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Uma teoria pura da sociedade

os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito

Uma teoria pura da sociedade: os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito

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Hans Kelsen formulou diversas críticas à Sociologia do Direito. Estas críticas têm como fundamento o mesmo corpo de premissas que levam à Teoria Pura do Direito.

Resumo

Hans Kelsen formulou diversas críticas à Sociologia do Direito. Dentre estas se contam a de que tal sociologia incorre em jusnaturalismo, a de que confunde "ser" e "dever ser", personificando normas, e a de que é incapaz de definir corpos coletivos. Estas críticas têm como fundamento o mesmo corpo de premissas que levam à Teoria Pura do Direito. Tais premissas compõem uma Teoria da Sociedade: a Sociedade é um conjunto de elementos vinculados normativamente, tais elementos formam subconjuntos desconexos entre si, mas coerentes internamente e têm uma estrutura interna determinada. A natureza normativa da Sociedade implica em uma dicotomia nos estudos acerca da vida social, já que não se pode logicamente deduzir fatos de normas e vice versa. Desta forma tem-se uma ciência social causal e uma ciência social normativa. Aquela estuda o comportamento concreto de seres humanos, ainda que dotado de sentido subjetivo. A última estuda o conjunto de normas sociais enquanto sentido objetivo, independente dos seres humanos individuais.


Abstract

Hans Kelsen formulated several critics to the Sociology of Law. Amongst these: that it incurs in jusnaturalism, that it confuses "be" and "ought", treating norms as acting beings, and that it is incapable of creating a definition of any collective body. These critics are anchored on the same body of premises that lead to the Pure Theory of Law. Such premises compose a Theory of Society, according to which the Society is a set of entailed normative elements; such elements forms disconnected groups, internally coherent; and with a certain internal structure. The normative nature of the society implies a dichotomy in the studies concerning the social life, since there is no logically possible connection between facts and norms. Thus, there is a causal social science and a normative social science. The former studies the behavior of concrete human beings, endowed or not with subjective meanings. The last one studies the set of social norms as objective meanings, independent of the individual human beings.


I-Introdução

O jurista austríaco Hans Kelsen exerceu grande influência no mundo jurídico no século XX. Sua teoria influenciou legisladores, juristas e cientistas políticos. O mundo do direito, ainda hoje, se defronta incessantemente com seu pensamento, todos aqueles que se dedicam de alguma forma ao estudo do direito têm de fazer referência à Teoria Pura do Direito, seja para aderir ou para contrapor-se a ela. Este autor é conhecido como o expoente mais importante do "positivismo jurídico". Este termo tem um significado peculiar que difere daquele normalmente entendido por positivismo nas ciências sociais. Este nome decorre de que tal corrente de pensamento afirma existir apenas direito positivo, em contraposição ao direito natural. O direito positivo é aquele que é estatuído, posto, por atos humanos.

O positivismo jurídico pretende tornar o estudo do direito independente de considerações morais e sociológicas. Afirmando que direito e moral são duas ordens distintas, o autor em questão fez severas críticas a toda forma de jusnaturalismo, que considera que existe algum direito inscrito na natureza do homem ou da sociedade, por pretender legitimar o direito existente afirmando que corresponde a uma moral absoluta, porque natural. O relativismo moral kelseniano é bastante conhecido. Suas repetidas afirmações de que "justiça" é um conceito vazio e de que é impossível a determinação objetiva do que seja justo e injusto lhe renderam a fama de defender que o direito, mesmo injusto, deve ser aplicado com rigor.

Por outro lado, ao afirmar que a ciência do direito e a sociologia têm objetos distintos, pretendeu o autor afastar da ciência jurídica quaisquer referências à gênese causal ou às conseqüências de normas. Para ele, um estudo empírico-causal é incapaz de alcançar o sentido específico de uma norma, o estudo de fatos não pode concluir com uma norma, e o estudo de normas não pode concluir com um fato. Assim, a sociologia não é capaz de determinar a origem do direito enquanto um sistema normativo, mas apenas a origem de certas representações cognitivas na mente de indivíduos humanos. Isto, entretanto, não é o direito. Da mesma forma, a ciência jurídica não é capaz de determinar as conseqüências empírico-causais de uma norma. Pode apenas determinar o que deve ser, de acordo com a norma, mas isto não é realidade empírico-causal.

Apesar de preconizar a distinção radical entre ciência jurídica e sociologia, Kelsen formulou críticas contundentes à Sociologia do Direito e do Estado. Tais críticas chegam a afirmar a impossibilidade de a sociologia elaborar um conceito adequado de Estado, a inexistência de unidade sociológica naquilo a que chamamos "Estado" e um freqüente desvio jusnaturalista da sociologia.

Quando nos indagamos acerca dos fundamentos de tais críticas, encontramo-los em uma concepção kelseniana um tanto mais ampla que a teoria pura do direito, que abrange não apenas o Direito e o Estado, mas também todas as, assim chamadas pelo autor, ordens sociais. Esta concepção de fundo da obra do autor não é apenas uma teoria jurídica, mas uma teoria da sociedade. Nela vamos encontrar a afirmação da distinção radical entre sociedade e natureza, e a conseqüente separação entre ciência natural e social


II- Hans Kelsen, apresentação biográfica

2.1.Vida

Há quem diga que a sorte é uma virtude. A sorte deu a Hans Kelsen uma longevidade rara, o que foi, sem dúvida, uma virtude. Este autor escreveu suas últimas obras já nonagenário. Mesmo assim o tempo não lhe bastou, e ele deixou alguns trabalhos incompletos. Nem sempre a sorte lhe sorriu. Kelsen teve uma vida conturbada por duas guerras mundiais, pelas mudanças que teve de empreender com sua família, alterando seu convívio social e tendo de reerguer sua carreira em países e línguas diversas, e, é claro, pelas conseqüências de ter ascendência judia.

Kelsen nasce em Praga, a 11 de outubro de 1881, mas ainda aos três anos de idade se muda para Viena, onde realiza seus estudos. Em 1906, aos 25 anos, Kelsen obtém sua titulação como Doutor em Direito, um ano após a publicação de sua primeira obra: "A doutrina do Estado de Dante Alighieri" (Die Staatslehre des Dante Alighieri).

Ainda em 1905, antevendo as conseqüências de sua origem judia, Kelsen, agnóstico resoluto, converte-se ao catolicismo. Esta manobra, no entanto, não foi bem sucedida e não impediu que sofresse com o sentimento anti-semita. Numa nota biográfica, Ladavac observa:

Although Kelsen was resolutely agnostic, he converted to Catholicism in 1905 in an attempt to avoid integration problems. His particular concern was to ensure that his ambition to lecture at university would not be jeopardized by his family’s religious background. Unfortunately, this solution did not prove to be very useful. Indeed, Kelsen’s Jewish ancestry caused him serious difficulties on many occasions, right until his decision to emigrate. (Ladavac,1998: 1)

Conhece-se um episódio em que, antes de sua última migração, Kelsen foi ameaçado por estudantes anti-semitas e presenciou os maus-tratos infligidos a alunos judeus. Ian Stewart assim o narra:

Fearing the outcome if the secret police found it in his house, the sacked law professor wrapped his old service revolver in a banana skin and plopped it into the Rhine. He escaped with his family to Prague, where, at his first lecture, fascists packed the hall and shouted: ‘Everybody except Jews and communists, out!’ Those students who remained were beaten up. He continued to teach, under police protection. Plans of a plot to assassinate him were discovered by a lecture theatre cleaner. He brought his family out, to the USA, where he was allowed a chair of political science but not of law. (Stewart, 1990: 1)

Mas isto não ocorreu antes que Kelsen tivesse desempenhado um papel importante no mundo jurídico, acadêmico e político da Europa. Durante a Primeira Guerra Mundial assumiu o cargo de consultor jurídico do Ministério da Guerra da Áustria. Apesar disto, seus biógrafos afirmam que permaneceu agindo de forma politicamente neutra, mesmo tendo inclinações social-democratas. Em 1919, ainda em Viena, Kelsen fundou a "Revista de Direito Público", que chegou a publicar 23 volumes. Ele já era então reconhecido como um grande jurista e foi incumbido de elaborar o projeto de Constituição da Áustria, documento adotado em 1920 e que vige ainda atualmente sem alterações quanto a seus preceitos fundamentais.

No ano seguinte, 1921, ele foi indicado para tomar parte na Corte Constitucional Austríaca, cuja criação havia defendido intensamente e constituía uma parte importante da Constituição cujo projeto havia feito.

O ano de 1930 marca o início de um período conturbado da vida do autor. Neste ano ele é excluído da Corte Constitucional Austríaca por defender, ao que parece em concordância com o Direito Austríaco vigente à época, o divórcio e o novo casamento. As cortes inferiores da Áustria estavam negando esta possibilidade e, subindo a questão para a Corte Constitucional, esta decidiu, com a influência de Kelsen, pela legalidade do segundo casamento. As forças políticas tendiam para a opinião contrária, o que resultou na exclusão de Kelsen daquela Corte.

A partir daí ele passou a ser alvo de perseguições políticas. Estas tinham uma intensidade tal que impeliram Kelsen a deixar a Áustria. "The political attacks on Kelsen were so vehement as a result of this major controversy that he decided to move to Cologne"(Ladavac, 1998: 1). Em Colônia Kelsen prossegue sua produção acadêmica o que, entretanto, não perduraria muito. Com a ascensão do movimento anti-semita e a tomada do poder pelos nazistas, ele foi removido do cargo que ocupava na Universidade de Colônia e viu-se obrigado, novamente, a migrar, desta vez para a Suíça.

However, when the Nazis seized power in 1933 the situation at the University of Cologne changed rapidly, with the result that Kelsen was removed. Together with his wife and two daughters, he left for Geneva in autumn 1933 to start a new academic career at the Institut Universitaire des Hautes Etudes International. (Ladavac, 1998: 1)

A Suíça não lhe parecia segura. Estava convicto de que também aquele país estaria envolvido nos conflitos que já se faziam sentir. Partiu, então, sexagenário, para sua última migração, em 1940. Desta vez, dirigiu-se para os Estados Unidos. Um novo continente, uma nova cultura, uma nova língua, mas, enfim, um ambiente mais tranqüilo e propenso à vida acadêmica. Ali se naturalizou em 1942 e, pouco depois, tornaria a figurar no cenário internacional, trabalhando na ONU e escrevendo sobre ela.

Um episódio interessante é relatado por Oscar Schachter, em uma entrevista a Antonio Cassesse, membro da "European Journal of International Law":

A.C: Did you ever meet Kelsen?

O.S.: Yes, in a curious way. When I was an Assistant General Counsel at the United Nations Relief and Rehabilitation Administration (UNRRA) in 1944 or 1945 (located in Washington), I was asked by the Personnel Office to interview a job-seeker with a legal background. When he presented his card to me, I said in some astonishment, `Are you the Hans Kelsen? He then said. `I have been looking for a job in Washington and you are the first person to recognize my name.'' It was, of course, not surprising that government lawyers or officials did not know of Kelsen''s eminence.

A.C: Did he get the job?

O.S.: No. My chief, Abe Feller, did not think that it would be fitting to have Kelsen deal with our mundane legal questions and that it would be undignified for him to have a librarian''s post. Actually, Kelsen''s problem arose because the law school at Berkeley - where he had been lecturing - had to `downsize'' because student enrolment during the war had been reduced. (Arangio-Ruiz, 1998:1)

Tal episódio é representativo não apenas das dificuldades pelas quais passou este jurista, mas também da recepção que tem sua teoria. Não havia, como não há ainda, qualquer grande jurista que passe ao largo da obra de Kelsen. Entretanto, sua obra costuma ter pouca influência entre os juristas preocupados com questões práticas, além de que, nos países do chamado "common law", sua teoria é entendida como elaborada para o sistema romano-germânico de direito.

Em 1945, Kelsen tornou-se conselheiro da Comissão de Crimes de Guerra das Nações Unidas e foi incumbido da tarefa de preparar os aspectos técnicos e jurídicos do tribunal de Nuremberg. É irônico que Kelsen, o mais proeminente dentre os positivistas jurídicos tenha colaborado na preparação do tribunal que julgou praticamente todos os seus casos com base em um Direito Natural.

De 1945 em diante a produção acadêmica de Kelsen fluiu com maior tranqüilidade. Aos 70 anos publicou uma extensa obra, de mais de 900 páginas sobre o Direito das Nações Unidas. Ao final de sua vida o autor havia publicado em torno de 400 trabalhos, entre livros e artigos e, ainda assim, tinha trabalhos de porte considerável por publicar, tais como "A ilusão da Justiça" e "Teoria Geral das Normas", que ultrapassam cada um 400 páginas.

Em 1971 o Governo Austríaco fundou o Instituto Hans Kelsen, incumbido de preservar a obra do autor, que faleceria dois anos depois, em 1973, aos 92 anos de idade, já contando aproximadamente 70 anos de estudos dedicados à teoria do Direito e do Estado.

Hans Kelsen died in Berkeley on 19 April 1973 at the age of 92 years, leaving behind him almost 400 works, legacy of an immensely productive life. Several of these works have been translated into as many as 24 languages. In 1971, to celebrate his 90th birthday, the Austrian government founded the Hans Kelsen Institute in Vienna which houses most of his original writings and is responsible for maintaining this important cultural heritage. The Institute, for instance, produced the first edition of the path-breaking General Theory of Norms in 1979). The influence of Kelsen continues to be felt in areas as far-ranging as the general theory of law (Pure Theory of Law), critical legal positivism (constitutional law and international law), philosophy of law (issues of justice, natural law), sociology (causality and retribution), political theory (democracy, socialism, Bolshevism) and critiques of ideology. Indeed, Hans Kelsen remains an essential point of reference in the world of legal though ( Ladavac, 1998: 2).

2.2.Obra Acadêmica

Como já salientado, a obra kelseniana é muito vasta, compreendendo quase 400 trabalhos entre artigos e livros publicados. Ao longo de sua vida Kelsen se debruçou especialmente sobre problemas relacionados ao Direito Público e ao Direito Internacional, mas sua obra abrange também importantes trabalhos em Filosofia do Direito, Filosofia da Justiça, Sociologia, ou mais especialmente Sociologia do Conhecimento.

Entre a publicação de sua primeira obra e de sua última medeia um período de praticamente 70 anos. Resta claro, portanto, que o presente trabalho não terá a pretensão de cobrir todo o pensamento do autor. Entretanto, seu pensamento não parece ter sofrido mudanças significativas nos vários períodos de sua vida quanto às questões fundamentais. Isto vale em especial para os pontos que serão abordados neste trabalho. Assim, apesar de não ter tido acesso à obra "O conceito sociológico e jurídico de Estado" (1922), a descrição que dela faz Norberto Bobbio apresenta idéias que são ainda as mesmas que aparecem em "Teoria Geral do Direito e do Estado" (1945) e nas obras de direito internacional publicadas no final de sua vida, em especial "Princípios de Direito Internacional" (1952).

Por certo, é bastante pretensioso selecionar de uma obra tão vasta aquilo que seria mais relevante. Mesmo ciente deste risco cabe tentar destacar alguns trabalhos. Em primeiro lugar cabe destacar o papel de Teoria Pura do Direito e Teoria Geral do Direito e do Estado. Estas são as duas obras sintéticas do autor, dirigidas cada uma a uma das tradições jurídicas predominantes no ocidente, mas sem diferenças significativas. Estas obras tratam da Teoria do Direito e do Estado (que para o autor se identificam). Em segundo lugar destaco, as obras nas quais o autor manifesta um intenso relativismo moral. São obras que eu classificaria como de Filosofia da Justiça, dentre as quais destacaria O que é justiça?. Em terceiro lugar, as obras dedicadas aos estudos de Direito Internacional, sobressaindo Princípios de Direito Internacional e O Direito das Nações Unidas. Uma obra à parte é Sociedade e Natureza que se trata de uma espécie de sociologia do conhecimento ancorada sobre uma extensa bibliografia etnográfica, algo bastante diverso das demais obras. Por fim, ressalto as obras em que o autor apresenta suas preferências políticas, donde se destaca A democracia.

Temos, portanto: obras de teoria jurídica, de filosofia da justiça, de sociologia, de direito internacional e obras políticas. As obras de teoria jurídica apresentam uma teoria jurídica formal e abstrata, que busca se desvincular de apreciações valorativas e de considerações sociológicas. Tem-se aí uma teoria que vê no direito e no estado tão somente determinados conjuntos de normas. As obras de filosofia da justiça dedicam-se a rechaçar as doutrinas jusnaturalistas, demonstrando que o termo "justiça" é vazio de conteúdo e se presta, o mais das vezes, apenas a legitimar o direito positivo. A obra "Sociedade e Natureza" destaca-se das demais por procurar demonstrar que o princípio da causalidade decorre de uma corruptela da "lei de Talião", além de deixar a entender que a mentalidade humana é, em princípio, social, o que no pensamento do autor significa dizer que ela formula idéias com um formato normativo. As obras dedicadas ao direito internacional têm uma preocupação em demonstrar que este é realmente um direito, que não se diferencia essencialmente do direito nacional, além de diversas teses menores, como a afirmação de que o direito internacional positivo adota o princípio da "guerra justa". Finalmente, as obras políticas do autor apresentam sua preferência pela democracia apesar de buscar demonstrar que isto não pode decorrer da razão humana, das estruturas sociais ou de outros motivos que não uma opção pessoal e subjetiva.

Destas, nos interessam neste trabalho em especial as obras de teoria jurídica. Em sua maior parte, portanto, as considerações que serão apresentadas aqui podem ser encontradas em "Teoria Pura do Direito" e "Teoria Geral do Direito e do Estado", ambas traduzidas para o português, além de "Teoria Geral do Estado", traduzida para o espanhol.


III.O pensamento kelseniano

3.1.Introdução

Considerando que o pensamento kelseniano não é suficientemente, para os propósitos deste trabalho, difundido no âmbito da sociologia, cumpre empreender uma breve introdução ao pensamento do autor, a fim de que se tenha uma adequada compreensão daquilo que aqui se pretende dizer.

3.1.1.Objetivos do autor

O grande objetivo da obra de Kelsen é alçar o estudo do direito a uma verdadeira ciência. A jurisprudência [01] sempre havia se preocupado não apenas em descrever e explicar o direito, mas também em distinguir o direito justo do direito injusto, e assim orientar aqueles que criam o direito e aqueles que com ele lidam. Kelsen pretendia alterar este quadro. Segundo ele, ao elaborar a teoria pura:

Importava explicar, não as suas tendências [da jurisprudência] endereçadas à formação do direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do direito, e aproximar tanto quanto possível seus resultados do ideal de toda ciência: objetividade e exatidão (Kelsen:2000a: XI)

Ao aproximar a jurisprudência, tanto quanto possível, dos ideais de objetividade e exatidão, pretendia o autor elevá-la ao status de ciência do direito. Para fazê-lo, urgia afastar do conhecimento jurídico juízos de valor subjetivos. A ciência do direito deveria se abster de considerar as normas jurídicas justas ou injustas de acordo com critérios de valor próprios do cientista. Antes, deveria tomar as normas tais quais estão postas, positivadas. A ciência do direito, acatando a validade das normas jurídicas, abstém-se de confrontá-las com normas de qualquer outra ordem.

O momento histórico em que o autor elaborou sua teoria, entretanto, não era acolhedor à idéia da neutralidade axiológica. Isto é especialmente válido para uma teoria jurídica. Seu intuito de estudar o direito sem levar em consideração questões de justiça e de moral era visto com maus olhos pelos intelectuais de uma época envolvida em intermináveis conflitos. Ainda depois da Segunda Guerra Mundial, o quadro internacional permaneceu conturbado com o desenvolvimento da guerra-fria, de modo que a obra kelseniana foi sempre tida, por quaisquer dos lados em conflito, como representativa da doutrina política do lado contrário.

Antepus a esta segunda edição o prefácio da primeira. Com efeito, ele mostra situação científica e política em que a teoria pura do direito, no período da primeira guerra mundial e dos abalos sociais por ela provocados, apareceu, e o eco que ela então encontrou na literatura. Sob este aspecto, as coisas não se modificaram muito depois da segunda guerra mundial e das convulsões políticas que dela resultaram. Agora, como antes, uma ciência jurídica objetiva que se limita a descrever o seu objeto esbarra com a pertinaz oposição de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciência e política, prescrevem ao direito, em nome daquela, um determinado conteúdo, quer dizer, crêem poder definir um direito justo e, conseqüentemente, um critério de valor para o direito positivo. É especialmente a renascida metafísica do direito natural que, com esta pretensão, sai a opor-se ao positivismo jurídico. (Kelsen, 2000a: 18)

Talvez o quadro politicamente conturbado que marcou a vida do autor desempenhe um papel importante em uma explicação das razões pelas quais Kelsen dedicou-se com tanto empenho a combater as doutrinas que chamava de jusnaturalistas. O autor estava convencido de que qualquer doutrina que pretendesse reconhecer na natureza dos homens ou da sociedade um direito natural, anterior e superior ao direito positivo, incorreria no erro lógico de concluir algo normativo de premissas factuais, ou assumiria alguma premissa normativa não explícita. Mas não apenas isto. Presenciava ele diversas teorias jurídicas que tinham como objetivo justificar as doutrinas políticas dos estados em conflito, inclusive ressuscitando a doutrina do direito natural que já então não mais prevalecia entre os juristas.

Kelsen pretendeu afastar da ciência do direito qualquer consideração desta espécie. Ao cientista do direito não cabia indagar sobre a justiça ou sobre o valor do direito, mas apenas sobre como ele efetivamente é. Assim, segundo o autor:

O problema da justiça, enquanto problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do direito que se limita à análise do direito positivo como sendo a realidade jurídica. (Kelsen: 2000a: XVIII)

O problema da justiça, portanto, apesar de sua longa tradição nos estudos jurídicos, foi deliberadamente afastado da teoria kelseniana do direito, que se pretende uma ciência jurídica. É verdade que o autor também teceu considerações sobre a justiça e sobre o valor de diversas ordens jurídicas, chegando mesmo a participar da elaboração da Constituição de seu país. Entretanto, ao fazê-lo não pretendia que suas opiniões estivessem ancoradas na Teoria Pura do Direito. Por diversas vezes se pronunciou a favor da democracia, entretanto, afirmava sempre que isto não decorria de qualquer ciência, mas de preferência pessoal. Tanto assim, que apesar de sua descendência judia, afirmou que o direito nazista era direito verdadeiro e, como tal, válido, e que o Tribunal de Nuremberg, ao punir os "Criminosos de Guerra" alemães por violarem um direito natural e evidente, era tão somente um tribunal de exceção, que criou normas novas e as aplicou retroativamente aos oficiais nazistas.

A Teoria Pura do Direito, portanto, não tem pretensões de apresentar um direito ideal segundo critérios de justiça, tampouco a de indagar sobre a natureza da sociedade ou do homem para apresentar um direito necessário e indispensável, mas tão só o de explicar e descrever o direito positivo, ou seja, o direito tal qual posto por atos humanos.

Não obstante, a Teoria Pura é bastante ambiciosa. Não pretende julgar o direito com base em valores diversos de seus próprios, mas tem a intenção de explicar o direito em geral. Ela pretende-se aplicável a qualquer ordenamento jurídico, seja monárquico-absolutista, seja o direito da República ou do Império Romanos, o Direito Comum dos países anglo-saxônicos, o Direito dos países orientais, Muçulmanos, além do direito da família Romano-Germânica.

A teoria que será exposta na primeira parte deste livro é uma teoria geral do Direito positivo. O Direito positivo é sempre o Direito de uma comunidade definida: o Direito dos Estados Unidos, o Direito da França, o Direito Mexicano, o Direito Internacional. Conseguir uma exposição científica dessas ordens jurídicas parciais que consituem as comunidades jurídicas correspondentes é o intuito da teoria geral do Direito aqui exposta. (Kelsen, 2000b: XXVII)

Trata-se, portanto, de uma teoria geral do direito, ou seja, aplicável a qualquer ordem jurídica encontrável em qualquer momento da história. Trata-se de uma teoria axiologicamente neutra, que não tece quaisquer juízos valorativos sobre as ordens sobre as quais se debruça. Por fim, trata-se de uma ciência normativa, que descreve normas, que não se confunde com a sociologia jurídica e não tem por objeto a conduta efetiva dos homens, mas as normas jurídicas que a rege.

3.1.2.Alcance da teoria

É importante que bem se compreenda o alcance que o autor pretendeu dar a sua teoria, delimitando aquilo que tal teoria se propõe a explicar e aquilo que ela deliberadamente deixa de lado.

A Teoria Pura compreende todas as ordens jurídicas, independente do contexto histórico-social, do regime ou forma de governo, do tipo de estado e de quaisquer condições geográficas ou antropológicas. Entretanto, apesar disso, não tem a pretensão de encontrar normas jurídicas que sejam comuns a todos os momentos históricos e que, em função disso, sejam de alguma forma necessárias, nem tampouco de identificar a "função" que o direito porventura tenha desempenhado ao longo da história nas diversas sociedades, apresentando a forma mais adequada de cumprimento de tais funções. Trata-se tão somente de uma teoria geral do direito.

A teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo - do direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do direito, não interpretação de normas jurídicas, nacionais ou internacionais. (...) Procura responder a esta questão: o que é e como é o direito? Mas já não lhe importa a a questão de saber como deve ser o direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do direito. (Kelsen: 2000a: 1)

A questão quanto ao direito ideal ou justo é deliberadamente afastada, não sendo abordada pela teoria kelseniana. Tais considerações são deixadas a uma política do direito ou a alguma espécie de filosofia valorativa do direito.

Afirma o autor:

A teoria geral, tal como é apresentada neste livro, está voltada antes para uma análise estrutural do Direito positivo que para uma explicação psicológica ou econômica das suas condições ou uma avaliação moral ou política dos seus fins.(Kelsen, 2000b: XVIII)

Aqui temos ainda que a Teoria Pura não alcança considerações sobre o agir concreto dos seres humanos submetidos a uma dada ordem jurídica. As afirmações da Teoria Pura não se referem ao comportamento de juízes, advogados ou cidadãos. Não se trata de oferecer uma explicação psicológica do comportamento humano porventura chamado de jurídico. Não se trata, portanto, de tomar o direito como sendo, de alguma forma, composto pelo sentido subjetivo aos indivíduos humanos a ele submetidos. Também não se trata de encontrar uma explicação econômica do direito, oferecendo, por exemplo, condições sócio-econômicas de sua existência, ou encontrando correlações entre a estrutura jurídica e uma dada constelação relações de produção ou bens materiais, de forma que não pretende partir das relações efetivas dos homens a fim de compreender o direito, mas de compreender o direito independentemente das ações efetivas dos homens.

Apesar disto, ao contrário do que possa parecer, a Teoria Pura do Direito não é um pensamento especulativo. Seu autor chega mesmo a chamá-la "empírica". O direito não pode ser conhecido por um processo introspectivo, mas antes admitem-se como válidas apenas as normas postas por atos de seres humanos em uma forma determinada.

3.2.A "pureza"

Kelsen atribuía a sua teoria o qualificativo de "pura". Isto porque pretendia que tal teoria fosse uma teoria jurídica livre de elementos estranhos ao direito. Para tanto deveria ela afastar-se, em especial, da moral, da política e da filosofia da justiça.

Quando esta doutrina é chamada "teoria pura do Direito", pretende-se dizer com isso que ela está sendo conservada livre de elementos estranhos ao método específico de uma ciência cujo único propósito é a cognição do Direito, e não a sua formação. Uma ciência que precisa descrever o seu objeto tal como ele efetivamente é, e não prescrever como ele deveria ser do ponto de vista de alguns julgamentos de valor específicos. Este último é um problema da política, e, como tal, diz respeito à arte do governo, uma atividade voltada para valores, não objeto da ciência, voltada para a realidade.(Kelsen, 2000b: XXVIII)

A teoria pura do direito tem como uma preocupação central distinguir aquilo que é teoria jurídica daquilo que é uma prescrição jurídica. Esta distinção nem sempre é levada a cabo pelos juristas. Inúmeros juristas afirmam que dentre as "fontes do direito", ou seja, as autoridades competentes para estabelecer normas jurídicas, se conta a "doutrina jurídica", ou seja, as obras empreendidas pelos próprios juristas. É certo que tais obras, ao interpretar as leis e normas jurídicas em geral, influenciam decisões de juízes, autoridades administrativas e quaisquer outros que tenham que lidar com o direito. Entretanto, tais obras não são "fontes do direito" no mesmo sentido em que o são o costume e a legislação.

A "doutrina" não é comumente constituída pelo ordenamento jurídico positivo como uma autoridade produtora de normas. Caso o seja, por certo, será uma "fonte do direito" no sentido de uma autoridade criadora de normas. No entanto, quando não é assim estabelecida, a doutrina não faz mais do que descrever normas prescritas, e não prescrever normas. O fato de que um jurista interprete as normas que estuda não significa nada além de que ele descreve tais normas com palavras e em uma forma distintas daquela em que a norma foi originalmente posta. Qualquer espécie de alteração de sentido que não se constitua em uma precisão ou exemplificação seria negada pelo próprio jurista. O caso, entretanto, é muito diferente quando se trata do que faz um juiz. Este é, de fato, uma autoridade criadora de normas e sua "interpretação" é, na verdade, criação de direito novo. A teoria pura do direito não se pretende uma orientação para juízes, mas apenas uma teoria jurídica, desvinculada da prática.

Para Kelsen urge distinguir a ciência do direito da filosofia da justiça e da moral. Ocorre que grande número de pensadores que se dedicaram ao estudo do direito se colocaram, e se colocam ainda, a pergunta acerca da justiça ou injustiça do direito que estudam. Esta ordem de questões é totalmente alheia à Teoria Pura do Direito, que pretende oferecer única e tão somente uma descrição do direito tal qual ele é, independentemente de considerações morais ou de justiça.

Entretanto, a "pureza" da teoria kelseniana tem, ainda, um outro aspecto. Não se trata tão somente de distinguir entre direito e moral, mas também de distinguir entre sociologia e direito.

É confinando a jurisprudência a uma análise do Direito positivo que se separa a ciência jurídica da filosofia da justiça e da sociologia do Direito e se obtém a pureza do seu método (Kelsen, 2000b: XXX)

Se, por um lado, descrever prescrições não é o mesmo que prescrever, também não é o mesmo que descrever fatos. A ciência do direito descreve normas que supõe serem válidas. Um jurista está, todo o tempo, fazendo juízos de valor. Quando afirma que determinado comportamento é um delito, o está julgando segundo um valor, ou melhor, segundo uma norma determinada. Por certo que este julgamento de valor é distinto de um julgamento subjetivo de valor. Este último seria aquele em que um indivíduo afirma sua opinião valorativa pessoal. Quando afirmo que uma tal ação é injusta, posso estar me referindo a que ela é condenada por um determinado ordenamento jurídico e, neste caso, "injusta" é sinônimo de "ilegal", ou posso estar apenas afirmando que por um motivo ou outro ela não me apetece.

Quando Kelsen distingue a ciência do direito da filosofia do direito, quer separar a descrição de normas da apreciação valorativa das normas. Mas a própria ciência do direito não deixa de ser uma descrição de normas e, por isso, uma apreciação valorativa de fatos. Desta forma, um jurista não descreveria o fato de um indivíduo entrar em uma loja, apontar uma arma ao atendente e levar o dinheiro do caixa como uma mera seqüência de comportamentos humanos, mas como um crime. Afirmar que tal comportamento é um crime é fazer uma apreciação valorativa. A Sociologia do Direito, por outro lado, não descreve normas, não julga comportamentos humanos como legais ou ilegais, mas apenas descreve os próprios fatos. Onde o jurista afirma haver um crime, o sociólogo afirma haver uma conduta que tem determinada probabilidade de anteceder uma sanção estabelecida por outros indivíduos que consideram aquela conduta como criminosa.

Há, para Kelsen, uma distinção clara entre juízos de fatos e juízos de valor, e, na medida em que a Sociologia realiza juízos de fato, deve ser distinta da ciência do direito, que realiza juízos de valor objetivos, que Kelsen distingue, como veremos mais adiante, de juízos de valor subjetivos.

Para que se conheça o Direito não urge que se conheça a realidade social para a qual tal direito vige. A recíproca também é verdadeira. Alguém que tenha estudado durante anos a fio a realidade da criminalidade nas cidades satélites de Brasília pode ser um leigo em Direito Penal. Da mesma forma um penalista pode desconhecer completamente as estatísticas de homicídios do município em que reside.

Kelsen pretende separar a ciência do direito da filosofia da justiça e da moral, por um lado, mas também da sociologia do direito, por outro. De fato, este é o principal postulado metodológico da teoria pura do direito. Esta tem toda sua base nestas distinções.

Quando a si própria se designa como "pura" teoria do direito, isso significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito de excluir desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como direito. Quer isso dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. (Kelsen, 2000a: 1)

A teoria kelseniana, quando define o direito como um determinado conjunto de normas que têm em comum a referência a uma sanção coercitiva procura justamente retirar do conceito de direito considerações acerca da justiça e considerações acerca do comportamento efetivo dos seres humanos. Isto resultou em uma teoria "formalista" do direito, que o entende como "pura forma", ou seja, que o define pela estrutura de suas normas, independentemente de seu conteúdo.

3.2.1.Separação entre Direito e Moral

Vejamos, em primeiro lugar, a separação que Kelsen pretende estabelecer entre Direito e Moral.

A teoria pura do Direito insiste numa distinção clara entre o Direito empírico e a justiça transcendental, excluindo esta de seus interesses específicos. Ela vê o Direito não como a manifestação de uma autoridade supra-humana, mas como uma técnica social específica baseada na experiência humana; a teoria pura recusa-se a ser uma metafísica do Direito. Conseqüentemente, ela procura a base do Direito - isto é, o fundamento da sua validade - não num princípio metajurídico, mas numa hipótese jurídica - isto é, uma norma fundamental - a ser estabelecida por meio de uma análise lógica do pensamento jurídico efetivo.(Kelsen 2000b, XXIX)

O fenômeno jurídico não está diretamente relacionado a qualquer idéia de uma justiça transcendental. Para Kelsen o Direito não passa de um determinado conjunto de normas. Tais normas não decorrem, para o autor, sua validade de qualquer critério de justiça ou de quaisquer necessidades sociais. O Direito não é válido porque deve sê-lo em função das necessidades que os homens têm de paz, ou de que estabelece uma relativa igualdade e liberdade sem as quais os homens não poderiam viver. A teoria pura do direito considera o direito como válido em função de uma pressuposição. Ela simplesmente pressupõe que a "norma fundamental", a norma segundo a qual deve-se obedecer à constituição de um determinado ordenamento jurídico, é válida.

A preocupação de Kelsen não era responder à pergunta acerca das razões pelas quais o direito deve ser considerado válido, mas tão somente afastar esta pergunta. Daí que simplesmente presuma a validade do direito e passe, desde então a trabalhar sobre esta pressuposição.

A Teoria Pura do Direito, ao rejeitar quaisquer asserções que pretendam oferecer fundamentos morais, filosóficos ou científicos para a ordem jurídica assume, segundo o autor, um caráter antiideológico.

É precisamente por seu caráter antiideológico que a teoria pura do Direito prova ser uma verdadeira ciência do Direito. A ciência como cognição tem sempre a tendência imanente de revelar seu objeto. Mas a ideologia política encobre a realidade, seja transfigurando-a a fim de conservá-la ou defendê-la, seja desfigurando-a a fim de atacá-la, destruí-la ou substituí-la por outra realidade. (Kelsen, 2000b: XXXII)

Não há qualquer moralidade, filosofia ou necessidade social que justifique a aceitação da validade do ordenamento jurídico. É nesta afirmação que reside o caráter antiideológico da Teoria Pura do Direito. O Direito apenas pode ser considerado válido se o pressupusermos como tal, ou pressupusermos uma outra ordem normativa que delegue autoridade ao Direito. Entretanto, não há qualquer razão para que um direito seja preferível a outro. Não há qualquer razão para que se reconheça a validade de um ordenamento jurídico e não de outro.

Esta separação entre ciência do direito e moral é, para o autor, necessária para o desenvolvimento do estudo do direito. Não é, porém, facilmente alcançável. É suficientemente bem conhecido nas ciências sociais a dificuldade que a teoria social tem de se desvencilhar de concepções políticas e valorativas. O esforço humano despendido na elaboração de um pensamento social que sirva de alguma maneira a fins práticos ainda é muito maior e mais bem acolhido do que o esforço despendido no sentido de elaborar um pensamento social objetivo.

O postulado de uma separação completa entre jurisprudência e política não pode ser sinceramente questionado, caso deva existir algo como uma ciência do Direito. Duvidoso apenas é o grau em que a separação é concretizável neste campo. Neste preciso aspecto, existe de fato uma pronunciada diferença entre a ciência natural e a ciência social. Naturalmente, ninguém sustentaria que a ciência natural não corre absolutamente risco algum de tentativas de influenciá-la, motivadas por interesses políticos. A história demonstra o contrário e mostra com clareza suficiente que uma potência terrestre por vezes se sentiu ameaçada pela verdade a respeito do movimento dos astros. Mas o fato de, no passado, a ciência natural ter sido capaz de alcançar a sua independência completa da política deve-se ao poderoso interesse social por esta vitória: o interesse no avanço da técnica que apenas uma ciência livre pode garantir. Mas a teoria social não leva a vantagens diretas tais como as proporcionadas pela física e pela medicina na aquisição de conhecimento técnico e terapia médica. Na ciência social, e especialmente na ciência jurídica, ainda não há nenhuma influência capaz de se contrapor ao interesse esmagador que os que residem no poder, assim como os que anseiam por ele, têm por uma teoria que satisfaça os seus desejos, isto é, por uma ideologia política.(Kelsen, 2000b: XXXII)

3.2.2.Separação entre Direito e Sociologia

A distinção entre fato e valor, entre o factual e o normativo, é geralmente encarada pelos sociólogos como equivalente à distinção entre objetividade e subjetividade. Quando se afirma que determinado trabalho em sociologia está carregado de subjetividade, subentende-se que comporta não apenas opiniões pessoais de seu autor, ou uma visão que depende de seu ponto de vista particular, mas também que, dentre tais opiniões se encontram opiniões valorativas. Da mesma forma, quando se afirma que determinado trabalho tem uma conotação normativa, subentende-se que se trata não apenas de uma apreciação normativa, mas que os valores e normas que a pautam são valores e normas subjetivos.

Pode-se dizer que, segundo a concepção corriqueira na sociologia uma das características peculiares ao juízo de valor é a subjetividade. Por certo que se pode contestar a afirmação segundo a qual também seria uma característica do juízo de fato sua objetividade, já que há, nas ciências sociais, diversas correntes de pensamento que afirmam que a apreciação que o cientista social faz, ainda que factual, é sempre subjetiva.

Este modo de colocar as coisas pode até ser apropriado para o manejo empírico dos "dados" acerca de fenômenos sociais. Entretanto, quando se distingue simplesmente juízos de fato de juízos subjetivos de valor, deixa-se necessariamente de fora o tipo de estudo que realiza o jurista. Este, quando afirma que determinado fato constitui um crime não realiza nem uma coisa nem outra. A afirmação de que a subtração da propriedade móvel alheia constitui um crime não é, por certo, um juízo de fato, mas também não é um juízo subjetivo de valor. É, antes, um juízo objetivo de valor. Este juízo, ainda que valorativo, não depende da opinião pessoal de quem formula o juízo (trata-se, aqui, do jurista, e não do juiz).

Quando designamos os juízos de valor que exprimem um valor objetivo como objetivos, e os juízos de valor que exprimem um valor subjetivo como subjetivos, devemos notar que os predicados "objetivo" e "subjetivo" se referem aos valores expressos não ao juízo como função do conhecimento. Como função do conhecimento tem um juízo de ser sempre objetivo, isto é, tem de formular-se independentemente do desejo e da vontade do sujeito judicante. Isto é bem possível. Podemos, com efeito, determinar a relação de uma determinada conduta humana com o ordenamento normativo, ou seja, afirmar que esta conduta está de acordo ou não está de acordo com o ordenamento, sem ao mesmo tempo tomarmos emocionalmente posição em face dessa ordem normativa, aprovando-a ou desaprovando-a. (Kelsen, 2000a: 22)

Assim, em Kelsen, um juízo de valor não é, necessariamente, um juízo subjetivo, antes ao contrário. Um juízo de valor, enquanto função do conhecimento, é a apreciação de algo de acordo com dados critérios valorativos. Os critérios não são subjetivos, mas tão somente valorativos. Um juízo de valor pode ser feito sem a interferência de convicções pessoais.

A resposta à questão de saber se, de acordo com a moral cristã, é bom amar o inimigo, e o juízo de valor que daí resulta, pode e deve dar-se sem ter em conta se aquele que tem de responder e formular o juízo de valor aprova ou desaprova o amor dos inimigos. A resposta à questão de saber se, de acordo com o direito vigente, um assassino deve ser punido com pena capital, e, assim, se a pena de morte para o homicida é valiosa de acordo com este direito, pode e deve verifica- se sem ter em conta se aquele que deve dar a resposta aprova ou desaprova a pena de morte. Então, e somente então, é objetivo este juízo de valor. (Kelsen, 2000a: 23)

A jurisprudência consiste em fazer juízos valorativos, e não factuais. O jurista não afirma que determinados indivíduos humanos crêem que se devem pagar os tributos e obedecer às leis de trânsito, mas que, de acordo com o direito vigente, deve-se pagar tributos e obedecer a leis de trânsito. No entanto, um jurista não descreve normas de acordo com suas preferências morais pessoais, mas de acordo com um determinado conjunto de normas que lhe é exterior, de cuja construção, muitas vezes, não participou em nenhuma medida e com as quais pode ter uma profunda antipatia.

Tomemos um exemplo. Determinada senhora, já de idade avançada, tem seu marido passando mal em sua casa. Segundo as crenças desta senhora, a casca de uma determinada árvore é eficaz no combate ao mal de que sofre seu esposo e, por esta razão, ela se dirige a um bosque e retira a casca de uma tal árvore. Como, entretanto, não pretende retornar várias vezes ao bosque, retira toda a casca que consegue. Quando está retornando para casa é abordada por um policial florestal, que a prende em flagrante. Ela é processada, julgada e condenada por crime ambiental. Um determinado jurista pode estar absolutamente convicto da injustiça desta sentença, pode afirmar que ela não corresponde ao padrão de moralidade que ele ou a sociedade aceita, mas, ainda assim, admitir que, de acordo com o Direito vigente, o fato constitui um crime ambiental.

É importante notar, portanto, que a distinção entre juízos de fato e juízos de valor não diz respeito ao caráter subjetivo ou objetivo da apreciação que é feita. Quando se afirma que juízos de valor devem ser distinguidos de juízos de fato, o que se tem em mente é uma impossibilidade lógica, qual seja, a de deduzir-se sentenças normativas de sentenças factuais e vice-versa.

Quando Kelsen afirma que o Direito deve ser diferenciado da Sociologia o que tem em mente é esta impossibilidade lógica. Segundo ele, o Direito é um fenômeno normativo. Trata-se de um determinado conjunto de normas e, enquanto tais, não podem de forma alguma ser deduzidas de quaisquer espécie de premissas factuais, nem pode o pensamento que as tenha como premissas redundar em conclusões factuais. Ainda que não seja corriqueiro observar a impossibilidade de transposição do normativo para o factual, este é um erro bastante comum. Assim, admite-se que hindus não comem carne de vaca, quando se sabe apenas que não o devem fazer. Admite-se que protestantes levam uma vida frugal quando se sabe apenas que a devem levar. É também um erro comum tratar a norma como possibilidade ou probabilidade factual. Entretanto, a partir da afirmação de que os protestantes devem levar uma vida frugal, não se pode deduzir que haja qualquer probabilidade de que de fato o façam.

Assim também, quando encontramos uma norma segundo a qual os motoristas devem dar preferência aos pedestres quando estes pretendem atravessar a rua na faixa, não podemos supor a existência de uma probabilidade qualquer de que de fato o façam. Quando se altera uma norma, como, por exemplo, determinando que o pedestre apenas tem o direito a passar se fizer determinado sinal, isto não implica, logicamente, em qualquer alteração de probabilidades. A partir de premissas factuais não se podem deduzir quaisquer normas, bem como a partir de premissas normativas não se podem deduzir quaisquer fatos.

O Direito, segundo Kelsen, não é um conjunto determinado de fatos, não é o agregado de ações ou comportamentos de seres humanos que tenham tal ou qual conteúdo subjetivo de sentido, mas um determinado conjunto de normas. Estas são duas realidades distintas.

A realidade específica do Direito não se manifesta na conduta efetiva dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica. Esta conduta pode ou não estar em conformidade com a ordem cuja existência é a realidade em questão. A ordem jurídica determina o que a conduta dos homens deve ser. É um sistema de normas, uma ordem normativa. A conduta dos indivíduos, tal como ela é efetivamente, é determinada por leis da natureza de acordo com o princípio da causalidade. Isto é a realidade natural. (Kelsen, 2000b: XXIX)

Na concepção de Kelsen aquilo que está em qualquer relação causal com qualquer outro elemento, é parte da natureza. Causal e natural são sinônimos em sua terminologia. Assim, quando afirma a distinção entre o Direito e o comportamento dos indivíduos submetidos à ordem jurídica, está afirmando a distinção entre uma norma e um fato, entre algo "natural" e algo "normativo".

O autor afirma que há uma tendência entre juristas de considerar o direito como um agregado de fato e norma, um misto de comportamento efetivo de indivíduos e valores. Busca-se, então, deduzir de afirmações factuais as normas do direito. Assim, afirma-se que tal ou qual direito decorre da própria natureza do homem, ou da natureza da sociedade. Supõe-se que o dever de abstenção do ato de matar é algo que decorra necessariamente do fato da vida dos indivíduos. Da mesma forma, busca-se estabelecer alguma forma de nexo entre a norma e o comportamento. Não só a norma decorre de algum comportamento efetivo dos indivíduos, mas também tal comportamento depende, ou é influenciado de alguma forma pela norma.

Por outro lado, algumas teorias de jurisprudência mostram uma tendência para ignorar a fronteira que separa a teoria das normas jurídicas que regulam a conduta humana de uma ciência que explica em termos causais a conduta humana efetiva, uma tendência que resulta do fato de se confundir a questão de como os homens devem se conduzir juridicamente com a questão de como os homens se conduzem de fato e de como provavelmente se conduzirão no futuro. Esta última questão pode ser respondida, se é que o pode, apenas com base numa sociologia geral. (Kelsen, 2000b: XXX)

Estas duas ordens de coisas, fato e norma, são, para o autor, radicalmente distintas. A questão acerca de como os homens se comportam de fato, quer seja acerca de uma matéria religiosa quer jurídica, não pode ser respondida nem pelo teólogo nem pelo jurista. Esta é uma questão factual, que apenas pode ser respondida com afirmações factuais, que podem ser deduzidas apenas de premissas factuais. Esta é uma matéria própria da sociologia, não do direito. Entretanto, à questão acerca de como, juridicamente, devem os homens se comportar, também não pode ser respondida sociologicamente. Esta é uma questão normativa, que necessita ser respondida com base em premissas normativas, que não são próprias da sociologia.

Separar Sociologia e Direito é o mesmo, em Kelsen, que separar fato e valor. Ocorre apenas, entretanto, que o que lhe interessa não é a questão factual, como é para a Sociologia, mas a questão normativa. Ele não pretende fundar uma ciência factual do direito, mas uma ciência puramente normativa, livre de considerações factuais, que lhe são alheias. O Direito, para ele, portanto, é um determinado conjunto de normas, nada mais. Não é comportamento humano, não é uma realidade factual qualquer. É uma realidade puramente normativa. O fenômeno de que os homens se comportam de alguma maneira relacionada ao direito não é objeto de seu estudo, mas da sociologia.

