Paula Emília, indeferiu os pedidos de antecipação da tutela jurisdicional por entender que não restou suficiente demonstrado o dito risco, não se verificando nenhum dos pressupostos para a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional requestada, independentemente do depósito do valor integral das prestações, conforme exigido em lei.

Na fundamentação, a M.M. Juíza Federal invoca que a nova legislação em vigor alterou a disciplina aplicável nos casos de financiamento pelo SFH. Potifica que: Portanto, o depósito do valor integral das prestações passou a ser, como regra, condição sine qua para a suspensão da exigibilidade da dívida, a menos que exista relevante razão de direito e risco de dano irreparável ao autor, aptos a legitimar a dispensa judicial do depósito em referência."

Contaminado pelo entendimento equivocado acima, o Juiz Federal Agapito Machado da 4ª. Vara Federal de Fortaleza decidiu pelo indeferimento da tutela no processo nº 2004.8898-6, in verbis:

"Indefiro os pedidos de antecipação da tutela jurisdicional. Entende que: "restou vedado por força da novel disciplina, a saber, o parágrafo quinto, do art. 50, da Lei nº 10.931/2004, que se presume constitucional, o deferimento do pedido de antecipação da tutela aduzido pela parte autora, que pretende depositar em juízo o valor da prestação correspondente a menos da metade do cobrado pela ré." E arremata: Ao vedar o legislador, em casos que tais, a suspensão completa da exigibilidade das prestações, sem o depósito da competente garantia por parte do mutuário, evita-se permitir ao postulante o direito à suspensão da cobrança, sem um mínimo de resguardo dos interesses do requerido, mesmo porque cumpre à Justiça atentar sempre para o interesse da comunidade, que de um modo ou de outro sustenta e necessita do Sistema Financeiro de Habitação."

"Cumpre ressaltar que, na fundamentação, do festejado Juiz Federal Agapito Machado invoca que a nova legislação em vigor alterou a disciplina aplicável nos casos de financiamento pelo SFH. Com efeito, o depósito do valor integral das prestações passou a ser, como regra, condição sine qua para a suspensão da exigibilidade da dívida. O § 4º suso transcrito excepciona dita necessidade somente se estiverem a relevante razão de direito e o risco de dano irreparável."

Já o TRF da 5ª. Região tem se posicionado acerca do tema com maior cautela. Em sede de agravo de instrumento acerca das decisões de 1° grau onde se denega a antecipação da tutela com fundamento na Lei 10.931/04, ainda não há uma definição clara, pois agora que estas argüições começaram a pipocar nos Tribunais. Entretanto, a maioria dos Desembargadores Federais tem firmado o entendimento de que a parcela incontroversa a ser depositada no patamar de 50% do valor da última prestação é suficiente para conceder o efeito suspensivo das decisões que denegaram a antecipação da tutela, observado o depósito das parcelas vencidas e vincendas.

Essa orientação tem respaldo do STJ – como bem sintetizou o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em um excerto do seu voto, "na ação ordinária em que a parte discute a existência do débito ou o seu valor, inexiste na lei disposição que lhe recuse o direito de requerer o depósito judicial da importância considerada devida. Muitas vezes, esse procedimento pode ser exigido como demonstração de boa-fé no cumprimento do contrato e condição para o deferimento de alguma providência cautelar."[10].

"Por ilação, com o depósito das prestações, pretendem os agravados afastar a eventual alegação de mora, com o objetivo de manter a posse e propriedade do bem, demonstrando boa-fé com que estão agindo, já que na ação principal discutir-se-á o montante exato das parcelas avençadas. Também, deve-se realçar que do depósito das prestações nenhum risco advirá à credora, podendo até servir de garantia em eventual cobrança, pelo próprio caráter eminentemente pecuniário da demanda, cujos possíveis prejuízos à agravante poderão ser ressarcidos ao final, em razão de ser a mesma detentora de garantia hipotecária, não havendo, portanto, o perigo de irreversibilidade da tutela concedida. Logo, torna-se conveniente, a priori, a recepção do depósito requerido pelos mutuários, salvaguardando os relevantes fins sociais de que se revestem os contratos de financiamento de imóveis do SFH, até o julgamento final da demanda."[11]