3.3.O Direito como uma Ordem Normativa

Kelsen define o Direito como uma determinada Ordem Normativa, uma Ordem Normativa que regula coercitivamente a conduta recíproca dos homens. A afirmação de que "regula coercitivamente" significa apenas que estabelece sanções que devem ser levadas a cabo ainda contra a resistência daquele que a sofre e, se necessário, com o emprego da força física. Não se trata de uma questão de fato, mas simplesmente da espécie de sanção que é estabelecida como devida.

O que é, porém, uma Ordem Normativa? Este é um conceito central no pensamento kelseniano, de modo que cabe elucidá-lo com bastante clareza. A Ordem Normativa é um conjunto coerente de normas. Esta definição, apesar de aparentemente bastante simples, necessita ser precisada a fim de que fique claro o que se pretende dizer. Deste modo, analisa-se a seguir, o conceito kelseniano de norma, suas características, o conceito de ordem e aquilo que confere à Ordem uma unidade.

3.3.1.Definição de Norma

O termo "norma" é tão elementar que parece prescindir de definição. Entretanto tal não é o caso. Este termo presta-se a confusões sem fim, a disputas em filosofia da linguagem, e em filosofia da moral, a debates acerca das distinções entre normas, regras, valores, princípios e uma série de outros termos referentes a conteúdos valorativos de sentido. Trataremos aqui da definição kelseniana de norma, e não nos arriscaremos a discutir definições alternativas, que nos afastariam ainda mais de nosso objeto próprio.

Mesmo feita esta reserva, permanece a dificuldade em definir um conceito tão básico. Como ele desempenha um papel importante no pensamento do autor, sendo, aliás, a unidade sobre a qual se ergue toda a construção de sua teoria, peço ao leitor que se digne tolerar algumas páginas de questões ainda mais abstratas e de definições de idéias aparentemente óbvias.

Direito, como já mencionado, é, na visão kelseniana, um determinado sistema de normas. Daí sabemos que são normas todos os elementos constitutivos do conjunto a que damos o nome de direito. Estes elementos são um determinado conteúdo de sentido, um significado, que remete ao caráter devido de uma determinada conduta. Uma norma é um "dever ser".

Na verdade, o direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo "Norma" se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. (Kelsen, 2000a: 5)

A norma, portanto, consiste na afirmação de que determinada conduta deve ser observada. Afirmar uma norma significa afirmar que algo deve ser. Daí que o autor afirme que a existência de uma norma se confunde com sua validade. Quando digo que há uma norma segundo a qual devem-se respeitar os idosos, pretendo dizer que se devem respeitar os idosos. Uma norma inválida não é uma norma, é apenas uma oração, uma sentença. A norma é um determinado conteúdo de sentido, que não se confunde com a opinião que qualquer indivíduo tenha acerca deste conteúdo de sentido, nem com os atos que estabeleceram a própria norma.

Esta questão é importante e delicada. O conteúdo de sentido de uma norma não se confunde com o conteúdo subjetivo de sentido de um ato humano qualquer. Uma norma é um conteúdo de sentido, mas este conteúdo pode diferir do conteúdo que tinha em mente o sujeito que estabeleceu esta norma. Assim, se um determinado indivíduo afirma que "na minha casa não podem entrar maltrapilhos", e, por qualquer motivo, fôssemos descrever esta afirmação como uma norma e tomá-la por imutável, afirmaríamos que "na casa deste senhor não devem entrar maltrapilhos". Suponhamos que, em um momento posterior, este próprio indivíduo, tendo passado por uma situação, digamos, de um assalto e, em decorrência, tenha sido machucado e se encontre em um estado tal que possamos classificá-lo como "maltrapilho", teríamos então de admitir que, de acordo com a norma estabelecida por ele, ele mesmo não deve entrar em sua casa.

Ainda que esdrúxulo, este exemplo demonstra que o conteúdo de sentido de uma norma determinada não coincide, necessariamente, com o conteúdo de sentido subjetivo pensado pelos indivíduos humanos concretos. Podemos adotar como um exemplo mais realista qualquer das leis que hoje estão vigentes no Brasil. Praticamente todas elas foram elaboradas por mais de um indivíduo, seja pelo parlamento ou por confidentes dos chefes de estado autocráticos que tivemos. Dificilmente seria possível admitir que todos estes indivíduos sequer conhecem todo o conteúdo de todas as normas que subscreveram, ou que pretendiam que elas tivessem a interpretação que lhes foi dada.

Assim, o artigo 37, inciso XI, da Constituição Federal estabelece que os servidores públicos não serão remunerados com uma quantia superior à do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Ocorre, porém, que tais ministros não recebem qualquer "subsídio", mas sim uma "remuneração", donde tal norma não é, ainda, aplicável. Pode-se até pretender que dos deputados e senadores que aprovaram este texto, alguns tivessem conhecimento disto, mas certamente não todos. Se admitirmos que o sentido subjetivo do ato dos deputados que estabeleceram este ato era o de limitar a remuneração de servidores públicos, teremos de admitir que este sentido diverge do sentido da norma que estabeleceram, que estabelece que, se os ministros do Supremo Tribunal Federal receberem subsídio mensal, então os servidores públicos não deverão receber remuneração superior à deste subsídio.

É importante frisar que o que aqui se pretende afirmar não é a pluralidade de interpretações possíveis de um mesmo texto, mas única e simplesmente a distinção entre o sentido subjetivo de um ato e o sentido de uma norma. Este sentido da norma, independente dos indivíduos particulares, chamamos aqui de "sentido objetivo".

Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela estatui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. (Kelsen, 2000a: 6)

O ato que estatui a norma, dotado de um sentido subjetivo, é um fenômeno da ordem do ser, é um fato concreto. O "sentido objetivo" da norma, porém, é um dever ser, é o sentido de acordo com o qual os indivíduos aos quais a norma se dirige devem se comportar em conformidade com aquilo que foi estatuído pela própria norma.

O "sentido objetivo" não é algo ontologicamente mais "verdadeiro" ou "real", não é "superior" de qualquer forma ao sentido subjetivo. Não se trata de algo metafísico. Se trata unicamente do sentido da norma, tal como estabelecido na norma, ainda que ambíguo, impreciso ou vazio. Tomemos um outro exemplo, onde a norma estabelecida tem um sentido dos mais ambíguos: o artigo 7º, inciso IV da Constituição Federal. Este dispositivo se lê da forma que segue:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim

Podemos admitir como pelo menos plausível que o sentido subjetivamente pensado pelos parlamentares constituintes, ou ao menos por alguns deles, fosse o de proibir o pagamento, a título de salário, de valor inferior a uma quantia suficiente para cobrir todos os custos mencionados no inciso. Entretanto praticamente todos os termos utilizados são ambíguos. Pode haver controvérsias acerca do significado do termo "trabalhadores", que poderia incluir não apenas empregados, mas também patrões e profissionais autônomos; não está claro quem tem de pagar tal salário mínimo, se apenas o patrão ou se, não havendo patrão, deve o governo arcar com tal custo; não é claro o significado de "melhoria de sua condição social"; também não é claro o significado de "moradia", "alimentação", educação", "saúde", etc., tanto um barraco como uma mansão podem ser consideradas como moradia; tanto o primeiro grau como um curso superior podem ser considerados "educação", etc.

Desta forma, ainda que o sentido subjetivo desta norma, aquele que tinha em mente as autoridades que a estabeleceram seja claro, o sentido "objetivo" da norma é ambíguo e controverso. Afirmar que há um sentido objetivo não é afirmar que este sentido é claro. Ele é ambíguo. O sentido subjetivo que imputo à norma pode ser claro ainda que o objetivo não o seja. O sentido objetivo pode ser ambíguo. Descrevê-lo é descrevê-lo em sua ambigüidade, e não interpretá-lo de modo a torná-lo preciso.

Eis um outro exemplo. O artigo 50 da lei 10.409 de 11 de janeiro de 2002:

"art. 50. É passível de expulsão, na forma da legislação específica, o estrangeiro que comete qualquer dos crimes definidos nos artigos 14, 15,16,17 e 18, tão logo cumprida a condenação imposta, salvo se o interesse nacional recomendar a expulsão imediata."

Esta lei, conhecida como "lei de entorpecentes", tinha por objetivo combater o tráfico ilícito de entorpecentes. Este artigo, certamente, foi aprovado por indivíduos que imaginavam estar punindo com a extradição os indivíduos estrangeiros que cometessem os crimes relacionados ao tráfico de drogas relacionados nos artigos mencionados. Tais artigos, entretanto, foram vetados pelo Presidente da República, de modo que a norma do artigo 50 não tem qualquer sentido jurídico. Ela estabelece que determinados indivíduos que cometerem os crimes previstos em determinados artigos serão extraditados, mas tais artigos não existem. Logo, indivíduo algum pode ser extraditado com base nesta norma.

É um elemento essencial da norma o seu sentido de dever ser. Não é possível, na opinião de Kelsen, reduzir-se a norma a um ser. Vários autores divergem dele, afirmando que a norma pode ser adequadamente descrita como uma "expectativa" de comportamento, ou como uma "probabilidade" de comportamento. Entretanto, em uma perspectiva kelseniana, ainda que se possa demonstrar que há uma probabilidade determinada de que indivíduos se comportem de acordo com normas, o sentido específico da norma ainda é um dever ser.

Quando um indivíduo, através de qualquer ato, exprime a vontade de que um outro indivíduo se conduza de determinada maneira, quando ordena ou permite esta conduta ou confere poder de a realizar, o sentido do seu ato não pode anunciar se ou descrever se dizendo que o outro se conduzirá dessa maneira, mas somente dizendo que o outro se deverá conduzir dessa maneira. Aquele que ordena ou confere o poder de agir, quer, aquele a quem o comando é dirigido, ou a quem a autorização ou o poder de agir é conferido, deve. Desta forma o verbo "Dever" é aqui empregado com uma significação mais ampla do que a usual. (Kelsen, 2000a: 5)

O verbo "dever" engloba, em Kelsen, tanto uma obrigação como uma permissão, e ainda a autoridade. Afirmar que um indivíduo deve limpar seu quarto não é o mesmo que afirmar que sua mãe ordenou que o fizesse, ou quer que o faça. O sentido específico de uma norma é o "dever ser". Descrever uma situação na forma "a mãe ordenou que filho arrumasse seu quarto" não é o mesmo que descrever a situação na qual "o filho tem a obrigação de arrumar seu quarto". Na primeira forma temos uma descrição de acontecimentos concretos, mas não a descrição de uma norma. Ali perde-se o sentido específico da obrigação.

Norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém.(Kelsen, 2000a: 6)

Uma norma é, portanto, um "conteúdo de sentido", um "significado". É, porém, um significado com um sentido específico, o de "dever ser", que, latu sensu, na visão kelseniana, incorpora não apenas obrigações, mas também direitos e faculdades.

3.3.2.A Validade como existência da norma

Afirmar a existência de uma norma é afirmar sua validade. Isto porque a norma é o conteúdo de sentido normativo. Este conteúdo consiste em que determinados indivíduos se devem comportar de determinada forma. Quando afirmo a existência desta norma, afirmo que os indivíduos se devem comportar assim. Isto, é claro, não implica em prescrever tal comportamento, ou em tomar partido da norma, mas, pura e simplesmente, na descrição de uma prescrição.

Se, no entanto, ao invés de descrever a norma, descrevo os atos que estabeleceram a norma, afirmando que tal indivíduo determinou que tais outros indivíduos se comportassem de determinada forma, esta descrição deixa de lado o sentido específico da norma. Apresentam-se fenômenos concretos: o fato de que um indivíduo ordenou uma conduta, o fato de que este e outros indivíduos esperam que tal ordem seja acatada, o fato de que o indivíduo a quem a ordem é dirigida espera que caso infrinja a ordem, será castigado, etc. Mas não se descreve que este indivíduo deve se comportar desta forma. Descrevem-se comportamentos, não normas.

Para traduzir o sentido específico com que a norma jurídica se endereça aos órgãos e sujeitos jurídicos, aquela não pode formular a proposição jurídica senão como uma proposição que afirme que, de acordo com determinada ordem jurídica positiva, sob certos pressupostos deverá intervir uma determinada conseqüência. (Kelsen, 2000a: 88)

Assim, não se descreve, na opinião de Kelsen, uma norma, senão afirmando que, de acordo com uma dada ordem, deve-se agir de determinada forma em uma certa situação. Assim, não se descreve o primeiro dos "Mandamentos da Igreja" do Catolicismo afirmando que o Papa ou qualquer outra autoridade ordenou ou espera que se vá à Missa aos domingos e festas de guarda, mas sim afirmando que, de acordo com a Igreja Católica (com as normas que compõe o ordenamento normativo desta igreja), deve-se ir à missa aos domingos e festas de guarda.

3.3.3.O princípio da imputação

Para Kelsen temos dois importantes princípios ordenadores, que permitem a construção de sistemas de representação ou de descrição. Um destes princípios seria o princípio da causalidade, e o outro o da imputação.

O princípio da causalidade consiste na vinculação de elementos na forma "se A, então B". Assim, na construção de um modelo descritivo estabelecemos que se o metal for aquecido, dilata-se. Esta não é, porém, a única forma de vincular elementos, o único princípio ordenador.

Na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é aplicado aquele outro princípio ordenador, diferente da causalidade, que podemos designar como imputação. (Kelsen, 2000a: 86)

Percebe-se, com esta discussão, que Kelsen não está trabalhando com uma concepção de conhecimento que pretenda descrever a realidade tal como ela é, ou que suponha que a percepção que tem da realidade corresponde com o mundo real. O que se discute, na obra do autor, é o modo como construímos uma espécie de um modelo, um sistema de elementos, e a forma como ordenamos estes elementos. O princípio da imputação é, tal como o da causalidade, um princípio que nos permite ordenar elementos, e, portanto, construir modelos, ou sistemas de elementos.

A característica peculiar do princípio da imputação consiste em que ele vincula os elementos que comporão o sistema de uma forma diversa do princípio da causalidade, qual seja, na forma "se A é, B deve ser". Esta característica, porém, confere ao sistema de elementos construído com esta forma atributos distintos daqueles do modelo construído segundo o princípio da causalidade. Dentre estes atributos destaca-se que em um sistema construído com o princípio da imputação, torna-se impossível a refutação do elo estabelecido entre os elementos pela constatação de que tal elo inexiste empiricamente.

Assim:

Precisamente neste ponto se revela a distinção entre lei jurídica e lei natural. Quando se descobre um fato que está em contradição com uma lei natural, deve a lei natural ser posta de parte pela ciência, como falsa, e ser substituída por uma outra que corresponda ao fato. A conduta antijurídica, porém, quando a sua freqüência não ultrapassa uma certa medida, não constitui de forma alguma razão para a ciência jurídica considerar como não válida a norma jurídica violada por esta conduta e para substituir a sua proposição jurídica, descritiva do direito, por uma outra. As leis naturais, formuladas pela ciência da natureza, devem orientar-se pelos fatos. Os fatos das ações e omissões humanas, porém, devem orientar-se pelas normas que à ciência jurídica compete descrever. Por isso, as proposições que descrevem o direito têm de ser asserções normativas de dever ser (Soll-Aussagen).(Kelsen, 2000a: 98)

A "lei natural" seria uma construção que se vale do princípio da causalidade. Ela pode estabelecer, por exemplo, que se X é um metal e X é aquecido, dilata-se. Suponhamos que um determinado metal seja aquecido e que, não obstante, não se dilate. Esta experiência levaria a uma reformulação da "lei natural" que, digamos, passaria a ser descrita na forma "para todo X, se X é um metal e X é aquecido, dilata-se desde que não estejam presentes os elementos a, b, c", onde a, b e c seriam elementos distintivos daquele metal específico que não se dilatou. Ou seja, em face de um contra-exemplo, ou de uma contradição entre os fatos e a lei geral, repensa-se a lei. Esta se adequa aos fatos que pretende descrever.

Não ocorre o mesmo com as construções que seguem o princípio da imputação. Os elos normativos estabelecidos entre os elementos não necessitam adequar-se aos fatos. Assim, uma norma pode estabelecer que não se deve matar. Diante do fato de que as pessoas matam, repensam-se os fatos, não a norma. Uma norma não se altera porque é "falsa". De fato, não se pode afirmar que uma norma seja "verdadeira" ou "falsa", mas tão somente que seja "válida" ou "inválida".

Há, ainda, uma outra distinção importante entre uma ordem construída valendo-se da causalidade como princípio ordenador e uma ordem construída valendo-se da imputação, qual seja, os elos que compõe uma ordem causal formam uma cadeia potencialmente ilimitada, enquanto que os elos que compõe uma ordem normativa formam uma cadeia necessariamente limitada.

Uma outra distinção entre causalidade e imputação consiste em que toda a causa concreta pressupõe, como efeito, uma outra causa, e todo o efeito concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito, por tal forma que a cadeia de causa e efeito - de harmonia com a essência da causalidade - é interminável nos dois sentidos. (...) A situação é completamente diferente no caso da imputação. O pressuposto a que é imputada a conseqüência numa lei moral ou jurídica, como, por exemplo, a morte pela pátria, o ato generoso, o pecado, o crime, a que são imputados, respectivamente, a veneração da memória do morto, o reconhecimento, a penitência e a pena, todos esses pressupostos não são necessariamente conseqüências que têm de ser atribuídas a outros pressupostos. E as conseqüências, como, por exemplo a veneração da memória, o reconhecimento, a penitência, a pena, que são imputadas, respectivamente, à morte pela pátria, ao ato generoso, ao pecado e ao crime, não têm necessariamente de ser também pressupostos a que sejam de atribuir novas conseqüências. O número dos elos de uma série imputativa não é, como o número dos elos de uma série causal, ilimitado, mas limitado. Existe um ponto terminal da imputação. (Kelsen, 2000a: 101)

O princípio da imputação permite a construção de uma cadeia finita de elos normativos. As ordens normativas são, de fato, ordens finitas. Há um ponto terminal de imputação, consistente na aplicação da sanção. Uma sanção não implica em qualquer outra norma, não estabelece um novo elo normativo. Assim, uma norma pode estabelecer que se deva obedecer às leis, uma lei estabelecer que não se deva roubar, outra lei estabelecer que se alguém roubar deverá ser condenado, uma condenação estabelecer que alguém, porque roubou, deverá cumprir seis anos de prisão, mas o ato de prender o indivíduo em questão não estabelece qualquer norma nova. A cadeia de elos normativos tem na aplicação da sanção seu ponto terminal.

Esta característica das ordens normativas é importante. A ordem natural pode ser concebida como apenas uma ordem em que todos os elementos estão interligados, ainda que muito remotamente, entre si. Isto porque, mesmo que dois elementos não tenham qualquer nexo causal entre si, podemos sempre conceber que se voltarmos na cadeia causal, haverá um elo que será comum a ambos, da mesma forma que ambos podem ser elos que figurarão na cadeia de algum elemento posterior. Isto não ocorre na ordem normativa. Esta é dotada de um ponto terminal e, como veremos posteriormente, Kelsen afirma que também de um ponto inicial de imputação. Desta forma, um elo normativo, uma norma, de uma determinada ordem não tem qualquer relação com uma norma de outra ordem. Podemos, portanto, falar em diversas ordens normativas independentes entre si.

3.3.4.A Ordem Normativa

Temos estudado, até agora, a norma por ser a unidade que compõe uma ordem normativa. Como vimos, segundo Kelsen, o direito é uma ordem normativa, razão pela qual nos detemos no estudo desta. Passemos, então, propriamente ao estudo da ordem normativa.

Uma ordem normativa é um conjunto sistemático de normas que, como vimos, consistem em conteúdos de sentido com uma forma peculiar. Entretanto, importa notar que a ordem normativa não é um aglomerado de qualquer forma composto de sentidos subjetivos. Uma ordem normativa tem, necessariamente, um caráter objetivo. Entenda-se aqui por "caráter objetivo" o fato de ser aplicável a qualquer dos indivíduos e não depender de seu conhecimento e concordância. Entretanto, isto não implica que a ordem normativa tenha qualquer caráter transcendental ou supra-humano. Convém explicar melhor este caráter objetivo das ordens normativas.

3.3.4.1.O caráter objetivo da ordem normativa

Uma ordem normativa não se confunde com um modo determinado de os homens se comportarem. Uma ordem é tão somente um conjunto de normas, o que não implica no reconhecimento, dado o conceito de norma anteriormente trabalhado, de um conjunto de ações humanas concretas. Assim, a ordem jurídica, em especial, não é composta pelo comportamento de juízes, advogados e legisladores, mas por determinadas normas.

Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos o que têm qualquer conexão com o direito - por exemplo, uma resolução parlamentar, um ato administrativo, uma sentença judicial, um negócio jurídico, um delito, etc. -, poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível, ou uma série de tais atos, uma manifestação externa de conduta humana; segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do direito. Numa sala encontram-se reunidos vários indivíduos, fazem-se discursos, uns levantam as mãos e outros não - eis o evento exterior. Significado: foi votada uma lei, criou-se direito. Nisto reside a distinção familiar aos juristas entre o processo legisferante e o seu produto, a lei. Um outro exemplo: um indivíduo, de hábito talar, pronuncia, de cima de um estrado, determinadas palavras em face de outro indivíduo que se encontra em pé à sua frente. O processo exterior significa juridicamente que foi ditada uma sentença judicial. Um comerciante escreve a outro uma carta com determinado conteúdo, à qual este responde com outra carta. Significa isto que, do ponto de vista jurídico, eles fecharam um contrato. Certo indivíduo provoca a morte de outro em conseqüência de uma determinada atuação. Juridicamente isto significa: homicídio. (Kelsen, 2000a: 2)

A ordem normativa, e a ordem jurídica em especial, é o conjunto de tais significados, não o conjunto dos significados e comportamentos. Apenas o significado jurídico daqueles atos, ou seja, as normas, é parte da ordem normativa.

Os atos concretos de indivíduos humanos a que atribuímos o qualificativo de "jurídicos", ou que vinculamos a uma determinada ordem são atos que estão regulados por tais normas. Estes atos não figuram na ordem normativa, apenas descrições ali figuram como "tipos" no sentido utilizado pelos penalistas [02]. Sua descrição serve de condição ou de conseqüência nos elos normativos da ordem.

Nem o comportamento concreto dos indivíduos, ainda que reincidente, compõe a ordem normativa, nem o sentido subjetivo dos atos humanos o fazem. Aqui se trata do mesmo problema anteriormente apresentado da dicotomia entre o sentido subjetivo de uma ação e o sentido objetivo de uma norma. Na medida em que uma ordem normativa é um conjunto sistemático de normas, ela é um conjunto de conteúdos objetivos de sentido. Entende-se por "objetivos" tão somente que tais conteúdos não correspondem necessariamente ao sentido subjetivamente pensado pelos indivíduos humanos que estabeleceram tais normas.

Na verdade o indivíduo que, atuando racionalmente, põe o ato, liga a este um determinado sentido que se exprime de qualquer modo e é entendido pelos outros. Este sentido subjetivo, porém, pode coincidir com o significado objetivo que o ato tem do ponto de vista do direito, mas não têm necessariamente de ser assim. Se alguém dispõe por escrito do seu patrimônio para depois da morte, o sentido subjetivo deste ato é o de um testamento. Objetivamente, porém, do ponto de vista do direito, não é, por deficiência de forma. Se uma organização secreta, com o intuito de libertar a pátria de indivíduos nocivos, condena à morte um deles, considerado um traidor, e manda executar por um filiado aquilo que subjetivamente considera e designa como uma sentença de condenação à morte, objetivamente, em face do direito, não estamos perante a execução de uma sentença, mas perante um homicídio, se bem que o fato exterior não se distinguia em nada da execução de uma sentença de morte. (Kelsen, 2000a: 3)

Uma ordem normativa, portanto, é "objetiva" no sentido de que independe dos seres humanos individuais, independe da vontade destes seres individuais e isto ainda mesmo que haja coincidência entre tais vontades. A ordem normativa é um construto de significato. Trata-se apenas da construção metódica das diversas normas.

3.3.4.2.A Unidade da Ordem Normativa

Foi dito aqui que o princípio da imputação permite a construção de diversas ordens normativas independentes entre si. O que, entretanto, confere unidade às normas que compõe uma ordem normativa? Como se pode identificar uma norma como pertencendo a uma determinada ordem normativa ou afirmar que não pertence a uma outra ordem normativa? A questão da finitude das ordens normativas leva-nos à indagação acerca da unidade de cada uma destas ordens.

A unidade de uma ordem normativa é função daquilo que Kelsen chama de "norma fundamental". Toda norma apenas pode ser considerada válida em função de que uma outra norma lhe confere validade. Assim, considero que devo obedecer às ordens do policial porque estão em conformidade com a lei, e devo obedecer à lei porque está em conformidade com a Constituição. Esta série, entretanto, não prossegue indefinidamente. Há normas que não decorrem sua validade de qualquer outra norma. Tais normas são chamadas de normas fundamentais. Fazem parte de uma mesma ordem normativa todas aquelas normas que remetam a uma mesma norma fundamental. A questão da norma fundamental será mais bem trabalhada na seção acerca da Dinâmica Jurídica.

3.3.4.3.A coerência interna da ordem

Uma ordem normativa, como já foi dito, não é apenas um conjunto de normas, mas um conjunto sistemático de normas. Aproximemo-nos um pouco mais desta questão, que nos ajudará a identificar os elementos que conferem unidade a uma ordem normativa.

Um conjunto é definido como vários elementos com alguma característica em comum. Diz-se que um determinado elemento faz parte de um conjunto quando este elemento tem uma dada característica que é comum a todos os demais deste conjunto. O conjunto é, portanto, o grupo formado por estes elementos com algo em comum. Um sistema, porém, não é apenas um conjunto. Trata-se de um conjunto onde os diversos elementos estão inter-relacionados. Quando se afirma que os elementos de um sistema estão inter-relacionados, entende-se que estão em relação uns com os outros e que, portanto, uma alteração em um dos elementos implica em uma alteração nos demais.

Uma ordem normativa é um sistema de normas. Ou seja, trata-se de um conjunto de normas que estão inter-relacionadas. Quando aqui se afirma que as normas estão inter-relacionadas, tem-se em mente que a ordem normativa compõe um todo coerente, de modo que as normas que a compõem não podem ser contraditórias entre si. Isto nos leva a questionar a aplicabilidade dos princípios lógicos a normas.

3.3.4.4.Aplicação do princípio da não-contradição a normas

A aplicabilidade dos princípios lógicos a sentenças normativas, em especial do princípio da não contradição, requer certas considerações.

Deve-se salientar que uma asserção normativa apenas pode ser contraditória com outra asserção normativa. Assim, uma asserção na forma "A, então deve ser B" não é contraditória com uma asserção na forma "A e não-B". Exemplificando: a asserção "as crianças devem fazer as tarefas de casa" (para todo x, se x é criança, x deve fazer as tarefas de casa), não é contraditória com a asserção "as crianças não fazem as tarefas de casa" (existe um, ou mais, x, em que x é criança e x não faz as tarefas de casa). Estas asserções podem ser aceitas simultaneamente. A asserção "as crianças devem fazer as tarefas de casa e elas não fazem as tarefas de casa" é coerente, enquanto que a asserção "as crianças fazem as tarefas e elas não fazem as tarefas" não é uma asserção coerente.

Em segundo lugar, cabe notar que uma contradição entre duas normas não reside em que seu sentido teleológico seja contraditório. Neste ponto devemos notar a distinção entre o sentido teleológico de uma norma e o sentido "objetivo". Este último já foi anteriormente explicado. O sentido teleológico consiste no dever ser da conduta que evita a sanção (ou provoca a recompensa). Assim, a norma "Matar alguém: 6 a 20 anos de reclusão" estabelece como devida uma pena, caso se verifique uma dada conduta, ou seja, "quando alguém matar outrem, deverá ser condenado a reclusão por um período entre 6 e 20 anos". O sentido teleológico desta norma seria aquele que estabelece como devida a conduta que evita a sanção, qual seja, a abstenção da ação de matar outrem. Podemos redigir este sentido teleológico na forma "para todo x, se x é alguém, deve-se abster de matá-lo".

Estabelecida esta distinção, devemos destacar que a contradição entre o sentido teleológico de duas normas não implica uma contradição entre tais normas. O sentido teleológico de uma norma não se confunde com ela. Podem-se aceitar simultaneamente duas normas que tenham sentidos teleológicos conflitantes. pode haver uma norma que estabeleça como uma infração o fato de um médico mentir sobre o estado de saúde de um paciente, e outra norma que estabeleça como infração o fato de um médico desacreditar um paciente de suas chances de sobrevida. Neste caso, uma vez que o médico tenha um paciente terminal, deverá ser, necessariamente, considerado um infrator. Apesar do conflito teleológico, ou seja, condutas contrárias são igualmente devidas, não há qualquer contradição lógica.

Na ordem jurídica esta situação é muito provável uma vez que ela não estabelece como devidas as condutas que almeja obter, mas as sanções contra as condutas contrárias às que se almeja obter. Assim, não se proíbe o homicídio, mas estabelece-se como devida uma pena a quem cometa homicídio. Não se proíbe o aborto, mas estabelece-se como devida uma conduta que puna a pessoa que cometer um aborto.

Daí resulta que, dentro de uma tal ordem normativa, uma mesma conduta pode, neste sentido, ser "Prescrita" e simultaneamente "Proibida", e que tal situação pode ser descrita sem contradição lógica. As proposições: A deve ser e A não deve ser, excluem-se mutuamente; de ambas as normas assim descritas apenas uma pode ser válida. Não podem ser ambas simultaneamente observadas ou aplicadas. Mas as duas proposições: se A é, X deve ser e, se não-A é, X deve ser, não se excluem mutuamente e ambas as normas por elas prescritas podem ser simultaneamente válidas. (Kelsen, 2000a: 27)

Assim, são contraditórias as normas "se alguém matar outrem deve ser punido" e "se alguém matar outrem, não deve ser punido". Entretanto, não são contraditórias as normas "se alguém matar outrem, deve ser punido" e "se alguém não matar outrem, deve ser punido". Imagine-se, por exemplo, a situação de um soldado nazista que pudesse antever as normas pressupostas pelo tribunal de Nuremberg. Ele teria de aceitar que se não acatasse as ordens de seus superiores, seria punido, e também o seria se as acatasse. Há um conflito teleológico, mas não uma contradição lógica.

No domínio de uma ordem jurídica pode surgir uma situação – e de fato surgem tais situações, como veremos – em que uma determinada conduta humana e, ao mesmo tempo a conduta oposta, têm uma sanção como conseqüência. Ambas as normas - as normas que estatuem as sanções - podem valer uma ao lado da outra e ser efetivamente aplicadas porque se não contradizem, isto é, porque podem ser descritas sem contradição lógica. (Kelsen, 2000a: 27)

Tem-se, portanto, que a aplicação do princípio da não-contradição a relações entre normas deve ser feita sem consideração dos conflitos teleológicos. Apesar disto, tal princípio se aplica às relações entre normas. Afirmar que "se A, então deve ser B" e que "se A, então não deve ser B" é tão contraditório quanto afirmar que "se A, então B" e "se A, então não-B". Tanto em um como no outro caso não se podem admitir ambas as asserções ao mesmo tempo.

3.3.4.5.A descontinuidade lógica entre norma e fatos

Apesar de que se pode aplicar a normas os mesmos princípios lógicos aplicáveis a afirmativas acerca de relações causais, isto não implica em que haja uma continuidade lógica entre tais afirmações. Normas não podem ser deduzidas de premissas em que não constem normas, assim como fatos não podem ser deduzidos em premissas em que constem apenas normas. Isto se explica pela razão de que a conclusão em um raciocínio dedutivo deve estar contida nas premissas, de modo que se as premissas não contêm qualquer "dever ser", as conclusões também não conterão.

A partir das premissas de que os seres humanos são seres vivos, inteligentes, sociais, interdependentes ou comunicativos, não decorre que não devam ser mortos, escravizados, isolados, excluídos ou que devam ser ouvidos. Caso aceitássemos o fato de que em uma democracia os homens são mais felizes que em uma autocracia, não se seguiria que se deve adotar um regime democrático, a não ser que também aceitássemos a premissa normativa segundo a qual os homens devem ser felizes.

Não se pretende aqui rejeitar quaisquer premissas normativas, que por vezes dificilmente se poderia afirmar que encontram, no Brasil contemporâneo, qualquer oposição (ex: não se deve tomar dos pobres para dar aos ricos). Pretende-se apenas apresentar a tese segundo a qual tais as sentenças normativas não podem ser deduzidas de premissas factuais, e vice-versa. Esta tese é abraçada por Hans Kelsen e constitui uma importante premissa dentro da Teoria Pura do Direito.

3.3.4.6.Contradição entre normas: Derrogação

Constatada uma contradição entre duas asserções, não se segue necessariamente que se possa dizer qual das asserções, se é que alguma, deve permanecer. As contradições entre duas asserções que estabelecem relações causais entre dois elementos costumam ser resolvidas com um apelo à experiência empírica.

Já as contradições entre normas não são passíveis de verificação empírica. Diante de duas normas contraditórias não se pode adotar como critério aquela norma que de fato ocorre. Entretanto, há um critério possível quando aceitamos a validade de uma ordem normativa e tomamos uma dada norma no interior desta ordem.

Dentro de uma mesma ordem normativa, as relações entre normas contraditórias resolvem-se por derrogação. A derrogação é a "derrubada" de uma norma por outra, ou seja, a aceitação de uma norma em detrimento de outra. A questão que se coloca é a dos critérios de derrogação.

Tais critérios dependem da ordem normativa em questão. Em uma ordem normativa encontramos, como veremos, normas que estabelecem autoridade para a criação de novas normas, ou seja, normas que regulam a produção de normas. Estas normas que regulam a elaboração de novas normas podem conferir a uma autoridade a competência para criar normas revogáveis ou irrevogáveis. Caso a competência seja para estabelecer normas revogáveis, aplica-se a regra segundo a qual a norma posterior derroga a norma anterior, e o inverso é verdadeiro no caso contrário. Caso sejam admitidas normas mais gerais e normas mais específicas regulando a mesma matéria, a norma específica derroga a geral. Além disso, as normas superiores derrogam as inferiores.

As relações de derrogação e hierarquias de normas se tornarão mais claras na parte que se refere à Dinâmica jurídica, razão pela qual aqui são apresentadas apenas estas breves palavras.

3.3.5.A finitude e independência das Ordens Normativas

O princípio da imputação, diferentemente do princípio da causalidade, permite a criação de sistemas finitos de normas. As normas pertencentes a uma determinada ordem normativa não têm relações lógicas com as normas pertencentes a uma outra ordem normativa. Desta forma, uma norma de direito penal finlandês não é afetada por normas de direito penal brasileiro. Também normas da ordem normativa do catolicismo não dependem de normas de um determinado código de ética profissional.

Cada ordem normativa é, portanto, finita, limitada. Cada uma guarda uma coerência interna, mas não tem relações com as demais ordens normativas. Como visto anteriormente, a unidade de uma ordem normativa é dada pela unidade da norma fundamental à qual todas as demais normas de uma certa ordem fazem referência. Duas ordens normativas, portanto, têm duas normas fundamentais distintas. Disto decorre que a validade das normas de cada uma destas ordens depende tão somente da validade das normas fundamentais respectivas.

Assim, podemos conceber uma ordem normativa fundada na máxima "amai os vossos inimigos" e uma outra ordem, também moral, fundada na máxima "buscai aumentar a glória da pátria". Podem-se deduzir diversas normas de cada uma destas máximas. Da máxima "amai os vossos inimigos" deduz-se que não se devem prejudicar os inimigos, não se deve querer-lhes mal, não se deve matá-los ou discriminá-los. Pode-se aceitar que todas estas normas já estão contidas na norma fundamental que determina que se deve amar aos inimigos. Por outro lado, da máxima "buscai aumentar a glória da pátria" podem-se deduzir as normas segundo as quais se deve favorecer nacionais antes que estrangeiros, se deve comprar de firmas nacionais antes que de estrangeiras, deve-se lutar com afinco contra nações inimigas em guerras, deve-se enaltecer a pátria respeitando hinos e bandeiras, etc.

A validade da norma segundo a qual não se deve prejudicar os inimigos depende tão somente da aceitação da validade da norma fundamental segundo a qual se devem amar os inimigos. Ela não tem qualquer relação com a validade da norma segundo a qual se deve buscar aumentar a glória da pátria. É isto que se pretende afirmar quando se diz que as diversas ordens normativas são finitas e independentes.

Por certo que alguém pode argumentar que tais normas dependem umas das outras uma vez que indivíduos concretos que aceitem uma delas geralmente rejeitam a outra ou a aceitam com restrições. Pode-se afirmar ainda que tais ordens são interdependentes já que o conteúdo de uma influencia a interpretação que os indivíduos fazem da outra, etc. Isto, no entanto, não é incompatível com a afirmação kelseniana segundo a qual as diversas ordens normativas são independentes entre si. Isto porque, a independência de que se trata aqui é uma independência lógica. Implica tão somente que as normas de uma ordem não podem ser deduzidas da norma fundamental de outra e que não há contradições lógicas entre normas de ordens diferentes.

3.5Estática Jurídica

A Teoria Pura do Direito divide o estudo das ordens jurídicas em duas grandes partes: a Estática e a Dinâmica Jurídica. A Estática Jurídica é aquela parte do estudo que se dedica a apreender o direito vigente no momento, sem se debruçar sobre o modo como tal direito se transforma. A Dinâmica Jurídica se debruça sobre o modo como o direito regula sua própria criação.

Aquilo na obra kelseniana que é mais importante para o nosso propósito está, em sua maior parte, abrangido pela Dinâmica Jurídica. Entretanto, cumpre que analisemos algumas noções da Estática Jurídica kelseniana que desempenham um papel decisivo no seu pensamento. Assim, tomemos a definição kelseniana de Direito, a identidade entre Direito e Estado, a distinção entre Direito Objetivo e Direito Subjetivo, a definição de Pessoa Jurídica e Pessoa Física.

3.5.1.O direito: definição

Para definirmos o conceito de direito, em Kelsen, é necessário que tenhamos claras várias idéias. Ao final direito será definido como qualquer ordem social que estabeleça como sanções atos coercitivos imanentes e que tenha uma esfera material de validade ilimitada. Assim, cumpre que estejam claras as noções de norma, ordem normativa, ordem social, sanção e esfera de validade, que compõem este conceito. Destas, várias já foram tratadas, de forma que passamos agora a construir este conceito e esclarecer as noções que ainda se fazem necessárias.

Na concepção kelseniana o direito é uma técnica social, isto é, trata-se de um construto humano que tem um objetivo específico, qual seja, controlar o comportamento de outros seres humanos. O direito não é, portanto, o fato de que determinados indivíduos controlem ou influenciem determinados outros indivíduos, mas uma técnica específica utilizada para impor determinados comportamentos a determinados seres humanos. Esta técnica social é caracterizada pelo apelo à coerção.

Existem inúmeras formas pelas quais se pode tentar impor a alguém determinado comportamento. O direito se vale especialmente da ameaça e efetiva aplicação da violência física contra aqueles que se comportam da maneira que se procurou coibir.

O direito, esta técnica social, é uma ordem social, o que em Kelsen quer dizer que se trata de um determinado conjunto de normas que pretende reger o comportamento recíproco de indivíduos humanos. Há, entretanto, inúmeras ordens sociais, de modo que cumpre que sejam apresentadas as características distintivas da ordem jurídica.

3.5.1.1. O direito: uma ordem social

Para Kelsen o direito é uma ordem social. Uma ordem social tem certas características no pensamento kelseniano. Trata-se, em primeiro lugar, de um conjunto determinado de normas. Em segundo lugar, fala-se de ordem porque tal conjunto guarda uma coerência interna, ou seja, não é apenas um conjunto, mas um sistema de normas já que os elementos deste conjunto estão inter-relacionados. Em terceiro lugar, o qualificativo "social" se refere à característica de que esta ordem é composta por normas que pretendem regular o comportamento recíproco dos indivíduos.

Existem, no entanto, várias ordens deste tipo. Um determinado sistema moral ou uma ética religiosa seriam exemplos de outras ordens sociais. O termo "direito" se refere a uma determinada espécie de "ordem social", a um tipo específico de ordens, não a uma ordem em particular. Ou seja, o termo "direito" se aplica a um determinado tipo de conjunto de normas que regulam o comportamento humano. Cumpre esclarecer, agora, qual é a característica definidora destas ordens sociais, ou seja, que característica que, estando presente, permite a classificação da ordem como "jurídica", como "direito".

3.5.1.2.Características da ordem jurídica: coercitividade e esferas territorial, pessoal, temporal e material de validade

Para Kelsen toda norma, na medida em que se pretende válida para reger atos humanos, deve determinar para que atos humanos pretende valer. Isto quer dizer que toda norma tem uma determinada esfera de validade. A norma que estatui que é devido um imposto em função da renda que um indivíduo qualquer aufira ao longo de um ano, pertencente ao ordenamento jurídico brasileiro, se supõe válida apenas para certos indivíduos: suponhamos que tais sejam aqueles que estão no Brasil e que aqui aufiram qualquer espécie de renda; pressupõe-se também válida apenas sobre um determinado território: o território brasileiro; e pressupõe-se válida por um determinado período de tempo: de, suponhamos, um ano após sua edição em diante.

Toda norma tem, portanto, uma esfera territorial, uma esfera pessoal e uma esfera temporal de validade. Além disto, toda ordem tem uma determinada esfera material de validade, o que quer dizer, ela é tida como válida apenas para determinadas espécies de comportamento humano. Assim, as regras do xadrez não são tidas como válidas para o relacionamento amoroso.

Temos, portanto, que qualquer ordem social deve ter uma esfera pessoal, material, temporal e espacial de validade. As ordens normativas a que chamamos "direito" também o têm.

É característico das ordens jurídicas que tenham uma esfera material de validade ilimitada. O direito de um determinado estado pode regular qualquer espécie de matéria, desde crenças religiosas até as regras de determinado esporte. O fato de que as constituições de diversas ordem jurídicas contemporâneas vedem a proibição de cultos religiosos, atendidos certos critérios, é já indício deste fato, uma vez que autorizar ou proibir a proibição são já formas de regulação.

As esferas pessoal, territorial e temporal de validade da ordem jurídica são uma questão à parte, uma vez que surge aqui, com especial importância, o problema da ordem, jurídica internacional. Ocorre que se pode com clareza afirmar que tais esferas são limitadas no que tange às ordens jurídicas nacionais, mas não no que tange à ordem jurídica internacional. O debate que Kelsen trava em torno desta questão não nos interessa aqui, razão pela qual passamos ao largo deste problema.

Desta forma, toda ordem jurídica é caracterizada por ter uma esfera material de validade ilimitada.

Uma outra, e a mais importante característica de uma ordem jurídica na percepção kelseniana, é o fato de que estabelece ações coercitivas como sanções. Segundo o autor, como veremos mais adiante, toda norma tem uma estrutura determinada, na qual figura a sanção como uma parte importante. As normas de uma ordem jurídica têm a característica de que, direta ou indiretamente, estabelecem sanções coercitivas.

No entanto, há um elemento comum que justifica plenamente essa terminologia e que dá condições à palavra "Direito" de surgir como expressão de um conceito com um significado muito importante em termos sociais. Isso porque a palavra se refere à técnica social específica de uma ordem coercitiva, a qual, apesar das enormes diferençãs entre o Direito da antiga Babilônia e o dos Estado Unidos de hoje, entre o Direito dos ashanti na África Ocidental e o dos suíços na Europa, é, contudo, essencialmente a mesma para todos esses povos que tanto diferem em tempo, lugar e cultura: a técnica social que consiste em obter a conduta social desejada dos homens através da ameaça de uma medida de coerção aplicada no caso de conduta contrária. (Kelsen, 2000b: 27)

Aqui se faz necessário precisar o que se pretende dizer com o termo "sanções coercitivas". Um ato é uma sanção coercitiva se deve ser levado a cabo mesmo contra a vontade do indivíduo ou indivíduos contra os quais deve ser efetivado. Note-se, e isto é importante ao longo de toda a obra kelseniana, que coerção não se refere a uma violência efetivamente empregada, nem à possibilidade real de aplicação de força física, mas única e exclusivamente ao "dever ser" aplicada mesmo contra a resistência do sancionado.

Há ainda uma outra característica comum a qualquer ordem jurídica, qual seja, o fato de que as sanções deste tipo de ordem têm um caráter imanente, isto é, devem ser efetivadas por indivíduos humanos determinados direta ou indiretamente pela própria ordem.

Em resumo, as características que devem estar presentes para que um dado conjunto de normas seja considerado uma ordem jurídica, um direito, são: 1) ter uma esfera material de validade ilimitada; 2) estabelecer como sanções atos coercitivos; 3) estabelecer sanções imanentes, ou seja, aplicadas por indivíduos humanos.

Direito, portanto, é toda ordem social com esfera material de validade ilimitada que estabelece sanções coercitivas imanentes.

3.5.2.A estrutura da norma

Diz-se "norma", na concepção kelseniana, todo conteúdo de sentido que tenha uma determinada forma, que pode ser resumida como "Se A, então deve ser B, de acordo com C". Este ponto é bastante importante para uma adequada compreensão do pensamento do autor. A norma não é uma determinada forma de comportamento humano, mas uma determinada construção de sentido, que é caracterizada não por um conteúdo qualquer, mas por sua forma, sua estrutura.

Podemos detalhar melhor esta definição de "norma", atentando para cada um de seus elementos constitutivos.

Tomemos a estrutura de significado "Se A então deve ser B de acordo com C", onde "A" são as condições, "B" é uma sanção e "C" é o fundamento de validade.

Devemos, então, notar, antes de tudo, que tal estrutura não corresponde à forma com a qual comumente expressamos idéias normativas. É clássico o exemplo retirado dos mandamentos de Moisés: "Não matarás" ou "não se deve matar". Esta forma tem suas condições, sua sanção e seu fundamento de validade ocultos, sendo manifesta simplesmente a conduta por meio da qual se pode evitar a sanção, isto é, daquela estrutura anteriormente apresentada temos apenas "não-A", acrescida do imperativo. Esta mesma idéia, expressa na forma normativa, estaria disposta da seguinte forma: "se alguém matar, em qualquer circunstância, deve ser punido (a punição não está clara), de acordo com os mandamentos divinos".

Feita esta breve observação, podemos prosseguir para uma análise de cada elemento da estrutura das normas.

3.5.2.1.Condições

O primeiro elemento da estrutura da norma aqui apresentado são as "condições". Entende-se por este termo tudo aquilo que deve estar presente para que a conseqüência, ou "sanção" seja devida (note-se que não se trata das condições para que a sanção de fato ocorra, mas tão somente daquelas que necessitam estar presentes para que a sanção deva ocorrer). Entram nestas condições todas aquelas circunstâncias anteriormente referidas como "esferas de validade pessoal, material e temporal" das normas, além de quaisquer outras circunstâncias que condicionem a aplicação (devida, não efetiva) da sanção.

Tomemos alguns exemplos:

1."Matar alguém"

Uma norma do Código Penal brasileiro prevê:

Art. 121. Matar alguém:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos

"Matar alguém" é uma condição para que seja devida a aplicação da pena. Entretanto, entre as condições desta norma incluem-se diversas outras, como por exemplo, esta ação tem de ter ocorrido no território brasileiro (há diversas exceções, mas não nos alongaremos neste assunto); esta ação tem de ter sido "dolosa", ou melhor, tem de ter sido feita propositalmente, seu autor tem de ter almejado o resultado morte quando da prática do ato (existem exceções); o indivíduo que realizou a ação de matar tem de ter mais de 18 anos de idade, etc. Vê-se que as condições de aplicabilidade da norma, o elemento "A" na estrutura da norma anteriormente apresentada, não correspondem necessariamente àquilo descrito em uma norma como condição da sanção, mas incluem todos os demais elementos necessários para que uma sanção deva ser aplicada.

Estas outras condições não são deduzidas de qualquer maneira da natureza da norma ou do direito, mas, simplesmente, estão presentes em outras normas do mesmo ordenamento. Por exemplo, a norma que determina que uma das condições de aplicação do artigo 121 do Código Penal acima apresentado é que o fato tenha ocorrido no território brasileiro é o artigo 5º também do Código Penal:

Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional.

Pode-se ampliar bastante a análise sobre tais condições, uma vez que incluem tudo aquilo compreendido entre o oferecimento de denúncia, a constituição de advogados, o convencimento do júri acerca do ocorrido, etc; ou seja, dentre as condições de aplicação da pena incluem-se as normas de Direito Processual Penal. Desta forma esta norma seria descrita com mais precisão em uma forma semelhante à que segue: "se for oferecida denúncia contra um indivíduo, for instaurado um processo criminal, se o tribunal do júri entender que ele matou alguém no Brasil, que o fez de propósito, que tem mais de 18 anos, que estava lúcido quando o fez, etc., então o juiz deverá condenar-lhe a uma pena de reclusão que pode variar entre 6 e 20 anos."

2."Pacta Sunt Servanda"

Outro exemplo: a norma de Direito Internacional Geral que determina que os tratados internacionais devem ser respeitados, geralmente designada como o princípio do pacta sunt servanda. Esta norma estabelece como sanções a represália e a guerra. As condições aí são o descumprimento de um acordo celebrado entre dois estados. Incluem-se, porém, em tais condições que o tratado tenha sido celebrado por certos indivíduos em suas capacidades enquanto órgãos de, pelo menos, dois estados; que este tratado tenha sido descumprido por indivíduos investidos de determinadas atribuições como órgãos dos mesmos estados. Desta forma, também aí se incluem nas condições de aplicabilidade da sanção as condições de validade da norma.

3.5.2.2.Deve ser

O segundo elemento presente na estrutura de uma norma é o "então dever ser", ou simplesmente "dever". Deve-se ressaltar aqui que Kelsen trata deste termo em um sentido amplo que envolve não apenas o dever, mas também o "direito", a permissão, a competência. [03] Assim, toda norma contém, necessariamente, um dever, que pode ser um "direito" ou uma "autorização".

A afirmação: um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta é idêntica à afirmação: uma norma jurídica prescreve aquela conduta determinada de um indivíduo; e uma ordem jurídica prescreve uma determinada conduta ligando à conduta oposta um ato coercitivo como sanção. (Kelsen, 2000a: 129)

E ainda:

A este respeito recorde-se uma vez mais que, se a proposição jurídica é formulada com o sentido de que, sob determinadas condições ou pressupostos, deve intervir um determinado ato de coação, a palavra "deve" nada diz sobre a questão de saber se a aplicação do ato coercitivo constitui conteúdo de um dever jurídico, de uma permissão positiva ou de uma atribuição de competência (autorização), antes, as três hipóteses são igualmente abrangidas. (Kelsen, 2000a: 133)

Assim, quando se afirma que a estrutura de uma norma tem a forma "se A, então deve ser B", pode-se entender por "deve" tanto uma obrigação como uma autorização ou uma competência para a realização de um determinado ato.

3.5.2.3.Sanção

Quando se fala de sanções, no pensamento kelseniano, tem-se em mente não apenas "penas" e "execuções civis", mas também "recompensas". Sanção é o termo genérico empregado pelo autor para designar as conseqüências devidas em função do implemento das condições previstas na norma.

As sanções jurídicas, entretanto, têm o caráter de sempre se referirem a atos coercitivos, daí que, quando se trata do direito, as recompensas têm muito pouca relevância. Mesmo quando uma determinada recompensa é estabelecida, estabelece-se também uma punição para o caso de o órgão competente não entregar a recompensa no caso adequado, de forma que o dever estabelecido diretamente é o do órgão: o dever de entregar a recompensa.

Tem-se, de qualquer forma, que o termo sanção se refere aqui a qualquer conseqüência prevista pela norma como devida em função do implemento das condições também estabelecidas. A sanção é qualquer conseqüência que figure como "B" na estrutura da norma anteriormente apresentada. (se A, então deve ser B).

3.5.2.4.Fundamento

A questão em torno do fundamento de validade de uma norma dentro de um ordenamento, e do próprio ordenamento, será analisada na parte referente à "Dinâmica Jurídica", mas pode-se apresentá-la brevemente aqui.

A norma é um conteúdo de sentido com uma estrutura determinada, da qual temos tratado. A validade de uma norma é o próprio dever desta norma, é o dever ser ela aplicada. Quando dizemos que a norma "não matar" é válida, entendemos que "não se deve matar". Quando afirmamos que a norma "deve-se amar os inimigos" é válida, pretendemos com isto que "deve-se amar os inimigos". Assim, afirmar a validade de uma norma é afirmar a própria existência da norma. A validade de uma norma, segundo Kelsen, é a existência específica da norma.

Uma norma inválida seria o mesmo que uma norma inexistente. Quando digo que a norma "deve-se tomar dos pobres e dar aos ricos" não é válida, estou dizendo que esta "norma" não passa de uma frase qualquer, estou negando seu próprio significado normativo. Neste caso, entende-se exatamente que tal frase não é uma norma, não existe.

Quando afirmo que uma norma é válida, portanto, estou afirmando que ela deve ser obedecida. Ora, isto pode não passar de uma repetição da mesma norma ou pode constituir uma norma nova. Neste segundo caso, temos uma norma que estabelece como devida, sob certas condições, a obediência à primeira norma. Assim, teríamos a norma X que determina que "Se A, então deve ser B". Teríamos também a norma Y, que determina que "Se Z, então deve ser X". Logo, a norma X pode ser escrita da seguinte forma: "Se A, então deve ser B, em razão de Y".

Até agora estivemos trabalhando o conceito de direito em Kelsen. O direito é, para Kelsen, uma ordem normativa, cujas normas estabelecem sanções coercitivas. Uma ordem normativa é um conjunto internamente coerente de normas que tem em comum a referência a uma mesma norma fundamental. Uma norma é um conteúdo de sentido que tem uma estrutura caracterizada pela imputação de uma conseqüência como devida em decorrência de certas condições. Buscou-se acima esclarecer cada uma destas idéias.

3.5.3.Direito Objetivo e Subjetivo

Até agora analisamos idéias necessárias para a compreensão da definição kelseniana de direito: as características da ordem jurídica e a estrutura da norma. Passaremos, agora, a lidar com alguns conceitos importantes no estudo daquilo que Kelsen chama de "Estática Jurídica". É compreensível que juristas considerem tal exposição um tanto quanto irrelevante e sociólogos a considerem cansativa. Porém, cumpre que se permita ao leitor conhecer algumas conseqüências do modo kelseniano de ver o direito. Em função disto veremos agora os conceitos de direito objetivo e subjetivo, pessoa física e jurídica.

A distinção entre Direito Objetivo e Direito Subjetivo é corriqueira entre os juristas. Direito subjetivo é o direito que alguém possui: o direito à vida, à propriedade privada, à herança. Neste sentido, direito subjetivo contrapõe-se à obrigação. Direito objetivo são as normas das quais deduzimos as obrigações e direitos. É direito objetivo a norma do artigo 5º da Constituição Federal que protege a vida, a propriedade privada e a herança (inciso XXX). São direitos subjetivos o direito à vida, à propriedade e a herança de um indivíduo.

Aquilo que Kelsen chama de "direito positivo" engloba aquilo que os juristas brasileiros em geral conhecem por "direito objetivo", ou seja, quaisquer normas jurídicas válidas, sejam decorrentes da legislação, do costume, da jurisprudência ou de qualquer outra "fonte" aceita como autoridade criadora de normas.

Kelsen trava uma árdua polêmica com diversos autores que encontram no direito subjetivo o fundamento do direito objetivo. O direito subjetivo seria anterior e superior ao direito objetivo, de modo que o Estado seria incompetente para interferir no exercício de determinados destes direitos, tais como a liberdade, a vida, a propriedade privada. Diversas doutrinas jusnaturalistas adotam esta posição, que Kelsen procura refutar. Não adentraremos nesta polêmica, mas cabe ressaltar neste ponto que Kelsen opera uma redução do direito subjetivo ao direito objetivo, à norma.

3.5.3.1.Conceitos Auxiliares

Da mesma forma que se fala em um direito subjetivo referindo-se ao "direito reflexo", ou seja, a norma vista do ponto de vista do indivíduo, também se fala no dever jurídico. O dever jurídico é o dever de um determinado indivíduo de praticar determinado ato. A norma estabelece um dever ser, por exemplo, todos os indivíduos maiores de 18 anos devem votar. Dever jurídico é o nome dado à obrigação que um determinado indivíduo, maior de 18 anos, tem de votar.

O dever jurídico, o direito subjetivo, a competência, a responsabilidade, todos estes são, para Kelsen, conceitos auxiliares da ciência jurídica. São conceitos formados a partir de uma consideração da norma ou de várias normas, ou seja, do direito objetivo, a partir de um ponto de vista especial, diferente daquele da ordem jurídica. Assim, o direito subjetivo é o direito que tem um determinado indivíduo, que nada mais é do que um modo diferente de descrever uma norma que estabelece algo como devido. O dever jurídico é a conduta oposta àquela que a norma estabelece como condição para a aplicação de uma sanção. A competência é a capacidade de um indivíduo de participar da vida civil, ou, dito de uma perspectiva normativa, é o fato de que o direito estabelece a conduta deste indivíduo como condição para a produção de novas normas jurídicas, gerais ou individuais, especialmente os contratos ou negócios jurídicos.

Aqui deve ter-se em conta que a afirmação de que um indivíduo é sujeito de um dever jurídico, ou tem um dever jurídico, nada mais significa senão que uma determinada conduta deste indivíduo é conteúdo de um dever pela ordem jurídica estatuído, quer dizer: que a conduta oposta é tornada pressuposto de uma sanção; e que, com a afirmação de que um indivíduo é sujeito de um poder jurídico, de uma faculdade (poder) ou competência, ou de que tem um poder jurídico, faculdade ou competência, nada mais significa senão que, de acordo com ordem jurídica, são produzidas ou aplicadas normas jurídicas através de determinados atos deste indivíduo ou que determinados atos deste indivíduo cooperam na criação ou aplicação de normas jurídicas. No conhecimento dirigido às normas jurídicas não são tomadas em consideração - nunca é demais acentuar isto - os indivíduos como tais, mas apenas as ações e omissões dos mesmos, pela ordem jurídica determinadas, que formam o conteúdo das normas jurídicas. (Kelsen, 2000a: 189)

A ciência jurídica, segundo Kelsen, é um conhecimento dirigido às normas, e não aos atos de indivíduos. A adoção de tais conceitos reflexos, que têm por referência não as normas, mas o indivíduo, é útil na medida em que simplifique ou facilite a descrição de uma situação jurídica dada. Assim, diz-se que um indivíduo maior de 18 anos e que não tenha distúrbios em suas capacidades intelectivas é dotado de capacidade para a vida civil. Esta afirmação significa que as declarações de vontade deste indivíduo podem figurar como condições para a criação de novas normas, tais contratos, testamentos, declarações unilaterais de vontade, etc. Contratos, testamentos e declarações unilaterais de vontade são normas jurídicas. Pertencem ao ordenamento jurídico porque sua validade depende da lei (da norma que confere a capacidade civil), que depende da Constituição, que remete à norma fundamental fictícia da ordem jurídica.

Outro conceito auxiliar da ciência jurídica é o conceito de responsabilidade, que aponta para aquele indivíduo contra o qual a norma determina que sejam aplicadas sanções em determinadas situações. Note-se que é obrigado juridicamente a uma determinada conduta aquele indivíduo cuja conduta é tornada, por uma norma jurídica, o pressuposto de uma sanção. Entretanto, a sanção não tem, necessariamente, de ser dirigida contra o mesmo indivíduo. Daí o conceito jurídico de "responsabilidade" [04]

Conceito essencialmente ligado com o conceito de dever jurídico, mas que dele deve ser distinguido, é o conceito de responsabilidade. Um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta quando uma oposta conduta sua é tornada pressuposto de um ato coercitivo (como sanção). Mas este ato coercitivo, isto é, a sanção como conseqüência do ilícito não tem de ser necessariamente dirigida - como já se fez notar - contra o indivíduo obrigado, quer dizer, contra o indivíduo cuja conduta é o pressuposto do ato coercitivo, contra o delinqüente, mas também pode ser dirigido contra um outro indivíduo que se encontre com aquele numa relação determinada pela ordem jurídica. O indivíduo contra quem é dirigida a conseqüência do ilícito responde pelo ilícito, é juridicamente responsável por ele. (Kelsen, 2000a: 133)

Assim, o indivíduo obrigado pela ordem jurídica não é necessariamente o mesmo que é responsável. Responsável é aquele que deve, segundo a ordem jurídica, suportar a sanção. Assim, uma ordem normativa pode estabelecer que, caso uma criança destrua propriedade alheia, seu pai deverá indenizar os danos. Neste caso, a criança é obrigada a abster-se de destruir a propriedade alheia (uma conduta possível sua figura como pressuposto de uma sanção) e o pai é o responsável (a sanção é dirigida contra ele).

O direito subjetivo, entretanto, não apenas é um conceito auxiliar, pois se trata apenas de uma consideração diversa da mesma norma, mas também é prescindível. Um direito subjetivo é apenas o reflexo de um dever jurídico, que é a conduta oposta àquela estipulada como condição de uma sanção. Desta forma, segundo Kelsen, o direito subjetivo não é senão um direito reflexo. Assim como aquilo que chama de norma secundária (o "não se deve matar" como conduta que permite evitar a sanção de "matar alguém: reclusão de 6 a 20 anos"), o direito subjetivo não é nada além da mesma norma vista de uma forma teleológica. A norma "matar alguém. Pena: reclusão de 6 a 20 anos" constitui tanto a obrigação de abster-se do homicídio como constitui também o direito à vida. Quando afirmo que tenho direito à vida, estou dizendo simplesmente que todos os demais têm a obrigação de não me matar. E isto significa tão somente que o fato de alguém me matar seria uma condição para que uma certa pena fosse devida.

Há um segundo sentido para direito subjetivo, que Kelsen chama de direito subjetivo em sentido técnico ou estrito. Aqui, o direito subjetivo significa a autorização para ingressar com uma ação judicial contra outrem, a fim de que faça ou abstenha-se de fazer algo. Assim, quando digo que tenho direito à propriedade isto pode significar: 1) em sentido lato, enquanto direito reflexo, que todos os demais estão obrigados a não interferirem em meus atos de gozo, fruição ou disposição de certos bens, ou; 2) em sentido estrito, enquanto direito de ação, que estou autorizado a ingressar com um pedido em juízo contra qualquer que interfira em meu gozo, fruição ou disposição dos mesmos bens, sendo que desta forma participo da criação de uma norma particular que estabelece como devida uma punição àquele indivíduo particular.

em resumo, pode-se dizer: o direito subjetivo de um indivíduo ou é um simples direito reflexo, isto é, o reflexo de um dever jurídico existente em face deste indivíduo; ou um direito privado subjetivo em sentido técnico, e isto é, o poder jurídico conferido a um indivíduo de fazer valer o não-cumprimento de um dever jurídico, em face dele existente, através da ação judicial, o poder jurídico de intervir na produção da norma individual através da qual é imposta a sanção ligada ao não-cumprimento; ou o direito político, isto é, o poder jurídico conferido a um indivíduo de intervir, já diretamente, como membro da assembléia popular legislativa, na produção das normas jurídicas gerais a que chamamos de leis, já indiretamente, como titular de um direito de eleger para o parlamento ou para a administração, na produção das normas jurídicas que o órgão eleito tem competência para produzir; ou é, como direito ou liberdade fundamental garantida constitucionalmente, o poder de intervir na produção da norma através da qual a validade da lei inconstitucional que viola a igualdade ou liberdade garantidas é anulada, quer por uma forma geral, isto é, para todos os casos, quer apenas individualmente, isto é, somente para o caso concreto. Finalmente, também pode designar-se como direito subjetivo e a permissão positiva de uma autoridade. (Kelsen, 2000a: 162)

3.5.4.Pessoa Física e Jurídica

Também os conceitos de pessoa física e pessoa jurídica são objeto de atenção e debates entre Kelsen e aquilo que ele chama de "doutrina dominante" entre os juristas. Apresentarei aqui tão somente a definição kelseniana destes conceitos, deixando de lado a polêmica que o autor travava então com os juristas de sua época.

Para Kelsen a pessoa jurídica é tão somente a personificação de um determinado conjunto de normas. Uma pessoa jurídica, digamos uma empresa, seria o conjunto de todos os direito e deveres que são imputados a ela. Entretanto, para que se possa bem compreender isto é necessário que primeiro verifiquemos a idéia que Kelsen tem da pessoa física.

Afirma este autor que a pessoa física não é um ser humano concreto, um organismo biológico dotado de quaisquer capacidades intelectivas. A pessoa física, para ele, como qualquer outro conceito jurídico, se refere tão somente a normas. A pessoa física é o conjunto de todas as obrigações e direitos de um determinado indivíduo. Ela é a personificação das normas que, desde um ponto de vista teleológico, constituem obrigações e direitos do indivíduo.

Mas estas tentativas são tanto mais baldadas quanto é certo que uma análise mais profunda revela que também a chamada pessoa física é uma construção artificial da ciência jurídica, que também ela é apenas uma pessoa "jurídica". (Kelsen 2000a: 192)

Na verdade, para o autor, toda pessoa física é uma pessoa jurídica. Ambas são apenas personificações de normas, não indivíduos humanos. Personifica-se o conjunto de normas que têm um mesmo ponto de imputação, ou seja, que se referem à conduta de um mesmo indivíduo, ou de uma mesma organização.

a pessoa física ou jurídica que "tem" - como sua portadora - deveres jurídicos e direitos subjetivos é estes deveres e direitos subjetivos, é um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos cuja unidade é figurativamente expressa no conceito de pessoa. A pessoa é tão somente a personificação desta unidade. (Kelsen, 2000a: 193)

A distinção entre uma e outra não está no substrato humano, mas na distinção de dois tipos de fatores que conferem unidade a um determinado conjunto de normas.

o que em ambos os casos - tanto o da pessoa física como o da pessoa jurídica - realmente existe são deveres jurídicos e direitos subjetivos tendo por conteúdo a conduta humana e que formam uma unidade. Pessoa jurídica (pessoa em sentido jurídico) é a unidade de um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos. Como estes deveres jurídicos e direitos subjetivos são estatuídos por normas jurídicas - melhor: são normas jurídicas -, o problema da pessoa é, em última análise, o problema da unidade de um complexo de normas. A questão é a de saber qual é, num caso e no outro, o fator que produz esta unidade. (Kelsen, 2000a: 193)

A unidade das normas que compõe a chamada "pessoa física" é dada pela referência comum ao comportamento de um mesmo indivíduo.

a unidade de deveres e direitos subjetivos, quer dizer, a unidade das normas jurídicas em questão, que formam uma pessoa física resulta do fato de ser a conduta de um e mesmo indivíduo que constitui conteúdo desses deveres e direitos, do fato de ser a conduta de um e mesmo indivíduo a que é determinada através das suas normas jurídicas. A chamada pessoa física não é, portanto, um indivíduo mas a unidade personificada das normas jurídicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo indivíduo. Não é uma realidade natural, mas uma construção jurídica de fatos juridicamente relevantes. Neste sentido, a chamada pessoa física é uma pessoa jurídica.(juristische person) (Kelsen, 2000a: 194)

Já a unidade das normas que compõe a chamada "pessoa jurídica" é dada pela referência a uma "Corporação". A diferença consiste em que a "Corporação" não é um indivíduo ou qualquer elemento material. Ela é, ela própria, um conjunto de normas.

Com efeito, designa-se por corporação uma comunidade organizada, quer dizer, uma comunidade que é constituída através de uma ordem normativa que estabelece que certas funções devem ser desempenhadas por indivíduos que forem chamados a essas funções por uma forma indicada no estatuto, quer dizer, constituída por uma ordem normativa que institui órgãos desta espécie funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho. (Kelsen, 2000a: 197)

Uma corporação é, para Kelsen, um determinado conjunto de normas que estabelecem, entre outras coisas, os indivíduos que deverão cumprir determinadas obrigações jurídicas. Uma norma que obriga um indivíduo a pagar um imposto e uma que obriga uma organização a pagá-lo são distintas apenas no sentido de que a primeira estabelece diretamente o indivíduo responsável pelo pagamento, enquanto que a segunda delega a um segundo ordenamento a competência para estabelecer o indivíduo particular que pagará o tributo. Da mesma forma, a execução civil será dirigida, no primeiro caso, ao patrimônio de um indivíduo determinado diretamente pelo ordenamento jurídico, enquanto que no segundo será dirigido contra um patrimônio comum a vários indivíduos, regulado também pelo estatuto da organização ou empresa.

Assim, a pessoa física e a pessoa jurídica são ambas, em Kelsen, apenas conteúdos de normas, cujo conjunto é formado em função de terem um ponto comum de imputação, e que é visto de forma personificada.

3.6.Dinâmica Jurídica

Enquanto a Estática Jurídica consistia no estudo das normas jurídicas tais como dadas em um determinado momento, o estudo da Dinâmica Jurídica se refere ao estudo das normas jurídicas em seu processo de transformação. Não se pretende, é claro, que tal estudo se refira ao modo como surgem, nas mentes de indivíduos humanos concretos, determinadas idéias normativas. Este estudo se refere, antes, ao modo como o direito regula sua própria criação, ou seja, às normas que, dentro de um ordenamento normativo, estabelecem os procedimentos que devem ser observados para a criação de novas normas.

Esta é, a meu ver, a parte mais importante do pensamento kelseniano, já que é no estudo da dinâmica jurídica que são abordadas as questões da norma fundamental, do fundamento de validade das normas, e da unidade da ordem normativa.

3.6.1.O Ordenamento Hierárquico

Um ordenamento normativo qualquer não apenas tem uma coerência interna, mas também tem uma forma hierárquica. Esta forma independe de qualquer ordenamento normativo particular, sendo uma característica da própria estrutura normativa.

Afirmar que o ordenamento normativo tem uma estrutura hierárquica significa que existem normas superiores e normas inferiores. Uma norma superior não é sinônimo de uma norma mais geral, melhor ou de qualquer forma mais importante. Da mesma forma, uma norma inferior não é, necessariamente, menos geral ou menos importante. Superioridade e inferioridade têm aqui um significado preciso. A superioridade equivale a supra-ordenação e a inferioridade a subordinação.

3.6.1.1.Relações entre normas

Há três formas possíveis de relações entre normas dentro de uma mesma ordem normativa. Uma norma pode ser supra-ordenada, subordinada ou coordenada a outra norma.

Uma norma é subordinada a uma outra norma quando sua validade decorrer daquela norma. Assim, se aceitarmos como válido um determinado ordenamento moral que estabeleça como norma fundamental que "se devem amar os inimigos"; e aceitarmos ainda que a norma "não se devem matar os inimigos" decorre logicamente desta norma fundamental, então a norma "devem-se amar os inimigos" é superior à norma "não se devem matar os inimigos". Um outro exemplo: se aceitarmos a norma "as crianças devem obedecer a seus pais" e constatarmos que um determinado pai ordenou a seu filho João que fizesse suas tarefas de casa, teríamos que a norma "as crianças devem obedecer a seus pais" é superior àquela segundo a qual "João deve fazer suas tarefas de casa".

Com a afirmação de que uma norma é superior a outra quer dizer que a inferior decorre sua validade da superior. Um exemplo: tem-se uma norma x "se A, então deve ser B", onde B, dentre outras coisas, confere autoridade para criação de normas a um indivíduo P. P estabelece uma norma p com a forma "se Y, então deve ser não-x". Temos aí, portanto.

x:Se A, então deve ser B

Onde B, entre outras coisas, confere autoridade para P

p:Se Y, então deve ser não-x

Estas normas não são contraditórias em seu conteúdo. Se aceitássemos ambas teríamos que "se A, então deve ser B e se Y, então deve ser não-x". Porém, a norma p está apresentada de forma incompleta. Falta-lhe o fundamento de validade. Quando aceitamos que p é válido em função de que x estabeleceu P como uma autoridade criadora de normas e que P estabeleceu a norma p, tomamos x como seu fundamento de validade. Podemos, então, escrever a norma p da seguinte forma: "Se Y, então deve ser não-x, segundo x"

Teremos, assim, que não-x é devido segundo a norma p. Entretanto, não-x significa que a norma x é inválida. Se a norma x é inválida e a norma p é válida em função de x, então p também não é válida. Se p não é válida, então não há razão para que x não seja válida. Desta forma, o raciocínio será circular sempre que aceitarmos a validade de uma norma inferior cujo conteúdo derrogue a norma que lhe é superior.

Na hipótese contrária não há qualquer problema: p só é válida se estiver em conformidade com x.

Apresentemos a mesma situação usando os exemplos anteriores. A norma x é "as crianças devem obedecer a seus pais". P é o Pai, e ele estabelece que se seu filho fizer as tarefas de casa, não precisará cumprir a norma x, ou seja, não precisará obedecer a seu pai. Entretanto, se o filho faz sua tarefa de casa e, portanto, fica desobrigado, segundo seu pai, de obedecer à norma segundo à qual deve obedecer a seu pai, não haverá mais qualquer razão para que o filho considere como válida a autorização que recebeu de seu pai. Se seu pai não é competente para estabelecer normas (não-x), não se pode aceitar a validade da norma por ele estabelecida segundo a qual ele não tem mais a competência para estabelecer normas.

A trivialidade deste exemplo tem como objetivo tão somente a apresentação clara. Entretanto, exemplos mais importantes são produzidos com bastante freqüência por leis inconstitucionais e decretos ilegais.

Vimos, então, que duas normas podem estar relacionadas por supra e subordinação. Há uma outra forma de relação: a coordenação. Duas normas são coordenadas se forem ambas subordinadas a uma mesma norma superior. Assim, um pai estabelece que seu filho 1) deve fazer suas tarefas de casa; e 2) deve escovar os dentes após as refeições. Estas duas normas são coordenadas, já que a validade de ambas depende da validade de uma norma que estabeleça como devida a obediência ao pai. Da mesma forma, todas as leis federais, ordinárias e complementares, no ordenamento brasileiro, são coordenadas, já que a validade delas decorre da Constituição Federal.

3.6.2.O fundamento de validade

Vimos anteriormente que as normas podem estar em relações de supra, infra e coordenação em um ordenamento normativo. Nos deteremos nas relações de supra e subordinação, enfocando o fundamento de validade das normas e do ordenamento normativo como um todo.

3.6.2.1.O fundamento de validade da norma

Uma norma apenas pode ser considerada como válida em função de uma outra norma, isto é, à questão acerca da validade de uma norma, apenas podemos responder fazendo referência a uma outra norma. Assim, à pergunta acerca do por que se deve promover uma maior distribuição de renda, pode-se responder pela afirmação de que todos são iguais e têm iguais direitos à participação na vida econômico-social. Ora, esta segunda afirmação significa que não deve haver exclusão na vida econômico-social, o que é, também, uma norma. À pergunta acerca do por que não deve haver exclusão econômico-social, pode-se responder afirmando que isto fere a dignidade do ser humano. Ora, quando se faz esta afirmação pressupõe-se que não se deve ferir a dignidade do ser humano, o que, novamente, é uma norma.

Uma norma apenas pode ter como fundamento de validade uma outra norma porque, enfim, a pergunta acerca das razões de validade de uma norma é uma pergunta acerca das premissas a partir das quais aquela norma pode ser deduzida. Se eu pergunto por que não devo tomar propriedade alheia, pergunto pelas premissas a partir das quais é possível deduzir que não devo tomar propriedade alheia. Nestas premissas encontra-se, necessariamente, ao menos uma normativa. Suponhamos que seja apresentado como resposta a esta pergunta a de que isto pode provocar sofrimento à pessoa de quem eu tomaria a propriedade. Esta não é uma razão suficiente, ou melhor, desta premissa não decorre necessariamente que não devo lhe tomar a propriedade. Para que tal conclusão decorra, preciso admitir também a premissa segundo a qual não devo provocar sofrimento nos meus semelhantes.

A resposta à indagação acerca das razões pelas quais não devo tomar propriedade alheia poderia ser, então, a de que isto provocaria sofrimento em meus semelhantes, e eu não devo provocar tal sofrimento.

Tomemos um exemplo do próprio autor:

em todo caso, no silogismo cuja premissa maior é a proposição de dever ser que enuncia a norma superior: devemos obedecer aos mandamentos de deus (ou aos mandamentos de seu filho), e cuja conclusão é a proposição de dever ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos dez mandamentos (ou que nos ordena que amemos os inimigos), a proposição que verifica (afirma) um fato da ordem do ser: deus estabeleceu os dez mandamentos (ou o filho de deus ordenou que amássemos os inimigos), constitui, como premissa menor, um elo essencial. Premissa maior e premissa menor, ambas são pressupostos da conclusão. Porém apenas a premissa maior, que é uma proposição de dever ser, é conditio per quam relativamente à conclusão, que também é uma proposição de dever ser. Quer dizer, a norma afirmada na premissa maior é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. A proposição de ser que funciona como premissa menor é apenas conditio sine qua non relativamente à conclusão. Quer dizer: o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor não é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão.(Kelsen, 2000a: 216)

Enfim, o fundamento de validade de uma norma é uma outra norma. Esta outra norma é chamada por Kelsen de norma superior com relação à norma que ela fundamenta. Ambas não podem contradizer-se ou a norma inferior não é considerada válida e, portanto, não é uma norma, pois carece do significado específico da norma, qual seja, o de que deve ser observada. Ambas fazem parte de uma mesma ordem normativa, dado que uma ordem normativa é um conjunto internamente coerente de normas que fazem referência a uma mesma norma fundamental.

Passemos a considerar a questão da validade de uma ordem normativa, onde veremos a questão da norma fundamental, em torno da qual gira o pensamento kelseniano.

3.6.2.2.O fundamento de validade da ordem normativa: a norma fundamental fictícia

Como apresentado anteriormente, a validade de uma determinada norma apenas pode ser deduzida de uma outra norma. Isto porque uma norma apenas pode figurar como conclusão em uma estrutura argumentativa que tenha pelo menos uma norma como premissa. Ora, se uma norma apenas pode ter uma outra norma por fundamento de validade, percebe-se claramente que teremos uma regressão ao infinito, já que a norma que fundamenta também apenas pode ter uma norma por fundamento. Entretanto, na perspectiva kelseniana, normas são apenas normas positivas, e positivas significa artificiais, ou seja, feitas por atos humanos (ainda que não subjetivamente voltados para a construção de normas, como as normas surgidas pelo costume).

Não é possível, para o autor, admitir o regresso ao infinito em função de que os atos humanos que põe normas não são infinitos, donde tem de haver um limite para a fundamentação. Este limite, por certo, é também uma norma, à qual Kelsen chama de "norma fundamental". A norma fundamental é uma norma pressuposta pelo pensamento jurídico, uma "hipótese" ou mesmo uma ficção da ciência jurídica, formulada para que seja possível admitir como válidas as normas de um determinado ordenamento.

como já notamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, isso que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm). Já para ela tivemos de remeter a outro propósito. (Kelsen, 2000a: 217)

Tem-se, então, no pensamento do autor, que um determinado conjunto de normas é composto por diversas normas escalonadas em função de seu fundamento de validade. As normas inferiores são assim chamadas por serem derivadas de outra norma no ordenamento. Haverá uma norma que não é derivada de nenhuma outra no mesmo ordenamento, mas que, se aceita como válida, confere validade a todas as demais normas deste ordenamento. Kelsen oferece um exemplo bastante claro quanto a isto:

Um exemplo aclarará este ponto. Um pai ordena ao filho que vá à escola. À pergunta do filho: por que devo eu ir à escola, a resposta pode ser: porque o pai assim ordenou e o filho deve obedecer às ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que devo eu obedecer às ordens do pai, a resposta pode ser: porque deus ordenou a obediência aos pais e nós devemos obedecer às ordens de deus. Se o filho pergunta por que devemos obedecer às ordens de deus, quer dizer, se ele põe em questão a validade dessa norma, a resposta é que não podemos sequer pôr em questão tal norma, quer dizer, que não podemos procurar o fundamento da sua validade, que apenas a podemos pressupor. O conteúdo da norma que constitui o ponto de partida: o filho deve ir à escola, não pode ser deduzido dessa norma fundamental. Com efeito, a norma fundamental limita-se a delegar numa autoridade legisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a qual devem ser criadas as normas deste sistema. (Kelsen, 2000a: 219)

A norma fundamental, como fica claro neste exemplo, não é uma norma positiva, mas apenas uma norma pressuposta como válida por quem pretenda considerar um determinado ordenamento como válido. A norma fundamental não decorre da natureza humana ou da natureza do direito, trata-se, simplesmente, de um pressuposto da ciência normativa, uma ficção, como Kelsen admitiu em sua obra póstuma.

Tendo apresentado o conceito de norma fundamental fica mais clara a idéia de que uma ordem normativa é um conjunto de normas que decorrem de uma mesma norma fundamental. Tomemos o exemplo de Kelsen citado anteriormente. Suponhamos que sejam aceitas as afirmações de que deus também ordenou que todas as pessoas se abstivessem de trabalhar em sábados e dias santos, que fizessem oblações e se abstivessem de proferir em vão um nome sagrado. Para quaisquer destas normas, se perguntássemos pela razão de sua obediência, chegaríamos à mesma resposta: porque deus o ordenou e deve-se obedecer às ordens de deus. Ou seja, a norma "deve-se obedecer às ordens de deus" é o fundamento de validade que confere unidade a toda esta estrutura normativa.

3.6.3.Formas de Derivação de Normas

No estudo da Dinâmica Jurídica, ou seja, na terminologia kelseniana, no estudo de uma ordem normativa quanto às formas de derivação, Kelsen identifica dois princípios por meio dos quais normas podem ser derivadas. Estes princípios são denominados "princípio estático" e "princípio dinâmico". Atente-se para não confundir tais princípios com a Estática e Dinâmica jurídicas que são, para o autor, o estudo da ordem jurídica no que respeita a suas normas tais como postas em um determinado momento e o estudo das formas pelas quais, em uma ordem jurídica, pode-se derivar novas normas.

3.6.3.1.Derivação Estática

A derivação de normas segundo o princípio estático seria, para o autor, a derivação de novas normas quando não apenas o fundamento de validade, mas também o próprio conteúdo da nova norma pode ser deduzido da norma superior.

segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer a conduta dos indivíduos por elas determinadas, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: por que a sua validade pode ser reconduzida a uma norma para cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. (Kelsen, 2000a: 217)

Deduzindo-se do geral para o particular a partir de uma norma, obtém-se uma outra norma que fará parte do mesmo ordenamento normativo. Um ordenamento em que predomine a derivação estática é chamado por Kelsen de um ordenamento estático. Exemplificando: tomemos uma norma de etiqueta "deve-se ser agradável aos demais". A partir desta norma podem-se deduzir diversas outras normas, tais como "uma pessoa deve se vestir de forma que não cause desconforto aos demais", "deve-se tratar visitas e hóspedes de forma que não se sintam desconfortáveis ou acanhados", "não se deve ser rude no trato com os demais", etc. Todas estas normas têm seu próprio conteúdo já contido na norma "deve-se ser agradável aos demais".

como todas as normas de um ordenamento deste tipo já estão contidas no conteúdo da norma pressuposta, elas podem ser deduzidas daquela pela via de uma operação lógica, através de uma conclusão do geral para o particular. Esta norma, pressuposta como norma fundamental, fornece não só o fundamento de validade como o conteúdo de validade das normas dela deduzidas através de uma operação lógica. (…) um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio estático. (Kelsen, 2000a: 218)

Assim, o princípio estático de derivação de normas é o princípio segundo o qual podem ser derivadas normas novas a partir de uma norma anterior desde que o conteúdo e o fundamento de validade das normas novas já estejam contidos na norma superior.

3.6.3.2.Derivação Dinâmica

Há uma outra forma de derivação de normas diferente da mera dedução do geral para o particular. A esta forma, Kelsen designa "princípio dinâmico" de derivação de normas. De acordo com o princípio dinâmico apenas o fundamento de validade, mas não o conteúdo da norma derivada está contido na norma superior. Tem-se, tão somente, na norma superior, a delegação de autoridade ao órgão competente para estabelecer a norma inferior.

Tomemos um exemplo: a Constituição da República Federativa do Brasil, a partir do artigo 59, confere ao Congresso Nacional a competência legislativa. O processo legislativo é ali determinado, para leis ordinárias, como devendo ocorrer da seguinte forma (simplificada): Um órgão que detenha iniciativa legislativa apresenta um projeto de lei (qualquer parlamentar tem iniciativa legislativa para leis ordinárias). O projeto deve ser aprovado, com o mesmo texto, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, por maioria simples dos votos, estando presente a maioria absoluta dos parlamentares da casa. O projeto aprovado deve ser encaminhado para sanção e promulgação do Presidente da República que, no entanto, pode vetá-lo total ou parcialmente. A lei assim aprovada, sancionada e publicada reputa-se válida.

A mesma constituição, entretanto, estabelece diversos outros preceitos com os quais as leis deverão estar conformes, tais como os contidos em seus artigos 5º, 6º e 7º que contém os chamados "direitos fundamentais" e "sociais". Desta forma, uma norma aprovada segundo o procedimento acima referido, desde que não contrarie outras normas da Constituição, é reputada válida.

Assim, uma determinada lei (10406/2002), o Código Civil brasileiro, estabelece que:

"Art. 1.283. Os frutos caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular".

O conteúdo desta norma não pode ser, de forma alguma deduzido de qualquer norma constitucional. Tal norma apenas é considerada válida porque foi aprovada segundo o procedimento especificado na Constituição.

Uma ordem normativa em que predomine o princípio dinâmico de derivação sobre o estático é chamada por Kelsen de uma ordem dinâmica. A ordem jurídica, ou seja, o direito, é uma ordem dinâmica.

Cabe considerar, porém, que quase todas as normas podem dar ensejo a uma derivação estática, de modo que não pode haver qualquer ordem normativa que seja exclusivamente dinâmica. Assim, a partir do artigo 1283 do Código Civil acima citado é possível deduzir, como do geral para o particular, diversas outras normas, por exemplo: "os abacates caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular", ou ainda "as laranjas que caírem da laranjeira do João no terreno do Francisco, seu vizinho, pertencerão a este último".

Isto não impede, porém, que as ordens sociais sejam classificadas, como o faz Kelsen, em dinâmicas ou estáticas. Uma ordem estática seria, por exemplo, uma ordem moral, cuja norma fundamental é "amem-se uns aos outros". Não se estabelece aí qualquer autoridade criadora de novas normas, mas podem-se deduzir inúmeras normas a partir daí, tais como "não se odeiem", "tenha afeição para com seu próximo", "não deseje a morte de seus amigos", etc. Uma ordem dinâmica seria, por exemplo, uma derivada da norma fundamental "deve-se obedecer aos comandos do papa". Tem-se aí uma autoridade competente para a criação de novas normas cujo conteúdo não está de antemão presente na norma fundamental.

O princípio dinâmico não funciona apenas delegando autoridade a um indivíduo determinado. Também pode estabelecer que qualquer norma que surja de uma forma determinada, por um certo procedimento, é uma norma válida. Assim, uma ordem costumeira é ainda uma ordem dinâmica. Os preceitos "deve-se comportar como os nossos antepassados se comportaram" ou "deve-se comportar como usualmente se comporta" conferem ao comportamento dos antepassados e ao comportamento usual uma competência criadora de normas. O conteúdo das normas inferiores não pode ser deduzido da norma superior.

Assim, o princípio dinâmico de derivação de normas pode ser descrito como aquele que confere validade a um determinado conteúdo de sentido (uma norma) produzido conforme um determinado procedimento. Este procedimento pode ser a mera manifestação de vontade de um ditador, ou o processo legislativo de uma democracia contemporânea.

3.6.4.A norma fundamental como limite superior da ordem social

Como vimos, a norma fundamental é, para Kelsen uma norma que não tem qualquer fundamento de validade. Uma norma apenas pode ser fundamentada por outra norma. Isto leva a um regresso ao infinito. Entretanto, normas são postas por atos de seres humanos, donde não cabe imaginar um regresso ao infinito. Qualquer norma que não tenha qualquer fundamento de validade mas que, por um motivo ou outro, se pretenda tomar por válida (ficção jurídica, hipótese fundamental) é chamada de norma fundamental.

Uma ordem normativa é o conjunto das normas que derivam direta ou indiretamente, quanto ao fundamento de validade, de uma norma fundamental. Normas que não podem ter sua validade reconduzida a uma mesma norma fundamental não pertencem à mesma ordem normativa.

Duas normas que não pertencem à mesma ordem normativa não têm qualquer relação entre si. Tais normas não podem se contradizer, não se derrogam nem se alteram mutuamente. Assim, a norma da alínea "a" do inciso XLVII do artigo 5º da Constituição Federal que autoriza a pena de morte no caso de guerra declarada pelo Presidente da República, autorizado pelo Congresso Nacional, não é incompatível com a norma dos dez mandamentos "não matarás". A primeira afirma "dadas determinadas condições, dentre as quais a declaração de guerra e o cometimento de um dado crime, deve-se aplicar a pena de morte, de acordo com o direito brasileiro". A segunda afirma, "em qualquer situação, não se deve matar, segundo os preceitos de deus".

Ora, "deve-se matar, segundo o direito" e "não se deve matar, segundo deus" não são sentenças contraditórias. Pode-se aceitar ambas simultaneamente: segundo o direito, em tal situação se deve matar e segundo deus em situação nenhuma se deve matar". As ordens normativas são independentes umas das outras. Isto significa que as normas de uma não se contradizem com as normas da outra.

Para Kelsen não se podem tomar como válidas simultaneamente duas ordens normativas. Se aceito a validade de uma ordem normativa, uma outra ordem apenas pode ser considerada válida se derivar sua validade da ordem que aceitei como válida. Neste caso teríamos uma ordem subordinada a outra. Assim, se aceito a validade da norma fundamental do ordenamento jurídico "deve-se obedecer à constituição", não posso aceitar a validade de uma certa ordem moral, salvo se tomá-la como uma ordem subordinada à ordem jurídica. Assim, ter-se-ia que a própria ordem moral é parte da ordem jurídica, já que deve ser obedecida apenas naquilo em que não contrariar a ordem jurídica.

Uma norma moral que afirmasse "não matarás", seria lida por quem aceite a validade da ordem jurídica, como "não matarás a não ser que o direito determine que se deve matar". "Não se deve mentir, salvo quando direito determinar o contrário", etc.


IV-A Sociologia do Direito

Para que possamos nos debruçar sobre as críticas que Hans Kelsen dirige à sociologia do direito é importante que, antes, apresentemos o pensamento de alguns sociólogos do direito. A sociologia do direito, ou melhor, a sociologia como um todo, não constitui um corpo de pensamento unívoco e coeso. Há diversas teorias e diversas interpretações. É imperioso que identifiquemos alguns autores que lidam com a sociologia do direito a fim de que possamos apontar mais precisamente quais teses Kelsen critica e com base em que.

Serão trabalhados aqui quatro sociólogos do direito. Eugen Ehrlich é por vezes considerado um dos fundadores da sociologia do direito e sua obra "Fundamentos da Sociologia do Direito" é tida como uma referência essencial para quem se interessa por este campo da sociologia. Ademais, Ehrlich é contemporâneo de Kelsen e recebe deste autor críticas diretas, incluindo um artigo bastante extenso dedicado exclusivamente a criticar a obra mencionada, "Una Fundamentación de la Sociología del Derecho".

Em seguida trata-se da obra de Durkheim. Este autor dava muita importância para a compreensão do direito. Era por meio do direito que se poderia identificar as formas de solidariedade, ou de vínculo social de uma dada sociedade, era o direito um meio bastante confiável de aferição da consciência coletiva concentrada. O principal mérito de Durkheim, pode-se dizer, é a clareza. Ele torna explícitas suas concepções acerca do direito e da sociedade, o que permite que sejam identificadas facilmente diversas teses que Kelsen pretende refutar.

Nicklas Luhmann foi selecionado para figurar neste trabalho por tratar-se de um autor que está escrevendo contemporaneamente. Trata-se de um importante sociólogo que dedicou uma importante obra à sociologia do direito. Sua teoria, ademais, apresenta uma concepção sistêmica do direito que diverge das concepções tradicionais, em especial por apresentar o direito como respondendo a uma necessidade sistêmica por limitação das contingências e por buscar explicitamente transpor a dicotomia entre "ser" e "dever-ser", tão importante na obra kelseniana.

Toma-se, por fim, a obra de Max Weber, que Kelsen considera a tentativa mais bem sucedida até o momento para construir uma sociologia do direito. É em especial com a teoria weberiana que estamos preocupados aqui. As críticas que Kelsen dirige às demais sociologias do direito são muito mais contundentes, entretanto, a sutileza da censura dirigida à Weber não deve nos levar a menosprezá-la. As críticas às concepções sociológicas mais próximas ao holismo metodológico são fortes, mas já bem conhecidas. Entretanto, as críticas dirigidas à sociologia weberiana apontam no sentido da impossibilidade desta sociologia construir conceitos que correspondam a "corpos coletivos" como Estado, Igreja, Família, Religião, Catolicismo, etc. Por mais insignificante que pareça uma tal crítica, ela alveja severamente a concepção sociológica weberiana, já que a sociologia não pode deixar de ambicionar descrever "instituições" e "corpos coletivos" em geral. Abandonar tal pretensão é, de uma certa forma, abandonar a sociologia. Se a sociologia compreensiva não for, como sugere Kelsen, capaz de apresentar definições que correspondam a tais objetos, de classificá-los e de formular explicações ou modelos descritivos para eles, tomando tais conceitos do senso comum ou de outras construções cognitivas, em nada se diferiria da História.

Novamente, para bem apreciarmos as críticas kelsenianas, urge que apreciemos previamente aquelas obras que ele pretende criticar.

4.1.Eugen Ehrlich

Eugen Ehrlich, jurista austríaco (1862-V 1922), é normalmente considerado, juntamente com vários outros, um dos fundadores da sociologia do direito. Sua obra Fundamentos de Sociologia do Direito é uma referência obrigatória para aqueles que se dedicam à sociologia do direito. Segue-se, agora, uma breve exposição do pensamento deste autor.

4.1.1.Conceito prático x conceito teórico de direito

Para Ehrlich um dos grandes problemas do pensamento jurídico contemporâneo reside em sua destinação prática. Estuda-se o direito não apenas para conhecê-lo, mas para aplicá-lo, utilizá-lo, de uma ou outra forma. Toda pesquisa da jurisprudência tradicional gira em torno da resolução de problemas imediatos. Em função disto, a jurisprudência não se erige em uma verdadeira ciência.

A ciência é, para o autor, desvinculada da prática. A química não é apenas a farmácia. As pesquisas do químico não se dirigem exclusivamente para obtenção de novos medicamentos ou de novos produtos, mas para o conhecimento dos elementos químicos, de suas reações e propriedades. Já a jurisprudência, Ehrlich a vê apenas dirigir seu olhar para questões práticas, objetivos imediatos que diferem do conhecimento. Em função disto a jurisprudência não tem, sequer, um conceito científico de direito.

Assim, a jurisprudência, na realidade, não conhece um conceito científico de direito. Da mesma forma como o técnico em construção de estruturas metálicas não está pensando na substância química pura que o químico ou mineralogista designa por metal, mas no material cheio de impurezas empregado em suas construções, assim o jurista, quando fala em direito, não está pensando naquilo que em sociedades humanas age na forma do direito, mas – com exceção de alguns campos do direito público – somente naquilo que entra em jogo na hora da aplicação da justiça. (Ehrlich, 1986: 14)

Uma verdadeira ciência do direito não pode, para Ehrlich, surgir desta forma. A ciência do direito não tem como preocupação primordial encontrar uma forma mais adequada de aplicação da justiça, mas o conhecimento do funcionamento efetivo do direito. Não se trata de conhecer o que se deve fazer em um caso concreto, mas de conhecer o que o direito de fato é. É necessário, para tanto, que se distingam a jurisprudência prática, de um lado, e a ciência teórica do direito, de outro.