6. Orientação Jurisprudencial do STJ. REsp 527618-RS.

O acórdão sob exame é um marco na orientação jurisprudencial sobre a contestação de dívidas em juízo. Ao situar adequadamente a abrangência da discussão judicial do débito, eliminou a possibilidade indesejada da discussão desfundamentada e o retardamento indevido do pagamento do débito principal em razão da contestação dos seus consectários. O princípio da boa-fé nas relações contratuais, erigido a direito positivo pelo Código Civil (art. 422), foi assegurado pela decisão da Corte Superior. Por essa razão, o processo deixa de ser o reduto do mal pagador e se transforma no instrumento para debates de questões jurídicas contempladas pelo bom direito.[18].

Publicado no DJ de 24.11.2003, proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, por sua 2ª. Seção, no julgamento do Resp 527618-RS, mediante relatório do eminente ministro César Asfor Rocha, o acórdão referendou a anotação complementar do sub judice, conforme art. 4°, § 2º, e art. 7º, III, da Lei 9.507/97, e somente admitiu a exclusão da informação mediante a presença, concomitante, dos seguintes elementos:

a) que haja ação proposta pelo devedor contestando a existência integral ou parcial do débito;

b) que haja efetiva demonstração de que a contestação da cobrança indevida se funda na aparência do bom direito e em jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;

c) que, sendo a contestação apenas de parte do débito, deposite o valor referente à parte tida por incontroversa, ou preste caução idônea, ao prudente arbítrio do magistrado.

Do corpo do Acórdão, sobressai o voto do Relator Ministro César Asfor Rocha, extrai-se:

O entendimento esposado nos paradigmas citados pelo recorrente, data vênia, não encerra regra absoluta para toda e qualquer hipótese. Deve ser aplicado com cautela, atendendo-se às peculiaridades de cada caso, observando-se a verossimilhança das alegações postas nas ações revisionais, considerando, sobretudo, a recente orientação da Segunda Seção desta Corte acerca dos juros remuneratórios e da comissão de permanência (REsp´s ns. 271.214-RS,407.097-RS, 420.111-RS), que não favorece aos devedores. Observe-se que o próprio Código de Defesa do Consumidor não obsta a inscrição do nome do devedor em órgãos de proteção ao crédito, dispondo, inclusive, expressamente no art. 43, acerca do acesso aos dados, da sua alteração, do prazo de permanência das informações negativas etc. A lei do consumidor tampouco prevê tal restrição ao tratar da cobrança indevida de débitos, em seu art. 42, impondo, nesse caso, a "repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais".

Não tem respaldo legal, no meu entender, obstaculizar o credor do registro nos cadastros de proteção ao crédito apenas e tão-somente pelo fato de o débito estar sendo discutido em juízo, ainda que no afã de proteger o consumidor. O Código de Defesa do Consumidor veio em amparo ao hipossuficiente, em defesa dos seus direitos, não servindo, contudo, de escudo para a perpetuação de dívidas.

Devo registrar que tenho me deparado, com relativa freqüência, com situações esdrúxulas e abusivas nas quais devedores de quantias consideráveis buscam a revisão de seus débitos em juízo, que nada pagam, nada depositam e, ainda, postulam o impedimento de registro nos cadastros restritivos de crédito. Não estou a dizer que esta seja a hipótese dos autos, até porque não trazem maiores informações a tal respeito.

Por isso, tenho me posicionado no sentido de que deve o devedor demonstrar o efetivo reflexo da revisional sobre o valor do débito e deposite ou, no mínimo, preste caução, ao menos do valor incontroverso. É de relevância que o ponto da dívida que se pretende revisar seja demonstrado e que tenha forte aparência de se ajustar à jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça.


7. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional e acesso à justiça.

Segundo o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Embora o destinatário principal desta norma seja o legislador, o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão.

Com a regra inserta no § § 2º e 5º do artigo 50 da Lei 10.931/04 estará o autor impedido de discutir as cláusulas contratuais que entende desproporcionais, tendo em vista a obrigatoriedade de realizar o pagamento total da obrigação para só depois abrir-se o debate - debate este sintetizado no reclamo de inexistência de amortização do saldo devedor (especialmente nas revisionais de financiamento habitacional), e, outras práticas abusivas, tomando-se como base as cláusulas potestativas que regem a avença, os juros capitalizados e outras ilegalidades que tornam os contratos excessivamente onerosos para o consumidor.

Em passado recente tivemos episódio histórico que envergonhou o direito brasileiro, a exemplo do que ocorreu no sistema jurídico dos estados totalitários da primeira metade deste século, que proibiam o acesso à justiça por questões raciais.

Pelo princípio constitucional do direito de ação, todos têm o direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Não é suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela seja a adequada, sem o que estaria vazio de sentido o princípio. Quando a tutela adequada para o jurisdicionado for medida urgente, o juiz, preenchidos os requisitos legais, tem de concedê-la, independentemente de haver lei autorizando, ou ainda, que haja lei proibindo a tutela urgente.

Nisso reside a essência do princípio: o jurisdicionado tem direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. A lei infraconstitucional que impedir a concessão da tutela adequada será ofensiva ao princípio constitucional do direito de ação. [12]

O direito de ação é um direito público subjetivo exercitável até mesmo contra o Estado, que não pode recusar-se a prestar a tutela jurisdicional. O Estado-juiz não está obrigado, no entanto, a decidir em favor do autor, devendo, isto sim, aplicar o direito ao caso que lhe foi trazido pelo particular. O dever de o magistrado fazer atuar a jurisdição é de tal modo rigoroso que sua omissão configura causa de responsabilidade judicial.


8. Da dicotomia entre norma de direito material e direito processual.

Tem-se na doutrina que "...as normas jurídicas nada mais fazem que estabelecer vínculos entre duas ou mais pessoas através de obrigações e deveres de uma para outra, e, correlatamente aos direitos desta; ou, direitos e deveres de uma parte em relação à outra, e, reciprocamente" . [13]

É preciso, de início, admitir a relatividade da distinção entre a norma material e a instrumental, da qual deflui naturalmente a conseqüência de que há uma região cinzenta e indefinida na fronteira entre uma e outra.

Assim, o intérprete, tendo o fato concreto à sua disposição, irá traçar as diferenças entre as normas materiais e as instrumentais.

Observa-se que, no momento em que o Judiciário simplesmente aprecia a ameaça ou a lesão de direito, para julgar o pedido do interessado, este julgamento deve realizar-se sempre à luz do direito material.[14]

Dentro desta realidade, o ordenamento jurídico possui outro grupo de normas denominadas instrumentais, que irão realizar a eficácia contida na norma material. Neste sentido, existe uma série de normas de reparação que precedem imediatamente a reação contra aquele que tenha implicação direta na violação da norma primária, tendo sempre em tela a autotutela, meio mais antigo, mas que na atualidade é admitida somente por exceção.[15]

A questão que se coloca, quanto ao momento da incidência do art. 50 da Lei 10.931/04, é no tocante ao curso do processo por ocasião do início da vigência da lei nova. Nos casos em que a ação judicial estiver em andamento caberia a sua incidência imediata a partir dos atos a serem praticados. Com efeito, o caput do artigo reza que: "nas ações judiciais o autor deverá discriminar na petição inicial", ou seja, necessariamente na fase postulatória. Daí não se pode afetar os processos que se encontram na fase instrutória. Este detalhe merece uma melhor atenção por parte dos nossos magistrados. Segundo a eminente doutrinadora Ada Pellegrini "a nova lei não atinge os atos processuais já praticados, nem seus efeitos, mas se aplica aos atos processuais a praticar, sem limitações relativas às chamadas fases processuais".