Na jurisprudência, no entanto, a separação entre ciência do direito, de um lado, e ensino do direito prático, de outro, está se processando somente agora e para a maioria dos que trabalham neste campo, ainda ocorre de maneira inconsciente. Esta separação, porém, é fundamental para uma ciência autônoma do direito; esta não tem por objetivo servir a fins práticos, mas ao conhecimento puro; ela não trata de palavras, mas de fatos. (Ehrlich, 1986: 9)

A jurisprudência não constitui, portanto, uma ciência do direito, mas apenas uma doutrina prática. A ciência do direito está por nascer, ou está nascendo já, mas não tem o mesmo caráter da jurisprudência. De fato, para Ehrlich, o grande dilema do pensamento jurídico é que a jurisprudência tem tentado fazer os dois papéis simultaneamente.

O dilema da jurisprudência consiste no seguinte: apesarde ser somente uma doutrina prática do direito, continua sendo ao mesmo tempo a única ciência do direito. E isso significa que aquilo que ela ensina a respeito de direito e de condições jurídicas, não vai além do que a doutrina prática do direito pode fornecer em termos de orientação, objeto e método. (Ehrlich, 1986: 11)

Esta situação é perniciosa, na opinião do autor. A jurisprudência não tem os objetivos próprios de uma ciência, não tem seus métodos e nem tampouco toma por objeto todo o direito. Seu objetivo é prático, seu método é voltado para a solução de um caso litigioso e seu objeto são apenas aquelas relações jurídicas que, por uma ou outra razão, desembocam nos tribunais.

Importante ressaltar aqui que, novamente, o termo jurisprudência é empregado no sentido de "estudo do direito", e não de decisões recorrentes de tribunais ou outro sentido diverso. Em Ehrlich a Jurisprudência, enquanto estudo do direito, é voltada para a prática dos tribunais. Trata-se de um estudo e de um ensino voltados para a prática de juízes e advogados. Seu drama consiste em que apesar de ser apenas uma aplicação de conhecimento, é também, ainda, em larga medida, a única forma de construção do conhecimento acerca do direito.

A ciência do direito, como toda ciência, se debruça sobre fatos. Ela busca relacionar tais fatos por meio do método indutivo e não a partir apenas de deduções, como sói ser a prática da jurisprudência. Não se trata de apontar para aquilo que é justo, ou para o que deveria ser o comportamento das pessoas, mas antes de encontrar como de fato se dá o comportamento jurídico dos indivíduos.

Esta ciência teórica do direito é uma ciência social, mais precisamente, é a sociologia do direito.

Como o direito é um fenômeno social, qualquer tipo de jurisprudência pertence ao âmbito das ciências sociais, mas a ciência do direito propriamente dita é parte integrante da ciência social teórica, isto é, da sociologia. A sociologia do direito é a doutrina científica do direito. (Ehrlich, 1986: 26)

Temos, portanto, que para Ehrlich a ciência do direito digna deste nome é a sociologia do direito. Não se nega o valor da jurisprudência enquanto estudo do direito voltado para a prática, mas esta é uma técnica, não uma ciência pura. Não se trata de rejeitar qualquer jurisprudência, mas abrir o caminho para uma ciência empírica e indutiva do direito.

Temos aí exposta a tese segundo a qual a sociologia do direito é a única ciência do direito. A jurisprudência é uma arte, uma técnica, não uma ciência. A ciência do direito é, tal como as demais ciências, indutiva e empírica. Não se trata de afirmar o que deveria acontecer, mas o que de fato acontece na vida jurídica.

4.1.2.Direito como Associação

Ehrlich rejeita as inúmeras definições do direito que o vinculam essencialmente a uma forma coercitiva, ao Estado ou aos tribunais. Estes elementos são destacados pela jurisprudência em função das distorções que sua visão implica por estar dirigida essencialmente para a prática. Ao jurista que apenas se ocupa de casos litigiosos não é possível distinguir o direito dos tribunais. Àquele que busca o direito nos decretos e leis do estado, não é possível distinguir o Estado e o Direito. Àquele que determina a punição, como separar o direito e a coerção?

Entretanto, segundo Ehrlich, o direito vige, durante a maior parte do tempo e na maioria dos casos, sem que tribunais sejam chamados a dar sua opinião. As relações jurídicas em sua maioria não demandam a aplicação ou a ameaça de qualquer uso coercitivo da força. Inúmeros preceitos jurídicos nascem sem o concurso do Estado. Estas não são, para o autor, características essenciais do direito, mas apenas aspectos importantes para aqueles que lidam com a prática dos tribunais.

Não é inerente ao conceito de direito que ele se origine no Estado, nem que forneça a base para as decisões dos tribunais ou outras instâncias ou ainda fundamente a coação jurídica subseqüente. Há, porém, ainda uma quarta característica do conceito e parece que é desta que se deve partir: o direito é uma ordem. (Ehrlich, 1986: 25)

A característica primordial do direito é que ele é uma ordem, uma organização. Com isto, Ehrlich entende que o direito determina o lugar de cada membro dentro de uma dada comunidade, distribuindo atribuições e responsabilidades.

Com base nos resultados de suas pesquisas [de Gierke] pode-se considerar, como definitivo que em todo o âmbito abrangido pelo conceito de associação o direito é uma organização, isto é, uma regra que indica a cada membro desta organização sua posição, sua super ou subordinação na comunidade e suas tarefas; é totalmente inconcebível que a função do direito nestas comunidades seja, em primeiro lugar, a de decidir sobre disputas surgidas nas relações comunitárias. A norma jurídica, de acordo com a qual se decidem disputas jurídicas, isto é, a norma de decisão, é apenas uma variação da norma jurídica com tarefas e objetivos restritos. (Ehrlich, 1986: 25)

O direito é uma regra organizadora. É direito a organização das associações humanas.

Assim como encontramos a comunidade organizada, onde quer que sigamos seus passos, mesmo além dos limites estipulados por Gierke, assim vemos também que em todos os lugares o direito é o ordenador e o suporte de qualquer associação humana. (Ehrlich, 1986: 25)

O direito é, então, uma organização. E uma organização é definida por Ehrlich como uma regra da associação que indica a posição de cada elemento da associação.

Organização significa aquela regra da associação que indica aos componentes sua posição (de subordinação ou super-ordenação) e suas tarefas. Esta regra pode determinar não só a relação de uma pessoa com outra, mas também a relação de uma pessoa com coisas; de maneira indireta, também neste último caso, determina uma relação de pessoa a pessoa. (Ehrlich, 1986: 38)

A organização, entretanto, não é uma regra no sentido que os juristas normalmente atribuem a este termo. Para Ehrlich, uma organização social é uma regra apenas na medida em que tal regra é observada. De fato, segundo ele:

Uma associação ou organização social é um conjunto de pessoas que em seu relacionamento mútuo reconhecem algumas regras como determinantes para seu agir e em geral, de fato, agem de acordo com elas. (Ehrlich, 1986: 37)

Fica claro, portanto, que o conhecimento destas regras, da organização que constitui o direito, não pode advir senão de um estudo empírico-indutivo, que revele não aqueles preceitos que estão escritos em tal ou qual lugar, mas sim o modo como se dá efetivamente o comportamento dos indivíduos em uma dada associação.

Entretanto, não só o direito é uma organização. Este é um traço comum de toda a sociedade. A Sociedade é, para Ehrlich, "o conjunto das organizações ou associações humanas inter-relacionadas" (Ehrlich, 1986:27). Diversas organizações, tais como o estado comunidades religiosas, igrejas, corporações, classes, estamentos e famílias, "todo este mundo de anéis e círculos intercruzados forma em seu conjunto uma sociedade na medida em que se constata uma interação entre eles" (idem).

O traço essencial do direito é, portanto, o de tratar-se de uma ordem, uma organização. Ele ordena as associações humanas. Este traço é bastante enfatizado pelo autor.

É direito a ordem interna das associações humanas:

Toda a ordem jurídica em seus primórdios consiste, portanto, na ordem interna das associações humanas, entre as quais também está o Estado. Cada associação cria esta ordem autonomamente, mesmo que, com freqüência, imite uma ordem já existente em outras associações ou assuma e desenvolva a ordem que já existia na associação da qual se desmembrou. (Ehrlich, 1986: 32)

Quando ainda não está presente a legislação, o direito coincide completamente com a ordem interna das associações humanas:

Entre os povos primitivos o direito coincide totalmente com a ordem interna de suas associações; prescrições jurídicas são totalmente desconhecidas entre povos que ainda se encontravam num estágio de desenvolvimento inferior; somente em níveis de desenvolvimento um pouco mais elevados começam a aparecer sob a forma de mandamentos religiosos. (Ehrlich, 1986: 35)

Mesmo após o advento da legislação estatal e da centralização da produção legislativa, a ordem interna das associações permanece sendo a forma fundamental do direito:

A ordem interna das associações humanas não só é a primeira forma do direito, mas é, até hoje, a fundamental. A prescrição jurídica não só aparece bem mais tarde, como continua sendo derivada da ordem interna das associações. Para explicar as origens, o desenvolvimento e a essência do direito, deve-se pesquisar sobretudo a ordem das associações. Todas as tentativas realizadas até aqui para aclarar questões referentes ao direito fracassaram por não terem partido da ordem interna das associações, mas de prescrições jurídicas. (Ehrlich, 1986:36)

Por fim, o direito é uma ordem das associações humanas, mas não a única.

O direito, portanto, é a ordem da vida estatal, social, espiritual e econômica, mas não é sua ordem exclusiva; além do direito há outras ordens de importância equivalente e possivelmente mais eficientes. (Ehrlich, 1986: 51)

O direito se torna uma espécie de super-ordem. É a ordem das ordens no sentido de que regula todas as áreas da vida humana, mas convive com diversas ordens parciais, que regulam cada área especificamente. O direito trata da vida espiritual, mas também o faz a religião; o direito trata das relações sexuais e afetivas, mas também o faz a família, etc.

Temos aqui a tese segundo a qual o direito é associação. Ele não pode ser distinguido em função da coerção ou da vinculação com o Estado, definido como aparato coercitivo ou como "organização militar". As associações humanas fornecem a organização que, em larga medida, compõe o direito. Para ilustrar esta tese podemos tomar a frase de Ehrlich "A ordem interna das associações humanas não só é a primeira forma do direito, mas é, até hoje, a fundamental" que admite ainda a participação da legislação na composição do direito, ainda que de forma secundária.

4.1.3.Normas de Decisão x Normas do Agir

Talvez o ponto mais importante do pensamento ehrlichiano seja a distinção entre as normas de decisão e as normas do agir. Esta distinção fundamenta sua censura à jurisprudência tradicional, que se debruça tão-somente sobre as normas de decisão e, em função disto, se torna incapaz de compreender o direito em sua realidade.

Para Ehrlich a jurisprudência equivoca-se quando identifica o direito com as regras que os juízes utilizam para decidir casos controversos. Isto porque a regra do agir humano se distingue da regra de decisão utilizada pelos tribunais.

Do ponto de vista do juiz o direito é uma regra de acordo com a qual ele deve decidir as controvérsias jurídicas que lhe são apresentadas. Conforme a conceituação dominante, sobretudo na ciência alemã, o direito seria uma regra do agir humano. A regra do agir humano e a regra de acordo com a qual o juiz decide controvérsias jurídicas podem, no entanto, ser coisas muito diversas, pois com certeza os homens nem sempre agem segundo as regras que são aplicadas nas decisões referentes às suas querelas. (Ehrlich, 1986: 14)

Tem-se portanto, que há duas espécies de normas que precisam ser distinguidas. De um lado há aquelas "regras do agir humano" e de outro as "regras de decisão". Aquelas são as regras que vigem na vida cotidiana e no interior das associações humanas. Estas outras são as regras com base nas quais os tribunais decidem os casos litigiosos. Para Ehrlich as regras de decisão apenas têm ocasião de serem aplicadas quando as regras do agir falham. Apenas quando as regras do convívio familiar desmoronam pode o jurista decidir sobre o destino dos filhos e bens do casal.

Como as regras de decisão apenas podem ser aplicadas nos casos em que as regras do agir falham, são desrespeitadas ou são ignoradas, desdobra-se que tais regras de decisão devem ser distintas das regras do agir. Não seria possível ao juiz decidir sempre justamente com base nas mesmas regras que acabaram de se mostrar ineficazes ou danosas. Quando um determinado caso chega a ser apresentado perante o juiz, tal se dá porque as regras do agir ordinário em sociedade já foram desrespeitadas e não puderam se impor.

Daí que a sociologia do direito, na medida em que pretende conhecer e explicar o direito vivo, ou seja, o direito tal como de fato se processa na realidade empírica, tenha como tarefa primordial, na visão de Ehrlich, estabelecer uma distinção entre as normas que os juízes usam para decidir e as normas que são efetivamente observadas.

A primeira e mais importante tarefa da sociologia do direito é, portanto, estabelecer uma distinção entre as componentes do direito que regulam, ordenam e determinam a sociedade, demonstrando a sua natureza organizatória, e aquelas que são puras normas de decisão. (Ehrlich, 1986: 39)

Normas de decisão são aquelas normas que são utilizadas como base para a derivação de normas para determinados casos concretos litigiosos. São as normas nas quais os juízes se ancoram para decidir uma determinada questão pontual.

De acordo com a concepção da função de juiz desenvolvida no continente europeu no século XVI e ainda hoje dominante, este deve, num caso jurídico específico, tomar uma decisão a partir dos enunciados gerais estabelecidos. O ensino jurídico prático teria como tarefa fornecer ao juiz normas cujos enunciados fossem suficientemente amplos para que deles possa ser derivado um grande número de decisões; elas deveriam mostrar ao juiz como se aplicam enunciados gerais a casos concretos; por isso o ensino deveria ser abstrato e dedutivo. (Ehrlich, 1986: 14)

A orientação prática dos estudos jurídicos leva à procura de "normas de decisão" ao invés de "normas do agir". A jurisprudência quando se debruça sobre seu objeto de estudo não tem por objetivo descobrir como se dá a vida jurídica, mas apenas encontrar fórmulas a partir das quais seja possível derivar normas que colaborem na resolução de um determinado litígio. A jurisprudência não tem como preocupação primordial o conhecimento do direito, não se debruça sobre a realidade. Sua preocupação é a construção de uma técnica que possibilite intervenções práticas.

Esta, entretanto, não é para Ehrlich a única orientação possível aos estudos sobre o direito. De fato, também é possível uma orientação científica, que se debruce sobre a realidade ao invés de sobre as necessidades imediatas de determinados indivíduos. Uma orientação científica não se debruça apenas sobre aquilo que é apresentado perante os tribunais, mas procura encontrar o direito tal como vivido no cotidiano, o direito tal como efetivamente se processa no comportamento real dos seres humanos.

Para aquele, porém, que vê no direito sobretudo uma regra do agir, tanto o caráter coativo, visando a punição, quanto o que visa a execução, passam para segundo plano. Para ele a vida humana não se desenvolve diante dos tribunais. A própria intuição lhe ensina que cada pessoa se encontra numa infinidade de relações jurídicas e que, com muito poucas exceções, ela faz aquilo estas relações lhe determinam. (Ehrlich, 1986: 22)

O direito vivido não é o direito dos tribunais, mas o direito das relações jurídicas do dia-a-dia. As pessoas se encontram, tal como expresso pelo autor, em diversas relações jurídicas em seu cotidiano. Contratos de compra e venda, locação, relações matrimoniais, obrigações tributárias, tudo isto é parte do cotidiano das pessoas e não apenas do cotidiano dos tribunais. As relações matrimoniais não se processam diante dos juízes. Quando o fazem isto se dá por algum fator alheio, que distorce o desenrolar ordinário desta relação. A esmagadora maioria dos contratos de compra e venda jamais são contemplados por qualquer juiz e, ainda mais, jamais chegam sequer a ganhar expressão escrita.

Os juízes podem imaginar que sua orientação voltada para a prática dos tribunais ainda tem grande relevância, uma vez que, argumentam, as pessoas se comportam de acordo com as regras do agir justamente porque existe a possibilidade de coação pelas decisões de tribunais. Segundo Ehrlich esta é uma idéia errônea.

Mas se ele [o jurista] se desse ao trabalho de observar as pessoas em seu agir no dia-a-dia, facilmente se convenceria de que estas pessoas nem pensam numa coação que lhes possa ser imposta por tribunais. Via de regra agem como que por instinto e, quando este não é o caso, suas justificativas são bem outras... (Ehrlich, 1986: 26)

A jurisprudência tem demonstrado uma tendência a valorizar unilateralmente as relações jurídicas apresentadas diante de tribunais. Ao fazê-lo, deixa de lado, segundo o autor, o direito vivo, o direito que de fato se pode observar, em prol de um direito prático, um direito elaborado para dar soluções a casos controversos ou difíceis.

Na visão de Ehrlich, o direito vivo é, por fim, muito distinto do direito de que se valem os tribunais. O direito vivo não tem como caráter específico a coerção. As regras do agir são observadas sem que se haja qualquer preocupação com a possibilidade de aplicação coercitiva de qualquer sanção. "A concepção do direito como ordem coercitiva, portanto, repousa no fato de que estas partes constitutivas do direito, cuja força emana do Estado, recebem um destaque unilateral" (Ehrlich, 1986: 63). É porque o jurista está preocupado em aplicar normas de decisão, em especial normas de decisão emanadas do aparato do Estado, que é, segundo Ehrlich, originalmente uma organização militar, que a coerção ganha destaque decisivo. Não tivesse o jurista uma visão assim enviesada, perceberia claramente que o caráter marcante do direito vivo é o fato de decorrem sempre de uma associação e de ser válido apenas nos limites da mesma. A característica mais marcante do direito é, para este autor, seu caráter associativo.

Esta conclusão de Ehrlich é muito interessante pois se diferencia das concepções dominantes hoje tanto entre juristas como entre sociólogos, apesar do que não é muito rara entre sociólogos do direito. Outros sociólogos do direito, como Nicklas Luhmann, não fazem sua definição do fenômeno jurídico depender em grande medida da coerção. De outro lado, autores como Kelsen e Weber, que interessam sobremaneira neste trabalho, apontam para a coercitividade como o único fator que distingue o direito de outras ordens sociais. Para Ehrlich não só este fator não é essencial como tal concepção é fruto de um erro cuja origem é identificável. Ele decorre da preocupação prática que leva à ênfase em normas de decisão estatais.

4.1.4.A formação dos preceitos jurídicos

Para Ehrlich, "dentre todos os fatos do direito, o único original é o hábito" (Ehrlich, 1986: 93). O contrato e a posse surgem apenas muito posteriormente na história do direito, mas é o hábito, as práticas usuais e reconhecidas, que compõem originariamente as regras do agir. É a partir do hábito que surgem as normas do agir humano.

O autor afirma que como o direito e as relações jurídicas são coisas mentais, que não existem senão nas mentes dos indivíduos humanos, encontrar as origens destes fatos mentais passa por encontrar quais processos reais lhes dão origem:

Direito e relações jurídicas são uma coisa mental que não existe na realidade palpável e perceptível pelos sentidos, mas somente na cabeça das pessoas. Não haveria direito se não existissem pessoas que fossem portadoras da concepção de direito. Mas, como em toda parte, também aqui as concepções são moldadas a partir de matéria que tomamos da realidade palpável e perceptível. Na base das concepções sempre estão fatos observáveis. Estes fatos devem ter existido antes que no cérebro humano se formasse qualquer idéia de direito ou de relação jurídica. E mesmo no presente precisamos ter diante de nós determinados fatos, para podermos falar de direito e de relações jurídicas. É aqui, portanto, que devemos procurar a oficina do direito. A questão fundamental da ciência jurídica, a questão referente à origem do direito, transforma-se deste modo na seguinte pergunta: quais instituições reais que no decorrer do desenvolvimento histórico se transformam em relações jurídicas e quais os processos sociais que conduzem a isto? (Ehrlich, 1986: 70)

Eis aí a pergunta acerca da origem do direito. Como, de fato, surge o direito? Esta pergunta é encarada por Ehrlich de uma forma estritamente sociológica. O direito, enquanto algo mental, enquanto um determinado conjunto de idéias humanas, deve surgir a partir de relações humanas concretas. Identificar os processos que levam à transformação de determinadas instituições reais em relações jurídicas seria uma tarefa da sociologia do direito.

Tais "instituições reais" que o sociólogo deve encontrar devem ser mais diretamente ligadas a alguma espécie de comportamento bruto, no sentido de que ainda não dotado de uma reflexão, do que as relações jurídicas. O hábito é, para Ehrlich, como salientado anteriormente, uma espécie de matéria prima a partir da qual podem surgir instituições.

O hábito, segundo a expressão de Jellinek, apresenta sua eficiência através da "força normativa do fato dado". Sua força ordenadora e reguladora dentro da associação repousa no fato de expressar o equilíbrio das forças na associação. (Erlich, 1986: 71)

É o hábito que sustentaria uma das associações mais básicas de uma sociedade, a família:

A única associação cuja ordem até hoje depende predominantemente do hábito é a comunidade familiar, não só como comunidade moral e social, mas também econômica. Ela é uma comunidade de produção e consumo entre o campesinato, uma comunidade só de consumo na classe burguesa urbana e uma comunidade exclusivamente de convivência entre uma parte do proletariado. (Ehrlich, 1986: 72)

Entretanto, o hábito não é a única relação real que sustenta as associações humanas. Não é exclusivamente a partir do hábito que se formam todas as relações jurídicas. É possível, para o autor, identificar outros "fatos do direito", relações que dão sustentação real a associações jurídicas, na dominação, na posse e na disposição.

Toda a ordem econômica e social da humanidade é mantida por meio destes poucos fatos: hábito, dominação, posse, disposição (fundamentalmente, o contrato e a declaração de última vontade). São estes fatos que através de sua simples existência determinam às associações humanas de que se compõe a sociedade as regras do agir e estas naturalmente não se constituem unicamente das normas jurídicas. (Ehrlich, 1986:93)

Posse, dominação e disposição são fatos que constituem outras associações humanas mais complexas, distintas da comunidade familiar. Ehrlich afirma que a posse e o contrato apenas surgem como fatos do direito em associações "mais evoluídas, compostas de diversas associações simples, e simplesmente inexistem onde ainda não há associações compostas" (Ehrlich, 1986: 93). Por outro lado, a dominação pode ser reduzida à posse, já que originalmente, pode-se, segundo Ehrlich, conjecturar, a dominação consistia na posse jurídica do dominado.

É pertinente apresentar um exemplo da redução que Ehrlich faz do direito ao "fato do direito". O seguinte exemplo trata da redução do direito hereditário e do modo como se pode reduzi-lo ao fato do direito. Nesse caso, a posse:

A reconstituição da pré-história do direito hereditário deve partir da comunidade doméstica. O direito hereditário tem suas raízes na casa. E aqui duas questões se colocam: a quem pertence o espólio de um morto que vivia numa comunidade doméstica, e a quem ele pertenceria caso o morto vivesse sozinho, eventualmente acompanhado só de escravos ou empregados? Este último caso parece ter sido raro na sociedade primitiva, torna-se, porém, cada vez mais freqüente à medida que se desenvolve um sistema estatal que também possibilita a existência individual. Compreende-se facilmente que a propriedade do morto, na medida em que não era sepultada com ele, ficava para os familiares que tinham vivido e trabalhado com ele. Este costume, no entanto, só se refere aos objetos móveis, pois esta prática já existe entre caçadores e criadores, sendo assim mais antiga que a propriedade fundiária. Os membros da comunidade doméstica não precisam tomar posse dos bens deixados pelo morto, pois já os possuem na hora de sua morte e são capazes de repelir qualquer investida de parte de terceiros, com os mesmos meios já utilizados enquanto ele vivia. Os membros da comunidade familiar mantêm os bens e continuam a trabalhar como até agora: não mudou muita coisa, apenas há uma pessoa a menos na casa. O fato do direito é, portanto, a posse. O direito hereditário primitivo não ia além desta permanência dos bens com os integrantes remanescentes da comunidade doméstica. (Ehrlich, 1986: 90)

Neste exemplo Ehrlich tenta reduzir o direito hereditário, ou mais precisamente, a norma segundo a qual os bens de uma pessoa falecida, não havendo disposição em contrário, se tornam, por ocasião do falecimento, bens de seus descendentes ou familiares, a um "fato do direito", qual seja, a posse. Como os familiares continuavam na posse dos bens após a morte, estabeleceu-se uma regra do agir, que posteriormente pôde ser usada como regra de decisão em casos controversos.

Enfim, toda expressão ideal de uma relação jurídica corresponde a um "fato do direito", sendo que dentre todos os fatos do direito, o mais fundamental é o hábito, e a comunidade que se estabelece primordialmente sobre o hábito é a comunidade familiar. Os fatos do direito dão origem a regras do agir, que

constituem os elementos em que se distribui a infinita multiplicidade de fenômenos de nossa vida jurídica e em parte de todo o mundo normativo. Inicialmente cada pequena associação humana faz seu próprio ordenamento e, quando as associações pequenas se unificam ou são unificadas em associações maiores, esta associação composta deve criar uma nova ordem na relação com suas partes constitutivas, mas ao mesmo tempo deve assumir a ordem que já existia em suas células originárias, deixando-a, grosso modo, como se desenvolvera ali. (Ehrlich, 1986: 94)

Eis como se desenvolvem as instituições e associações. Através da construção de associações mais amplas compostas por associações menores a sociedade se complexifica e, com ela, as normas do agir. Segundo esta concepção o direito vivo, composto por regras do agir e não por regras de decisão, surge das associações humanas. Ele emana da vida dos homens, não da pena dos legisladores.

As normas de decisão, diferentemente das regras do agir, não são diretamente observáveis. São construídas a partir das normas do agir, mas têm um caráter mais estático, já que objetivam atender necessidades diversas daquelas que atendem as regras do agir. Enquanto as regras do agir possibilitam o convívio, as normas de decisão fornecem meios de encontrar uma solução para casos controversos. Demanda-se das normas de decisão uma maior estabilidade. Daí a chamada "lei da constância das normas de decisão":

Esta é a lei da constância das normas de decisão; ela é extremamente importante para a criação do direito. Em princípio ela repousa sobre a psicologia social. Caso houvesse decisões diferentes diante de casos iguais ou semelhantes, não teríamos direito, mas arbitrariedade. Mas ao mesmo tempo a constância das normas de decisão corresponde a uma racionalidade na atividade de pensar. Poupa-se o trabalho intelectual, que sempre é necessário para encontrar normas de decisão, quando se pronuncia uma sentença com base em normas de decisão já encontradas. Além disso há na sociedade uma forte necessidade por normas de decisão fixas, que permitam, ao menos em âmbito restrito, a previsão das decisões, permitindo às pessoas prepararem-se de antemão. (Ehrlich, 1986: 105)

É em função desta lei da constância das normas de decisão que se explica que as normas de decisão sejam geralmente formuladas de uma forma suficientemente maleável para serem adaptadas a casos diferentes daqueles que elas efetivamente prevêem. Também é em função dela que Ehrlich explica que as normas de decisão estejam sempre um tanto atrasadas com relação ao ritmo da vida social, donde surge o conhecido conservadorismo dos juristas. Estes foram treinados a aplicar normas que surgiram em uma situação necessariamente diferente e, claro, anterior

4.1.5.Estado e Direito

Apesar de que atualmente a idéia de que o Estado seja capaz de criar direito é muito difundida e aceita sem mais problemas, Ehrlich procura argumentar que isto não é necessariamente assim. O Estado não apenas nem sempre foi visto como um legítimo produtor de direito como também a idéia de que o fosse apenas se impôs com muita dificuldade. Tanto maior foi a dificuldade no estabelecimento da idéia de que o estado é o único produtor legítimo de direito. Tanto na Roma Imperial como na Idade Média, segundo o autor, esta idéia não era aceita sem reservas, se é que o era. Ainda mais, o autor prossegue afirmando a dificuldade de aceitação desta idéia mesmo em um estágio mais desenvolvido da sociedade:

Mesmo entre os povos mais desenvolvidos da humanidade, a idéia de um direito estatal só se impôs com muita dificuldade e muito lentamente. (Ehrlich, 1986:117)

Apesar de qualquer historiador do direito, segundo Ehrlich, poder afirmar claramente a separação que se encontra ao longo da história entre direito e determinações estatais, no pensamento do ocidente moderno dá-se uma inegável ênfase ao direito emitido pelo Estado. Segundo Ehrlich, isto ocorre em função da crença segundo a qual o direito apenas se pode impor por meio do poder coercitivo do Estado.

Parece que há quatro aspectos que contribuem para que se dê tanto destaque ao Estado como fonte do direito: sua participação na formação do direito através do ato de legislar, sua participação na administração da justiça através de tribunais estatais e em parte também outras instâncias governamentais, seu poder de mando sobre os órgãos estatais, que lhe servem de instrumento para executar suas leis e, finalmente, a concepção de que a manutenção de uma situação que corresponda ao direito só é possível, seja em primeira ou em última instância, através da força de coação do Estado. (Ehrlich, 1986: 110)

Assim, o aparelho estatal, com uma burocracia destinada a executar e aplicar as leis, um órgão destinado a criar leis e a crença de que a validade destas leis depende do poder coercitivo do estado jogam um papel primordial no modo como a jurisprudência tem estudado o direito.

A questão mais importante a se colocar aqui, segundo Ehrlich, não é aquela quanto a se todo o direito é direito estatal, já que a sua resposta é evidentemente negativa, mas sim aquela quanto ao por que de o Estado ter assumido o papel de criador de normas. Para compreender isto é necessário compreender o papel que tem o Estado na concepção deste autor.

Em primeiro lugar, o Estado é, essencialmente, uma associação de dominação. Segundo o autor:

Esta ordem [o Estado], muito mais que a ordem interna das associações, tem o caráter de ordem de dominação e de luta: em grande parte ela é a expressão da posição das associações dominantes na sociedade em relação às dominadas e da luta das associações organizadas na sociedade contra outras que não se integram na organização. E grande parte das normas sociais não têm o objetivo direto de criar uma ordem nas associações, mas somente o de levar a ordem emanada da sociedade para dentro das associações: são, portanto, apenas normas de segunda ordem. (Ehrlich, 1986: 120)

Como já expresso anteriormente, a sociedade é, para Ehrlich, composta por diversas associações, e é no interior destas associações que surgem as regras do agir humano. Porém, como coloca o autor, chega um determinado momento em que a sociedade tem de impor às diferentes associações certas regras comuns, que emanam da sociedade enquanto uma associação de associações. Nem todas as regras do agir podem ser deixadas ao arbítrio de cada associação diferente. Não se pode admitir que a comunidade familiar incorpore certas regras do agir que sejam diametralmente opostas àquelas que são adotadas nas instituições educacionais. Não pode a família exigir das crianças que trabalhem enquanto não estiverem na escola ao mesmo tempo em que a escola determina que o brincar é uma parte necessária do processo de desenvolvimento da criança.

Desta forma, a sociedade também impõe sobre as associações certas regras que não decorrem das relações internas à própria associação, mas da associação de associações.

Assim, na verdade, a expansão do direito estatal, que aparece tão claramente na história, não é outra coisa que a expressão da crescente uniformidade da sociedade. Com o sentimento cada vez mais vivo de que tudo o que existe na sociedade pertence a ela, de que tudo o que acontece na sociedade lhe interessa, aparece também a necessidade de prescrever a todas as associações sociais autônomas uma base legal unitária, através do Estado. (Ehrlich, 1986: 123)

O Estado, portanto, quando passa a ser admitido como um legítimo criador de direito, o faz como um órgão da sociedade como um todo, que percebe a necessidade de impor um determinado conjunto comum de normas a todas as associações que são relativamente autônomas.

O enorme significado do Estado para o direito repousa no fato de que a sociedade se utiliza do Estado, como seu órgão, quando se trata de dar um respaldo consistente ao direito que dela emana. (Ehrlich, 1986: 120)

Via de regra o Estado não cria direito a partir do nada. Ele funciona, segundo o autor, como um órgão da sociedade, impondo às associações regras comuns que possibilitam sua convivência pacífica.

Em regra, porém, a idéia de que todo direito deriva do Estado apenas quer dizer que uma norma, independente de como surgiu, só se transforma em norma jurídica quando é reconhecida como tal pelo Estado, o qual a envolve com normas de segunda ordem, com ameaças, processo, regras administrativas. (Ehrlich, 1986: 125)

As normas jurídicas não surgem da mera vontade de um indivíduo enquanto legislador. A própria concepção do legislador é orientada por normas que emanam da própria sociedade. Uma norma jurídica não é meramente imposta.

Em todos estes estágios [estágios de produção normativa] a sociedade é tão ativa quanto o jurista. O preceito jurídico é constituído de matéria social, moldado pelo jurista. São as normas dominantes na sociedade que são generalizadas e uniformizadas para transformar-se em normas jurídicas, mas depende do jurista o que será generalizado e uniformizado, depende dele qual das ordens familiares que encontra à sua frente lhe servirá de modelo para julgar as disputas nas demais, qual dos diferentes conteúdos de contratos lhe servirão de parâmetro nas decisões sobre disputas em torno de contratos semelhantes (...) Desta forma, apenas um resíduo da prescrição jurídica está tão intimamente ligado à personalidade do seu autor, que seria de esperar uma formulação diferente, caso fosse feita por outrem. E mesmo neste caso não se deve esquecer em que medida cada pessoa, e mesmo o gênio mais singular, é um resultado de seu contexto, que cada pessoa só pode ter nascido numa determinada sociedade e agir nela, sendo muito provável que fracassaria em qualquer outro lugar.

A jurisprudência dominante que em todo preceito jurídico vê, de fato, mesmo que não de forma consciente, a expressão da "vontade do legislador", engana-se totalmente quanto à enorme participação da sociedade. (Ehrlich, 1986: 166)

Assim, a formação de um preceito jurídico decorre da sociedade. A participação do legislador individual deve ser considerada apenas em sua proporção. Um preceito jurídico não nasce tão somente das necessidades que o legislador supõe ter a sociedade. Nasce, antes das relações sociais, dos fatos do direito. O legislador, via de regra, apenas dá uma certa expressão para tais regras, cristaliza-as de forma a poderem servir de parâmetro para decisões dos administradores e juízes.

Também não é meramente um hábito de associações particulares o que constitui o direito. O autor caracteriza a norma jurídica, em especial, pela opinio necessitatis. Por opinio necessitatis os juristas geralmente entendem a opinião difundida segundo a qual determinado comportamento não é tão somente um hábito, mas também algo que deve ser observado, a opinião de que se trata de algo devido, algo que se deve observar. Alguns juristas acrescentam que não basta a opinião de que tal comportamento é devido, mas de que é juridicamente devido. Para Ehrlich, a opinio necessitatis apenas pode ser encontrada nas normas que emanam dos fatos do direito e naquelas que emanam do direito dos juristas e das prescrições estatais, considerando, é claro, que já foi abordada a relação que estas duas últimas têm com aquelas, qual seja, não surgem senão com base naquelas, ainda que tenham um escopo e uma definição diferenciada.

Com base nestas características deveria ser possível determinar mais claramente a norma jurídica. Normas jurídicas são as normas que emanam dos fatos do direito: dos hábitos que nas associações sociais indicam a cada um dos membros a sua posição e suas tarefas, da dominação, das relações de posse, dos estatutos, dos contratos, das declarações de última vontade e de outras determinações; além disso, são normas jurídicas as que derivam das prescrições jurídicas do direito estatal e do direito dos juristas. Somente nestas normas podemos encontrar a opinio necessitatis; creio que, por isso, não há outras normas jurídicas. Mas não se pode inverter esta frase: nem todas as normas que surgem desta maneira são normas jurídicas. (Ehrlich, 1986: 132)

Normas jurídicas, portanto, não são meras expressões lingüísticas criadas pelos legisladores e administradores, mas, antes, regras do agir humano. A principal característica destas normas não é a coercitividade estatal, mas a opinio necessitatis. São regras consideradas obrigatórias e que de fato orientam o comportamento dos indivíduos em sociedade.

Podemos considerar, portanto, que, conforme o pensamento de Ehrlich, o Estado e o Direito são duas coisas essencialmente distintas; que é enganosa a idéia de que o Estado tem um monopólio da criação jurídica; que é equivocada a noção de que os preceitos jurídicos nascem da pena do legislador e que as normas jurídicas decorrem de preceitos jurídicos. O Estado não cria um direito para a sociedade, ele é, antes, um órgão da sociedade que regula relações que necessitam uma certa uniformidade dentre as mais diversas associações que compõe a própria sociedade.

Ehrlich fala de um direito estatal em contraposição a um direito geral. O direito válido não é apenas aquele direito que é criado pelo Estado. As regras do agir não estão todas contidas nos preceitos jurídicos emanados do estado e tampouco o estão todas as regras de decisão. Os juízes, ainda quando de uma ou outra forma vinculados ao Estado, não aplicam tão somente os preceitos jurídicos. Estes necessitam sempre uma interpretação que tem suas bases em preceitos que não foram postos pelo Estado.

Deixemos, portanto, clara a posição de Ehrlich quanto às relações entre Direito e Estado:

Resumindo a influência do direito estatal sobre o direito em geral no decorrer do desenvolvimento histórico até aqui, ela consiste basicamente no seguinte: o Estado concedeu através do direito estatal e do direito administrativo a si e a seus órgãos um direito próprio. Ele juntou os diferentes grupos humanos que vivem em seu território, transformando-os em povo e iniciando desta forma, em muitos sentidos, um desenvolvimento jurídico unitário. Ele garantiu através de seus tribunais e órgãos estatais, com a ajuda de suas normas de segunda ordem, do direito penal, do direito policial, do direito processual a paz nas instituições estatais e sociais. Ele fundou a propriedade estatal e possibilitou o direito hereditário dos parentes colaterais. Ele deu origem pensões e monopólios. Ele influenciou profundamente as instituições sociais, a vida comunitária, as dominações, a propriedade, a posse, o contrato, a herança através de suas proibições e restrições.

Sobre os fundamentos criados pelo Estado e a sociedade, na seqüência, continua a sua estruturação. As comunidades, as relações de dominação e de posse, os contratos, os estatutos, as declarações de última vontade têm sua ordem, ao menos em parte, determinada segundo as instruções dos órgãos estatais, segundo o tipo e o grau de proteção que conseguem diante dos tribunais e dos órgãos estatais ou então criam institutos especiais com que procuram fugir aos obstáculos e peias que estes procuram criar. Desta forma a situação jurídica definitiva é resultado da ação conjunta, recíproca e contraditória de Estado e sociedade. E é desta forma que direito estatal pode levar ao direito dos juristas. (Ehrlich, 1986: 297)

Assim, o Estado tem intensa participação no desenvolvimento do direito, mas o tem enquanto um órgão da sociedade. Estabelecer regras comuns às diferentes associações humanas, pacificá-las com tais regras, estabelecer normas que, apesar de serem necessárias à sociedade como um todo não podem surgir no interior das associações autônomas, como as normas sobre pensões e monopólios. O Estado não cria o direito a partir do nada, mas o profere enquanto um órgão da sociedade. Entretanto, Ehrlich se refere também à ação "recíproca e contraditória de Estado e sociedade". Esta expressão deixa a entender que Estado e sociedade agem em sentidos opostos na formação do direito.

O Estado é apresentado pelo autor como um órgão da sociedade que participa da criação do direito sem, no entanto, ter alguma espécie de poder legisferante especial, superior ao poder criador de normas dos fatos do direito, por exemplo. É difícil aceitar juntamente com isto que as ações de Estado e sociedade sejam contraditórias.

De uma forma ou de outra, a sociologia do direito de Ehrlich constata que a participação do Estado na criação do Direito é modesta. Não se lhe pode reconhecer, sem distorcer os fatos, um poder legisferante absoluto, ou um monopólio na criação do direito.

Levando em conta tudo isto, se deverá considerar como modesta a participação do Estado na criação do direito. E, mesmo assim nós todos somos dominados pela concepção da onipotência do Estado e esta fez surgir algumas idéias amplamente difundidas que, apesar de historicamente condicionadas e por isso talvez condenadas ao desaparecimento dentro de um futuro não previsível, dominam hoje em dia toda a sociedade civilizada. Destaca-se sobretudo a idéia de que a legislação estatal constitui o poder supremo na sociedade moderna e que a resistência de qualquer forma é condenável; que não pode haver dentro do âmbito do Estado qualquer direito que contraria a lei e que o juiz que, no exercício de seu cargo, se sobrepõe à lei se torna culpado de um grave descumprimento de seu dever. A ciência jurídica sociológica, que, como toda ciência, só tem de registrar os fatos e não de avaliá-los, ao contrário do que se cria, não pode, no estágio da evolução em que a humanidade se encontra no momento, defender uma doutrina que induza o juiz à quebra do seu juramento. E quando ela não pode deixar de constatar que o juiz, no exercício de seu cargo, freqüentemente se encontra de forma inconsciente, mas muitas vezes também de forma consciente, sob o domínio de outras forças que não sejam a lei, ela, como é seu dever, mais uma vez só apontou para um fato e não fez um julgamento. (Ehrlich, 1986: 298)

Desta forma, a sociologia apenas constata que o direito estatal não é todo o direito; que o direito aplicado pelos juízes e tribunais do estado também não é apenas direito estatal; que o próprio direito estatal deriva de outras fontes bastante diversas da mera vontade estatal. Enfim, a participação do Estado no processo de criação do direito é modesta apesar de ele servir como um órgão da sociedade, tornando válidas normas que extrapolam o âmbito interno de uma associação e pacificando as diversas associações humanas dentro de uma mesma sociedade.

Parece imperioso concluir que Ehrlich chama de modesta a participação do Estado no conteúdo do direito tão somente. Sua participação na forma do mesmo, dando-lhe a forma de preceitos jurídicos e impondo-o às mais diversas associações humanas, é essencial. Se o direito vivo surge no interior das associações, não haveria, salvo a participação do estado, quaisquer regras comuns entre as diversas associações, no entender do autor. Se os juízes do Estado aplicam outras normas que não apenas o direito emanado do Estado, todo o direito processual, por outro lado, ou seja, toda a forma do procedimento por meio do qual este juiz pode decidir, é composto de direito estatal.

Direito e Estado, em Ehrlich, são, portanto, bastante distintos. O direito é composto por regras do agir e, de alguma forma, também por regras de decisão, que surgem das relações mútuas dos indivíduos humanos dentro das associações que formam. O direito tem como base certos "fatos do direito", como a disposição (contrato, declaração de vontade), posse, dominação e hábito. O Estado, por outro lado, é uma associação de dominação. Trata-se de uma evolução ou corruptela de uma associação de cunho militar, que foi chamada pela sociedade para dar uma forma e sustentação para certas normas que não podem contar simplesmente com a força das associações. O direito estatal é o direito que não poderia ser sustentado tão somente pelas diversas associações. O fato de que o estado reivindica posteriormente o monopólio da criação de direito não passa de um equívoco de nossa percepção dos fenômenos jurídicos. Ao considerar como direito apenas aquelas normas que são utilizadas pelos juízes para decidir casos conflituosos, decisões estas impostas coercitivamente pelo Estado, tomamos por direito apenas uma parte dele, e exatamente a parte vinculada ao Estado.

Para Ehrlich, há muito mais direito para além do Estado. Originariamente, o direito não surge do Estado. Ainda hoje, a participação do Estado na criação do direito é modesta. O Estado apenas dá forma e sustentação a normas que têm uma origem bastante distinta da mera vontade estatal e que cabe ao sociólogo do direito desvendar. Todas estas afirmações de Ehrlich apontam no sentido de dissociar Direito e Estado e afirmar a validade de um direito diferente daquele "direito positivo". Ademais, o direito pode ser encontrado, para o autor, por meio de uma análise sociológica acerca de fatos.

Este pensamento é radicalmente distinto do pensamento kelseniano. Em Ehrlich direito e Estado são duas realidades distintas, em Kelsen, uma única e mesma realidade. Em Ehrlich as normas jurídicas são padrões de conduta humana efetiva, em Kelsen são apenas conteúdos de significado com uma forma normativa. Em Ehrlich uma análise do comportamento efetivo dos homens, uma sociologia, é capaz de desvendar normas jurídicas, inclusive normas jurídicas distintas daquelas que são aplicadas nos tribunais. Em Kelsen apenas uma pesquisa "empírico-normativa", ou seja, uma análise daqueles significados que são postos como normas válidas, tal como é realizada pelos juristas, é capaz de encontrar normas jurídicas.

4.1.6.Metodologia da Sociologia do Direito

A jurisprudência é um conhecimento prático, voltado para a busca de normas de decisão para os juízes nos tribunais. A sociologia do direito, para Ehrlich, é a ciência do direito digna deste nome. É a sociologia do direito que se debruça sobre os fatos sociais e jurídicos que compõe o fenômeno que denominamos Direito. Ela está preocupada com o direito vivo e não com as construções abstratas dos juristas interessados em resolver casos conflituosos. A sociologia do direito se vale de um método científico, o método indutivo, enquanto a jurisprudência pretende encontrar todo o direito por meio tão-somente da dedução.

Assim, a jurisprudência se contrapõe frontalmente a toda ciência autêntica, onde predomina o método indutivo, que procura aprofundar o conhecimento da essência das coisas através da observação de fatos e da coleta de experiências. (Ehrlich, 1986: 14)

A sociologia do direito, como uma verdadeira ciência, vale-se do método indutivo. Para ela a observação dos fatos é fundamental. "Também a sociologia, incluindo aí a sociologia do direito, deve ser uma ciência da observação." (Ehrlich, 1986: 362) Diferentemente da jurisprudência, que tem como preocupação fundamental derivar logicamente normas de outras normas, a sociologia do direito está preocupada em compreender fatos, fenômenos e processos reais.

O sociólogo do direito tem de encontrar os fenômenos reais que lhe interessam diretamente enquanto parte do fenômeno jurídico, e tem de encontrar um método adequado para descrevê-los e analisá-los.

A principal questão que ela [a sociologia do direito] deve resolver em nossa época é a seguinte: com que fenômenos o sociólogo deve preocupar-se e de que modo ele deve coletar os fatos para conhecê-los e interpretá-los. Os fenômenos sociais na área do direito que interessam ao conhecimento científico do direito são sobretudo os próprios fatos do direito: o hábito que dentro das associações humanas determina a cada um sua posição e suas tarefas, as relações de dominação e de posse, os contratos, estatutos, declarações de última vontade e outras disposições, além do processo hereditário. (Ehrlich, 1986: 362)

O sociólogo do direito não tem como objeto de estudo tão somente as normas prolatadas pelos legisladores ou as sentenças dos juízes. Seu objeto de estudo são, sobretudo, "os próprios fatos do direito". A principal tarefa da sociologia do direito, assim Ehrlich o entendia, em sua época, era a determinação de seu objeto e método de estudo.

A resposta que Ehrlich dava a essa pergunta é a de que a sociologia do direito encontrará seu material na história social e econômica, e seu método será o da observação.

Se existe uma regularidade nos fenômenos da vida jurídica, que a sociologia deveria descobrir e apresentar, ela só pode situar-se no condicionamento determinado pela constituição social e econômica; se existe uma evolução do direito que obedece a uma regularidade ela só pode ser conhecida e apresentada no contexto de toda a evolução social e econômica. Desta forma a sociologia do direito buscará seu material não no antiquário jurídico, mas na história social e econômica. (Ehrlich, 1986:364)

A sociologia do direito, como se percebe nas alegações de Ehrlich, é sociologia, e não jurisprudência. Trata-se da própria sociologia aplicada ao conhecimento do direito. O objeto de estudo da sociologia é o objeto de estudo da sociologia do direito. A história social e econômica enquanto objeto de estudo não é uma característica distintiva da sociologia do direito em face da sociologia em geral, mas tão somente em face da jurisprudência. A sociologia, quando se debruça sobre o direito, constrói o conhecimento científico acerca desta matéria. O direito como fenômeno social é estudado exatamente como os demais fenômenos sociais.

A ciência do direito, a sociologia, descreve um direito vivo, distinto das normas de decisão do jurista. Ela pode tomar por base a jurisprudência mas sempre a ultrapassa, fornecendo uma descrição metódica acerca de como o fenômeno jurídico efetivamente se processa.