Assim, a norma material e a instrumental possuem diferenças fundamentais, que impede de se confundirem. Constata-se, inicialmente, que é inteiramente divergente o momento de atuação entre a norma de direito material e instrumental.

A norma material é aquela que deve ser obedecida pronta e imediatamente pelos cidadãos. Já a norma instrumental tem sua aplicação posteriormente à ameaça ou à violação da norma de direito material, com intuito de reparar o descumprimento da norma primária. Deste modo, a norma processual atuará secundariamente.

Por todos os aspectos, dentro de uma reflexão voltada à racionalidade jurídica, a estrutura normativa processual do artigo 50 da Lei 10.931/04 deve se limitar a sua incidência na fase postulatória das demandas judiciais, para que possa ser atuada a vontade concreta do direito material.


9. A inconstitucionalidade do artigo 50 da Lei 10.931/04.

Interpretar uma norma é descobrir o seu alcance, procurando encontrar o seu real significado. Ao intérprete cabe a função de: quando da aplicação da lei, atualizá-la e inseri-la dentro do contexto social em que se encontra naquele instante.

Um dos objetivos da República Federativa do Brasil, já se viu acima, é construir uma sociedade livre, justa e solidária, e, sendo um dos seus fundamentos, na ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, observados os princípios da função social da propriedade, defesa do consumidor, conforme interpretação do art. 170, III e V da Constituição Federal.

Sendo assim, fica evidente que privar o consumidor de serviços bancários, o direito de exercer os seus direito de argüir em juízo cláusulas contratuais excessivamente onerosas, é desprezar os direitos fundamentais de proteção ao consumidor, o direito de ação, o acesso a justiça, enfim, o direito privado sofre hoje uma influência direta da Constituição, da nova ordem pública por ela imposta, e muitas relações particulares, antes deixadas ao arbítrio da vontade das partes, obtêm uma relevância jurídica nova e um conseqüente controle estatal, que já foi chamado de "publicização do direito privado". Interessa constatar que, a partir de 1988, a defesa do consumidor inclui-se na chamada ordem pública econômica, cada vez mais importante na atualidade, pois legitima e instrumentaliza a crescente intervenção do Estado na atividade econômica dos particulares.

Conforme visto anteriormente, qualquer limitação de acesso jurisdicional fere os princípios e regras constantes na Constituição Federal, no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. O artigo 50 da Lei 10.931/04 destaca que para se discutir o valor das parcelas abusivas no contrato de empréstimo bancário, obrigatoriamente deverão ser depositados o montante correspondente e ainda, deverá ser apresentado na inicial uma auditoria capaz de quantificar os valores incontrovertidos e a parcela controversa, sob pena de inépcia da inicial. Com efeito, a regra contida do artigo 50 não coaduna com os princípios constitucionais.

O dispositivo em questão é inconstitucional. Em primeiro lugar, a limitação ao direito de ação fere a Constituição Federal. O artigo 5º, inciso XXXV estabelece que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer pessoa para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativamente a um direito.

Ademais, o dispositivo em comento entra em conflito com o Código de Defesa do Consumidor e o Novo Código Civil – o primeiro é lei especial para as relações de consumo e o segundo é lei geral sobre direito civil – sendo assim, impõe um diálogo sistemático, uma convergência de princípios norteadores das obrigações contratuais. Inexiste essa articulação entre os diplomas citados – que regulam o direito contratual – com o disposto no artigo 50 da Lei 10.931/04.

Em segundo lugar, o artigo 50 da lei em tela fere diretamente o artigo 5º LIV, da CF, que prescreve: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Causa estranheza a lei estabelecer duas condições desproporcionais para se litigar na justiça sobre cláusulas contratuais abusivas.

Com efeito, o princípio constitucional do devido processo legal surgiu para proteger a pessoa contra a ação arbitrária do Estado, sendo "mais uma garantia do que propriamente um direito"[16]. Assim, a lei não pode estabelecer, de forma arbitrária, nenhuma limitação ao devido processo legal, especialmente quando houver privação da liberdade ou dos bens. A doutrina ensina que, no sentido material, o devido processo legal está relacionado com o princípio da razoabilidade, in verbis:

"O princípio do devido processo legal possui, em seu aspecto material, estreita ligação com a noção de razoabilidade, pois tem por finalidade a proteção dos direitos fundamentais contra condutas administrativas e legislativas do Poder Público pautadas pelo conteúdo arbitrário, irrazoável, desproporcional".[17]

Observe a situação de um mutuário que, após 240 meses pagando religiosamente as prestações da casa própria, chega ao final do financiamento e é surpreendido com um saldo devedor a pagar superior a 200 mil reais. Pasmem, essa situação não é ilusória, existem milhares de mutuários nestas condições. Não poderia ele fazer prova em contrário, utilizando-se da ação revisional para demonstrar que a evolução do financiamento contêm excessiva onerosidade? Não, segundo o artigo 50, ele deveria depositar o valor da dívida para poder discutir em juízo. Verifica-se que o conteúdo da norma é arbitrário, irrazoável e desproporcional.

Levando-se em consideração a hipótese acima – pode-se afirmar: não foi desejada e sequer imaginada pelo mutuário – e agora, diante da obrigatoriedade de depositar 200 mil reais – não estaria o legislador ordinário incorrendo em inconstitucionalidade, ferindo o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional? Se não depositar 200 mil reais perderá seu imóvel?

Pois bem. Presumindo constitucional a lei pertinente, veja-se o caso hipotético acima. Diante da grave lesão que está por ser acometida, com a adjudicação do seu imóvel através de execução extrajudicial o mutuário socorreu-se do Poder Judiciário alegando, dentre outras coisas: capitalização dos juros, amortizações negativas, indexadores, violação do plano de equivalência salarial, etc. Pergunta-se: o juiz, ainda que reputasse constitucional a lei – em tese – poderia deixar de aplicá-la tendo-a como inconstitucional no caso concreto?

A resposta pode ser dada com a resposta para esta outra pergunta: de acordo com o fim social do SFH, seria melhor invocar o interesse da comunidade que, de um modo ou de outro, sustenta e necessita do Sistema Financeiro da Habitação e consequentemente o retorno do valor emprestado para fomentar novas construções habitacionais, pois o agente financeiro não pode ficar com o prejuízo? Ou seria melhor interpretar o fim social do sistema considerando que as cláusulas contratuais realmente oneraram demasiadamente o financiamento; que o agente financeiro já recebeu o que lhe era devido; que se faz necessário equacionar – reequilibrar o contrato - afastar as ilegalidades e promover uma solução equânime entre as partes? Evidente que qualquer pessoa de mediano bom senso iria se apegar à segunda opção.

Isto ocorre casuisticamente no direito brasileiro, com a edição de medidas provisórias ou mesmo de leis, como a que se ora discute, que restringem ou proíbem a concessão de liminares, o mais das vezes contra o poder público. Essas normas têm de ser interpretadas conforme a Constituição. Se forem instrumentos impedientes de o jurisdicionado obter a tutela jurisprudencial adequada, estarão em desconformidade com a Constituição e o juiz deverá ignora-las, concedendo a liminar independentemente de a norma legal proibir essa concessão.

Poder-se-ia dizer que mesmo a lei constitucional pode não o ser em todas as ocasiões. O juiz enquanto intérprete e aplicador da Constituição deve buscar, na análise de casos concretos, a solução que mais se harmonize com o "espírito da Constituição". Deve buscar caminhos comprometidos com a cidadania, os direitos dos consumidores, o anseio social e o bem-estar comum, os quais tem na Lei Maior seu ponto de partida, como fundamento, e ponto de chegada, como objetivo.

Caberá ao Poder Judiciário, a partir do momento em que for provocado, resolver os litígios na espécie levando-se em conta as várias violações constitucionais e infraconstitucionais contidas no artigo 50 da Lei 10.931/04.