Creio que a sociologia do direito no futuro terá de prosseguir o seu trabalho, tendo por base a jurisprudência comum. Ela não poderá ser confundida com a "doutrina geral do direito" ou com a assim chamada enciclopédia do direito. Seu papel não consiste em apresentar abstrações formalísticas das ciências jurídicas nacionais, mas sim seu conteúdo vivo. (Ehrlich, 1986: 367)

Ao descrever o direito vivo, a sociologia do direito preenche uma importante lacuna no conhecimento acerca do direito. A jurisprudência não tem a preocupação de descrever o direito tal como efetivamente tem se processado, dando-se por satisfeita sempre que encontra uma norma de decisão para o caso conflituoso que tem em mente em um dado momento.

Se além disso se levar em conta que cada uma das leis já estava superada pelo direito vivo no momento em que ficou pronta e a cada dia está sendo mais superada, então se deve reconhecer o imenso campo de trabalho, praticamente virgem, que aqui se abre ao pesquisador do direito. (Ehrlich, 1986: 374)

A descrição do direito vivo supera a descrição das leis antigas. A descrição da jurisprudência, que se volta para as leis, apresenta sempre apenas normas de decisão, e normas de decisão que já não correspondem ao direito vivo. Se considerarmos o longo processo que leva das normas do agir às prescrições jurídicas ficará claro que a descrição das normas de decisão estará sempre e necessariamente atrasada com relação ao direito vivo. Isto esclareceria, para Ehrlich, não apenas o conservadorismo dos juristas, mas também a relevância da sociologia do direito.

A sociologia do direito descreve a vida real, descreve o direito tal como se processa. A sociologia do direito "cumpre mal sua tarefa se ela se limita a descrever o que a lei prescreve e não o que de fato acontece" (Ehrlich, 1986: 377). Ao descrever como de fato se processa a vida jurídica, a sociologia alcança uma descrição do direito vivo, distinto do direito apenas vigente, mas que de fato domina a vida.

Este, portanto, é o direito vivo em contraposição ao apenas vigente diante de tribunais e órgãos estatais. O direito vivo é aquele que, apesar de não fixado em prescrições jurídicas, domina a vida. As fontes para conhecê-lo são sobretudo os documentos modernos, mas também a observação direta do dia-a-dia do comércio, dos costumes e usos e também das associações, tanto as legalmente reconhecidas quanto as ignoradas e até ilegais. (Ehrlich, 1986: 378)

Para descrever o direito vivo são necessários os métodos próprios das ciências sociais. O estudo de fontes documentais e a observação direta são fundamentais. A vida jurídica não é dominada por leis de juristas, mas por documentos. "Uma rápida análise da moderna vida jurídica mostra que ela é dominada não pela lei, mas pelo documento comercial." (Ehrlich, 1986: 379). Os documentos jurídicos, no entanto, não devem receber do sociólogo o mesmo tratamento que as leis recebem dos juristas. O documento não é uma fonte irrefutável de conteúdo do direito vivo. O sociólogo lida com os documentos a partir dos quais procura elucidar o direito da mesma forma como o historiador lida com os documentos a partir dos quais procura elucidar eventos passados. O documento é apenas um indício do comportamento efetivo dos indivíduos, que constitui o direito vivo.

A análise sociológica do direito, portanto, terá de comparar com a realidade não só as prescrições jurídicas, mas também os documentos, ela também neste particular terá de distinguir entre direito vigente e direito vivo. Direito vigente (norma de decisão) parece ser o conteúdo decisivo do documento, pois em caso de processo é que ele conta; mas ele só é direito vivo na medida em que as partes o observam, mesmo que não pensem em processo. (Ehrlich, 1986: 381)

O direito vivo, portanto, que o sociólogo busca descrever, não é o direito registrado em documentos, mas o direito tal como efetivamente se processa. Também não é apenas o direito litigioso, ou as normas que as partes acordam para prevenir eventuais disputas, mas também o direito não litigioso, o direito que se observa sem necessidade de coerção.

Mas mesmo assim se supervalorizaria o documento, se a gente quisesse extrair dele, sem mais, direito vivo. Não é tão evidente que todo o conteúdo do documento seja seja portador e testemunho de direito vivo. Direito vivo no conteúdo de um documento não é aquilo que os tribunais no caso de uma disputa jurídica declaram como obrigatório, mas somente aquilo que as partes, na vida real, de fato observam. (...) As pessoas, no dia-a-dia, procuram fazer sobretudo negócios não litigiosos com os outros; mesmo que exista a perspectiva de ganharem um processo, não lhes interessa movê-lo. (Ehrlich, 1986: 381)

O direito vivo, portanto, inclui também o direito não litigioso e aquele que resta inscrito nos documentos, mas apenas na medida em que tal direito for efetivamente observado.

O documento evidentemente só mostra do direito vivo aquilo que é registrado. Como se pode chegar ao direito vivo não documentado, que certamente é muito importante? Creio que para isto não há outro meio do que abrir os olhos, instruir-se através da observação atenta do dia-a-dia, inquirir as pessoas e registrar suas manifestações. Sei que significa exigir muito dos juristas quando se lhes pede para procurarem aprender através da percepção direta e não através dos parágrafos; mas isto é inevitável e por aí ainda há muita novidade a ser detectada. (Ehrlich, 1986:382)

A sociologia do direito, na medida em que pretenda descrever o direito vivo, o direito tal como efetivamente se processa, não se pode furtar de empreender uma descrição minuciosa a partir das fontes documentais e da observação direta do comportamento dos indivíduos. Os métodos "histórico e etnológico não se tornarão supérfluos" (Ehrlich, 1986: 386).

Por fim,

Para realmente conhecer a situação jurídica é preciso investigar tanto o que a própria sociedade realiza quanto o direito estatal e as influências reais sobre o direito societal. Precisamos saber que tipos de matrimônio e de família ocorrem em um país, que tipos de contrato são firmados e qual o seu conteúdo, que tipos de declaração de última vontade existem, como tudo isto deveria ser julgado por tribunais e outras instâncias estatais segundo o direito vigente, como de fato são as decisões a respeito e em que medida as sentenças e outras decisões realmente são efetivas. Uma investigação deste tipo mostrará que apesar de as legislações de diferentes países, como por exemplo França e Rumênia, coincidirem, predomina em ambos um direito muito diferente; mostrará também que o direito na Boêmia, na Dalmácia e na Galícia não é o mesmo, apesar de que diante de tribunais e órgãos governamentais são utilizados os mesmos códigos e que, em virtude das condições jurídicas efetivas, independente do código civil único, também as diversas partes da Alemanha não formam uma unidade jurídica, abstraindo, no caso, do fato de existirem diferenças particulares na legislação. (Ehrlich, 1986: 387)

A sociologia do direito, na medida em que for capaz de revelar o direito vivo, revelará um direito distinto daquele que os juristas entendem como válido. Desvendará diversos direitos em ação em diversos contextos, demonstrando o equívoco de uma compreensão de um fenômeno da importância do direito a partir tão somente de uma análise dedutiva, sem referência ao comportamento real. A necessidade de compreensão do direito vivo, para Ehrlich, torna imperioso o desenvolvimento de uma ciência sociológica do direito.

4.2.Emille Durkheim

4.2.1.Visão Geral

Dentro os autores clássicos em sociologia, Durkheim talvez seja o que mais importância atribuiu ao fenômeno moral. De certa forma toda a Sociologia durkheimiana é uma Sociologia da Moral, da qual é apenas um capítulo a Sociologia da Moral Cívica, que se identifica em grande parte com o Direito. Desta forma, não busquei descrever os escritos de Durkheim relativos especificamente ao Estado e ao Direito mas suas idéias a respeito destes fenômenos dispersas ao longo de sua obra.

Segundo Durkheim há dois tipos básicos de solidariedade, entendido este termo como o vínculo que une os indivíduos em sociedade: a solidariedade mecânica e a orgânica. Aquela seria a solidariedade que decorre das similitudes: os indivíduos se aproximam porque são semelhantes. A segunda seria a solidariedade por interdependência: os indivíduos se aproximam porque necessitam uns dos outros. Uma sociedade em que predomina a solidariedade orgânica seria uma Sociedade Organizada, dotada de órgãos.

De fato, para Durkheim uma Sociedade é um conjunto de grupos sociais. Uma horda, ou seja, uma sociedade composta apenas por um grupo social onde há apenas solidariedade mecânica, é um caso ao qual o autor não reconhece historicidade. Todas as Sociedade conhecidas, portanto, são conjuntos de grupos sociais unidos por elos de interdependência.

O que caracteriza cada grupo social é um conjunto de crenças e representações, que são gerais neste grupo e exercem coerção sobre o indivíduo. Assim, os grupos sociais impõe padrões comportamentais aos indivíduos, da mesma forma como modelam suas crenças e opiniões. A este corpo de representações e crenças coletivas, o autor chama consciência coletiva.

Segundo ele há uma consciência coletiva que se pode chamar "difusa" e uma "concentrada". A consciência coletiva "difusa" seria algo próximo do que costumamos denominar "senso comum", qual seja, um corpo de crenças e representações compartilhadas por grande parte de um grupo social que não guarda necessariamente qualquer coerência interna e tampouco é dotado de um procedimento claro de criação. À consciência coletiva difusa contrapõe-se a consciência coletiva concentrada. Para Durkheim um corpo de representações subjetivas fortes e concentradas é o que compõe o Direito. Este seria uma manifestação da consciência coletiva concentrada. Recebe este nome porque está concentrada em um órgão específico da Sociedade, que o elabora de certa forma conscientemente, o cérebro social, o Estado.

Assim, dentre os diversos grupos sociais, o Estado desempenha um papel particular. Ele é caracterizado como o cérebro da Sociedade. A ele cabe as funções de regulamentação e organização. É ele que determina os rumos que a Sociedade irá tomar, tutelando os demais grupos, estabelecendo regras para suas relações e sancionando-as. Após este primeiro esboço, podemos entrar em maiores detalhes acerca do pensamento do autor.

4.2.2.O Estado e a Sociedade Política

Durkheim define o Estado como um órgão determinado dentro de uma Sociedade Política, responsável por estabelecer representações e volições para tal Sociedade como um todo. Em Lições de Sociologia o autor oferece uma definição de Sociedade Política:

Mais geralmente, quando uma sociedade é formada por uma reunião de grupos secundários, de naturezas diferentes, sem que seja por sua vez um grupo secundário com relação a uma sociedade mais ampla, ela constitui uma entidade social de espécie distinta; é a sociedade política que definiremos: uma sociedade formada pela reunião de um número mais ou menos considerável de grupos sociais secundários, submetidos a uma mesma autoridade, que por sua vez não depende de nenhuma autoridade superior regularmente constituída. (Durkheim, 2002: 63)

Assim, a Sociedade Política é um conceito próximo da própria noção de sociedade. É o grupo principal, no qual se encontram inseridos uma série de grupos secundários. Já o Estado é definido como segue:

Podemos então dizer em resumo: o Estado é um órgão especial encarregado de elaborar certas representações que valem para a coletividade. Essas representações distinguem-se das outras representações coletivas por seu maior grau de consciência e de reflexão. (...) Eis o que define o Estado. É um grupo de funcionários sui generis, no seio do qual se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade, embora não sejam obra da coletividade. (Durkheim, 2002: 70)

Temos portanto que o Estado é um grupo particular dentro de uma Sociedade Política, um grupo ao qual cabe estabelecer representações e volições para a Sociedade Política como um todo.

Cada grupo social que compõe a Sociedade política também elabora para si representações e volições ou, como o autor denomina, uma moral particular. Assim, haveria uma moral familiar, uma moral profissional, uma moral geral, uma moral religiosa. O termo moral é aí entendido tão somente como o conjunto de representações e volições coletivas. Para o autor é necessário, inevitável, que seja assim. Segundo ele a vida social sempre produz tais representações, de modo que onde haja qualquer grupo social tais representações irão surgir.

Tais representações, porém, não surgem de forma arbitrária, mas em conformidade com as necessidades do próprio corpo social. Estas representações e volições o são de um corpo coletivo, do grupo social, seja ele uma determinada categoria profissional ou a própria sociedade política, e não representações e volições de indivíduos. Esta é, ao mesmo tempo, a razão pela qual tais volições e representações costumam diferenciar-se daquelas dos próprios indivíduos a elas ‘submetidos’ e também a razão pela qual elas sobrepujam as deste, impondo-se sobre eles, pela qual elas têm uma força moral.

Tais representações o são de um corpo coletivo que ultrapassa o indivíduo. Ele é mais do que o indivíduo pode ser e, para o autor, é o próprio corpo coletivo que eleva o indivíduo acima de si mesmo. Daí decorre a força moral que têm tais representações e volições coletivas: elas respondem a necessidades de um ente coletivo que é o responsável pela própria "humanidade" dos indivíduos que a ele estão submetidos. Ressalte-se aqui que: 1) tais representações e volições coletivas não são obras individuais; 2) não obedecem a interesses e representações que os indivíduos possam ter; 3) não são arbitrárias e contingentes, mas respondem a necessidades do corpo coletivo; 4) têm força moral e não apenas física, qual seja, não determinam o comportamento individual de forma direta, senão por intermédio de representações morais; 5) decorrem esta força moral do fato de ser o grupo social superior ao indivíduo.

As representações da sociedade política, o direito, pode ser dividido em duas categorias básicas, o direito repressivo e o direito restitutivo. Este corresponde à solidariedade orgânica, enquanto aquele à solidariedade mecânica. O Direito Repressivo corresponde às sanções por violações das representações mais fortes de uma determinada sociedade. Estas representações ofendem a sociedade como um todo e, de certa forma, clamam por vingança. Já o Direito Restitutivo corresponde à solidariedade orgânica e é identificável por estabelecer, como sanções, a mera observância dos deveres que impõe. Isto porque tutela ofensas que não são dirigidas à sociedade como um todo, mas a grupos particulares e à interdependência dos grupos. O não pagamento de dívidas ofende a interdependência dos órgãos da sociedade, mas não desperta vingança ou ira. Busca-se tão somente o cumprimento da obrigação descumprida, e não a punição do infrator.

Temos, portanto, que as "representações e volições" de uma dada sociedade dependem, quanto ao conteúdo, das necessidades dos diferentes grupos sociais, quanto à forma das sanções, do tipo de solidariedade.

4.2.3.Críticas desde a perspectiva kelseniana

Dentre as críticas que Kelsen formulou à Sociologia do Direito, várias se aplicam ao pensamento de Émille Durkheim. Destaco a crítica que afirma que a sociologia do direito incorre em uma certa confusão entre "ser" e "dever-ser" e a de um "jusnaturalismo sociológico". O afastamento das pré noções propugnado por Durkheim em suas obras metodológicas não envolve necessariamente a separação entre juízos de fato e juízos de valor, mas antes de juízos científicos e juízos de senso comum. Juízos de valor são tidos pelo autor como prejudiciais ao pensamento sociológico na medida em que são frutos de concepções construídas sem rigor ou precisão, são frutos de um pensamento desejante. A sociologia enquanto um pensamento científico pode, na opinião deste autor, chegar a formulações valorativas, tais como as decorrentes da distinção entre o normal e o patológico. Para o autor a sociologia não mereceria sua atenção se não fosse capaz de encontrar orientações práticas para a vida.

Confusão entre Juízos de Fatos e Juízos de Valor

Como dito anteriormente, toda a sociologia de Durkheim pode ser lida como uma sociologia da moral. De fato, o próprio autor assim se expressa:

A física dos costumes e do direito tem como objeto o estudo dos fatos morais e jurídicos. Esses fatos consistem em regras de conduta sancionada. O problema que a ciência se coloca é pesquisar:

1º Como essas regras se constituíram historicamente, ou seja, quais são as causas que as suscitaram e os fins úteis que elas preenchem.

2º A maneira pela qual elas funcionam na sociedade, ou seja, pela qual são aplicadas pelos indivíduos. (Durkheim, 2002: 1)

Esta "física dos costumes e do direito" se não compreende toda a sociologia, compreende ao menos uma grande parte dela. A "física social" deve ser em grande parte constituída por uma "física dos costumes". No trecho transcrito, retirado de sua obra dedicada ao estudo da moral e do direito, Durkheim afirma que o objetivo desta ciência é estudar as origens e conseqüências das regras de conduta sancionadas que constituem a moral e o direito.

Pode-se, por certo, argumentar que tal trecho foi retirado exatamente da obra em que Durkheim estuda a moral, donde não é razoável a partir dele afirmar que a sociologia durkheimiana consiste basicamente em uma sociologia da moral. No entanto, não é apenas aí que vemos o papel preponderante que tem a moral em sua sociologia. Passo agora a destacar na obra do autor evidências de que o "social" é aí idêntico, ou ao menos semelhante em grande medida, ao valorativo, normativo.

O fato social

Tomemos a definição que dá o autor de "fato social".

É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter. (Durkheim, 1995: 11)

O fato social, nesta definição, tem as mesmas características de uma norma de conduta. Em primeiro lugar, trata-se de uma maneira de agir suscetível de exercer coerção sobre o indivíduo. Não se trata aqui de uma maneira de agir de um indivíduo coagindo outro. Não se trata de um fenômeno de poder ou dominação de um indivíduo sobre outro. Esta "maneira de agir" exerce coerção sobre o próprio indivíduo que age. O que se quer dizer, no entanto, quando se afirma que esta "maneira de agir" exerce coerção sobre o indivíduo? Isto poderia significar que o indivíduo, ainda contra sua vontade, se comporta de acordo com tal "maneira de agir". No entanto, esta interpretação é incorreta, como destaca o próprio Durkheim, afirmando que o indivíduo não sente tal coerção senão quando se "desvia" desta "maneira de agir". Ou seja, esta é uma "maneira de agir" que quando não observada pelo indivíduo, ele sofre uma coerção. No entanto, dificilmente esta coerção se fará sentir em todos os casos, tanto assim que Durkheim menciona a diferença da "presença" da sociedade nas diferentes formas de solidariedade. Donde assumo que tal coerção pode, num caso ou outro, não se fazer sentir, apesar de que geralmente se impõe.

Temos, portanto, que esta primeira parte da definição de fato social corresponde a uma "maneira de agir" que o indivíduo observa ou não. Caso não observe sofrerá, via de regra, uma coerção. Ora, uma norma de conduta é uma "maneira de agir" determinada que o indivíduo deve observar sob pena de uma determinada coerção. Os conceitos são rigorosamente idênticos, senão pela omissão do "dever ser" na definição de Durkheim do fato social. Esta omissão, aliás, é superada quando afirma que o fato social é "imperativo", ou que tem uma "autoridade moral".

A segunda parte da definição de fato social também corresponde a uma característica da norma. Segundo Durkheim o fato social é geral na extensão de uma sociedade dada, sendo independente das manifestações individuais. O fato de ser geral pode ser restringido significativamente. Não se entende por "geral" apenas aquele fato que ocorre na extensão de toda uma "Sociedade Política", ou seja, do grupamento de grupos sociais, mas também aquele que ocorre na extensão de apenas um dado grupo social. Assim, um comportamento comum apenas aos membros de uma dada religião é, ainda, um fato social, mesmo que não seja observado no resto da sociedade. Pode-se mesmo dizer que quando há um comportamento que seja comum a determinado grupo, já por isto mesmo este grupo é a "extensão" relevante para tal generalidade. De uma forma ou de outra, tal generalidade corresponde à "esfera de validade de uma norma". Qualquer norma é considerada válida para determinadas pessoas, assim, a regra segundo a qual sacerdotes não podem contrair matrimônio é aplicável apenas a sacerdotes católicos e não a monges budistas. A norma, portanto, é "geral na extensão de uma da sociedade" da mesma forma que o é o fato social.

Mais importante é a afirmação de que o fato social independe de suas manifestações individuais. O fato de que um determinado indivíduo não aja da forma dada na "maneira de agir" que se impõe "coercitivamente" sobre ele, e mesmo o fato de que, apesar da ‘infração’ tal coerção não se faça sentir, não desfaz o fato social determinado por tal "maneira de agir". Assim, digamos que se reconheça que o fato de crianças se dirigirem à escola e, em casa, realizarem tarefas seja um fato social, então, o fato de que determinadas crianças não se comportem assim não será relevante para a caracterização deste fato social. Da mesma forma, o fato de que um determinado policial militar vendeu, certa feita, drogas aos traficantes que deveria prender não é relevante para assumirmos como um fato social que policiais prendem traficantes. Ora, é próprio de uma norma de conduta que o contra-exemplo não redunde em uma substituição da própria norma. Quando digo que não se deve matar e observo que se mata alguém, concluo que esta ação determinada está "errada" ou é um "delito". Quando "constato" um fato social determinado, digamos, que as pessoas, em geral, não matam, e observo que um dado indivíduo mata alguém, da mesma forma concluo que tal ação está "errada", que sofrerá (ao invés de que deve sofrer) uma certa "coerção".

Ora, os juízos de fato ordinários são diversos, portanto, do juízo acerca de um fato social. Quando afirmo que um dado elemento químico não reage com outro em dada temperatura e observo o contrário, concluo não pela coerção a ser imposta ao elemento químico infrator, mas pela substituição de minha afirmação preliminar. Já quando afirmo que os homens de uma dada sociedade submetem-se a determinados outros homens (policiais) e constato que de fato não o fazem (ainda que o número de contra-exemplos seja razoavelmente grande), concluo que sofrerão (devem sofrer) uma coerção.

Assim, o chamado "fato social" é, na verdade, um "fato normativo".

4.2.3.1.O Suicídio

Pode soar estranho associar a sociologia da moral em Durkheim, apresentada como saber empírico, com a análise de sistemas de normas nos moldes daquilo que Kelsen chama de ciência normativa. Entretanto, este é um exercício plausível, mesmo com uma das obras durkheimianas em que mais ressalta o caráter empírico. "O Suicídio" de Durkheim é uma obra fascinante, que corresponde quase literalmente às regras do método sociológico que o autor estabeleceu. É uma obra recheada de estatísticas e contém até mesmo depoimentos de pessoas que tentaram suicidar-se. Segundo o autor, para a efetivação desta obra "foi necessário fazer um levantamento dos dossiês de cerca de 26.000 suicidas, classificando-os separadamente por idade, sexo, estado civil, presença ou ausência de filhos". É a obra ideal para o que aqui se pretende. Segundo o autor, em "O suicídio" é

"difícil que, de cada página (...) não se extraia, (...), a impressão de que o indivíduo é dominado por uma realidade moral que o ultrapassa: é a realidade coletiva. (...) sentiremos que são forças reais, vivas e atuantes, que, pela maneira como determinam o indivíduo, comprovam que não dependem dele; pelo menos, se ele entra como elemento na combinação de que elas resultam, elas se impõem a ele à medida que se formam" (Durkheim, 2000: 6)

Em linhas gerais, nesta obra, o autor apresenta dados estatísticos que comprovam que a distribuição de suicídios difere de sociedade para sociedade e é, dentro de cada sociedade, mais constante que, por exemplo, a taxa de mortalidade. Procura demonstrar que esta taxa varia em função de variáveis propriamente sociais e que, portanto, não pode ser explicada pelo mero acaso da confluência de fatores individuais. A partir disso elabora uma classificação dos suicídios. Esta classificação é feita em função das causas dos mesmos, e não de suas características exteriores. O autor identifica o suicídio (e portanto sua causa) próprio das sociedades modernas. Pois bem, o suicídio é definido pelo autor da forma que segue:

Chama-se suicídio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima e que ela sabia que produziria esse resultado. (Durkheim, 2000: 14)

O Suicídio definido desta forma, no entanto, não é de especial interesse ao sociólogo. Trata-se, em princípio, de um fenômeno individual, um fenômeno da psique, que, para Durkheim, não é senão objeto de estudo da Psicologia. Não obstante, quando se toma como objeto de estudo não o suicídio individual, mas uma multidão de suicídios particulares, percebe-se que este fenômeno aparentemente individual varia, ou melhor, a taxa de suicídios varia de sociedade para sociedade e em diferentes períodos dentro de uma mesma sociedade de uma maneira que seria pouco plausível caso admitíssemos que tal variação depende apenas da concomitância de fatores individuais, sendo completamente fortuita, portanto. Durkheim tenta mostrar que o suicídio varia de país para país, de religião para religião, de período para período. Ora, a explicação para um tal fato por certo não pode advir de fenômenos que atinjam apenas alguns indivíduos isoladamente, mas tem necessariamente de vir de fenômenos que afetem de maneira bastante ampla um grupo social.

O autor afirma que podem haver duas espécies de causas deste tipo, e as classifica em causas "sociais" e "extra-sociais". Dentre as causas extra-sociais contam-se: fatores genéticos (raciais, étnicos), fatores climáticos (cósmicos) e as psicopatias. Ora, o próprio autor não negligencia que tais fatores influenciam o comportamento humano, e o fazem de forma ampla, ou seja, influenciam o comportamento de inúmeros indivíduos. Este, entretanto, não é o critério para que algo seja considerado "social" em sua opinião. É importante notar que o suicídio é tido como um fenômeno social não porque aconteça em grande escala, mas porque, segundo o autor, tem causas sociais. Não é qualquer causa que afete em grande escala o comportamento humano que pode ser considerada social, e também não é qualquer comportamento humano em grande escala que pode ser considerado como tal.

Dentre as causas "sociais" para o suicídio contam-se: a Religião, o Estado Civil, as Crises Econômicas. O suicídio é classificado pelo autor conforme suas causas sociais. O suicídio altruísta corresponde àquele determinado pela coerção da sociedade. Neste caso a sociedade "obriga", impele, o indivíduo a tirar sua vida. Ao fazê-lo, o indivíduo apenas cumpre seu papel. No suicídio egoísta a sociedade dá ao indivíduo autonomia para decidir o destino de sua vida, não se intromete em seus assuntos individuais e toma sua vida como assunto individual. Aqui o indivíduo se mata porque está de certa forma permitido a fazê-lo. O suicídio egoísta surge quando a sociedade atribui um tal valor ao individualismo que se pode dizer que vida do indivíduo lhe "pertence". Já não mais cabe à sociedade dizer o que o indivíduo deve fazer. Já não é mais ela quem determina o que é e o que não é suportável. Desta forma, o indivíduo assume um domínio sobre sua própria existência, ou melhor, simplesmente, na sociedade individualista há uma "norma" que determina que não cabe aos outros interferirem na vida pessoal de um indivíduo. Já no suicídio anômico o indivíduo se mata porque carece das regulamentações sociais, a sociedade não lhe diz coisa alguma a respeito da vida ou da morte. A vida deixa de ter sentido, não há razões pelas quais se deva viver.

Todas as causas apresentadas como "sociais" por Durkheim têm relação com normas de conduta. O suicídio altruísta é aquele em que há o dever de se suicidar. Suicidar-se é, aí, obedecer a uma norma. No suicídio egoísta há uma espécie de autorização para o suicídio. O indivíduo é "dono" de sua própria existência. Isto significa tão somente que há um dever geral que determina que os demais não têm o direito de interferir na vida pessoal do indivíduo. Em caso de uma decepção qualquer, ou por quaisquer razões que este indivíduo considere relevantes, está ele autorizado a suicidar-se. Por fim, o suicídio anômico reflete tão somente a ausência de quaisquer normas reguladoras da conduta humana. A tese durkheimiana é, aqui, a de que os seres humanos "necessitam" de normas de tal forma que, em situações em que as normas perdem sua autoridade, em que não há mais regulação claramente aceita para a vida social, os indivíduos podem até mesmo chegar ao suicídio.

4.2.3.2.Natureza Moral da Sociedade

A Solidariedade Social é, para Durkheim o vínculo que une os homens, é propriamente o vínculo social. Esta solidariedade é um fenômeno "moral", como o admite o próprio autor.

A solidariedade social, porém, é um fenômeno totalmente moral, que, por si, não se presta à observação exata, nem, sobretudo, à medida. Para proceder tanto a essa classificação quanto a essa comparação, é necessário, portanto, substituir o fato interno que nos escapa por um fato externo que o simbolize e estudar o primeiro através do segundo. (…) Esse símbolo visível é o direito. (Durkheim, 1999: 31)

O que significa afirmar que a solidariedade social é um fenômeno moral? Em princípio, o que se depreende do texto é apenas que se trata de um fenômeno inapreensível diretamente pelos sentidos. Mais precisamente, não se trata de algo material, mas de algo "ideal" no sentido de composto por representações humanas. Parece-me, no entanto, que esta afirmação também traz consigo a idéia de que a solidariedade não é apenas algo ideal, mas que tais idéias tem uma forma normativa. Por certo que Durkheim não o afirma expressamente, no entanto, quando busca identificar os diversos tipos de solidariedade o faz pela classificação de um fenômeno paralelo, por assim dizer, um fenômeno que "expressa" a solidariedade social: o Direito.

Interessante notar aqui que o Direito expressa um fenômeno imaterial. Entretanto, também o Direito não é senão um fenômeno imaterial. As normas jurídicas que Durkheim classifica para distinguir os diferentes tipos de sociedade não são coisas materiais que se possa ver e ouvir. São simplesmente idéias, idéias normativas. Se elas têm uma "concretude" maior do que a solidariedade social isto seria apenas no sentido de que são idéias mais claramente expressas, no sentido de que são formuladas com um grau maior de precisão ou de que, por vezes, chegam a ser escritas.

Por outro lado, a solidariedade social seria um fenômeno "moral" e, portanto, imaterial? Ora, para Durkheim tal solidariedade é o vínculo que faz com que os homens se aproximem, que determina que suas vidas sejam levadas em grupo e não isoladamente. Esta "força" que une os homens, aparentemente, tem uma concretude maior do que o direito. Inúmeros autores, como Eugen Erhlich, não relutam em afirmar que o direito tal como o estudam os juristas não passa de sentenças mortas, enquanto que na vida social encontramos um direito vivo, um direito em ação. Ora, este direito vivo tem uma semelhança muito grande com a idéia de uma solidariedade social, um fenômeno moral. Entretanto, aqui Durkheim afirma que a solidariedade social não é apreensível senão por sua manifestação sensível: o Direito.

O que em Durkheim se apresenta como paralelismo, para Kelsen é identidade. Afirma este autor que é um equívoco afirmar que um determinado grupo "tenha" uma determinada ordem moral. É a própria ordem moral o único elemento que identifica o grupo. É ela que o constitui. Segundo este autor, uma sociedade e a ordem social não são senão uma só coisa, isto é, um determinado conjunto de normas.

A partir de uma perspectiva kelseniana, Durkheim teria se equivocado justamente quando define o fato social como um "fato". Aquilo a que este autor chama "fato social" não é senão uma norma social. Da mesma forma a solidariedade social que se "manifesta" através do direito não é senão o próprio direito. Uma distinção importante do ponto de vista da teoria pura do direito que não é levada em consideração pela abordagem durkheimiana é justamente a distinção entre o comportamento humano e a norma social. A afirmação de que os homens se comportam de uma dada maneira não é idêntica à afirmação de que há uma ordem social que determina que devem fazê-lo. Durkheim transita imperceptivelmente entre estas duas idéias.

A solidariedade mecânica é um fenômeno moral. No entanto, ela é um fato. O fato de que os homens se unam em função de suas semelhanças. Afirmar que existe solidariedade mecânica é afirmar que os indivíduos têm crenças semelhantes e comportamentos semelhantes. Entretanto, os indivíduos, de fato, não têm tais crenças e comportamentos semelhantes, tanto assim que há punições para os casos em que o comportamento ou a crença seja divergente. Esta punição é justamente o símbolo visível da solidariedade mecânica. Assim, o fato de que os homens têm comportamentos e crenças similares se manifesta justamente na punição infligida a estes mesmos homens por não terem comportamentos e crenças similares. Isto é, obviamente, contraditório.

Da mesma forma a solidariedade orgânica é, para Durkheim, um fenômeno moral, mas tal fenômeno é um fato social. Este fato social caracteriza-se por uma relação de interdependência que gera determinadas normas para a conduta. O fato de que os homens dependam uns dos outros gera normas que regulam as diferentes tarefas que os homens devem cumprir. Afirmar que há solidariedade orgânica, portanto, pode significar que há normas que dividem os homens em grupos atribuindo a cada grupo diferentes tarefas, ou pode significar que de fato há diferentes grupos que desempenham diferentes papéis. Nesta segunda hipótese, mais condizente com as afirmações de Durkheim, chega-se ao mesmo problema anteriormente levantado. Constata-se que, na verdade, os diversos grupos não cumprem seu papel, e que há sanções que os obrigam a cumpri-lo. Na verdade, a solidariedade orgânica também é perceptível justamente pelas sanções que são impostas para o caso em que não seja "cumprida". Assim, quando se diz que há, em um dado grupo social, solidariedade orgânica, quer-se dizer que tal grupo é divido em sub-grupos, desempenhando cada qual um papel diferente. Sabe-se que há tal solidariedade porque os indivíduos pertencentes a estes grupos não desempenham o papel que lhes é atribuído e, nestes casos, se lhes aplica uma coação para que o façam. A contradição é, novamente, clara.

Estas contradições se dissipam se entendermos o fenômeno pesquisado por Durkheim como puramente "moral" no sentido de normativo. Se chamarmos de solidariedade mecânica a característica de um determinado conjunto de normas que se imponha sobre todo um grupo de uma mesma forma, estabelecendo para todos a mesma crença e mesmos comportamentos, então faz sentido perguntarmos pela sanção contra o comportamento divergente. De fato, a norma, e não o fato, se caracteriza pela estipulação de uma sanção. Da mesma forma, se chamarmos de solidariedade orgânica a característica de um dado conjunto de normas que dividem um determinado grupo de indivíduos em sub-grupos, atribuindo a cada sub-grupo diferentes direitos e deveres, então também fará sentido nos perguntarmos pelos casos em que os indivíduos não se comportem de fato da forma prescrita pela norma.

Durkheim não distingue o fato da norma. Para ele um determinado indivíduo se suicida porque há um costume segundo o qual os indivíduos que chegam a uma determinada idade se suicidam. Mas este costume tem caráter cogente, imperativo. Isto apenas pode significar que alguns indivíduos chegam a esta idade e não se suicidam, e que podem ser de alguma forma punidos por isso. É muito provável que nas sociedades das quais trata Durkheim havia o costume segundo o qual os indivíduos devem se suicidar em dada idade, e não de que de fato o faziam.

4.2.3.4.A origem do caráter moral da Sociedade

Para Durkheim não só a Sociedade tem uma natureza moral, sem deixar de ter uma natureza causal, factual, como esta característica moral decorre justamente de um fato. Segundo o autor a Sociedade "ultrapassa" em muito ao indivíduo em conhecimento e moralidade. Ela é "superior", e é este "fato" que lhe empresta a supremacía moral que exerce sobre o indivíduo. É por isso que o fato social exerce "coerção". Não se trata aqui de uma coerção no sentido de um poder causal determinante da conduta dos indivíduos, mas sim de coerção no sentido de autoridade para estabelecer regras de conduta que devem ser observadas. Neste ponto Durkheim pressupõe um "fato" que tem, na verdade um caráter normativo e que, figurando nas premissas de sua teoria, confere o caráter normativo a toda ela.

4.2.4.Jusnaturalismo Sociológico

Durkheim aceita como premissa uma asserção eminentemente valorativa, a saber, a de que a sociedade é "boa" em si mesma. Ela é superior ao indivíduo cognitiva e moralmente. É a sociedade que distingue os homens dos demais animais. Fora da Sociedade o homem não é senão um animal qualquer, em sociedade, porém, adquire uma elevação cognitiva e moral que o distinguem. Não só o distinguem, mas também o tornam um ser valioso, algo bom. Sob influências positivistas, Durkheim chega a afirmar explicitamente que não há distinção entre homens e animais a não ser de grau. Veremos, no entanto, que, apesar de ver o ser humano como um animal entre outros, Durkheim ainda assim lhe confere um lugar elevado em uma hierarquia valorativa. O indivíduo humano é valioso, mas tal valor decorre não de características imanentes ao indivíduo isolado, mas de características que lhe são emprestadas pela sociedade.

Em verdade, a sociedade é algo valioso. Ela supera os indivíduos. Ela lhes confere aquilo que os torna homens. Sem ela, estes seres não são mais que animais. Ou melhor, com ela, eles são mais do que animais. Durkheim valoriza o indivíduo, sua personalidade, sua liberdade, sua maneira de pensar, agir, sentir, porém, vislumbra que é a sociedade que confere ao indivíduo tais características, donde é ela, e não ele, que seria dotada de valor.

A sociedade ultrapassa os indivíduos, logo não pode ser explicada apenas por estes. Mas estes são constituídos por ela. Assim, elementos acerca da natureza humana, como os derivados de pesquisas em psicologia experimental, devem ser levados em conta por sociólogos, mas não são capazes de explicar a sociedade, que, sendo uma realidade sui generis, deve ser explicada com recurso a fatos sociais.

Em "Lições de Sociologia", Durkheim polemiza contra a doutrina do jusnaturalismo em um ponto especialmente relevante para o que seria uma antropologia filosófica. Por jusnaturalismo entenda-se, aqui, qualquer doutrina que afirme que o ser humano é dotado de determinados direitos devido a características que lhe são inerentes, ou que se encontrem na natureza das coisas, como na linguagem ou na razão. Durkheim tem em mente especialmente autores como Rousseau, Kant e Spencer. Em cada um desses autores, apesar de que de maneiras diferentes, decorrem-se direitos individuais da natureza mesma dos indivíduos.

Durkheim apresenta um argumento empírico contra tais teses. Em primeiro lugar, o autor pretende ter demonstrado que o Estado e o indivíduo têm interesses divergentes. Ora, constata-se que o individualismo, os direitos individuais, aumenta com o decorrer da evolução. O Estado também aumenta em tamanho e importância. Tal situação, segundo Durkheim, não se coaduna com as doutrinas que atribuem ao indivíduo direitos intrínsecos, uma vez que, se tais direitos são dados com o indivíduo, caberia ao Estado apenas evitar que um indivíduo viole o direito de um outro. O Estado interfere cada vez mais em cada recanto da vida individual e, ao mesmo tempo, garante e aumenta os direitos individuais.

A solução para esse problema, segundo Durkheim, é rejeitar a tese segundo a qual os direitos individuais são dados com o indivíduo:

Mas então chegamos a uma antinomia insolúvel? Por um lado, constatamos que o Estado vai se desenvolvendo cada vez mais; por outro, que os direitos do indivíduo, que são vistos como opostos aos direitos do Estado, se desenvolvem paralelamente. Se o órgão governamental assume proporções cada vez mais consideráveis é porque sua função se torna cada vez mais importante, porque os fins que ele persegue, que estão ligados à sua própria atividade, se multiplicam; e no entanto negamos que ele possa perseguir outros fins que não os que interessam ao indivíduo. Ora, estes são vistos, por definição, como pertencentes ao âmbito da atividade individual. Se, como se supõe, os direitos do indivíduo são dados com o indivíduo, o Estado não tem de intervir para constituí-los; eles não dependem do Estado. mas então, se não dependem dele, se estão fora de sua competência, como os limites dessa competência podem se ampliar constantemente, ao passo que, por outro lado, eles devem conter cada vez menos coisas estranhas ao indivíduo?

O único meio de eliminar a dificuldade é negar o postulado segundo o qual os direitos do indivíduo são dados com o indivíduo, é admitir que a instituição desses direitos é obra do próprio Estado. (Durkheim, 2002: 80)

É interessante que a refutação de Durkheim assuma um caráter empírico. Cabe colocar que as teses que pretende refutar buscam encontrar na natureza humana elementos que fundamentem direitos individuais. Dizer que o homem é um ser naturalmente moral e que, portanto, deve ser respeitado, ou que é vivo e, portanto, deve viver é fazer afirmações acerca da realidade, que, em princípio, podem ser verificadas. É claro que não há como verificar empiricamente sentenças deontológicas. Durkheim, portanto, não está buscando demonstrar que o homem não deva ser respeitado, ou que não deva viver, mas apenas que tais conclusões não decorrem das premissas.

Assim, Durkheim apresenta as seguintes premissas, que são aceitas pelos que ele chama de individualistas: os direitos do homem são dados com o homem e os direitos do Estado são opostos aos direitos do homem. Assim sendo, não seria possível que, ampliando-se os direitos do indivíduo, ampliassem-se os direitos do Estado. Este fato é constatado. Logo as premissas não podem estar corretas.

O homem não é dotado, segundo Durkheim, de direitos decorrentes de sua própria natureza. Não é intrinsecamente valioso.

O homem não é outra coisa, do ponto de vista físico, que um sistema de células e, do ponto de vista mental, que um sistema de representações: em ambos os aspectos, ele diferencia-se apenas em grau do animal. (Durkheim, 2000: 236) [05]

4.2.5.Individualismo

Se, por um lado, Durkheim afirma sem hesitação que o homem é um sistema de células e representações, isso não o impede de atribuir a ele um valor. Durkheim é um "individualista" no sentido de que valoriza positivamente a liberdade individual, liberdade de expressão e de crença, etc. O autor comunga também com muitos dos valores que se costuma associar à "Modernidade". O repúdio à instituição da herança, a valorização da educação laica. Estes são apenas alguns elementos que nos permitem perceber o individualismo durkheimiano. A singularidade de Durkheim está em que ele não decorre tais valores de características do indivíduo, mas de características da sociedade, e não desta em abstrato, mas da sociedade moderna.

Em primeiro lugar cumpre esclarecer que o homem, na visão de Durkheim, deve sua humanidade à sociedade:

E, com efeito, o homem só é homem porque vive em sociedade. Retire-se do homem tudo o que é de origem social e não restará mais que um animal, análogo aos outros animais. Foi a sociedade que o elevou tão acima da natureza física, e ela alcançou esse resultado porque a associação, agrupando as forças psíquicas individuais, intensifica-as, leva-as a um grau de energia e de produtividade infinitamente superior ao que poderiam atingir se continuassem isoladas umas das outras. Surge assim uma vida psíquica de novo tipo, infinitamente mais rica, mais variada do que aquela de que o indivíduo solitário poderia ser o palco, e a vida que assim se produz, penetrando o indivíduo que dela participa, transforma-o. (Durkheim, 2002: 84)

Percebe-se aqui que o homem é algo distinto dos demais animais, e não apenas em grau. O que é propriamente humano não são características biológicas ou físicas, mas características sociais. Um homem não social não seria um homem. O abismo que há entre um homem e um animal é o mesmo que haveria entre um homem e um homem não-social. A sociedade não apenas confere uma natureza diferente ao homem, confere uma natureza mais elevada, uma natureza superior.

Em outro lugar Durkheim argumenta que:

Nada vem do nada, e o indivíduo abandonado a si mesmo não poderia elevar-se acima de si mesmo. O que faz com que ele se supere, com que ele tenha ultrapassado a tal ponto o nível da animalidade, é o fato de a vida coletiva repercutir nele, de penetrá-lo; são esses elementos adventícios que lhe fazem uma outra natureza. (Durkheim, 2002: 127)

Esta expressão "elevar-se acima de si mesmo" aparece repetidas vezes na obra do autor. Claro está que não é isenta de juízos valorativos. O indivíduo, elevado acima de sua natureza, não é mais um ser qualquer. É agora um ser de uma natureza distinta, é um ser valioso. Não mais se equipara aos demais animais, tendo superado o "nível da animalidade".

Bem, poderíamos aqui estabelecer uma distinção que considero importante. Dizer que o homem é um ser valioso não é o mesmo que dizer que é considerado valioso. Durkheim ao afirmar que a sociedade eleva o homem acima de sua natureza, tanto intelectualmente como moralmente, poderia ainda admitir que tais características não fazem dele um ser mais ou menos valioso. Poderia mesmo admitir que a sociedade o considera valioso e compele os indivíduos a pensar e agir assim, sem admitir que ele o seja, ou melhor, sem julgar que esta constatação implique na fundamentação de uma determinada moralidade.

Tal não é o caso. Efetivamente Durkheim pretende fundamentar uma moralidade. Esta moralidade é a que valoriza o indivíduo. A diferença entre o pensamento de Durkheim, neste ponto, e o pensamento dos autores que ele chamou individualistas, consiste em que os atributos do indivíduo não lhe são dados naturalmente, mas socialmente, bem como seu valor e seus direitos. Não são atributos imanentes, mas lhe são atribuídos pela sociedade.

Da mesma forma como refutou o que chamou de "individualismo" (o jusnaturalismo) com recurso a elementos empíricos, Durkheim pretende fundamentar a moralidade individualista e a democracia empiricamente. O argumento é, em suma, o de que a evolução da sociedade caminha no sentido de uma moralidade individualista, e a forma de governo que mais se adequa a tal moralidade é a democrática, tal como o autor a define. Tomemos, em princípio, a moralidade individualista, ou seja, em especial a idéia de que o indivíduo é valioso. Sobre este ponto afirma o autor:

Porém, quanto mais avançamos na história mais vemos as coisas mudarem. Antes perdida no seio da massa social, a personalidade individual se destaca dela. O círculo da vida individual, antes restrito e pouco respeitado, amplia-se e torna-se o objeto eminente do respeito moral. O indivíduo adquire direitos cada vez mais extensos a dispor de si mesmo, das coisas que lhe são atribuídas, a se fazer do mundo as representações que lhe pareçam mais convenientes, a desenvolver livremente sua natureza. (...) O Estado deve voltar-se para revelar sua natureza. Haverá quem diga que esse culto do indivíduo é uma superstição da qual devemos nos desvencilhar. Mas isso é contrariar todos os ensinamentos da história; pois quanto mais se avança, mais cresce a dignidade da pessoa. Não há lei mais estabelecida. (Durkheim, 2002: 78)

Aqui Durkheim pretendeu apresentar fatos acerca da realidade. Ao longo do tempo, segundo o autor, o indivíduo foi sendo cada vez mais valorizado. A história mostra, então, que quanto mais se avança, mais cresce a dignidade da pessoa. Esse fato contestaria a tese segundo a qual o "culto do indivíduo é uma superstição da qual devemos nos desvencilhar". Ora, a tese segundo a qual com a evolução da sociedade aumenta o valor atribuído à pessoa humana não é incompatível com a outra que estabelece que devemos nos desvencilhar de tal culto à pessoa humana. Do mesmo modo uma tendência da taxa de homicídios a aumentar não constitui refutação da norma segundo a qual não se deve matar. O fato não nega a norma. A história não refuta valores.

Acerca da democracia, Durkheim a define como a forma de governo em que há uma concentração da consciência coletiva em um determinado órgão, sendo que a abrangência das matérias por ele tratadas é máxima, mas também é máxima a comunicação desta consciência coletiva concentrada com a consciência coletiva difusa. Em suma, é um governo laico, que delibera sobre os mais variados assuntos, que expõe sua deliberação à apreciação da coletividade, que recebe de volta como que pareceres das diversas partes da coletividade e os leva em consideração e, por fim, que decide com base nestes elementos acrescidos de sua própria contribuição.

A democracia seria a forma de governo mais adequada ao valor que se atribui à personalidade individual e a mais adequada a enfrentar as transformações por que tem de passar uma sociedade complexa. Além disso, a democracia é para onde tende a evolução da sociedade.

Portanto, não é que há quarenta ou cinqüenta anos a democracia começasse a fluir com sua plena capacidade; sua escalada foi contínua, desde o início da história. (Durkheim, 2002: 125)

A Democracia entendida como o regime da reflexão, é a direção natural para que tende a sociedade. Aqui novamente convém colocar que o fato de que a democracia seja o rumo que as sociedades tomam não constitui fundamento para tal regime. Ou melhor, não constitui a não ser que se suponha que as coisas devam ser tais como o rumo de sua evolução aponta, ou que as coisas devam ser tais quais são. Durkheim parece fazer esta suposição. Procurarei mostrar agora que Durkheim entende que se algo é, deve ser. Assim também se a história caminha em determinado sentido, deve fazê-lo.

Um primeiro trecho em que isso aparece de forma explícita é o que segue:

A autonomia de que o indivíduo pode desfrutar não consiste então em se insurgir contra a natureza; uma tal insurreição é absurda, estéril, quer a tentemos contra as forças do mundo material ou contra as do mundo social. Ser autônomo é, para o homem, compreender as necessidades às quais ele deve se dobrar e que ele deve aceitar com conhecimento de causa. Não podemos fazer com que as leis das coisas sejam diferentes do que são; mas nos libertarmos delas pensando-as, ou seja, fazendo-as nossas pelo pensamento.

Que se insurgir contra a natureza seja estéril bem pode ser uma afirmação destituída de conteúdo normativo, mas que seja absurdo não. Durkheim afirma aqui que o homem deve compreender as forças às quais deve se dobrar. Com tal afirmação não parece o autor estar se referindo a que a vontade humana seja causalmente condicionada e que a compreensão de tal causalidade não a torne estéril. Está a dizer que não deve o homem insurgir-se contra a natureza, que deve agir como pedem "as leis das coisas". Como não podemos impedir que as coisas sejam como são, Durkheim conclui que devemos aceitá-las tais como são. Em outra passagem, que acima comentamos em parte, Durkheim afirma de maneira mais clara este axioma:

quanto mais se avança, mais cresce a dignidade da pessoa. Não há lei mais bem estabelecida. Por isso qualquer tentativa de assentar as instituições sociais no princípio oposto é irrealizável e só pode ter um sucesso de um dia. Pois não se pode fazer com que as coisas sejam diferentes do que são. Não se pode fazer com que o indivíduo não tenha se tornado o que é, ou seja, um foco autônomo de atividade, um sistema imponente de forças pessoais cuja força não pode mais ser destruída que a das forças cósmicas. Já não é possível, a esta altura, transformar nossa atmosfera física, no seio da qual respiramos. (Durkheim, 2002: 79)

Durkheim está argumentando contra os que defendem que devemos nos desvencilhar do culto ao indivíduo. A argumentação caminha no sentido de que é impossível tal desvencilhamento. Ora, Durkheim sabe muito bem que a impossibilidade de se realizar determinado ato não constitui a negação do dever de fazê-lo. Assim diz o autor:

O pensamento verdadeira e propriamente humano não é um dado primitivo, é um produto da história, é um limite ideal do qual nos aproximamos sempre mais, mas que provavelmente nunca chegaremos a atingir. (Durkheim, 2000: 496)

Neste caso Durkheim não conclui que não devamos tentar atingir o pensamento propriamente humano. Mas anteriormente concluiu que não se deveria abrir mão do culto ao indivíduo por ser tal ato impossível. Ocorre que em um dos casos Durkheim fez intervir o pressuposto de que as coisas devem ser como são, e no outro não. Este pressuposto parece estar na base da distinção entre normal e patológico. Tanto assim que a generalidade é um dos atributos essenciais da normalidade. (Durkheim, 1995: 56) A patologia é anormal, não é geral, é efêmera.

Assim, o fundamento da deontologia durkheimiana é a idéia de que não se deve impedir que as coisas sejam como são, e isto porque tal empreendimento é impossível. Por isso muitos o têm como conservador a despeito de suas idéias propriamente políticas.

É com base nesta deontologia que Durkheim pretende reviver as corporações de ofício. Segundo ele elas correspondem a necessidades sociais permanentes. O fato de que as corporações de ofício tenham sido de fato abolidas não fez com que desaparecessem as necessidades sociais a que elas respondiam, ou deviam responder. A permanência de tais necessidades, e o papel que a vida econômica assumiu constituem a principal patologia da sociedade moderna, entendido que faltam à vida econômica os grupos capazes de gerar uma moralidade que lhe regule.

A partir de um estudo empírico, relacionando fatos, Durkheim conclui um dever ser. A partir da "constatação" de que não há uma moralidade que una os industriais e os operários, e de que "sempre houve" uma moralidade econômica, Durkheim conclui que "deve haver" uma moralidade econômico-industrial. A não existência constatada é um mal, algo a ser transformado.

Da mesma forma com relação à Democracia. Durkheim condena a democracia representativa em favor de uma nova espécie de democracia que não "sujeite" o Estado aos indivíduos. Estes estão aquém da sociedade, não são capazes de vislumbrar seus objetivos, interesses e necessidades, donde não convém que lhes caiba tutelar o trabalho decisório do Estado. Da mesma forma o Estado está muito "acima", muito distante, dos indivíduos, de forma que carece de um órgão intermediário, um tanto mais próximo, a fim de que possa atender na medida necessária aos interesses dos indivíduos.

Como Durkheim aceitou, dentre as premissas de seus estudos, premissas normativas, em especial a premissa de que a Sociedade é algo valioso, e que confere valor ao homem, e a premissa de que o que de fato ocorre com dada regularidade deve ocorrer, pôde chegar, ao longo de toda sua obra, a conclusões normativas. Dentre as premissas normativas aceitas por Durkheim contam-se, pelo menos, aquela segundo a qual aquilo que ocorre de fato com dada regularidade não apenas ocorre, mas deve ocorrer, e aquela segundo a qual a Sociedade é algo intrinsecamente valioso e capaz de conferir um pouco de seu valor aos indivíduos. Este valor da sociedade decorre de sua superioridade moral e cognitiva. Estas premissas permitem que o autor considere patológicas as situações em que um fato bastante geral não ocorre, e que ele valore positivamente determinados tipos de sociedade, a saber uma "democracia" não representativa, onde o Estado oferece algo de si próprio às decisões políticas a serem tomadas.

Temos aí, evidentemente, um jusnaturalismo sociológico. Na medida em que Durkheim se julga capaz de, a partir de um estudo factual acerca do desenvolvimento histórico do Estado e da Sociedade, chegar a uma conclusão acerca de qual forma de governo deveria determinada sociedade adotar, está justamente deduzindo um direito ideal dos fatos que observa. A democracia representativa é valorada negativamente, já que constitui um estado patológico da sociedade, não correspondendo às tendências evolutivas que apontam no sentido de um maior individualismo, que para Durkheim é um produto de um Estado que deve ser de alguma forma independente dos indivíduos. Assim, não obstante ter o próprio Durkheim polemizado com aqueles que chamou de jusnaturalistas, elaborou um jusnaturalismo sociológico, derivando de suas observações factuais acerca da sociedade não apenas um conjunto de normas que deveriam ser observadas, mas toda uma forma de governo.

4.3.Nicklas Luhmann

Luhmann é um sociólogo contemporâneo que dedicou uma importante obra ao estudo da sociologia do direito, que teve já alguma influência no pensamento de alguns juristas, em especial sua concepção do direito como um sistema autopoiético. Entretanto, tal recepção em geral se dá no sentido de rejeição do pensamento deste autor em função de pretender fechar o direito no próprio direito, deixando de perceber as relações que o direito tem com outros campos da vida social. Esta é uma crítica bastante semelhante à que normalmente é dirigida ao pensamento kelseniano. Isto, no entanto, não revela qualquer afinidade entre o pensamento destes dois autores.

O pensamento de Luhmann será exposto aqui de forma necessariamente seletiva. Por certo ficarão de fora da exposição elementos importantes de sua teoria, mas que não são indispensáveis para a apreciação das críticas que Kelsen dirige à sociologia do direito, tais como podem ser aplicadas ao pensamento luhmaniano.

4.3.1.O direito como um sistema de alta complexidade estruturada

A abordagem que Luhmann faz do direito é bastante diferente da abordagem clássica. Ele não toma o direito simplesmente como uma ordem coercitiva, mas como uma resposta a uma necessidade sistêmica da sociedade. Luhmann parte das relações entre indivíduos e suas necessidades para construir um modelo sistêmico de sociedade. As necessidades que os indivíduos têm de redução das contingências dão origem ao sistema jurídico que limita as contingências.

Luhmann também aceita a tese segundo a qual a sociologia do direito diverge da jurisprudência em sua interpretação sobre o direito. A construção que a sociologia do direito realiza não adota a "orientação normativa da vida em sociedade". Não se trata de descrever e explicar normas em suas relações com princípios mais gerais ou de alguma forma superiores, nem tampouco de descrever aquilo que os juristas pensam sobre o direito.

Por isso a sociologia não se sente obrigada, e sequer autorizada, a compartilhar com a orientação normativa da vida em sociedade, e a procurar a base de sua vigência em normas superiores e princípios indubitáveis, pois desta forma, como Emile Durkheim observou quase ironicamente, ela identificaria não a realidade da moral de determinadas sociedades, mas apenas o modo como o moralista concebe a moral. (Luhmann, 1983: 22)

A construção luhmaniana, portanto, não é uma construção normativa, que corresponda de alguma forma ao pensamento normativo dos juristas. Seu pensamento, entretanto, envolve conceitos pouco corriqueiros na sociologia, de modo que para apresentar o pensamento de Luhmann é necessária a definição de alguns conceitos. Aquilo que o autor chama de complexidade desempenha um importante papel na sociologia do direito luhmanniana.

Complexidade deve ser entendida aqui e no restante desse texto como a totalidade das possibilidades de experiências ou ações, cuja ativação permita o estabelecimento de uma relação de sentido – no caso do direito isso significa considerar não apenas o legalmente permitido, mas também as ações legalmente proibidas, sempre que relacionadas ao direito de forma sensível, como, por exemplo, ao se ocultarem. (Luhmann, 1983: 12)

Complexidade se refere ao conjunto de todas as possibilidades de experiência. O direito, neste sentido, seria um sistema de alta complexidade. Há portanto, inúmeras possibilidades de experiências humanas relacionadas ao direito. No entanto, o direito não é tão somente um sistema de alta complexidade, mas de alta complexidade estruturada.

A complexidade de um campo de possibilidades pode ser grande ou pequena, em termos quantitativos, de diversidade ou de interdependência. Além disso ela pode ser desestruturada ou estruturada. A complexidade totalmente desestruturada seria o caso limite da névoa original, do arbítrio e da igualdade de todas as possibilidades. A complexidade estruturada constitui-se na medida em que as possibilidades se excluam ou limitem reciprocamente. Na complexidade estruturada, portanto, surgem problemas de compatibilidade e compossibilidade. A ativação de uma determinada possibilidade bloqueia a da outra, mas permite, por outro lado, a construção de novas possibilidades que a pressupõem. (Luhmann, 1983: 13)

Assim, por um sistema de alta complexidade estruturada se entende um sistema em que há inúmeras possibilidades de experiências humanas. Estas possibilidades, entretanto, podem, estar de tal forma vinculadas que se excluam mutuamente. Segundo Luhmann, o direito é um sistema de alta complexidade estruturada. "O ordenamento jurídico, tal com nós o conhecemos atualmente, é uma construção de alta complexidade estruturada. (Luhmann, 1983: 12)". Com isto se pretende dizer que as possibilidades de experiência jurídica se excluem mutuamente de certa forma.

É justamente esta a função da estrutura: reduzir, ou tornar viável a experimentação de um sistema de alta complexidade. "Seguindo as considerações acima esboçadas, a estrutura de um sistema social tem por função regular a complexidade do sistema. (Luhmann, 1983: 14)". Regular a complexidade do sistema significa determinar compossibilidades e impossibilidades de coexistência de experiências.

O sistema jurídico desenvolveu-se em um sentido de aumento da complexidade. Para que uma complexidade maior, ou seja, um maior número de possibilidades de experiências, pudesse ser estruturada, o direito teve de alterar-se em um sentido determinado. O direito teve de tornar-se mais abstrato e mais maleável. Para que possa abranger um número crescente de experiências o direito tem de ser modificável. Para que possa regular inúmeras experiências muito distintas entre si, o direito tem de ser abstrato, ou seja, não fazer referência a experiências demasiado concretas, referindo-se, antes, em cada disposição a um amplo número de experiências de alguma forma relacionadas entre si.

No decorrer do desenvolvimento social em direção à complexidade mais elevada, o direito tem que se abstrair crescentemente, tem que adquirir uma elasticidade conceitual-interpretativa para abranger situações heterogêneas, tem que ser modificável através de decisões, ou seja: tem que se tornar direito positivo. Nesse sentido formas estruturais e graus de complexidade da sociedade condicionam-se reciprocamente. (Luhmann, 1983: 15)

Este sistema de alta complexidade estruturada tem sua expressão mais acabada no modelo do direito positivo. Luhmann considera uma importante lacuna na sociologia do direito a ausência de qualquer análise mais profunda sobre o tema da positividade. Em sua opinião é esta positividade uma resposta às necessidades de redução da contingência de experiências em um sistema altamente complexo e em constante transformação.

Até hoje não existe nenhuma abordagem digna de registro no sentido de uma teoria sociológica da positividade do direito. O debate sobre o positivismo foi relegado aos juristas, em cujas mãos ele inevitavelmente limitou-se à problemática jurídica imanente das bases legitimadoras do direito positivo. (Luhmann, 1983: 35)

Esta lacuna do pensamento sociológico sobre o direito tem, para Luhmann, certas razões que podem ser explicitadas. De um lado, segundo ele, a sociologia em geral estava sofrendo de um certo descrédito quando do surgimento da sociologia do direito, sendo rejeitadas àquele tempo as teses organicistas em sociologia. Entretanto, a explicação mais importante que este autor apresenta é a de que não houve uma disposição para aprofundar no estudo da noção de "dever ser".

(...) não estavam, e ainda não estão, esclarecidos os processos elementares da formação do direito, o sentido do dever ser, a função do direito como componente da estrutura de sistemas sociais. (Luhmann, 1983: 35)

O "dever ser" era tomado como uma noção básica, não como um objeto a ser mais bem analisado e explicado. Isto fechava à sociologia clássica do direito inúmeras questões. A sociologia sistêmica do direito, tal como formulada por Luhmann, ao colocar em questão o dever ser, buscando explicitar seu significado em termos funcionais, abre à visão do sociólogo questões importantes que apontam no sentido da sociologia da positividade do direito.

4.3.2.A análise sociológica do dever ser

Segundo Luhmann, o "dever ser" não é, e não deve ser tomado como, um conceito básico ou fundamental da sociologia do direito. Com isto, pretendo dizer, aqui, que o "dever ser" não é um conceito que não possa ser, na opinião do autor, explicado em outros termos. Não cabe à sociologia do direito, que não tem uma orientação normativa e não está presa ao modo de ver dos juristas, tomar a noção de "dever ser" como algo que dispensa maiores considerações.

Nenhuma das sociologias do direito até hoje apresentadas foi capaz de aprofundar-se até às raízes do direito. Podemos chegar rapidamente a uma visão geral sobre o que foi feito nesse sentido. O dever ser é pressuposto como uma qualidade experimentada, vivenciável mas não mais detalhadamente analisável, como o "fato" básico da vida jurídica. Com isso bloqueia-se de imediato o acesso às indagações mais ricas ao nível teórico. (Luhmann, 1983: 42)

O "dever ser" é normalmente, segundo o autor, tomado pela sociologia do direito como algo experimentado pelos indivíduos, como um fato vivenciável. A experiência normativa é, portanto, tomada como algo dado. Desta forma, o direito pode surgir como um problema de pesquisa sem que se coloque o próprio direito em questão. Não se pergunta, assim, por que há um sistema jurídico em uma sociedade determinada, nem quais são as funções que tal sistema desempenha na sociedade como um todo, mas tão somente, por que tal sociedade tem este, e não aquele, sistema jurídico.

O direito surge, então, como uma construção social em princípio indispensável, mas sempre contingente em cada efetuação. Essa contingência, esse condicionamento da opção por outras possibilidades torna-se o tema da sociologia do direito. (Luhmann, 1983: 21)

O direito é visto, aí, como algo necessário, mas que varia em função de determinados elementos. A tarefa da sociologia do direito seria, então, apenas determinar quais são estes elementos e o modo como afetam a experiência jurídica. O direito, em si, está simplesmente dado.

Luhmann busca ultrapassar esta abordagem. Como já mencionado, sua sociologia do direito não parte do direito como um fato dado. O autor busca, podemos dizer, reduzir o "dever ser" a certos elementos da interação dos indivíduos e, de forma ainda mais ousada, a necessidades societárias e necessidades individuais de limitação da contingência e complexidade da vida social.

Se quisermos ir mais ao fundo teremos primeiro que analisar o fato do dever ser. Não é suficiente apenas aceitar o dever ser de todas as normas como um dado básico do direito, ou supô-lo como uma qualidade, não mais definida, da experiência fática. Pode-se, ainda, indagar quanto ao sentido do dever ser, ou mais precisamente: quanto à sua função. O que afirma esse símbolo do dever ser? Qual o significado de que experiências e principalmente expectativas sejam experimentadas com essa qualidade do dever ser? Sob quais circunstâncias que essa qualificação é escolhida, e para quê? Quais temas são assim reforçados? E quais os comportamentos daí decorrentes? (Luhmann, 1983: 43)

O "dever ser", na sociologia de Luhmann, está em questão. Ele não está dado. Cumpre ao pensamento sociológico apresentar seu significado, desvendar suas funções.

Os resultados da engenhosa análise luhmaniana apontam para o "dever ser" como uma resposta a uma necessidade de limitação da dupla contingência gerada pela convivência social. Explicitaremos agora a argumentação do autor neste sentido. Para tanto é necessário que bem se compreenda o que se pretende dizer por complexidade, contingência e dupla-contingência.

Vejamos como o autor define a complexidade e a contingência:

Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas; ou seja, que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível, ou a algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta (por exemplo, indo-se ao ponto determinado), não mais lá está. Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos. (Luhmann, 1983: 45)

A experiência humana lida constantemente com a complexidade. A infinidade de possibilidades de agir força uma seleção, que sempre pode ser frustrante. Perante um rio, pode-se tentar atravessá-lo ou resignar-se a tomá-lo como uma barreira intransponível. Na primeira hipótese as conseqüências podem ser desastrosas. Pode-se perder um carregamento ou mesmo a vida na travessia. Na segunda hipótese, também, as conseqüências podem ser desalentadoras. Pode-se abandonar um projeto de assentar acampamento em um vale muito fértil, ou pode-se perder a oportunidade de travar contato com um outro grupo do outro lado. Uma seleção é simplesmente necessária. Não se pode atravessar e não atravessar o rio. Uma vez perdida a carga na travessia, não se pode pretender que isto não se tenha passado. Uma vez travado contato com outro grupo, isto não pode ser desfeito.

A experiência humana consiste, portanto, também em seleção de possibilidades. Tal seleção está sempre em face da contingência das próprias escolhas. Cada seleção implica riscos, possibilidades de ganhos ou frustrações. A contingência ainda pode ser aumentada em função da existência de um alter ego, cujo comportamento depende da própria seleção do ego, gerando, portanto, uma dupla contingência.

Encontrar um alter e tomá-lo como um outro ego significa a possibilidade de aquisição de um número muito maior de experiências, o que é valioso no sentido de que a seleção de possibilidades pode se dar com base não mais apenas nas experiências próprias, mas também nas experiências de um outro eu, o alter. Isto, entretanto, tem um "preço".

O preço disso está na potenciação do risco: na elevação da contingência simples do campo de percepção, ao nível da dupla contingência do mundo social. Reconhecer e absorver as perspectivas de um outro como minhas próprias só é possível se reconheço o outro como um outro eu. Essa é a garantia da propriedade da nossa experiência. Com isso, porém, tenho que conceder que o outro possui igualmente a liberdade de variar seu comportamento, da mesma forma que eu. Também para ele o mundo é complexo e contingente. Ele pode errar, enganar-se, enganar-me. Sua intenção pode significar minha decepção. O preço da absorção de perspectivas estranhas é, formulado em termos extremados, sua inconfiabilidade. (Luhmann, 1983: 47).

Desta forma, quando a experiência do alter é tomada em consideração para a seleção de possibilidades, toma-se o alter como um outro ego, donde características do ego passam a lhe ser imputadas. Se por um lado tem-se assim um acúmulo muito maior de experiências, tem-se, por outro que tais experiências não são tão confiáveis como as próprias. O mundo complexo do ego se torna duplamente complexo enquanto um mundo de vários egos. Assim, por experiência pessoal um indivíduo pode tratar a possibilidade de utilizar um determinado animal como alimento, digamos, um pássaro que existe em abundância na região, como uma possibilidade aberta. Entretanto, outro indivíduo pode lhe contar sobre uma experiência trágica que teve quando se alimentava daquele animal, digamos, sua esposa e filhos teriam falecido e ele próprio teria passado muito mal. Suponhamos que o primeiro indivíduo já havia, por várias vezes, se alimentado daquela ave sem maiores problemas. Sua experiência, entretanto, foi enriquecida com um relato que aponta no sentido de afastar uma possibilidade que ele tinha como aberta. Este enriquecimento da experiência, se por um lado pode lhe poupar uma doença decorrente de alimentar-se da ave, pode também, considerando a possível má-fé ou simples equívoco do alter lhe vedar uma possibilidade confortável e lhe render uma vida muito mais difícil.

Não se trata mais simplesmente da contingência do mundo natural, mas também a contingência do acesso mediato a uma experiência do mundo natural.A dupla contingência é mais difícil de ser contornada do que a contingência simples da experiência perante a natureza. O "dever ser", segundo o autor, é uma noção que responde a estas necessidades de estruturação, que decorre da experiência existencial dos indivíduos.

Temos, portanto, que os indivíduos humanos têm uma necessidade por limitação da contingência gerada pela seleção forçada pela complexidade da experiência. Tal necessidade tem, podemos dizer, um caráter psíquico.

Nesse campo de pesquisa, para cujo esclarecimento contribuíram cientistas das mais diferentes áreas – fenomenólogos e psicanalistas, psicólogos sociais e teóricos do aprendizado, sociólogos e teóricos da cibernética – devem ser descobertas as origens da singular necessidade de ordenamento que é satisfeita pelo direito. (Luhmann, 1983: 44)

Psicólogos, psicanalistas, fenomenólogos e sociólogos, colaboraram no sentido de desvendar a existência de uma necessidade de ordenamento, ou melhor, necessidade de regulação. O ordenamento, como já mencionado, consiste em uma regulação de possibilidades, limitando contingências. A resposta à necessidade de limitação de contingências são as estruturas de assimilação de possibilidades.

Sobre essa situação existencial desenvolvem-se estruturas correspondentes de assimilação da experiência, que absorvem e controlam o duplo problema da complexidade e da contingência. Certas premissas da experimentação e do comportamento, que possibilitam um bom resultado seletivo são enfeixadas constituindo sistemas, estabilizando-se relativamente frente a desapontamentos. (Luhmann, 1983: 46)

A situação existencial humana é tal que há um ganho na limitação de possibilidades. Quando um dado sistema de assimilação determina que a energia elétrica é perigosa, previne-se que cada indivíduo tenha de assumir riscos nas escolhas que faz quando está lidando com aparelhos elétricos. Um eletricista não precisa se questionar quanto aos equipamentos necessários, e as condições adequadas para a troca de uma fiação em uma casa. Há uma estrutura de assimilação de experiências que afasta a possibilidade de trocar-se a fiação sem desligar previamente a corrente e sem um equipamento determinado (luvas de borracha, botas de borracha, etc).

No entanto, ocorre, e este é um ponto fundamental, que as estruturas de assimilação de experiências não são do mesmo tipo independentemente da espécie de experiências que assimilam. Há duas espécies distintas de estruturas de assimilação de experiências.

Frente à contingência simples erigem-se estruturas estabilizadas de expectativas, mais ou menos imunes a desapontamentos – colocando as perspectivas de que à noite segue-se o dia, que amanhã a casa ainda estará de pé, que a colheita está garantida, que as crianças crescerão... Frente à dupla contingência necessita-se outras estruturas de expectativas, de construção muito mais complicada e condicionada: as expectativas. A vista da liberdade de comportamento dos outros homens são maiores os riscos e também a complexidade do âmbito das expectativas. Conseqüentemente, as estruturas de expectativas têm que ser construídas de forma mais complexa e variável. (Luhmann, 1983: 47)

As estruturas de assimilação de experiências, para que possam dar conta da dupla contingência, têm de assumir um caráter diverso das estruturas simples de assimilação de experiências. As estruturas de assimilação que garantem que após a noite segue-se o dia necessitam de reformulação sempre que sofrem frustrações. São estruturas pouco resistentes ao erro. Trata-se de estruturas elaboradas para lidar com a contingência simples do mundo natural. Tais estruturas selecionam possibilidades a partir daquilo que recorrentemente ocorre. Um contra-exemplo a uma assimilação de experiências nesta forma é suficiente para implicar em uma reformulação. Assim, o fato de encontrar um cavalo atravessando um rio é suficiente para desfazer a expectativa de que cavalos são incapazes de nadar.

Já as experiências que temos a partir do convívio com outros seres humanos são constantemente confrontadas com contra-exemplos. Um garoto calmo tem um acesso de raiva, uma mãe pratica incesto com seu filho, um marido é adúltero, meu vizinho furta meus objetos, etc. As experiências que envolvem dois ou mais sujeitos humanos não são, muitas vezes, passíveis de apreensão pela estrutura de assimilação de contingências que aplicamos para assimilar outras experiências. O problema da dupla contingência implica na destruição constante deste tipo de estrutura de assimilação, limitando em grande medida a possibilidade de que respondam satisfatoriamente às necessidades de estruturação neste campo da experiência.

Para uma análise do processo de interação e dos sistemas que o conduzem seria imprescindível uma dissecação precisa desses diversos planos das discrepâncias possíveis e das estratégias daí decorrentes no sentido da interpretação defensiva e do comportamento de conflito. Naturalmente, isso não pode ser realizado na vida cotidiana. Portanto, as simplificações, inevitáveis na busca de orientação, precisam estar, ao mesmo tempo, imunizadas contra o risco do erro. Elas precisam, em outras palavras, poder preencher sua função estruturalizante até mesmo quando interpretam erradamente a realidade ou as expectativas sobre a realidade. (Luhmann, 1983: 50)

São necessárias, portanto, estruturas de assimilação de sentido que não necessitem ser revistas, mesmo no caso de se revelarem equivocadas, ou seja, no caso de a experiência efetiva diferir daquilo que é expectável com base na estrutura de assimilação em questão. Isto é possível na medida em que aquilo que de se tem necessidade não é estabilização de comportamentos, mas estabilização de expectativas de comportamentos.

A função de tais sínteses regulativas do sentido não é captada plenamente se partirmos, e essa é a compreensão predominante, apenas da visão da expectativa comportamental, e em decorrência concentrarmo-nos na questão da garantia do comportamento conforme às expectativas. Essa função tem seu centro de gravidade no plano reflexivo da expectativa sobre expectativas, criando aqui segurança em termos de expectativas, à qual se segue, apenas secundariamente, a segurança sobre o comportamento próprio e a previsibilidade do comportamento alheio. É muito importante, para a compreensão do direito, ter uma visão clara dessa diferença. Isso porque a segurança na expectativa sobre expectativas, seja ela alcançada por meio de estratégias puramente psíquicas ou por normas sociais, é uma base imprescindível de todas as interações, e muito mais importante que a segurança na satisfação de expectativas. (Luhmann, 1983: 52)

A necessidade de segurança acerca do comportamento dos demais seres humanos pode ser satisfeita apenas de maneira secundária, por meio da estabilização das expectativas. Tal estabilização pode ser atendida mesmo contra diversos contra-exemplos. Espera-se que seres humanos não tomem a propriedade alheia. Um contra-exemplo desta expectativa não frustra a própria expectativa. O fato de que fui furtado em um dado momento da minha vida não autoriza a expectativa de que os seres humanos em geral podem ser considerados como uma ameaça à minha propriedade. O sistema de assimilação gerado em função da dupla contingência determina que eu espere que esperem de mim um determinado comportamento perante os indivíduos. Mesmo que eu não me comporte desta forma, estas mesmas expectativas permanecem. Da mesma forma espera-se que eu não espere que os demais indivíduos em geral serão autores de furtos, salvo em certas circunstâncias específicas.

Este sistema de assimilação de complexidades utilizado para limitar a dupla contingência pode assumir uma forma normativa.

Trata-se de uma hipótese saudável, presumir que aqui se encontram os riscos e as disfunções psíquicas peculiares à expectativa sobre expectativas, podendo-se também supor que a experimentação projetiva muitas vezes assuma a forma normativa. (Luhmann, 1983: 51)

A experimentação projetiva a que o autor se refere no trecho citado acima se refere às experiências que podemos utilizar apesar de terem sido vivenciados por um outro, ao tomarmos este outro como um "outro eu". Esta experimentação projetiva está na origem do problema da dupla contingência. A assimilação da dupla contingência em estruturas de assimilação, pode-se, segundo o autor, supor, pode se dar por uma forma normativa.

A forma normativa, a regra, como uma estrutura de assimilação tem determinadas vantagens sobre a forma simples de sintetizar experiências. Tais estruturas de assimilação, ou sínteses comportamentais, ou sínteses de experiências servem como uma espécie de simplificação do mundo, um instrumental que auxilia as tomadas de decisão e ações humanas no mundo. A forma normativa tem a vantagem de suportar os contra-exemplos imputando ao exemplo divergente, e não à fórmula simbólica, o erro.

Sínteses comportamentais anonimizadas evitam, normalmente, até mesmo a percepção do entrelaçamento de expectativas concretas. Elas funcionam como uma espécie de fórmula curta simbólica para a integração de expectativas concretas. A orientação a partir da regra dispensa a orientação a partir das expectativas. Ela absorve, além disso, o risco de erros da expectativa, ou pelo menos o reduz, isso porque, graças à regra, pode ser suposto que aquele que diverge age erradamente, que a discrepância se origina, portanto, não da expectativa (própria) errada, mas da ação (alheia) errada. Nessa medida a regra alivia a consciência no contexto da complexidade e da contingência. (Luhmann, 1983: 53)

Temos, em Luhmann, portanto, uma redução do "dever ser" ao "ser", já que o "dever ser" é tão somente uma forma simbólica da permanência da expectativa mesmo em face de um contra-exemplo. Entretanto, tal redução não impede que haja uma distinção entre as expectativas cognitivas e as expectativas normativas. Esta distinção, em Luhmann, entretanto, resume-se à sua função peculiar. As expectativas cognitivas são aquelas que estamos dispostos a deixar de lado em face de contra-exemplos, e as expectativas normativas são aquelas que não estamos dispostos a abandonar, ainda que diante de contra-exemplos.

Desta forma as expectativas cognitivas são caracterizadas por uma nem sempre consciente disposição de assimilação em termos de aprendizado, e as expectativas normativas, ao contrário, caracterizam-se pela determinação em não assimilar os desapontamentos. (Luhmann, 1983: 56)

Por certo que tais expectativas normativas não são imodificáveis. Sua não alteração em face de contra-exemplos não significa que elas não possam ser alteradas ou modificadas de qualquer forma. Segundo o autor, na medida em que é possível formar corretamente expectativas ou expectativas de expectativas, uma regra pode retornar ao nível de uma adequação concreta, sendo modificável pelo mútuo consentimento (Luhmann, 1983: 53). Esta possibilidade, no entanto, não está sempre aberta. Não é possível a todos ou a qualquer momento estabelecer tais acordos sobre expectativas ou expectativas de expectativas sobre bases concretas. É justamente a esta impossibilidade que Luhmann chama de "vigência" da norma.

A flexibilidade da estrutura normativa simples de pequenos sistemas sociais reside essencialmente nessa possibilidade de estabelecer concordâncias casuísticas e divergências em comum. A vigência de normas fundamenta-se na impossibilidade fática de realizar isso em todos os momentos e para todas as expectativas de todas as pessoas. Desta forma, a vigência de normas reside em última análise na complexidade e na contingência do campo da experimentação, onde as reduções exercem sua função. (Luhmann, 1983: 53)

Quando tomamos, portanto, uma regra por válida, podemos entender que não é possível, em uma dada ocasião, alterá-la por mútuo consentimento, ainda que as circunstâncias concretas contrariem a regra.

4.3.4.Expectativas normativas e cognitivas

As estruturas de assimilação não são criações fortuitas, casualmente geradas pelos indivíduos. Para Luhmann elas respondem a necessidades psíquicas do indivíduo. A construção de tais expectativas possibilita a ação do indivíduo em face de um mundo complexo e contingente.

A estrutura de seleção continua sendo seletiva, mesmo quando ela não é realizada conscientemente, quando é simplesmente vivenciada. Existem outras possibilidades, e elas se apresentam ao ocorrerem desapontamentos de expectativas. É nessa possibilidade do desapontamento e não na regularidade da satisfação que se evidencia a referência de uma expectativa à realidade. As estruturas sedimentam, como expectáveis, um recorte mais delimitado das possibilidades. Dessa forma elas são enganosas com respeito à real complexidade do mundo, permanecendo, em decorrência, expostas aos desapontamentos. Assim elas transformam a sobrecarga permanente da complexidade no problema da experimentação eventual do desapontamento, contra o qual pode ser feito algo concreto. Do ângulo do sistema psíquico, portanto, podemos também dizer: elas regulam o medo. (Luhmann, 1983: 55)

A estrutura de seleção cumpre assim um importante papel na vida psíquica. É com relação a esta função que cumpre que ela deve ser interpretada. Assim, o desenvolvimento e racionalização das estruturas devem ser vistos desde a perspectiva da função que ela desempenha. A racionalização de estruturas de assimilação envolve a busca pela mais adequada relação entre a estabilização de expectativas e um nível aceitável de frustração. Uma estrutura não se presta à função que deveria atender se é sempre e em todo momento frustrada.

Assim, afirma o autor:

A racionalização de estruturas, portanto, envolve a dosagem da relação entre uma complexidade sustentável e uma carga suportável de desapontamentos. A estabilização de estruturas contém não apenas o esboço coerente do seu perfil – o reconhecimento de leis naturais ou o estabelecimento de normas – mas também a disponibilidade de mecanismos para o encaminhamento de desapontamentos – tal como um serviço de manutenção e reparos da estrutura. (Luhmann, 1983: 55).

Este "serviço de manutenção" da estrutura, no caso das estruturas normativas, seria um procedimento por meio do qual novas normas podem ser criadas, ou seja, por meio do qual se alteram as expectativas sobre expectativas que assumem um formato simbólico normativo. Este serviço de manutenção é necessário na medida em que a estrutura se torna inoperante ou irrelevante quando passa a ser constantemente confrontada com contra-exemplos. Isto vale mesmo para a estrutura normativa, que é dotada de uma maior imunização neste sentido.

Estas estruturas, das quais vimos tratando, podem assumir formas diferentes. Há estruturas que, em face de contra-exemplos, admite-se sua substituição. Assim, as crenças relativas à resistência de um determinado material podem soçobrar diante da constatação de que os objetos feitos a partir daquele material têm uma resistência e durabilidade muito inferior, quebrando-se com muita facilidade. Entretanto, há estruturas das quais não se abre mão em face das diferenças que apresentam com a realidade. As crenças que sustentam que o hábito de praticar exercícios regularmente levam a uma vida mais saudável não são abaladas por casos em que indivíduos que praticam tais exercícios desenvolvem patologias vinculadas justamente aos exercícios. Assim também a expectativa de que os vizinhos não estacionarão seus carros diante dos portões alheios não são abandonadas quando os vizinhos agem assim.

Mesmo quando os desapontamentos se tornam visíveis e têm que ser inseridos na visão de realidade como objeto da experimentação, ainda existe a alternativa de modificação da expectativa desapontada, adaptando-a à realidade decepcionante, ou então sustentar a expectativa, e seguir a vida protestando contra a realidade decepcionante. Dependendo de qual dessas orientações predomina, podemos falar de expectativas cognitivas ou normativas. (Luhmann, 1983: 56)

Temos aqui uma distinção entre cognitivo e normativo muito pouco usual. Segundo o próprio autor, tal diferenciação diverge da tradicional distinção em termos semânticos. A distinção que Luhmann faz entre expectativas cognitivas e normativas é uma distinção em termos funcionais. Afirma o autor:

Nessa acepção (inconvencional), a diferenciação entre o cognitivo e o normativo não é definida em termos semânticos ou pragmáticos, nem referenciada aos sistemas afirmativos que as fundamentam ou à contradição entre afirmações informativas e diretivas – mas sim em termos funcionais, tendo em vista a solução de um determinado problema. (Luhmann, 1983: 56)

A distinção que se estabelece aqui, claramente divergente daquela que Kelsen adota, não é uma distinção lógica, nem implica qualquer abismo lógico entre ser e dever ser. Trata-se de uma distinção entre as funções a que se prestam as expectativas normativas e cognitivas.

Ao nível cognitivo são experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso de desapontamentos, são adaptadas à realidade. Nas expectativas normativas ocorre o contrário: elas não são abandonadas se alguém as transgride. (Luhmann, 1986: 56)

Por certo que em muitas ocasiões, senão todas, confundem-se as expectativas normativas e cognitivas. Segundo o autor, no caso em que é esperada uma secretária nova, por exemplo, pode-se esperar cognitivamente que ela tenha uma boa aparência física, seja loira e tenha uma voz doce; ao mesmo tempo, pode se esperar normativamente que tenha uma determinada capacidade de trabalho, saiba digitar rapidamente, redigir textos com uma margem pequena de erros de ortografia ou concordância e tenha um bom desempenho no atendimento ao público.

Pode-se considerar esta como a principal tese do pensamento de Luhmann. Por certo que o autor desenvolve seu pensamento com o objetivo de esclarecer a positividade do direito em termos de relações funcionais. Entretanto, aquilo que em sua obra é mais ousado e original, a meu ver, é a redução do normativo ao factual por meio de necessidades psíquicas de indivíduos. Interessante notar que o indivíduo não tem grande participação na construção luhmaniana. Caso tivéssemos de enquadrar Luhmann em um esquema de individualismo ou holismo metodológico, seria mais razoável classificá-lo como holista. Entretanto, seu sistema é ancorado em características dos indivíduos particulares. Todo o sistema jurídico é redutível à necessidade existencial do indivíduo por limitação da complexidade e contingência do mundo que experimenta.

Temos como decorrência desta perspectiva um conceito de norma muito diverso daquele utilizado pelos juristas.

Sendo assim, as normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos. Seu sentido implica na incondicionabilidade de sua vigência na medida em que a vigência é experimentada, e portanto, também institucionalizada, independentemente da satisfação fática ou não da norma. O símbolo do "dever ser" expressa principalmente a expectativa dessa vigência contrafática, sem colocar em discussão essa própria qualidade – aí estão o sentido e a função do "dever ser". (Luhmann, 1983: 57)

Norma, segundo o autor, portanto, é expectativa estabilizada em termos contrafactuais. A norma não representa qualquer ruptura com a descrição factual. O "dever ser" é um símbolo que expressa uma realidade de ser. Trata-se de uma espécie de resumo da afirmativa segundo a qual algo é esperado e há uma disposição em continuar esperando aquilo mesmo no caso da frustração desta expectativa. Uma norma segundo a qual os homens de uma dada sociedade devem tomar por esposas apenas as filhas de irmãos de suas mães significa tão somente que existe uma expectativa de que os homens tomem por esposas apenas filhas de irmãos de suas mães, e que tal expectativa não está aberta a reformulação diante de uma decepção. No caso de uma decepção, a expectativa permanece "correta", enquanto que o comportamento decepcionante é que está "errado".

Luhmann não reluta em afirmar a indistinção entre o factual e o normativo. A bem conhecida asserção de que há um abismo lógico entre fato e valor deve, segundo Luhmann, ser abandonada.

Se bem que orientado em termos contrafáticos, o sentido do dever ser não é menos fático que o de ser. Toda expectativa é fática, seja na sua satisfação ou no seu desapontamento o fático abrange o normativo. A contraposição convencional do fático ao normativo deve, portanto, ser abandonada. Ela é uma construção conceitual errônea, como no caso de se querer contrapor ser humano e mulheres; uma manobra conceitual que nesse caso é prejudicial às mulheres, e naquele ao dever ser. O oposto adequado ao normativo não é o fático, mas sim o cognitivo. Só é possível optar-se coerentemente entre essas duas orientações com respeito ao tratamento de desapontamentos, e não entre o fático e o normativo. (Luhmann, 1983: 57)

O factual não se contrapõe ao normativo. O cognitivo sim, se contrapõe ao normativo. Mas tal contraposição se dá tão somente em termos funcionais. O cognitivo é uma forma determinada de assimilação de experiências. O normativo é uma outra forma de assimilação de experiências. A distinção entre ambos é tão somente a disposição existente em um caso e não no outro de abandonar-se a expectativa criada em função da decepção que a realidade oferece.

Mesmo o cognitivo e o normativo não se diferenciam essencialmente. No limite há uma unidade entre essas duas formas. A diferenciação rígida que podemos hoje encontrar é uma distinção historicamente construída e que não corresponde a qualquer diferenciação fundamental. Há situações em que as expectativas não podem ser claramente classificadas como cognitivas ou normativas. Destas situações o autor fornece diversos exemplos:

No nosso ambiente cultural, por exemplo, existe uma regra altamente auto-evidente de que não se deve cochilar na presença de outras pessoas, mas sim apresentar-se sempre ocupado, a não ser que determinadas situações o permitam (viagem de trem!). Em outras palavras, sempre tem que haver um tema, ou pelo menos dar-se a impressão disso. Apesar disso transgressões eventuais dessa regra não a trazem à consciência, mas apenas fazem com que o cochilo em público pareça um comportamento estranho, anômalo, inoportuno. A regra não é normatizada. Também não existe uma norma pela qual se tenha de manter o fluxo de uma conversação, que responder coerentemente – e não, por exemplo, respondendo a uma pergunta sobre as horas com a constatação de que "está chovendo". Transgressões desse tipo seriam registradas como esquisitices, mal-entendidos, como piadas e, no caso de repetições, como incapacidade. Elas não provocam normatizações, mas sim normalizações: a perturbação é descartada através de sua "explicação", ou então ela é tornada expectável. Nos casos de repetidas transgressões graves, opta-se tipicamente pela saída da declaração do ator desapontador como doente mental, excluindo-o assim da comunidade dos sujeitos humanos, suas experimentações, suas expectativas e suas visões de mundo. Isso demonstra que transgressões às expectativas nessa esfera freqüentemente são tratadas como transgressões à verdade, como incapacidade para reconhecer o mundo – um sintoma nítido de que não se diferencia os estilos cognitivo e normativo das expectativas. (Luhmann, 1983: 59-60)

Estes exemplos revelam, segundo o autor, situações em que não se tem claramente uma dicotomia entre expectativas cognitivas e expectativas normativas. Desta forma, não só o normativo e o factual não se distinguem de maneira essencial, sendo o normativo parte do factual, mas também as diferentes formas de expectativas que correspondem em parte à dicotomia usualmente defendida não são exatamente dicotômicas. As expectativas cognitivas e as expectativas normativas não podem ser distinguidas por uma linha divisória clara. Além disso, mesmo a distinção que se pode estabelecer não tem uma característica semântica, mas tão somente funcional.

A abordagem clássica do problema da diferenciação entre ser e dever ser, que incluiria a abordagem kelseniana, não apenas equivoca-se quando estabelece entre ambos um abismo lógico, mas também incorre em um simplismo na análise das normas. O dever ser é tido como um conceito fundamental, com um significado de certa forma auto-evidente, que não necessita ser analisado mais profundamente. A questão quanto ao fundamento de validade das normas, por exemplo, é, para Luhmann, tratada pela abordagem clássica de forma excessivamente simples.

As considerações até aqui desenvolvidas já revelam um campo bastante complexo de premissas da formação do direito, que evidenciam o caráter relativamente simples da concepção dogmática que fundamenta a vigência de normas através de normas superiores. No lugar de uma tal fundamentação por meio de uma hierarquia de fontes do direito vemo-nos diante da fundamentação através de processos reflexivos da expectativa de expectativas, que permitem uma diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas podendo, assim, por meio de diferentes constelações, fazer jus a exigências as mais diferenciadas. (Luhmann, 1983: 66)

Normas não vigem por sua referência a outras normas, mas em função da diferenciação de expectativas cognitivas e normativas. A vigência é a impossibilidade de alteração das expectativas em qualquer momento, não uma adequação a normas superiores. A abordagem sistêmica permite uma análise mais profunda que a abordagem tradicional. Tratar o dever ser como um conceito básico impede que se coloquem os problemas que estão além da mera relação entre normas, problemas de expectativas, de adequação de expectativas, de imunização de expectativas, entre outros. Temos, portanto, uma redução da vigência das normas a algo factual, o que é francamente contrário ao pensamento kelseniano, que denomina de "vigência", ou "validade" de uma norma justamente o seu caráter devido, entendido em um sentido lógico, não funcional.

4.3.5.O conceito de Direito

Daquilo que já foi exposto depreende-se que o direito pode ser descrito e explicado a partir de um ponto de vista sociológico, quer dizer, a partir de um estudo voltado para as inter-relações entre os seres humanos, e não apenas de um estudo voltado exclusivamente para normas, como costumam ser os estudos jurídicos. Será estudado agora o conceito de direito, tal como formulado por Luhmann.

O direito, na visão luhmaniana, é uma generalização congruente de expectativas comportamentais. Isto porque ele consiste em expressões de expectativas generalizadas de uma forma a não serem, em larga medida, conflitantes entre si. Tratam-se, também, de expectativas não muito concretas, de modo a evitar um intenso e constante conflito com a realidade. Tais expectativas, ainda, não se chocam constantemente com as expectativas cognitivas, ou ao menos são generalizadas de modo a serem o mais congruentes também com tais expectativas cognitivas.

As expectativas comportamentais generalizadas congruentemente, nesse sentido acima descrito, identificaremos como o direito de um sistema social. O direito produz congruência seletiva e constitui, assim, uma estrutura dos sistemas sociais. (Luhmann, 1983: 115)

Esta percepção do direito o identifica de um modo diverso daquele tradicional. Em geral, o direito é definido como um conjunto de normas que recebem sanção estatal ou estão de alguma forma ligadas ao estado, seja tão somente aos órgãos estatais aplicadores de direito, tribunais, seja por terem sido elaboradas e promulgadas por órgãos legisladores. Em geral, portanto, o direito é visto como um sistema de normas que têm caráter coercitivo. Por certo que inúmeros autores incorporam em suas definições de direito critérios de justiça ou outros critérios distintos sem, no entanto, deixar de tomar também como direito aquele conjunto de normas que emanam ou recebem sanção do estado e que têm caráter coercitivo.

A definição que Luhmann dá do direito deixa estes aspectos para um segundo plano. São, por certo, características descritivas do direito moderno e que podem ser, em alguma medida, encontradas em diversos outros sistemas jurídicos distintos daquele do Ocidente Moderno. Entretanto, não é com base em tais características que Luhmann define o direito. O direito é, antes, uma generalização congruente de expectativas. Ele é definido por sua função, não por determinadas características descritivas.

Definido nesses termos, o direito é concebido funcional e seletivamente – ou seja não através da constância de uma dada qualidade original do "dever ser", nem através de um determinado mecanismo fático, por exemplo a "sanção estatal". Esses elementos convencionais da definição do direito não são, com isso, excluídos ou tornados irrelevantes, mas são referidos como características que determinem a natureza do direito. O direito não é primariamente um ordenamento coativo, mas sim um alívio para as expectativas. (Luhmann, 1983: 115)

O direito não deve ser definido em termos de determinadas características que costumam estar presentes em sistemas jurídicos, mas em termos da função que desempenha no sistema social. O direito, enquanto generalização congruente de expectativas, cumpre um papel primordial no desenvolvimento social. Apenas na medida em que a generalização que o direito realiza seleciona, eliminando possibilidades incongruentes, pode a sociedade se desenvolver em termos mais complexos. Estão dadas, com o direito, determinadas condições de experiência, ou melhor, estão dadas certas expectativas que garantem a congruência de diversos outros sistemas de expectativas.

Apenas após assegurar-se a congruência das expectativas através do direito do sistema social é que podem se desenvolver formas mais elevadas da generalização específica a cada dimensão, assim como congruências ao plano reflexivo das expectativas sobre expectativas. Nesse sentido o direito é uma das bases imprescindíveis da evolução social. (Luhmann, 1983: 115)

Assim, o direito é um elemento fundamental da evolução social porque permite a diferenciação de diversos sistemas sociais de uma forma congruente. O direito, enquanto generalização congruente de expectativas, garante uma base a partir da qual sistemas de expectativas mais específicos ou complexos podem se desenvolver. O próprio direito, porém, apenas pode surgir após um certo estágio da evolução social.