10. Considerações finais.

Antes de encerrar este estudo se faz necessário expressar a nossa perplexidade em relação ao poderio dos bancos que, não se conformando com os altos lucros já abocanhados, em detrimento do setor produtivo do país, vêm agora legislar em causa própria com o aval do governo Lula. Pasmem!!! Quem diria!!! Poder-se-ia pensar que o reformador tinha por objeto, na norma estudada, separar o joio do trigo, onde toda pessoa que deixar de pagar um contrato bancário é um mau pagador. Mas, não; foi muito mais além, tenta vedar de toda forma o acesso à justiça daqueles que pretendem revisar as cláusulas abusivas, ficando assim preservados os seus spreads bancários.

O artigo 50 da Lei 10.931/04 é manifestadamente inconstitucional. Os parâmetros para a discussão em juízo dos contratos bancários foram sendo paulatinamente construídos pela jurisprudência dos nossos tribunais, restando albergada atualmente, com elogiável maturidade, o Superior Tribunal de Justiça que, por largo tempo, admitiu o singelo aforamento de ação revisional pelo devedor, como forma de obstaculizar a permanência de seu nome nos cadastros negativos do crédito, e reformulou esse entendimento, definindo a existência dos pressupostos autorizadores da providência almejada pelos consumidores, a fim de evitar abusos. Consequentemente, devem ser conferidos ao consumidor/mutuário o acesso à justiça sempre que haja a ruptura do equilíbrio contratual entre os contratantes ou que sobrevém fatos ou circunstâncias que agravam o sacrifício exigido de uma das partes da avença.


11. Bibliografia.

[1] VIANA CAVALCANTI, Clausens Roberto. Juros e Usura. Fortaleza,A&C Associados, 1999;

[2] MIRAGEM, Bruno Nunes Barbosa. O Direito do Consumidor como Direito Fundamental – Conseqüências Jurídicas de um Conceito. Revista de Direito do Consumidor, n° 43 jul/set de 2002. RT, SP, 2002, p 121;

[3] ALVES, Jones Figueiredo. Desembargador do TJ-PE. A nova teoria do direito contratual no Brasil. Revista Consulex, Ed.185, 30/09/2004. p 61;

[4] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 3º volume. SP. Ed. Saraiva. 2003. p.34;

[5] FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado. 4ª. Edição. SP. Ed. Saraiva. 2002. p.374;

[6] MARQUES, Cláudia Helena, Antonio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Art. 1° ao 74 – Aspectos Materiais. Ed. RT. SP. 2003. p.623;

[7] Revista Consulex. Juros . O controle pelo novo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor. Nº 172. 15/mar/2004.p 30/32.

[8] NERY, Nelson Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, in nota 4 ao art. 1° do CDC – Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, 2° Ed. RT;

[9] Jurisprudência :Processo n° 2003.81.00.022740-4. 3ª. Vara Federal Seção Judiciária do Ceará;

[10] Jurisprudência STJ : Resp. 383.129-PR. 24/06/2002;

[11] Jurisprudência: Agravo de Instrumento 49.499/CE – 2003.05.00.014635-6. Relator Des. Federal Paulo Gadelha;

[12] NERY, Junior Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7ª. Ed. RT. 2001. p.99;

[13] Arruda Alvim. Tratado de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 247-248;

[14] MORAIS, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. SP. Atlas. 2002. p.367.

[15] LIMA, Wanderson Marcello Moreira de. O processo e sua técnica frente às finalidades

da norma jurídica . Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em: jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=2877>. Acesso em: 08 mai. 2005;

[16] THEODORO, Humberto Júnior. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2001, vol. I, p. 36;

[17] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 19 ed. SP. Saraiva. 1998. p.226;

[18] Revista de Direito Bancário e de Mercado de Capitais. Nº 24. Jurisprudência Comentada. Silvânio Covas. RT. SP. 2004. 242.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Antônio Augusto Lima. A inconstitucionalidade do art. 50 da Lei nº 10.931/2004. (Lei de Proteção aos Bancos). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 720, 25 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6866. Acesso em: 26 abr. 2024.