Por outro lado, torna-se igualmente nítido que o direito, com essas características específicas, é uma conquista da evolução, a qual se constitui em dependência da estrutura social em seu caminho em direção à diferenciação de expectativas especificamente jurídicas. Visto do ângulo da função da generalização congruente, o direito existe em qualquer sociedade; mas o grau de diferenciação estrutural do direito modifica-se ao longo do desenvolvimento social, e isso na medida em que a complexidade da sociedade aumenta e melhor se caracteriza a necessidade de expectativas comportamentais normativas, congruentemente generalizadas. O direito não pode ser apropriadamente entendido apenas sob o aspecto de ordem e proibição, repressão de tendências naturais ou coação exterior; nessa ótica não seria possível compreender o amplo campo das formas jurídicas disponíveis. O direito serve principalmente à possibilitação de uma ação mais complicada, mais rica em condicionantes, e ele realiza isso através da generalização congruente entre as premissas contingenciais de tal ação. (Luhmann, 1983: 119)

A construção de um sistema de generalização congruente de expectativas, do direito, é, assim, uma etapa que se torna necessária em um processo de complexificação do sistema social. É necessária porque a maior complexificação do sistema social apenas é possível sobre as bases de um conjunto de expectativas que permitem a congruência dos mais diversos campos da experiência humana.

A definição do direito a partir da função que desempenha no sistema social, em termos de generalização congruente de expectativas diverge da definição tradicional do direito como um complexo de normas cogentes. O pensamento kelseniano trata o direito como um sistema de normas que não pode ser confundido com o comportamento dos indivíduos que se orientam por tal sistema de uma forma ou de outra. As duas definições são de tal forma diversas que Kelsen poderia indagar por que razão tal sociologia ainda chama de "direito" aquilo que estuda, se este termo tradicionalmente é empregado para denotar algo essencialmente diverso. Esta crítica foi explicitada pelo autor com relação ao termo "Estado", tal como definido por certos sociólogos. [06]

A função do direito é a generalização congruente de expectativas, e é com base em tal função que o direito pode ser adequadamente definido. Toda a construção elaborada pelo autor desemboca em uma análise da evolução do direito rumo à positividade, a forma do direito mais bem adaptada para a generalização congruente em sistemas altamente complexos. A positividade do direito permite a alteração regular da ordem e a estruturação clara dos sistemas sociais. Esta análise da evolução do direito não é essencial para a análise que se pretende elaborar neste trabalho, apesar de ser elemento essencial do pensamento do autor sobre o direito.

Resumamos, portanto, as principais teses do pensamento de Luhmann sobre o direito. Em primeiro lugar cumpre esclarecer que a noção de "dever ser" não deve, segundo o autor, ser tratada como um conceito básico e fundamental. A análise dessa noção em termos funcionais leva a uma redução do normativo ao factual, restando a clássica dicotomia sendo tão somente uma distinção relativa, e não absoluta, entre o cognitivo e o normativo. Em segundo lugar, o direito enquanto um sistema social responde a necessidades que são, em primeiro lugar, necessidades existenciais dos indivíduos por uma regulação, uma limitação da contingência da experiência. Em terceiro lugar, também o direito deve ser definido por sua função, antes que por determinadas características. O direito responde à função de estruturação da sociedade limitando a contingência e oferecendo as possibilidades de maiores desenvolvimentos dos sistemas sociais no sentido de uma maior complexidade.

4.4.Max Weber

Segundo Kelsen, Weber foi o autor da tentativa de elaboração de uma sociologia do direito mais bem sucedida até então. A sociologia weberiana, de orientação metodológico individualista, não substancializa corpos coletivos e está atenta à distinção entre ser e dever ser, escapando com isto de importantes censuras que Kelsen dirige a outros sociólogos do direito.

A sociologia do direito weberiana será apresentada aqui de forma bastante sucinta, dado que já é bastante conhecida. A exposição se destina a deixar claro com quais idéias se pretende lidar. Importante notar também que como as críticas kelsenianas, que são o objeto do presente estudo, não se dirigem às teses mais históricas dos autores estudados, não será abordado o processo de racionalização do direito em Weber, assim como não foi suficientemente apresentada a discussão de Luhmann sobre a positivação do Direito. Trataremos antes da parte mais teórica da sociologia do direito weberiana.

4.4.1.Uma sociologia compreensiva

A noção que Weber tem de sociologia é bem diversa daquelas dos demais autores apresentados aqui. A sociologia weberiana não encontra seu objeto de estudo em um fato social sui generis, ou em sistemas sociais dotados de qualquer autonomia. O objeto de estudo da sociologia weberiana são as ações de seres humanos individuas, na medida em que possam ser consideradas ações sociais. A sociologia weberiana também é marcada por rejeitar expressamente a intenção de elaboração de um corpo teórico inspirado no modelo de ciências naturais. Enfim, o termo "sociologia" não tem em Weber o sentido de uma ciência do social semelhante às demais ciências, mas sim o de um conhecimento peculiar por seu caráter compreensivo.

§1. Concepto de la sociología y del "significado" en la acción social. Debe entenderse por sociología (en el sentido aquí aceptado de esta palabra, empleada con tan diversos significados): una ciencia que pretende entender, interpretándola, la acción social para de esa manera explicarla causalmente en su desarrollo y efectos. Por "acción" debe entenderse una conducta humana (bien consista en un hacer externo o interno, ya en un omitir o permitir) siempre que el sujeto o los sujetos de la acción enlacen a ella un sentido subjetivo. La "acción social", por tanto, es una acción en donde el sentido mentado por su sujeto o sujetos está referido a la conducta de otros, orientándose por ésta en su desarrollo. (Weber, 1997:5)

A sociologia, desta forma, não se dedica a formular explicações causal-nomológicas de fatos sociais, mas sim a interpretar ações em seu desenvolvimento e conseqüências. Temos, portanto, um conhecimento histórico acerca de ações de indivíduos e do sentido que se atribui a tais ações. Por "interpretação" deve-se entender o estabelecimento de "conexões de sentido" que levam à uma dada ação. Assim, compreende-se o comportamento de um jogador de futebol que se abaixa e faz o sinal da cruz ao entrar em campo quando se leva em conta o significado daquele sinal, seja ele o de uma invocação a Deus para que venha em seu auxílio ou o de um gesto mágico capaz de protegê-lo de incidentes e lhe aumentar as habilidades. A sociologia, portanto, em Weber, estabelece este tipo de conexão de sentido, ou seja, encontra o sentido que determina, usando esta palavra aqui em um sentido bastante amplo, o curso de uma ação individual.

Uma ação não é qualquer comportamento de um ser humano. Chama-se ação apenas àquele comportamento ao qual é vinculado um sentido. Ao sentido efetivamente atribuído pelos indivíduos a suas ações se chama "sentido subjetivo".

Nem toda ação é uma ação social. Chamamos de ação social àquela ação cujo sentido subjetivo está orientado para a conduta de outros indivíduos.

O objeto de estudo da sociologia compreensiva é a ação social. A ação social é sempre ação de indivíduos. Apesar de que as ações são reciprocamente orientadas, não existe um corpo supra-individual que possa ser substancializado e tomado como objeto de estudo. O que pode ser estudado é a ação individual, socialmente orientada.

9. "Acción" como orientación significativamente comprensible de la propia conducta, sólo existe para nosotros como conducta de una o varias personas individuales.(…)

Para otros fines de conocimiento (p. ej., jurídicos) o por finalidades prácticas puede ser conveniente y hasta sencillamente inevitable tratar a determinadas formaciones sociales (estado, cooperativas, compañía anónima, fundación) como si fueran individuos (por ejemplo, como sujetos de derechos y deberes, o de determinadas acciones de alcance jurídico). Para la interpretación comprensiva de la sociología, por el contrario, esas formaciones no son otra cosa que desarrollos y entrelazamientos de acciones específicas de personas individuales, ya que tan sólo éstas pueden ser sujetos de una acción orientada por su sentido. (Weber, 1997: 12)

Para a sociologia compreensiva, portanto, toda ação significativamente compreensível é ação de indivíduos. Ainda quando imputamos determinadas decisões a estados, determinadas ações a empresas ou determinadas crenças a famílias, sempre tais decisões, ações e crenças são de indivíduos, não de quaisquer corpos coletivos. A admissibilidade da descrição que se vale de corpos coletivos tem razões práticas e não impede que se tenha claro que apenas indivíduos estão agindo.

Weber é bastante claro quando afirma que para a sociologia compreensiva tais corpos coletivos não são nada senão "entrelazamientos de acciones específicas de personas individuales". Dentre os exemplos mencionados pelo autor figuram aqueles corpos coletivos que mais freqüentemente são personificados e tomados como dotados de uma existência própria, independente de alguma forma da existência individual, ao menos no sentido de uma autonomia de vontade e de ação, capaz, inclusive, de se impor aos indivíduos. Dentre estes exemplos o mais significativo é o estado.

Este autor desenvolve uma tipologia das ações individuais, que, para uma sociologia tome toda ação como ação individual, constitui um importante elemento na construção de quaisquer considerações futuras

§2. La acción, como toda acción, puede ser: 1) racional con arreglo a fines: determinada por expectativas en el comportamiento tanto de objetos del mundo exterior como de otros hombres, y utilizando esas expectativas como "condiciones" o "medios" para el logro de fines propios racionalmente sopesados y perseguidos 2) racional con arreglo a valores: determinada por la creencia consciente en el valor – ético, estético, religioso o de cualquiera otra forma como se le interprete – propio y absoluto de una determinada conducta, sin relación alguna con el resultado, o sea puramente en méritos de ese valor. 3) afectiva, especialmente emotiva, determinada por afectos y estados sentimentales actuales, y 4) tradicional: determinada por una costumbre arraigada. (Weber, 1997: 20)

Esta tipologia aparentemente exaustiva das formas de ação individual interessa à sociologia na medida em que a vida social se constitui no entrelaçamento de ações individuais. Existe, em larga medida, uma correspondência entre as formas de ação e as formas de dominação. A dominação carismática é afeita à ação afetiva, a dominação tradicional à ação tradicional, a dominação racional legal à ação racional com relação a fins. Da mesma forma o direito natural é apresentado de forma a corresponder à ação racional com relação a valores e o direito moderno à ação racional com relação a fins.

Importa-nos aqui compreender como se dá a passagem da ação à instituição, ao corpo coletivo. Para que possamos chegar à definição weberiana de direito precisamos realizar esta passagem. O direito apenas pode ser tido como objeto da sociologia compreensiva na medida em que possa ser reduzido a ações individuais dotadas de sentido, ou seja, se o direito for redutível à ação social.

4.4.2.Da ação individual ao corpo coletivo

Chamo aqui de ação individual toda e qualquer ação de indivíduos, orientada ou não a outros indivíduos. Por corpo coletivo entendo qualquer forma de organização, associação, instituição ou qualquer corpo que abranja as ações de mais de um indivíduo. Procuraremos identificar como a sociologia compreensiva, que admite como seu objeto de estudo ações individuais (sociais porque orientadas a outros, mas ainda ações de indivíduos), pode alcançar a análise e descrição de corpos coletivos que em muito ultrapassam a ação individual.

Em resumo, esta passagem se dá da seguinte forma. O comportamento humano individual, quando dotado de sentido é uma ação. Esta, quando tem seu sentido orientado à conduta de outros é uma ação social. Pode haver ações sociais cujo sentido seja reciprocamente orientado, caso no qual falamos de uma relação social. A relação social pode se repetir no tempo com uma dada freqüência, caso em que falamos de uma relação social permanente. Em larga medida podemos distinguir as relações sociais permanentes em costume e ordem social. O costume seria aquela relação social que não tem por base a representação de qualquer legitimidade, enquanto que a ordem tem por base a representação de uma ordem (enquanto conteúdo de sentido) legítima. O direito é uma ordem social neste sentido, caracterizada pela possibilidade de coação física.

Temos acima a passagem da ação individual ao direito. Como o direito é, desta forma, redutível a um determinado conjunto de ações humanas individuais, ele é objeto de estudo da sociologia.

Apreciemos mais detidamente esta transição, que considero o aspecto mais importante, para as preocupações deste trabalho, da obra weberiana.

Dado que a ação social é o objeto de estudo da sociologia compreensiva, que ela é definida como um comportamento humano dotado de sentido subjetivo, para tomarmos a relação social também como constituindo objeto de tal conhecimento, cumpre reduzir esta última à ação social.

Por "relación" social debe entenderse una conducta plural – de varios – que, por el sentido que encierra, se presenta como recíprocamente referida, orientándose por esa reciprocidad. La relación social consiste, pues, plena y exclusivamente, en la probabilidad de que se actuará socialmente en una forma (con sentido) indicable; siendo indiferente, por ahora, aquello en que la probabilidad descansa. (Weber, 1997: 21)

A relação social é constituída por uma "conducta plural", ou melhor, por várias condutas individuais. Tais condutas individuais são reciprocamente orientadas. Por reciprocamente orientadas deve-se entender que tais condutas individuais têm sentidos subjetivos que se referem reciprocamente. Tratam-se, portanto, de ações sociais com sentidos reciprocamente orientados. Poderíamos perguntar se esta referência recíproca gera alguma realidade nova, distinta daquela das ações propriamente individuais. Responde-se essa pergunta pela negativa. A segunda frase desta transcrição é bastante clara a este respeito, demonstrando que Weber, mesmo construindo a idéia de relação social, ainda tem a preocupação de deixar claro que aquilo que é diretamente perceptível, e que constitui seu objeto de estudo é a ação individual.

A relação social existe, para este autor, tão somente na medida em que exista a probabilidade de que haverá ações sociais recíprocas. A relação social não consiste em alguma força supra-individual que provoca de uma ou outra forma as ações sociais que a constituem, ou mesmo que provoca sua reprodução. Relações sociais não são nada além de ações sociais. São ações sociais qualificadas pela orientação recíproca, mas ainda são ações sociais. A existência de uma relação social é, portanto, a probabilidade da ocorrência de determinadas ações sociais.

Esta consideração acerca da probabilidade de ocorrência é mais relevante quando se trata de alguma relação social permanente. Uma relação social pode ser permanente ou transitória e, neste segundo caso, é difícil tratá-la como uma probabilidade de ocorrência, mas tão somente como a efetiva ocorrência de ações sociais recíprocas por seu sentido. Vejamos como o autor trabalha a distinção entre relações sociais permanentes e relações sociais transitórias.

4. Una relación social puede tener un carácter enteramente transitorio o bien implicar permanencia, es decir, que exista en este caso la probabilidad de la repetición continuada de una conducta con el sentido de que se trate (es decir, la tenida como tal y, en consecuencia, esperada). La existencia de relaciones sociales consiste tan sólo en la presencia de esta "chance" – la mayor o menor probabilidad de que tenga lugar una acción de un sentido determinado y nada más –, lo que debe tenerse siempre en cuenta para evitar ideas falsas. Que una "amistad" o un "estado" existiera o exista, significa pura y exclusivamente: nosotros (observadores) juzgamos que existió o existe una probabilidad de que, sobre la base de una cierta actitud de hombres determinados, se actúe de cierta manera con arreglo a un sentido determinado en su término medio, y nada más que esto cabe decir (cf. n 2. a E). La alternativa inevitable en la consideración jurídica de que un determinado precepto jurídico tenga o no validez (en sentido jurídico), de que se dé o no una determinada relación jurídica, no rige en la consideración. (Weber, 1997: 22)

Uma relação social é permanente quando existe a probabilidade de repetição continuada de uma pluralidade de condutas com sentidos reciprocamente orientadas. É importante notar aquilo que Weber apresenta com uma clareza mais que suficiente. Quando afirmamos que existe um estado ou uma amizade, estamos afirmando tão somente que percebemos a existência de uma dada probabilidade de que determinados homens agirão de uma determinada maneira, com relação a um sentido reciprocamente orientado. Assim, se afirmo que entre Maria e Antônia existe uma relação amistosa, refiro-me à probabilidade de que estes dois indivíduos se comportarão orientados por um determinado sentido, que inclui um respeito, um carinho, um querer bem. Quando afirmo que existe um estado brasileiro, estou me referindo à probabilidade de que determinados indivíduos se comportem uns perante os outros com relação a um determinado sentido que envolve a aceitação de uma dominação legítima por parte de certos indivíduos e seu quadro de funcionários.

Uma relação social transitória é uma relação social que não se repete continuadamente ao longo do tempo. As relações que alguém trava com um transeunte que juntamente com ele contemplou um fenômeno estranho, digamos, um acidente automobilístico ou um luar excepcionalmente belo, que podem consistir meramente na troca de impressões, constituem relações sociais transitórias. Este caso, no entanto, nos interessa aqui muito pouco.

As ações sociais que constituem relações sociais permanentes podem ter por sentido subjetivo a representação de uma ordem legítima. Com base na existência ou não deste tipo de representação, classificamos as ordens sociais em costume ou ordem. A regularidade que determina o costume é dada tão somente por uma regularidade de fato. Os sentidos das ações sociais, neste caso, são homogêneos, mas não fazem referência a uma ordem cuja legitimidade seja aceita. Podemos classificar, como faz o autor, os diversos tipos de costume, mas tal não seria conveniente aqui. Por outro lado, quando existe a referência a uma ordem legítima, chamamos a relação social permanente de "ordem". Podemos classificar as ordens em:

Un orden debe llamarse:

a) Convención: cuando su validez está garantizada externamente por la probabilidad de que, dentro de un determinado círculo de hombres, una conducta discordante habrá de tropezar con una (relativa) reprobación general y prácticamente sensible.

b) Derecho: cuando está garantizado externamente por la probabilidad de la coacción (física o psíquica) ejercida por un cuadro de individuos instituidos con la misión de obligar a la observancia de ese orden o de castigar su trasgresión. (Weber, 1997: 27).

Uma ordem social, portanto, pode ser uma convenção ou um direito. Ela será direito quando houver a probabilidade de coação exercida por um quadro de funcionários para isto instituído. Ela será uma convenção quando houver uma reprovação generalizada e sensível, mas não exercida por um grupo de indivíduos para isto investidos. As regras de etiqueta constituem assim conteúdo de sentido de uma convenção. Se ao sentar-se à mesa para o jantar algum indivíduo levar constantemente a faca à boca, lidando com ela como um garfo, ou se falar constantemente com a boca cheia, ou mesmo se falar de determinados assuntos capazes de provocar náuseas em seus comensais, estará sujeito, provavelmente, a uma reprovação generalizada. Por outro lado, se um indivíduo formula artifícios para deixar de pagar certos impostos, estará sujeito à coação exercida por um quadro de funcionários, ainda que não haja a reprovação que costuma haver no caso de uma convenção.

Dizemos que uma ordem legítima, uma convenção ou um direito, é válida quando há uma dada probabilidade de que o comportamento dos indivíduos seja conforme àquela ordem efetivamente representada subjetivamente.

§5. La acción, en especial la social y también singularmente la relación social, pueden orientarse, por el lado de sus partícipes, en la representación de la existencia de un orden legítimo. La probabilidad de que esto ocurra de hecho se llama "validez" del orden en cuestión. (Weber, 1997: 25)

A validade aqui tem um sentido muito diferente daquele que tem para os juristas, e, em especial, daquele que é utilizado neste mesmo trabalho quando lidando com a obra de Hans Kelsen. Validade, aqui, se remete à probabilidade de efetivação da ordem tida por legítima por determinados indivíduos. Este conceito de validade é mais próximo do conceito kelseniano de eficácia do que de seu conceito de validade. Entretanto, isto não nos deve levar a pensar que é válido tudo aquilo que é efetivo.

1. "Validez" de un orden significa para nosotros algo más que una regularidad en el desarrollo de la acción social simplemente determinada por la costumbre o por una situación de intereses. (Weber, 1997: 25)

Para Weber, portanto, a validade não consiste apenas na regularidade do comportamento. Isto porque apenas ordens podem ser válidas, não costumes. A validade supõe a eficácia de uma ordem considerada legítima por aqueles que a ela se submetem. Validade, portanto, remete à efetiva ocorrência daquele comportamento que os atores em questão consideram legítimo que ocorra.

Interessante notar que a palavra "ordem" é utilizada por Weber tanto para representar um tipo específico de relação social permanente, como para representar o conteúdo de sentido a que as ações sociais deste tipo específico de relação social se referem. Uma ordem, portanto, é tanto a relação social permanente que faz referência a um sentido considerado legítimo, como este próprio sentido considerado legítimo.

2. Al "contenido de sentido" de una relación social le llamamos: a) "orden" cuando la acción se orienta (por término medio o aproximadamente) por "máximas" que pueden ser señaladas. Y sólo hablaremos, b) de una "validez" de este orden cuando la orientación de hecho por aquellas máximas tiene lugar porque en algún grado significativo (es decir, en un grado que pese prácticamente) aparecen válidas para la acción, es decir, como obligatorias o como modelos de conducta. (Weber, 1997: 25)

Assim, temos que uma ordem, uma convenção ou um direito, é dotado de máximas identificáveis, e que a validade desta convenção ou deste direito é dada pela efetiva ocorrência do comportamento conforme a tais máximas, quando este se dá em função delas.

Passamos, portanto, da ação individual ao direito sem qualquer solução de continuidade. A ação com sentido é uma ação social. Duas ações sociais com sentidos reciprocamente orientados constituem uma relação social que, se for permanente e fizer referência a uma ordem considerada legítima, constitui uma ordem social. Esta pode ser direito ou convenção. As características próprias da ordem jurídica, do direito são as que seguem:

Para nosotros el "derecho" es un "orden" con ciertas garantías específicas respecto a la probabilidad de su validez empírica. Y se ha de entender por "derecho objetivo garantizado" el caso en que las garantías consistan en la existencia de un "aparato coactivo" según el sentido que ya definimos; es decir, que se compone de una o muchas personas dispuestas de modo permanente a imponer el orden por medio de medidas coactivas, especialmente previstas para ello (coacción jurídica). (Weber, 1997: 252)

Tais traços marcantes, o recurso à coação física ou psíquica, levada a cabo por um "aparelho coativo" distinguem o direito da convenção. Desta forma, uma sociologia que toma por objeto a ação de indivíduos foi capaz de construir conceitos de corpos coletivos, distinguindo estes entre si e identificando suas principais características.

4.4.3.Problemas de Sociologia do Direito

Por certo que o principal tema da sociologia do direito weberiana é o surgimento do direito moderno, seu processo de racionalização. Entretanto, nos interessa aqui analisar problemas mais teóricos e menos históricos. Isto porque as críticas de Kelsen não se dirigem a qualquer forma de explicação histórica elaborada pela sociologia do direito, mas tão somente às construções teóricas e conceituais.

A sociologia do direito weberiana não se restringe a formular um conceito de direito e analisar seu desenvolvimento histórico. Ela trata de diversos temas recorrentes na jurisprudência, oferecendo conceitos diversos daqueles formulados pelos juristas e modos diversos de estudar os mesmos temas sobre os quais eles se debruçam.

4.4.3.1.Por que uma ordem jurídica é válida?

A questão acerca da validade da ordem jurídica é abordada por Weber por meio da construção de uma tipologia das formas de atribuição de validade. Tal tipologia corresponde, em larga medida à tipologia das formas de ação social e à tipologia das formas de dominação. Afirma o autor:

§7. Los que actúan socialmente pueden atribuir validez legítima a un orden determinado.

a)en méritos de la tradición: validez de lo que siempre existió;

b)en virtud de una creencia afectiva (emotiva especialmente): validez de lo nuevo revelado o de lo ejemplar;

c)en virtud de una creencia racional con arreglo a valores: vigencia de lo que se tiene como absolutamente valioso;

d)en méritos de lo estatuido positivamente, en cuya legalidad se cree.

Esta vigencia puede valer como legítima

- en virtud de un pacto de los interesados

- en virtud del "otorgamiento" - Oktroyierung - por una autoridad considerada como legítima y del sometimiento correspondiente (Weber, 1997: 29)

Esta é uma tipologia das razões que um indivíduo tem para obedecer. É uma tipologia da obediência. O autor não apresenta tal tipologia como exaustiva, mas, como também não afirma o contrário, tem-se impressão de que se trata de uma listagem completa das possíveis razões para obediência.

Quando o autor fala em "atribuir validez legítima" devemos entender simplesmente que tais são razões pelas quais uma ordem pode ser considerada como legítima. Isto porque a validade ("validez") se refere, na definição acima apresentada pelo próprio autor, não apenas à consideração de uma ordem como legítima, mas a sua observância de fato em função de tal consideração. Os indivíduos não podem atribuir observância de fato a uma ordem, podem apenas observá-la. Desta forma, a tipologia apresentada pode ser considerada como uma tipologia das razões que justificam a obediência.

Esta abordagem em muito ultrapassa aquela do pensamento kelseniano. Por certo que inúmeros juristas tentaram responder à pergunta acerca das razões pelas quais o direito deve ser tido como válido (legítimo) e muitos encontraram respostas semelhantes às que Weber apresenta. Entretanto, há uma diferença de perspectiva essencial. Weber não se pergunta por que o direito deve ser considerado legítimo, mas por que as pessoas de fato consideram o direito legítimo. Esta tipologia é uma tipologia das formas pelas quais as pessoas consideram legítimas as ordens, não de razões pelas quais devemos considerá-las legítimas.

4.4.3.2.O direito subjetivo

O direito subjetivo é tema de estudo de inúmeros juristas e sociólogos do direito. Tanto uns como outros por vezes afirmam ser o direito subjetivo uma possível fonte de onde surge o direito enquanto tal. Não é este tipo de abordagem que pretendo tratar aqui. Por direito subjetivo, de uma forma simplista mas suficiente, deve-se entender aquilo a que nos referimos quando dizemos "eu tenho direito a isto ou àquilo". O direito objetivo são as normas gerais, enquanto que direitos subjetivos são os direitos que indivíduos têm a se comportar ou deixar de se comportar de uma dada maneira.

Weber apresenta o direito subjetivo como sendo a existência da probabilidade de que um dado indivíduo encontre apoio em mecanismo coativo para fazer valer suas pretensões.

El hecho de que alguien, gracias a un orden jurídico estatal, tiene un "derecho" (subjetivo) significa, por tanto, en el caso normal – el que nosotros tenemos en cuenta por ahora –, para la consideración sociológica: que posee una probabilidad, garantizada efectivamente mediante el sentido consensual válido de una norma, de pedir la ayuda de un "mecanismo coactivo" preparado a tal fin a favor de determinados intereses (ideales o materiales). (Weber, 1997: 254)

Este sentido de direito subjetivo diverge, portanto, daquele "direito subjetivo em sentido estrito" apresentado por Kelsen [07]. O direito subjetivo não é aqui um dever do órgão estatal responsável por acatar a reclamação e proceder a aplicação de uma norma, mas sim uma probabilidade de que o quadro coativo de fato acatará a reclamação e de fato agirá de forma a fazer valer aquela pretensão, conforme autorizado pela norma considerada legítima.

Temos, portanto, que um conceito corriqueiro entre juristas pode ser traduzido da linguagem do dever ser para a linguagem do ser. Um direito subjetivo não é mais um dever ser, não se trata de uma obrigação de quem quer que seja, mas de uma probabilidade de um determinado comportamento.

4.4.3.4.A relação jurídica

Um conceito especialmente importante para a jurisprudência que é reformulado em termos sociológicos pelo pensamento weberiano é o conceito de relação jurídica. O conceito kelseniano acima apresentado (como relação entre determinados conjuntos de normas) não é o dominante na jurisprudência. Uma relação jurídica pode ser caracterizada como qualquer relação sobre a qual incida uma norma jurídica, ou seja, qualquer relação em que algum dos participantes tenha algum dever e outro algum direito.

Tanto o conceito kelseniano como o tradicional de relação jurídica são conceitos que envolvem um "dever ser". O conceito weberiano não é assim. Afirma o autor:

Llamamos existencia de una "relación jurídica" entre las personas correspondientes a la situación en que las "relaciones", es decir, la acción actual o potencial de personas concretas o que se puedan determinar concretamente, constituye el contenido de derechos subjetivos. Su contenido en derechos subjetivos puede cambiar según la acción que esté teniendo lugar. En este sentido, también un "estado" concreto puede designarse como "relación jurídica", incluso cuando (en el caso límite teórico) sólo el señor posee derechos subjetivos – a mandar – y las probabilidades de todos los demás individuos existen sólo como reflejos de sus "reglamentaciones". (Weber, 1997: 258)

Existe uma "relação jurídica" quando as ações efetivas ou potenciais de indivíduos humanos concretos forem conteúdo de direitos subjetivos. Entretanto, direitos subjetivos consistem na probabilidade de que uma determinada reclamação de um indivíduo será acatada e sua pretensão levada a cabo por um determinado aparelho coativo. Por certo que não podemos afirmar que ações efetivas ou potenciais de indivíduos sejam conteúdos de probabilidades. Podemos, portanto, supor que Weber trabalhe aqui com o conceito de direito subjetivo dos juristas ou que há apenas uma inadequação de linguagem. Neste segundo caso, uma relação jurídica existe quando existirem direitos subjetivos em uma dada relação social, ou seja, quando existir a probabilidade de que um aparelho coativo acate a reclamação de um indivíduo e leve a efeito sua pretensão.

Desta forma teríamos que uma relação jurídica não envolve qualquer "dever ser", mas tão somente probabilidades de ações conformes a determinados conteúdos de sentido, tidos como legítimos pelos indivíduos em questão.

4.4.3.5.Relações sociais abertas e fechadas e propriedade

Apesar de que fora do contexto do estudo da sociologia do direito, Weber, na parte referente aos conceitos sociológicos fundamentais, trata de diversos conceitos tradicionalmente estudados pelos juristas. Quando o autor trabalha a distinção entre relações sociais abertas e relações sociais fechadas, por exemplo, surgem inúmeros conceitos tradicionalmente jurídicos que são definidos em termos sociológicos.

§10. Una relación social (lo mismo si es de "comunidad" como de "sociedad") se llama "abierta" al exterior cuando y en la medida en que la participación en la acción social recíproca que, según su sentido, la constituye, no se encuentra negada por los ordenamientos que rigen esa relación a nadie que lo pretenda y esté en situación real de poder tomar parte en ella. Por el contrario, llámase "cerrada" al exterior cuando y en la medida en que aquella participación resulte excluida, limitada o sometida a condiciones por el sentido de la acción o por los ordenamientos que la rigen. (Weber, 1997: 34)

Por relação social aberta entende-se aquela em que o ingresso de novos indivíduos na relação não se encontra vedado pelos ordenamentos que regem dita relação. Por "ordenamento que rege a relação" devemos entender, em Weber, o ordenamento que é tido por legítimo pelos indivíduos em questão e que em função disto é eficaz, conforme o conceito de validade da ordem legítima. Isto porque a expressão "ordenamento que rege" deve ser entendida como "ordenamento válido". De outro modo teríamos que adotar uma perspectiva normativa, tomando a expressão "ordenamento que rege" como "conjunto das normas que devem ser aplicadas". Assim, uma relação social é aberta, em Weber, quando há a probabilidade de que os indivíduos efetivamente se comportem conforme um determinado conteúdo de sentido que não veda o ingresso, na sociedade ou comunidade, de novos membros, e de que o façam em função do reconhecimento da legitimidade de uma ordem.

Por relação social fechada entende-se aquela em que existe a probabilidade de que indivíduos se comportem de acordo com um conteúdo de sentido que veda o ingresso, na comunidade ou sociedade, de novos indivíduos, e que o façam em função do reconhecimento da legitimidade desta mesma ordem.

Uma relação social fechada, neste sentido, garante a seus membros certos "direitos". Dentre tais direitos constam diversos bem conhecidos dos juristas, tais como os direitos de herança e de propriedade privada.

Una relación social "cerrada" puede garantizar a sus partícipes el disfrute de las probabilidades monopolizadas: a) libremente, b) en forma racionada o regulada en cuanto al modo y la medida, o c) mediante su aprobación permanente por individuos o grupos y plena o relativamente inalienable (cerrada en su interior). Las probabilidades apropriadas se llaman "derechos". Según el orden que rija la relación social la apropiación puede corresponder 1) a todos los miembros de determinadas comunidades y sociedades – así por ejemplo, en una comunidad doméstica –, o 2) a individuos, y en este caso a) de un modo puramente personal, o b) de manera que, en caso de muerte, se apropien esas probabilidades uno o varios individuos, unidos al que hasta ese momento fue el titular por una relación social o por nacimiento (parentesco), o designados por él (aprobación hereditária). Por último, puede ocurrir 3) que el titular esté facultado para ceder a otros más o menos libremente sus derechos mediante pacto; siendo los cesionarios a) determinados, o b) discrecionales (apropiación enajenable). Los partícipes en una relación social cerrada se consideran como iguales o compañeros y en el caso de una regulación de esa participación que les asegure la apropiación de ciertas probabilidades se consideran como compañeros jurídicamente protegidos. Se llama propiedad al conjunto de probabilidades hereditariamente apropiadas por un individuo o una comunidad o sociedad; siendo propiedad libre en el caso en que ésta sea enajenable. (Weber, 1997: 34)

A relação social dispõe de certas "probabilidades monopolizadas", chamadas "direitos". Tais "probabilidades monopolizadas" podem ser desfrutadas de diversas formas pelos membros da relação social. Afirmar que são desfrutadas livremente deve significar que tais probabilidades monopolizadas podem ser desfrutadas pelos indivíduos sem que precisem cumprir quaisquer requisitos ou pedir qualquer indenização. Este "podem" deve ser entendido como a existência da probabilidade de que os demais membros da relação social ajam em conformidade com uma ordem que não impõe qualquer requisito ao desfrute desta probabilidade, e que o façam em função da legitimidade que admitem ter esta ordem. Por outro lado tal desfrute pode se dar mediante autorização de determinados indivíduos. Tal "autorização" deve significar que determinada probabilidade monopolizada apenas pode ser desfrutada quando determinados indivíduos expressamente permitirem. Isto quer dizer que o desfrute de tal probabilidade monopolizada sem tal autorização está sujeito à probabilidade de que determinadas conseqüências sejam levadas a cabo contra o indivíduo transgressor, e que isto é feito de acordo com uma determinada ordem que os indivíduos consideram legítima, e que é feito em função disto.

Esta probabilidade monopolizada pode ser atribuída a todos os membros da relação social ou apenas a alguns. Neste caso, tal probabilidade pode ser restrita ao membro individual ou pode transmitir-se a seus descendentes. Neste último caso teríamos uma apropriação hereditária. Uma apropriação hereditária é, portanto, o desfrute de uma probabilidade monopolizada em virtude do falecimento de um indivíduo ao qual se estava ligado. Podemos prosseguir demonstrando que a transmissão consiste em uma probabilidade de determinados comportamentos, assim como o monopólio, etc. Descrito de uma forma mais simples, substituindo a descrição pelos conceitos do autor, tem-se que o direito de herança consiste no gozo de um direito em função do falecimento de um indivíduo ao qual se estava ligado de uma forma determinada. Esta definição, assim expressa, é bastante próxima de uma definição jurídica. Entretanto, ao revelarmos o significado dos conceitos de direito vê-se que há uma diferença essencial.

A propriedade é definida pelo autor como o conjunto de probabilidades hereditariamente adquiridas, ou, considerando que tais probabilidades são chamadas "direitos", como o conjunto de direitos hereditariamente adquiridos. Os conceitos utilizados nesta definição não correspondem aos conceitos jurídicos. Um direito não é o que um jurista entende por um "direito", hereditário não é o que o jurista entende por "hereditário". Estes conceitos não têm aqui um caráter normativo, mas sim um caráter probabilístico.

4..4.3.6.Solidariedade e Representação

Tomemos ainda mais estes últimos exemplos do modo como a sociologia weberiana apresenta conceitos paralelos àqueles da jurisprudência. Vejamos como Weber trabalha os conceitos de solidariedade e de representação.

§11. Una relación social puede tener para sus partícipes, de acuerdo con su orden tradicional o estatuido, las consecuencias seguintes: a) el que toda acción de cada uno de los partícipes se impute a todos los demás (solidariedad); b) el que la acción de un partícipe determinado se impute a los demás (representación). O sea que tanto las probabilidades como las consecuencias, para bien o para mal, recaigan sobre todos. El poder representativo (plenos poderes) puede, según el orden vigente, 1) estar apropiado en todos sus grados y cualidades (plenos poderes por derecho propio); o 2) ser atribuido al poseedor de determinadas características, ya temporal, ya permanentemente; o 3) ser otorgado por determinados actos de los partícipes o de terceros, ya temporal, ya permanentemente (plenos poderes otorgados). Respecto de las condiciones por las cuales las relaciones sociales aparecen como relaciones de solidariedad o como relaciones de representación, sólo puede decirse en términos generales que es en ello decisivo el grado en que su conducta tenga como fin, bien a) una lucha violenta, bien b) un cambio pacífico; fuera de esto se trata siempre de circunstancias particulares que sólo se pueden fijar en el análisis del caso concreto. Donde menos, naturalmente, suelen presentarse estas consecuencias es en aquellas relaciones que por medios pacíficos persiguen bienes puramente ideales. Con el grado de hermetismo hacia fuera marcha paralelo, aunque no siempre, el fenómeno de la solidaridad o de la representación. (Weber, 1997: 37-38)

Uma relação social, conforme o autor, pode ter, de acordo com sua ordem tradicional ou estatuída, a conseqüência de que as ações de cada um sejam imputadas a todos os membros, ou de que as ações de um sejam imputadas a todos. No primeiro caso se fala em solidariedade e no segundo em representação. Entre os juristas existem estes dois conceitos, com definições paralelas à apresentada por Weber.

Por solidariedade se entende entre juristas o dever ou direito que duas ou mais pessoas têm em comum. Assim, quando se fala em solidariedade entende-se que duas ou mais pessoas têm um mesmo direito ou uma mesma obrigação. Desta forma, se uma delas paga a dívida, considera-se paga a dívida toda e se uma exerce o direito, considera-se como tendo sido exercido todo o direito. Assim, as ações de cada um devem ser imputadas a todos. Há, inclusive, uma definição legal, encontrada no art. 264 do Código Civil brasileiro.

Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigação, à dívida toda.

A definição sociológica, apresentada por Weber, é sensivelmente distinta, apesar de paralela. Distinta porque por ela não se devem considerar as ações de um como ações de todos, mas sim são consideradas como tais, ou melhor, existe uma probabilidade de que as ações de cada um sejam consideradas como ações de todos. A distinção, novamente, reside em que na definição jurídica de solidariedade, as ações (exercício do direito ou cumprimento da obrigação) de cada um devem ser consideradas como ações de todos, enquanto que na definição weberiana as ações de cada um são consideradas como ações de todos.

A mesma situação ocorre com o conceito de representação. A representação, juridicamente, consiste em que as ações (o exercício de direitos e cumprimento de deveres) do representante devem ser consideradas como ações do representado. [08] Em Weber, a representação implica em que as ações do representante são, ou o são com determinada probabilidade, consideradas como ações dos representados. A representação pode se dar de diferentes formas, como coloca Weber. O representante pode o ser em função de sua própria pessoa, em caráter vitalício e independente de qualquer circunstância, seja termo ou condição. Pode também ter um caráter meramente temporário ou estar vinculada a determinadas características, como, por exemplo, ao ser o mais velho indivíduo do sexo masculino de uma certa linhagem. A representação pode ainda estar ligada a determinadas ações dos representados, como uma eleição, por exemplo, e isto temporária ou permanentemente.

O fato de que em uma relação social exista representação ou solidariedade depende, pelo menos em grande medida, segundo o autor, do grau em que as ações desta relação social tenham por fim a luta violenta ou a mudança pacífica da ordem. Apesar de não estar muito claro como e em que sentido isto afeta a possibilidade de a relação social se apresentar como representação ou solidariedade, está claro que tanto uma quanto outra decorrem de fenômenos da ordem do ser, dentre os quais figura o grau em que os indivíduos estejam dispostos a recorrer à violência para a mudança da ordem.

É importante que fique claro que os conceitos apresentados aqui não são idênticos aos conceitos jurídicos, nem pretendem substituir aqueles no uso dos juristas. Entretanto, têm um nítido paralelo com conceitos jurídicos, com a distinção importante de que aqueles são conceitos normativos, que envolvem asserções de "dever ser", enquanto que estes são conceitos cognitivos que envolvem tão somente asserções de "ser".

A distinção entre o "ser" e o "dever ser" era uma preocupação constante no pensamento weberiano e este autor está ciente da importância que ela tem para a distinção entre jurisprudência e sociologia do direito.

4.4.4Dogmática Jurídica e Sociologia do Direito

Weber conhece bem a distinção entre sociologia do direito e "ciência jurídica" no sentido de dogmática jurídica. A dogmática jurídica não tem como preocupação descrever ou explicar o comportamento efetivo dos indivíduos na medida em que relacionado com o direito. Sua preocupação é oferecer uma descrição clara e logicamente consistente do ordenamento jurídico. Esta, por sua vez, não é a preocupação do sociólogo do direito. Este pretende descrever e interpretar o comportamento efetivo de seres humanos concretos. Não lhe interessa primeiramente a construção de uma estrutura de sentido logicamente coerente que possa ser apresentada como direito, mas um conjunto de relações sociais compreensíveis.

La tarea de la ciencia jurídica (de un modo más preciso, la jurídico-dogmática) consiste en investigar el recto sentido de los preceptos cuyo contenido se presenta como un orden determinante de la conducta de un círculo de hombres, demarcado de alguna manera; es decir, en investigar las situaciones de hecho subsumidas en esos preceptos y el modo de su subsunción empírica trata de determinar el sentido lógico de los preceptos singulares de todas clases, para ordenarlos en un sistema lógico sin contradicción. Este sistema constituye el "orden jurídico" en el sentido jurídico de la palabra. Por el contrario, la ciencia económico-social considera aquellas acciones humanas que están condicionadas por la necesidad de orientarse en la realidad económica, en sus conexiones efectivas. Llamamos "orden económico" a la distribución del poder de disposición efectivo sobre bienes y servicios económicos que se produce consensualmente – consensos – según el modo de equilibrio de los intereses, y a la manera como esos bienes y servicios se emplean según el sentido de ese poder fáctico de disposición que descansa sobre el consenso. (Weber, 1997: 251)

Desta forma, o modo como a dogmática jurídica, jurisprudência, olha para a realidade do direito é radicalmente distinto do modo como a sociologia jurídica a trata. Para o jurista cumpre entender o real sentido dos preceitos jurídicos, relacioná-los entre si de forma coerente e compreender suas possibilidades de aplicações aos casos concretos. Por outro lado, o sociólogo busca as relações efetivas, os condicionamentos destas relações e seu desenvolvimento concreto.

Não se trata tão somente de duas maneiras distintas de olhar uma mesma realidade, mas de duas maneiras distintas de olhar duas realidades distintas. O sociólogo não se debruça sobre o mesmo objeto de estudo que o jurista. Os conceitos de direito, ordem jurídica, preceito jurídico, relações jurídicas, direitos subjetivos, obrigações, enfim, tudo aquilo que o jurista toma como seus objetos de estudo, o sociólogo compreende de forma diversa. Para o sociólogo "direito" não é o mesmo que o jurista chama de "direito", e isto acontece com todos os demais conceitos. Daí que não resta sequer uma identidade no objeto de estudo.

Cuando se habla de "derecho", "orden jurídico", "preceptos jurídicos", debe tenerse en cuenta de un modo particularmente riguroso la distinción entre la consideración jurídica y la sociológica. La primera se pregunta lo que idealmente vale como derecho. Esto es: qué significación o, lo que es lo mismo, qué sentido normativo lógicamente correcto debe corresponder a una formación verbal que se presenta como norma jurídica. Por el contrario, la última se pregunta lo que de hecho ocurre en una comunidad en razón de que existe la probabilidad de que los hombres que participan en la actividad comunitaria, sobre todo aquellos que pueden influir considerablemente en esa actividad, consideren subjetivamente como válido un determinado orden y orienten por él su conducta práctica. Conforme a eso se define también la relación de principio entre el derecho y la economía. (Weber, 1997: 251)

O jurista se pergunta acerca daquilo que, considerando válida (em sentido jurídico) uma ordem, deve ser feito. O sociólogo se pergunta acerca daquilo que os indivíduos efetivamente fazem em situações em que consideram (se é que o fazem) válida uma dada ordem (não exatamente idêntica àquela que o jurista descreve).

Há, portanto, uma dupla definição do conceito de ordem jurídica, bem como de todos os conceitos jurídicos, na medida em que também são abordados pela sociologia do direito.

Es evidente que ambos modos de considerar los fenómenos plantean problemas totalmente heterogéneos y que sus "objetos" no pueden entrar en contacto de un modo inmediato; el "orden jurídico" ideal de la teoría jurídica nada tiene que ver directamente con el cosmos del actuar económico real, porque ambas cosas yacen en planos distintos: una en la esfera ideal del deber ser; la otra en la de los acontecimientos reales. (Weber, 1997: 251)

Na visão de Weber os problemas da sociologia do direito e aqueles da jurisprudência, ou dogmática jurídica, são totalmente distintos, e também não há identidade entre os conceitos que ambas as formas de conhecimento utilizam. O autor ressalta que tal se dá porque a sociologia do direito e a jurisprudência estão em "planos distintos", a primeira no plano do "ser" e a segunda no plano do "dever ser".

Apesar disto, a ordem jurídica e a ordem econômica estão intimamente relacionadas, mas isto apenas porque se toma por "ordem jurídica" o conceito formulado pela sociologia e não aquele formulado pela jurisprudência.

Ahora bien: si, a pesar de esto, el orden económico y el jurídico se encuentran mutuamente en la más íntima relación, ello significa que este último no se entiende en sentido jurídico sino sociológico: como validez empírica. En este caso el sentido de la expresión "orden jurídico" cambia totalmente. Entonces no significa un cosmos lógico de normas "correctamente" inferidas, sino un complejo de motivaciones efectivas del actuar humano real. (Weber, 1997: 252)

Desta forma, não são as normas jurídicas que estão em uma íntima relação com a vida econômica, ao menos não as normas jurídicas tais como as entendem os juristas. É o agir humano real e suas motivações que são influenciados pela ordem econômica.

A ordem jurídica não é, quando estudada em suas relações com os demais âmbitos da vida humana, tomada como um conjunto sistematicamente coerente de normas, mas como um conjunto de ações sociais que tem um determinado conteúdo de sentido. Entretanto, o conceito sociológico de ordem jurídica não implica em que todos os indivíduos envolvidos de fato tenham em mente alguma motivação que corresponda à ordem jurídica. Na verdade não implica sequer que a maioria deles tenha tal concepção, ou qualquer concepção clara do que seja o direito e as normas jurídicas. Isto, como afirma Weber, jamais ocorre.

El hecho de que algunos hombres se conduzcan de un determinado modo porque consideran que así está prescrito por normas jurídicas, constituye, sin duda, una componente esencial para el nacimiento empírico, real, de un "orden jurídico" y también para su perduración. Pero – como resulta de lo dicho anteriormente sobre el sentido de la "existencia" de los órdenes sociales – no significa esto, en modo alguno, que todos y ni siquiera la mayoría de los participantes en aquella conducta obren en virtud de tal motivo. Esto no ocurre nunca. (Weber, 1997: 252)

O conceito de ordem jurídica em sentido sociológico implica tão somente que haja uma probabilidade de que o comportamento efetivo dos indivíduos seja influenciado pela ordem. Antes ainda, que haja uma probabilidade de que o comportamento dos indivíduos que figuram como órgãos ou aparelho coativo do direito seja tal que imponha uma coação sobre os indivíduos cujo comportamento se destoe da norma.

Por pequeña que pueda ser objetivamente la probabilidad de que el mecanismo coactivo fuerce en un caso dado al cumplimiento de aquellas normas, para nosotros han de seguir valiendo como "derecho". (Weber, 1997: 252)

A probabilidade de que aqueles indivíduos apliquem sanções, ou melhor, coajam outros indivíduos ao cumprimento da norma não necessita ser uma probabilidade alta. "Por pequeña que pueda ser" esta probabilidade, o sociólogo já pode falar em direito. Por pequena que seja esta probabilidade, já não se está falando de um sentido normativo, mas de um sentido causal, probabilístico.


V_Críticas Kelsenianas à Sociologia do Direito

Hans Kelsen formulou diversas críticas a várias concepções sociológicas acerca do direito. Tais críticas são consideradas aqui como críticas a idéias, não a autores. Serão apresentadas as críticas formuladas ao autor e identificadas as teses às quais elas se dirigem e aqueles autores, dentre os apresentados aqui, que as sustentam.

Esta forma de exposição foi adotada em função de que nem todos os autores acima apresentados foram diretamente criticados por Kelsen, e de que as teses criticadas por Kelsen não podem ser consideradas peculiaridades destes autores, uma vez que são bastante freqüentes entre sociólogos do direito.

Deve-se esclarecer, ainda, que para Kelsen Estado e Direito são uma e mesma coisa. Daí que algumas críticas que Kelsen dirige a uma sociologia do Estado, ou teoria geral do Estado de cunho causal, sejam aqui tratadas, onde se discute as críticas dirigidas à sociologia do direito.

Por fim, ressalte-se que, naturalmente, as críticas formuladas não se dirigem a toda a sociologia do direito. De fato, não se pode afirmar realmente que exista apenas uma sociologia do direito. Não existe atualmente um consenso entre os sociólogos acerca dos principais pontos deste ramo da sociologia, em especial no que se refere a uma teoria sociológica acerca do direito. Desta forma, todas as críticas são dirigidas a teorias específicas ou a determinados agrupamentos de teorias. Neste trabalho, entretanto, não interessa identificar precisamente a quem Kelsen está criticando, salvo quando se tratar de um dos autores acima apresentados, mas sim a que tese critica e quais dos autores acima apresentados se identifica com ela. Desta forma, espera-se evitar incorrer em uma discussão sobre o debate que Kelsen travou com os vários autores.

As críticas que serão aqui trabalhadas são as seguintes: a) a sociologia do direito ao identificar um direito que decorre naturalmente das relações sociais e tomá-lo como dotado de uma validade superior à do direito positivo incorre em jusnaturalismo; b) a sociologia, ao tomar o estado como um ente capaz de ações e vontade incorre em uma equivocada personificação da ordem jurídica; c) a sociologia, em especial a sociologia compreensiva, é incapaz de elaborar uma definição sociológica de Direito.

Sustenta-se em seguida que todas estas críticas não têm o caráter de críticas internas, mas de críticas externas. Com isto quer-se dizer que não apontam para contradições internas, inconsistências lógicas ou incoerência na utilização de conceitos, etc. na obra dos autores criticados. Trata-se, antes, de uma exposição da obra destes autores e da constatação de que divergem de determinados parâmetros alheios à própria obra. Esta divergência não é divergência com determinados eventos constatados empiricamente, mas divergências com outras afirmações teóricas, afirmações do próprio autor. Neste sentido, buscar-se-á, ao longo da exposição das críticas, demonstrar que se tratam, em princípio, de críticas formuladas a partir de uma contraposição da Teoria Pura do Direito com as diversas sociologias do Direito.

5.1.Jusnaturalismo sociológico

Uma das principais preocupações de Hans Kelsen era demonstrar o equívoco da tese jusnaturalista, ou seja, da tese segundo a qual existe um direito que decorre de alguma forma da própria natureza. O positivismo jurídico tal como definido por Kelsen se caracteriza essencialmente pela negação da tese jusnaturalista. Para o positivismo jurídico todo direito é direito posto, isto é, direito criado por atos humanos.

Do ponto de vista kelseniano, o valor, o "dever ser", não é imanente à natureza. O valor de algo não é uma de suas qualidades ou características, mas a aplicação de uma norma.

O valor atribuído a um objeto não é dado com as propriedades desse objeto sem referência a uma norma pressuposta. O valor não é inerente ao objeto julgado como valioso, é a relação desse objeto com uma norma pressuposta. Não podemos encontrar o valor de uma coisa real ou de uma conduta efetiva analisando esses objetos. O valor não é imanente à realidade natural. Portanto, o valor não pode ser deduzido da realidade. Não se conclui, do fato de que alguma coisa é, que ela deva ser ou deva ser feita, ou que não deva ser ou não deva ser feita. O fato de que na realidade peixes grandes comem peixes pequenos não implica que a conduta do peixe seja boa, tampouco que seja má. Não existe nenhuma inferência lógica a partir do "é" para o "deve ser", da realidade natural para o valor moral ou jurídico. (Kelsen, 2001: 140)

Esta é uma asserção fundamental para o pensamento kelseniano. Existe uma distinção radical entre ser e dever ser, de modo que uma argumentação, por mais profunda e minuciosa que seja, jamais poderá concluir uma única norma a partir de premissas factuais.

A tese jusnaturalista diverge deste princípio. Esta tese implica a conjunção de pelo menos estas duas asserções: 1) há um direito que decorre da natureza das coisas, e 2) este direito é superior ao direito positivo.

A tese jusnaturalista não se limita a afirmar que há um direito natural, mas alcança também a asserção de que tal direito natural tem uma certa preeminência sobre o direito positivo. Desta forma, costuma-se sustentar que o direito positivo apenas pode ser considerado válido se estiver em conformidade com o direito natural. A sociologia do direito, na medida em que assuma ambas estas asserções, aceita a tese jusnaturalista, tal como entendida aqui.

Por certo que a grande maioria dos sociólogos não se identificaria como jusnaturalista, apesar de que Ehrlich afirma claramente sua simpatia por aquele pensamento, mas o que nos interessa aqui não é o rótulo, e sim a tese segundo a qual existe um direito identificável na própria natureza aliada à de que este direito prevalece sobre o direito positivo, ou seja, o direito dos legisladores e juízes.

A doutrina do direito natural é geralmente identificada com a idéia de que o direito pode ser deduzido da razão ou da natureza humana. Entretanto, não apenas esta tese implica a aceitação de que o direito decorra da natureza. É altamente atraente, segundo Kelsen, para o espírito humano a idéia de que as normas que obedece ou que prescreve têm uma fundamentação racional ou natural. Esta fundamentação é buscada seja na razão, seja nas relações sociais ou nas formas de comunicação.

A razão por que a doutrina do Direito natural, apesar de suas óbvias falácias, tem tido, e provavelmente sempre terá, grande influência no pensamento social é o fato de que ela satisfaz uma necessidade profundamente arraigada da mente humana, a necessidade da justificação. Para justificar os juízos de valor subjetivos que emergem do elemento emocional de sua consciência, o homem tenta apresentá-los como princípios objetivos transferindo para eles a dignidade de verdade, torná-los proposições da mesma ordem que os enunciados sobre a realidade. Portanto, pretende deduzi-los da realidade, o que implica ser o valor imanente à realidade. A realidade, porém, pode ser concebida não apenas como natureza, mas também como sociedade ou história, determinada por leis análogas às leis da natureza. (Kelsen, 2001 161)

Por certo não é geralmente aceito pela sociologia do direito que o direito apenas é válido na medida em que esteja de acordo com uma determinada idéia de justiça, ou determinado direito natural. Entretanto, é bastante claro na obra de Ehrlich que este autor entende que o direito positivo tem uma vigência limitada pelo direito vivo. É um equívoco, na opinião daquele autor, considerar como válidas normas de decisão que não correspondam a quaisquer normas do agir. Este equívoco seria, inclusive, muito corriqueiro entre juristas e é justamente por isso que se faz sentir a necessidade da sociologia do direito enquanto uma ciência que revela o direito vivo e não o direito dos juristas.

Os métodos sugeridos por Ehrlich para o estudo da sociologia do direito são principalmente o estudo de documentos e a observação direta da vida. Ora, se tais métodos podem levar à descrição de um "direito vivo", há um direito que decorre da natureza das coisas, no caso, das relações sociais. Podemos, por certo, evitar esta conclusão na obra de Ehrlich se abdicarmos de entender que o "direito vivo" tenha qualquer caráter normativo. Isto, no entanto, seria bastante difícil já que o próprio autor afirma estarem equivocados os juristas quando descrevem normas de decisão. Ora, o objetivo de tais juristas é descrever o que deve ser e, na medida em que a sociologia do direito demonstra que descrevem mal seu objeto porque ele não corresponde ao direito vivo, o faz porque o direito vivo é um dever ser.

Kelsen critica diretamente a Eugen Ehrlich por admitir que a partir da descrição daquilo que efetivamente sucede alcançará a sociologia do direito um determinado conjunto de normas do agir.

Porém Ehrlich estabelece a oposição entre a sua sociologia do direito e a jurisprudência contemporânea seguindo uma direção completamente distinta. Dita ciência do direito considera (betrachtet) o direito, erroneamente, como "uma regra para a atuação dos tribunais e de outras autoridades (estatais)", enquanto que a sociologia do direito concebe o direito "como uma regra geral da ação humana " (des allgemeinen menschlichen Handeln) (p.9), e, desta forma, o autêntica "conceito científico do direito" está na base de seu conhecimento (p.6). Dado o duplo significado da expressão "regra" - regra do ser ou do dever ser -, tudo o que se acaba de apontar depende do significado que Ehrlich dá a esta expressão. Em nossa opinião Ehrlich confunde completamente ambos significados ao pressupor que uma regra do agir é "obviamente uma regra segundo a qual não apenas se age, mas também segundo a qual se deve agir" (p.7). Este enunciado é evidentemente falso! Uma regra que tenha sido obtida a partir de um modo de consideração (Betrachtung) causal-explicativo não é mais que uma regra de ser, incapaz de dar uma indicação acerca do que deve ser. (Kelsen, 1992: 217) [09]

Kelsen rejeita a asserção ehrlichiana segundo a qual a sociologia do direito identifica as regras do direito vivo, que não são tão somente regras que os homens efetivamente observam, mas também regras que eles devem observar. A sociologia do direito, tal como elaborada por Eugen Ehrlich não apenas descreve o comportamento de indivíduos, mas identifica as normas que efetivamente são válidas. Com isto se deve entender que a descrição que os juristas elaboram acerca do dever está equivocada do ponto de vista desta sociologia do direito. Equivocada porque as normas tais como eles as descrevem ou servem apenas aos tribunais ou já foram abolidas na vida real. À sociologia do direito caberia descrever o direito vivo, o direito tal como efetivamente é, ou seja, o modo como os homens devem se comportar e de fato se comportam.

A reação de Kelsen diante destas asserções é de um indisfarçável inconformismo. O autor critica Ehrlich simplesmente se perguntando se ele realmente tinha tais idéias, tomando-as como "evidentemente falsas".

Ou Ehrlich realmente crê que um processo natural (Seinsvorgang) qualquer, por exemplo, o caso de uma declaração de vontade acerca do que deve suceder com determinados objetos do declarante quando de seu falecimento, pode ser considerada com independência de que tal declaração deva ter um determinado efeito jurídico? Pensa Ehrlich seriamente que as qualidades "lícito" e "ilícito", obrigação e pretensão, se aderem aos processos naturais como as cores ou as temperaturas? (Kelsen, 1992: 224)

Uma resposta a estas perguntas apenas poderia ser formulada na afirmativa. Sim, Ehrlich realmente parece pensar que as qualidade de lícito e de ilícito se aderem aos processos naturais. Não se deve entender com isto que para aquele autor tais qualidades sejam simplesmente imutáveis, antes ao contrário, variam como varia a sociedade. Entretanto, decorrem das relações sociais tais como efetivamente se processam em cada momento.

É evidente que Ehrlich adere à primeira asserção que compõe o jusnaturalismo. Resta considerar em que medida se admite também a segunda asserção, ou seja, a de que o direito vivo, tal como o chama o autor, tem supremacia sobre o direito positivo.

As repreensões que Ehrlich dirige aos juristas parecem apontar neste sentido. Considerando que o autor entende que a descrição que estes oferecem do direito é falha por não referir ao direito vivo, e que este já está, em geral, "superado" quando passa a ser considerado pelos juristas, devemos admitir que também esta asserção é aceita pelo autor.

Em geral, porém, sociólogos do direito não afirmam que o "direito vivo" seja superior ao "direito positivo", mas que o "direito vivo" é o único "verdadeiro". A afirmação de que um determinado conjunto de normas é verdadeiro ou falso, ou que um determinado conjunto de normas é mais verdadeiro que outro é equivocada. Uma norma não pode ser verdadeira ou falsa, mas apenas válida ou inválida. Neste sentido, apenas podemos atribuir algum sentido inteligível a este tipo de asserção se entendermos que o direito tal como descrito pela sociologia do direito, ou seja, o direito vivo, por exemplo, é superior ao direito positivo. Neste sentido, entenderíamos que no caso de uma oposição entre estas duas normas teríamos uma rejeição do direito positivo em favor do direito vivo.

O direito dos juristas é, para Ehrlich, um direito falso. Têm eles a pretensão de descrever o direito, mas descrevem tão somente normas de decisão empregadas por tribunais. Kelsen critica esta abordagem por implicar em que o direito dos juristas descreve o comportamento dos tribunais enquanto que o direito tal como descrito pela sociologia do direito descreveria o comportamento da sociedade como um todo. Para Kelsen isto implica em tratar a jurisprudência como uma espécie de sociologia dos órgãos do estado.

Até agora se tentou determinar as regras com relação às quais age uma certa categoria de homens: os juízes e outros órgãos estatais. A sociologia do direito se ocupa, sem embargo, das regras com relação às quais agem todos os homens. Em ambos os casos Ehrlich identifica as regras do agir efetivo com as do agir devido (Handelnsollen). Dever-se-ia pensar então que até agora a jurisprudência havia sido também uma sociologia, se bem que não uma sociologia geral mas uma especial, uma sociologia dos órgãos do estado - no caso de que o estado seja identificado com seus órgãos - : uma sociologia do estado. (Kelsen, 1992: 219)

Criticar a jurisprudência por oferecer uma má descrição do comportamento efetivo dos homens em geral equivale a criticá-la por não fazer algo que ela não se propôs a fazer.

Temos, portanto, que a sociologia do direito, tal com apresentada por Ehrlich, incorre em um jusnaturalismo sociológico, ou seja, decorre normas da natureza das relações sociais e entende que tais normas são superiores às normas do direito positivo.

Podemos fazer uma consideração semelhante com relação à obra de Emile Durkheim. Na obra deste autor encontramos diversas afirmações que nos permitem afirmar que o direito decorra da sociedade. Em Da divisão do Trabalho Social ele afirma que "uma vez que o direito reproduz as formas principais da solidariedade social, só nos resta classificar as diferentes espécies de direito para descobrirmos, em seguida, quais são as diferentes espécies de solidariedade social que correspondem a elas." (Durkheim, 1999: 35). O direito, portanto, reproduz a solidariedade social, e esta é algo factual, não normativo.

León Duguit, influenciado pelo pensamento de Durkheim, afirmou que o direito corresponde à solidariedade social, e que, de fato, o direito positivo não é senão declaração do direito existente enquanto solidariedade social. Esta idéia é repudiada por Kelsen.

Na moderna teoria jurídica francesa, a doutrina do Volksgeist é substituída pela da "solidariedade social" (solidarité sociale). Segundo Léon Duguit e sua escola, o verdadeiro Direito, i.e., o Direito "objetivo" (droit objectif) é subentendido na solidariedade social. Conseqüentemente, qualquer ato ou fato cujo resultado seja Direito positivo – seja legislação ou costume – não é criação do Direito, mas um enunciado declaratório (constatation) ou mero indício da regra de Direito previamente criada pela solidariedade social. (Kelsen, 2000b: 185)

Para ele

Tanto a doutrina alemã do Volksgeist quanto a doutrina francesa da solidarité sociale são variantes típicas da doutrina do Direito natural, com o seu dualismo característico de um Direito "verdadeiro" por trás do Direito positivo. (Kelsen, 2000b: 185)

Sendo variantes da doutrina do Direito natural, a este pensamento se aplica todas as críticas dirigidas àquele, em especial a da falácia da transposição dos fatos a normas, considerando que o valor não é imanente na natureza.

Em Durkheim encontramos que:

Os fatos morais e jurídicos – diremos simplesmente, de modo abreviado, os fatos morais – consistem em regras de conduta sancionadas. (...) O problema da gênese e o problema do funcionamento competem portanto a uma ordem de pesquisa. Por isso os instrumentos do método empregado pela física dos costumes e do direito são de dois tipos: de um lado, há a história e a etnografia comparadas, que nos fazem assistir à gênese da regra, que nos mostram os elementos que a compõem dissociados e depois se sobrepondo gradualmente uns aos outros; em segundo lugar, há a estatística comparada, que permite medir o grau de autoridade relativa de que essa regra é investida junto às consciências individuais e descobrir as causas em função das quais essa autoridade varia. (Durkheim, 2002: 2)

Estas "regras de conduta sancionadas" não devem ser entendidas no mesmo sentido de "normas jurídicas" ou tão somente "normas", tal como empregado por Kelsen. Normas, neste sentido, não são fatos. Por "regras de conduta sancionadas" deve-se entender uma regularidade de conduta, a sanção incidindo quando ocorre um comportamento desviante. Em Durkheim também é apresentado como consciência coletiva concentrada, como visto acima. Seja enquanto regra de conduta sancionada, seja enquanto consciência coletiva concentrada, o direito se revela como um "fato social", ou seja, um fenômeno da ordem do ser.

O que faz com que os homens vivam juntos é o sentimento de solidariedade, uma simpatia humana decorrente seja da similaridade seja das diferenças que implicam em interdependência. É esta a causa determinante do direito e de sua evolução (cf. Durkheim, 2002: 293). O direito decorre da sociedade. De fato, ele é constituído por um conjunto de representações (consciência coletiva) elaborado por um órgão da sociedade especialmente para isto designado, o estado (consciência coletiva concentrada). É nítido, portanto, que há um direito que decorre da natureza, no caso, da natureza dos vínculos que unem o homem.

Não cabe discutir se este direito é ou não superior ao direito positivo, uma vez que ambos estão identificados em Durkheim. O autor percebe, por exemplo, uma discrepância entre o rumo evolutivo da solidariedade, e, portanto, do direito, e a situação contemporânea. Entretanto, não imputa um defeito ao ordenamento jurídico. Em verdade é a sociedade que está padecendo de um mal.

É preciso que haja regras que digam a cada um dos colaboradores seus direitos e seus deveres, e de maneira não apenas geral e vaga, mas precisa e detalhada, visando as principais circunstâncias que se produzem mais comumente. Todas essas relações não podem permanecer nesse estado de equilíbrio perpetuamente instável. Mas uma moral não se improvisa. Ela é obra do próprio grupo ao qual deve aplicar-se. Quando ela falta, é porque esse grupo não tem coesão suficiente, porque não existe suficientemente como grupo, e o estado rudimentar de sua moral não faz senão exprimir esse estado de desagregação (Durkheim, 2002: 17)

Desta forma, não há possível contradição entre o direito positivo e o direito enquanto consciência coletiva. Por certo pode ocorrer que o direito revele um estado patológico da consciência coletiva, mas isto não implica em que haja um direito superior a outro, mas tão somente que a sociedade ainda não foi capaz de desenvolver para si as normas de que necessita.

Este direito, apesar de que decorrente tão somente da sociedade, ainda tem um caráter normativo, juntamente com o factual. A normatividade é, em Durkheim, imanente à própria sociedade. A sociedade é constituída da união de indivíduos. Esta união, entretanto, tem para o autor uma natureza diversa daquela dos elementos que a compõe. A sociedade não apenas é distinta dos indivíduos, mas lhes é superior. É esta superioridade da sociedade sobre o individuo que garante às normas morais e jurídicas sua característica obrigatória.

E, com efeito, o homem só é homem porque vive em sociedade. Retire-se dele tudo o que é de origem social e não restará mais do que um animal análogo aos outros animais. Foi a sociedade que o elevou tão acima da natureza física, e ela alcançou esse resultado porque a associação, agrupando as forças psíquicas individuais, intensifica-as, leva-as a um grau de energia e de produtividade infinitamente superior ao que poderiam atingir se continuassem isoladas umas das outras. Surge assim uma vida psíquica de novo tipo, infinitamente mais rica, mais variada do que aquela de que o indivíduo solitário poderia ser o palco, e a vida que assim se produz, penetrando o indivíduo que dela participa, transforma-o. No entanto, por outro lado, ao mesmo tempo que a sociedade assim alimenta e enriquece a natureza individual, ela tende inevitavelmente a submetê-la, e isso pela mesma razão. Exatamente porque o grupo é uma força moral tão superior à das partes, o primeiro tende necessariamente a subjugar as segundas. (Durkheim, 2002: 84)

Tem-se, portanto, que a sociedade sobrepuja o indivíduo, tendo uma vida e uma consciência infinitamente mais elevada que a dele. Daí que as representações coletivas se imponham sobre o indivíduo com uma força normativa. As representações coletivas assumem o caráter de moral e de direito, ou seja, constituem o fato moral, na medida em que tenham ambas as características, a coerção e a desejabilidade. Deve-se acatar as representações coletivas a um só tempo em função de seu caráter coercitivo e em função de sua superioridade moral.

Temos, portanto, uma tese jusnaturalista em Durkheim. Trata-se de um jusnaturalismo sociológico, que não se confunde com as teses jusnaturalistas clássicas. O termo "jusnaturalismo sociológico" se aplica em função de que o direito, aí, decorre de alguma forma da sociedade e apenas este direito é válido (não há qualquer outro). O direito não é obra de indivíduos, mas da sociedade.

A tese jusnaturalista representa, na opinião de Kelsen, não apenas um erro lógico, mas também um instrumento político. A idéia de que o direito pode ser deduzido da natureza serviu aos mais variados propósitos. Em geral, ainda segundo o autor, o direito natural se presta à legitimação do direito positivo. Segundo o autor:

Quase todos os seguidores da doutrina do direito natural admitem, expressa ou tacitamente, que existe uma presunção favorável à conformidade do Direito positivo ao Direito natural. A função histórica da doutrina do Direito natural foi preservar a autoridade do Direito positivo. (Kelsen, 2001: 294)

Assim, na obra de Ehrlich encontramos que o direito tal como entendido pelos juristas é uma formulação que tem por base o direito vivo, ainda que de certa forma desatualizada. Entretanto para que se possa rejeitar a validade do direito dos juristas seria necessário que se levasse a cabo uma pesquisa sociológica a fim de constatar a derrogação deste pelo direito vivo. O direito positivo surge então como uma declaração do direito vivo que goza, como dizem os juristas, de presunção juris tantum de validade, ou seja, deve ser considerado válido até que se demonstre o contrário.

Por paradoxal que pareça é um fato, não obstante, que a doutrina que nega que os legisladores positivos são o que pretendem ser – criadores do Direito – tem o efeito, se não o propósito, de fortalecer sua autoridade. (Kelsen, 2001: 295)

A sociologia do direito, na medida em que afirme que o direito tem um caráter normativo e que ele decorre da natureza, atribui ao direito positivo uma autoridade da qual este não gozava, a autoridade da ciência. A sociologia do direito, enquanto estudo científico, ou pseudocientífico do comportamento humano, se for capaz de identificar o direito que corresponde a uma determinada sociedade, livra o legislador do encargo de defender com suas opiniões e interesses pessoais as leis que busca elaborar.

5.2.Dualismo entre Direito e Estado e Hipostatização

A sociologia do direito incorre em um outro erro, na opinião de Kelsen, quando trata o direito como um produto do estado, reconhecendo a este último características próprias de indivíduos humanos. O Estado é apresentado como dotado de uma vontade, de uma consciência ou de interesses, atributos estes que não se pode facilmente identificar no fenômeno que chamamos Estado.

Não é apenas a sociologia do direito que admite o dualismo entre direito e estado. De fato, como o admite o próprio Kelsen, não há muita controvérsia acerca da distinção destes dois objetos.

(…) todas las teorías actuales de alguna importancia hállanse de acuerdo en la cuestión substancial, que puede formularse de modo semejante a éste: el Estado, considerado como una asociación de hombres, cae bajo la categoría de la Sociedad; y en tanto que a la Sociedad se la considera como una conexión de causas y efectos, al estilo de la Naturaleza, o como una sección de la Naturaleza, se atribuye al Estado una realidad psíquica y aun física, en el sentido de la realidad que se dice poseen las cosas del reino naturalista; mientras que del Derecho, en cuanto conjunto de normas, es decir, de proposiciones que expresan un deber ser, se predica tan sólo una cierta idealidad que, en el caso del Derecho positivo, no es más que relativa. (Kelsen, 1934: 7)

Dentre os autores aqui mencionados todos admitem tal dicotomia. Tanto em Ehrlich quanto em Durkheim o Estado aparece como um órgão da sociedade que tem como um de seus atributos revelar o direito, no caso de Ehrlich, e formular o direito, em Durkheim. Em Luhmann o Estado também aparece como distinto do direito. De fato, constitui um processo histórico razoavelmente lento o da positivação do direito, passando a existir a possibilidade de alteração do direito pelo Estado.

Na opinião de Kelsen, diferentemente, o Estado e o Direito são uma e mesma realidade. O Estado tal como o entendemos é o próprio ordenamento jurídico. Quando se afirma que o Estado tem determinada obrigação, pretende-se dizer que existe uma norma de uma ordem jurídica que determina que um determinado órgão da comunidade jurídica constituída por esta mesma ordem, está obrigado a realizar determinados atos. Quando se afirma que um Estado declarou sua vontade assinando um tratado de paz com um outro Estado, pretende-se dizer que um determinado indivíduo, indicado pelo ordenamento jurídico, realizou um ato para o qual estava autorizado e que deve ser interpretado como obrigando o Estado (indivíduos enquanto órgãos da comunidade jurídica) a determinadas condutas (aquelas estabelecidas pelo tratado).

Leve-se em conta aqui a definição de pessoa jurídica acima apresentada. O Estado seria a personificação da ordem jurídica, na opinião de Kelsen. O Estado é a pessoa jurídica cuja ordem normativa é o Direito.

Kelsen considera a tentativa de explicar o Estado como um ente dotado de uma dupla natureza, uma jurídica e uma sociológica, onde o direito corresponderia à natureza normativa do estado, como a doutrina dominante.

Esta "teoría de las dos naturalezas" del Estado debe ser considerada como la doctrina dominante en la actualidad. Pero es impotente para salvar una objeción suscitada por la Teoría del conocimiento; a saber: que la identidad del objeto del conocimiento no está garantizada más que por la identidad del proceso cognoscitivo, es decir, por la identidad de la dirección, de los caminos del conocimiento (Kelsen, 1934: 8)

Criou-se, segundo Kelsen, um ramo do conhecimento destinado a compreender ambas as naturezas do Estado. Uma espécie de aliança entre um conhecimento normativo e um conhecimento causal no intuito de alcançar uma adequada descrição deste objeto de estudo. Tal tentativa, entretanto, revelou que apenas a parte normativa alcançava desenvolvimento significativo.

A una consideración detenida no puede pasar tampoco inadvertido el hecho de que dentro de esa ciencia (tan discutible desde el punto de vista metodológico): la Teoría General del Estado, constituida por la unión de la Teoría del Derecho político con la Sociología del Estado, y tan contradictoria que destruye su objeto y acaba por destruirse a sí misma al postular conscientemente la dualidad de sus métodos, la diversidad fundamental de finalidades y planteamientos de las cuestiones; dentro de esta ciencia, decimos, la parte más importante, la más rica de contenido es precisamente la Teoría jurídica. (Kelsen, 1934:8)

O Estado enquanto um ente distinto do direito, superior aos indivíduos, criador e suporte do direito, e dotado de uma realidade "natural" (no sentido de pertencente à ordem do ser), não se presta a estudo aprofundado. Muito pouco se pôde dizer do Estado tratado desta forma.

Um sistema de normas, segundo essa visão, possui a unidade e a individualidade, que o faz merecer o nome de ordem jurídica nacional, exatamente porque está, de um modo ou de outro, relacionado a um Estado como fato social concreto, porque é criado "por" um Estado ou válido "para" um Estado. Considera-se que o Direito francês se baseia na existência de um Estado francês como uma entidade social, não-jurídica. considera-se a relação entre o Direito e o Estado como sendo análoga à que existe entre o Direito e o indivíduo. Pressupõe-se que o Direito – apesar de criado pelo Estado – regula a conduta do Estado, concebido como um tipo de homem ou supra-homem, exatamente como o Direito regula a conduta dos homens.(Kelsen, 2000b: 262)

O Estado, enquanto algo distinto do direito ainda tem de conservar determinadas características típicas de uma ordem jurídica. O fato de que o ordenamento jurídico regula a conduta dos indivíduos é traduzido pela supremacia da vontade do Estado sobre a vontade individual, o fato de que o ordenamento jurídico seja aplicável a um determinado território e a uma determinada população é traduzido pelo fato de que o Estado tem um "povo" e de que ele ocupa um determinado lugar no espaço.

Esta concepção do Estado como distinto do direito e constituindo uma unidade sociológica implica na personificação da ordem jurídica ou na definição de um conceito completamente distinto do conceito jurídico de Estado. Teríamos, então um Estado brasileiro em sentido sociológico que não coincidiria com o Estado brasileiro em sentido jurídico. Possivelmente tal Estado teria um território e um povo diferentes. Tal construção, entretanto, jamais foi levada a cabo.

De acordo com Kelsen, os diversos ordenamentos jurídicos podem ser descritos e distinguidos uns dos outros sem que seja necessária qualquer referência aos diferentes Estados. O contrário, porém, não é verdadeiro. Não se pode distinguir o Paraguai do Brasil sem qualquer referência aos ordenamentos jurídicos. Não se pode caracterizar o território brasileiro como aquele em que está o Estado brasileiro. Não se pode caracterizar o povo brasileiro como aquele pertencente ao Estado brasileiro. O território brasileiro é aquele definido pelo direito internacional particular composto pelos tratados assinados por indivíduos determinados e autorizados para tanto pelo ordenamento jurídico brasileiro. O povo brasileiro é composto pelos indivíduos qualificados como brasileiros no ordenamento jurídico brasileiro, mais precisamente, no art. 12 da Constituição Federal de 1988.

O Direito francês pode ser distinguido do Direito suíço ou do mexicano sem a necessidade de recorrer à hipótese de que um Estado francês, suíço ou mexicano existam como realidades sociais de modo independente. O Estado como comunidade em sua relação com o Direito não é uma realidade natural, ou uma realidade social análoga a uma natural, tal como o homem é em relação ao Direito. Se existe uma relação social relacionada ao fenômeno que chamamos de "Estado" e, portanto, um conceito sociológico distinto do conceito jurídico de Estado, então a prioridade pertence a este, não àquele. O conceito sociológico – cujo direito ao termo "Estado" será ulteriormente examinado – pressupõe o conceito jurídico, não vice-versa. (Kelsen, 2000b :263-264)

Assim, o conceito sociológico de estado depende do conceito jurídico de estado, mas o conceito jurídico de estado é independente de qualquer consideração sociológica. Kelsen entende que o conceito sociológico de estado não passa de uma personificação do conceito jurídico de estado. Trata-se, segundo ele, de um erro comum, não apenas na sociologia do direito, ao qual o autor denomina hipostatização. [10]

El dualismo de Estado y Derecho es el resultado de un error del pensamiento que es típico en la historia del espíritu y muy corriente en todos los dominios del conocimiento. Para argumentar más fácilmente, se personifica la unidad del sistema y se hipostatiza la personificación, de tal manera, que lo que en principio no era sino un medio auxiliar del pensamiento, la mera expresión de la unidad de un objeto o sistema, acaba por convertirse en sistema u objeto autónomo. (Kelsen, 2000b: 100)

O pensamento jurídico personifica a ordem jurídica para tratá-la como sujeito de direitos e deveres. A descrição do ordenamento jurídico é muito mais simples quando se vale de tais personificações. Assim, quando se afirma que o Estado (enquanto uma personificação jurídica, uma pessoa jurídica) tem o direito de perseguir criminosos, temos uma descrição simples e clara do fenômeno jurídico seguinte: há uma norma que determina que certos indivíduos, atuando enquanto órgãos da comunidade jurídica (o que significa que as ações destes indivíduos deverão ser imputadas à comunidade jurídica como um todo) estão autorizados a requerer que determinados outros indivíduos (agindo enquanto órgãos da mesma comunidade), instaurem um processo determinado com o objetivo de que um outro indivíduo (órgão da comunidade, no caso, o juiz) ordene a outros indivíduos (órgãos da comunidade) que prendam um determinado indivíduo que é tido como um criminoso.

Por "órgão da comunidade jurídica" deve-se entender um determinado indivíduo que, de acordo com a ordem jurídica, deve agir de uma determinada forma, sendo que quaisquer conseqüências jurídicas de suas ações devem ser imputadas a outros indivíduos, determinados pela mesma ordem jurídica.

A simplificação promovida pela personificação é por certo útil. Entretanto, a tese segundo a qual Direito e Estado são duas realidades distintas, atribuindo a este último uma realidade sociológica, hipostatiza a personificação. Aquela construção do intelecto que servia como uma ferramenta para facilitar a descrição é tomada como uma entidade concreta. Esta entidade é, ela mesma, entendida como causa do ordenamento jurídico.

Kelsen compara este tipo de pensamento com a idéia de que existe um deus da chuva que faz chover, ou um ser mitológico qualquer que faz com que o sol nasça. Por trás da realidade que se pode perceber, imagina-se um ser que cria tal realidade. Por trás do direito, há o Estado.

Enfim, para Kelsen, o dualismo entre Direito e Estado não é sustentável. O Estado só pode ser definido por uma referência ao Direito, mas este pode se definido e estudado sem que se pressuponha a existência de qualquer Estado enquanto ente distinto do ordenamento jurídico. Para Kelsen, Direito e Estado são uma só e mesma realidade.

Contudo, esse dualismo é teoricamente indefensável. O Estado como comunidade jurídica não é algo separado de sua ordem jurídica, não mais do que a corporação é distinta de sua ordem constitutiva. Uma quantidade de indivíduos forma uma comunidade apenas porque uma ordem normativa regula sua conduta recíproca. (Kelsen, 2000b 263)

Este dualismo, entretanto, para o autor, tem um forte apelo político, razão pela qual é difícil sua superação.

Tomar essa figura de linguagem literalmente, hipostatizar a personificação e então falar do Estado como uma coisa diferente de "sua" ordem jurídica, imaginar o Estado como a autoridade, comunidade ou poder por trás do Direito – exatamente como Hélio era imaginado por trás do sol, Selene por trás da lua – e tornar o Estado o Deus do Direito: esta é a relíquia do animismo na jurisprudência e na teoria política, a qual a Teoria Pura do Direito tenta eliminar porque conduz a problemas falsos e tautologias vazias. Parece um esforço infrutífero. Pois o interesse político de fazer as pessoas acreditarem em um deus do Direito é mais forte que o interesse por uma análise científica e uma descrição correta dos fenômenos envolvidos.(Kelsen, 2001: 291)

As sociologias do direito, feitas algumas ressalvas no que concerne às sociologias do direito weberiana e luhmaniana, incorrem em uma hipostatização na medida em que tomam o Estado ou a Sociedade como entes criadores de direito, que têm necessidades, vontades e interesses. As normas jurídicas, na medida em que são aplicadas, constituiriam uma realidade distinta do próprio direito, o Estado. Seria esta realidade que "sustentaria" o direito, estaria por trás da realidade jurídica da mesma forma como Hélio era tido como estando por trás do sol.

5.3.Confusão entre ser e dever ser

De acordo com Kelsen a sociologia do direito incorre em erro quando confunde "ser" e "dever ser". Kelsen identifica este tipo de confusão em Eugen Ehrlich, que trata o direito tanto como um conjunto de normas quanto como um conjunto de comportamentos. Assim, quando Ehrlich critica os juristas por estarem atentos tão somente às regras que determinam o comportamento dos órgãos do estado, afirmando que a sociologia do direito abarca tanto estas como as regras do agir das pessoas em geral, não se pode distinguir com precisão se tais regras têm um significado normativo ou se se tratam de regularidades de conduta.

É como se Ehrlich identificasse a oposição entre a regra para a ação dos órgãos estatais e a regra para a ação de todos os homens com a oposição entre teórico (científico) e prático, quer dizer, com a oposição entre causal e normativo, entre ser e dever ser! Se fosse correto afirmar que a jurisprudência dominante se ocupa das regras com relação às quais atuam os órgãos do Estado (e, em conseqüência, com relação às quais devem atuar, no sentido de Ehrlich), então seria igualmente correto afirmar que uma disciplina teórica e científica como a sociologia do direito de Ehrlich, determina as regras com relação às quais atuam não apenas os tribunais, mas também todos os homens, sobretudo se se considera que estas "regras da ação humana geral" são não só regras de ser mas também e ao mesmo tempo regras de dever ser, quer dizer, normas.(Kelsen, 1992: 219).

Se a jurisprudência é entendida como a descrição da regularidade do comportamento de juízes e outros órgãos do estado, as regras que descreve são regularidades da conduta. Tais regularidades da conduta, no entanto, não são, como Ehrlich afirma do direito, tão somente objetos ideais, que existem nas mentes dos indivíduos. Tampouco o são as regras do agir das pessoas em geral, se forem entendidas como regularidades de conduta.

A sociologia do direito, quando trata de identificar o direito como algo da ordem do ser e, portanto, como um objeto de estudo de uma ciência causal, incorre necessária e alternativamente em uma destas asserções: a) o direito não tem uma natureza normativa ou b) a sociologia supera a dicotomia entre ser e dever ser.

Em geral a superação desta dicotomia é feita sem muita consciência. Em Durkheim, por exemplo, o fato de que a sociedade seja superior ao indivíduo em riqueza e complexidade, ou seja, de que a consciência e as representações de uma coletividade de indivíduos seja maior quantitativamente e mais bem elaborada, talvez, qualitativamente, implica em que a sociedade tenha uma força moral sobre o indivíduo. Esta última afirmação, como, em geral, a afirmação de que o fato social é coercitivo, pode significar que a sociedade determina a conduta individual em um sentido causal, ou que o indivíduo deva, em um sentido normativo, acatar as representações coletivas. Em Durkheim ambos os sentidos parecem estar presentes simultaneamente.

Nicklas Luhmann procura conscientemente superar a dicotomia entre ser e dever ser. Como vimos, este autor entende que a sociologia do direito esteve limitada à idéia de que a noção de dever ser é uma noção básica, fundamental, que não pode ser reduzida a outro elemento. Tal idéia foi prejudicial à sociologia na medida em que lhe vedou as portas inúmeras questões. Para Luhmann o dever ser não é oposto ao factual, mas o normativo é oposto ao cognitivo, e isto apenas relativamente. O normativo é uma parte do factual.

Luhmann argumenta que o dever ser e o ser não devem ser distinguidos semanticamente, mas funcionalmente. Esta afirmativa está em oposição à idéia que Kelsen faz do dever ser. Kelsen afirma:

Ser y debe ser son determinaciones generales del pensar mediante las cuales podemos percibir todos los objetos. Simmel comenta acertadamente: "El debe ser es una categoría, que al sumarse al significado objetivo de la representación, le asigna una función determinada para la praxis, tal como ésta obtiene una función tal para la representación concomitante del ser, del no ser, del ser deseado, etcétera".(…) Tal como el ser, el debe ser es una categoría originaria y, de la misma manera como no puede describirse qué es el ser o el pensar, tampoco hay una definición del debe ser. (in: Coreea, 1989: 286)

Para Kelsen a distinção entre ser e dever ser não é uma distinção entre dois fatos diferentes. A distinção entre sentenças normativas e sentenças descritivas é para ele uma distinção lógico-formal. O formato da construção normativa é distinto do formato da construção descritiva. Aquela se apresenta na forma "Se A, então deve ser B", diferentemente da forma "Se A, então B" da construção descritiva. O dever ser, que aparece como parte da construção normativa traduz um conteúdo específico de sentido, que não se refere a um determinado fato na realidade, mas a algo devido. Ao contrário de Luhmann, Kelsen trata o dever ser, assim como o ser, como conceitos fundamentais, que não podem ser mais explicados senão descritos em sua utilização. Ser e dever ser são, em Kelsen, essencialmente distintos e qualquer redução de um ao outro é para ele impossível.

A distinção luhmaniana aponta para uma característica bastante conhecida do significado normativo. Quando afirmamos que algo deve ser, não consideramos esta afirmação refutada pela afirmação de o que deve ser de fato não é. Assim, quando afirmamos que os seres humanos não devem roubar, não abandonamos tal afirmação pela constatação de que os seres humanos de fato roubam. Para Luhmann é esta a nota diferencial entre ser e dever ser. A forma normativa com a qual se expressa a idéia de que não se espera que uma determinada expectativa seja abandonada em função de ter sido frustrada não diverge tanto em seu significado, mas em sua função, da forma cognitiva.

Assim a distinção entre o normativo e o cognitivo estaria em que o normativo se presta a representar expectativas mais maleáveis e mais resistentes a frustrações, enquanto que o cognitivo representa expectativas menos maleáveis, susceptíveis a serem abandonadas quando confrontadas com contra-exemplos.

Luhmann, de fato, aborda esta questão de um modo completamente distinto daquele abordado por Kelsen. Entretanto, Luhmann, ao afastar a distinção essencial em termos lógico-lingüísticos entre o normativo e o factual, por certo não os trata como determinados conteúdos de sentido, ou melhor como estruturas formais de significado. O normativo e o cognitivo são tomados como determinados fatos psicológicos, quais sejam, como expectativas. Quando Luhmann deixa de tratar o normativo e cognitivo como significados formais, deixa de tratar do mesmo objeto que tratam Kelsen e tantos outros. Do ponto de vista kelseniano diríamos que Luhmann deixa de lado o normativo para tratar de um determinado fenômeno psíquico, que daria origem a representações normativas.

Assim, Luhmann não analisa a norma segundo a qual não se deve matar, mas a expectativa nutrida por determinados indivíduos de que os homens não matarão outros homens. Entretanto, em termos de significado, tratam-se de duas coisas distintas. Ainda que Luhmann pudesse demonstrar que representações normativas nascem a partir de expectativas de comportamento, o que demandaria uma extensa verificação empírica, isto não afastaria a distinção em termos de significado que há entre o normativo e o cognitivo. Cristãos em guerra podem considerar a guerra de que participam injusta, podem acreditar que não se deve matar em qualquer situação, podem estar profundamente deprimidos com o fato de estarem lutando e, ainda assim, nutrir expectativas de que os homens com os quais convivem matarão outros homens e, até mesmo, de que eles próprios matarão os inimigos quando lhes for dada uma oportunidade.

De fato o cognitivo e o normativo enquanto diferentes formas de expectativas de indivíduos, são ambos factuais. Apesar de que o normativo seja distinto do cognitivo, em Kelsen e em toda a tradição neo-kantiana, a representação psicológica do normativo é por certo um fenômeno que pode ser descrito na forma cognitiva, ou seja, a representação psicológica do normativo é factual. Esta, entretanto, não é uma inovação suficientemente significativa para justificar a rejeição desta tradicional dicotomia.

Note-se ainda que a asserção segundo a qual: ‘as representações psíquicas que assumem um formato normativo são expectativas maleáveis (no sentido de que se adaptam a diferentes situações) que não podem ser alteradas, em virtude de uma necessidade social ou individual, quando confrontadas com qualquer contra-exemplo’ é uma asserção que requer uma verificação empírica que não foi, contudo, apresentada.

Para Luhmann, em face da grande complexidade e contingência do mundo, os seres humanos têm uma necessidade existencial de estruturas de redução da complexidade. Tais estruturas podem ser adquiridas mediatamente, e não apenas em função de uma construção a partir da própria experiência. Assim, compartilham-se tais estruturas de redução da complexidade entre ego e alter ego. A admissão de que haja um alter ego semelhante ao ego traz ao mundo uma dupla contingência, já que se admite a mesma liberdade que o ego goza em face ao mundo também ao alter ego. Em situações de dupla-contingência as expectativas soem ser frustradas com uma freqüência muito maior que em situações de simples contingência. Daí que as relações entre os homens em geral engendrem estruturas de redução de complexidade com um caráter normativo, que, como Luhmann o entende, é caracterizado pela maior flexibilidade e por não serem facilmente alteradas em face de contra-exemplos.

Desta forma, tem-se que em situações de dupla-contingência, as expectativas de expectativas assumem uma forma normativa porque tal forma possibilita expressar a baixa disposição a alterar as expectativas em face de contra-exemplos.

As normas que decorrem do costume parecem de fato estar ligadas a expectativas de comportamento, de forma que no que toca a normas que têm essa origem a afirmação de Luhmann soa plausível. Entretanto, nem toda norma é decorrente do costume. As afirmações de Luhmann bem podem corresponder às normas geradas a partir do costume. Assim, espera-se que os indivíduos se sentem à mesa em um jantar e que comam com a boca fechada. Talvez seja possível tomar as regras de etiqueta que afirmam que se deve comer de boca fechada como expectativas acerca do comportamento efetivo dos homens. Entretanto existem inúmeros exemplos de normas que não tem este caráter, que não decorrem do costume.

Tomemos um exemplo. Em um jogo de pique-pega tem-se uma criança, chamada de "pego". Esta criança persegue um grupo de crianças. Caso o "pego" toque qualquer delas, esta passa a ser o "pego" e o ex "pego" fica livre para fugir do novo "pego". Há também um "pique", um lugar em que as crianças podem ficar sem que o "pego" esteja autorizado a tocá-las. Caso alguém seja tocado ali, isto não será considerado válido. Em um determinado jogo as crianças ficaram aborrecidas porque todos os livres ficaram permanentemente parados no "pique", de modo que a perseguição cessou por completo. Foi acordada, então, a seguinte regra: "ninguém pode ficar no pique por mais de 15 segundos".

Não se pode realmente aceitar que as crianças participantes realmente esperassem que ninguém ficasse mais do que 15 segundos no pique e que estavam dispostas a continuar esperando isto mesmo que fosse freqüentemente contraditado pela experiência. Tanto não é assim que pode ser criada, posteriormente, a regra segundo a qual quem permanecer por mais de 15 segundos no "pique" será considerado "pego". Neste caso, a regra expressa, talvez, justamente a expectativa oposta. Espera-se que as crianças ficarão no pique pelo máximo de tempo possível, e ficarão por mais de 15 segundos sempre que conseguirem evitar a sanção ou mesmo quando não o conseguirem.

Segundo Kelsen o ordenamento jurídico é uma técnica social, ou melhor, uma técnica de controlar o comportamento dos seres humanos. O estabelecimento de sanções para determinadas condutas tem por objetivo evitar tais condutas. Assim, o direito tem como pressuposto que a conduta contrária àquela pretendida ocorrerá.

Para Kelsen podem-se dividir as formas de produção de normas em produção "consciente" e produção "inconsciente" de normas. A produção do direito costumeiro tem um caráter inconsciente, já que os indivíduos cujos atos contribuem para o surgimento da norma não estão conscientes de que suas ações são atos criadores de normas. Por outro lado, os legisladores que votam um projeto de lei têm consciência de que seus atos são atos produtores de normas, assim como as pessoas que assinam um contrato. As normas que decorrem de uma produção consciente, em geral, são postas em face de uma expectativa do comportamento oposto. Quando se aprova uma lei estabelecendo que a "gambiarra" para desviar energia elétrica constitui crime de furto, isto é feito porque há uma expectativa de que indivíduos furtem energia.

Como se pode admitir que a norma seja expectativa de comportamento quando os indivíduos colocam cercas elétricas sobre seus muros para prevenir furtos? Acaso não se pode admitir que a norma que proíbe o furto seja válida e que, ainda assim, os indivíduos esperam que outros tentarão praticar o furto? Segundo Luhmann, a validade da norma corresponde à impossibilidade de alteração constante das expectativas. Ora, tem de admitir-se, então, uma "expectativa válida", a de que os indivíduos não furtarão, e uma "expectativa inválida", a de que os indivíduos de fato furtarão.

A oposição que Luhmann estabelece entre expectativas cognitivas e normativas pode ser útil para a distinção de formas de expectativas, mas não corresponde à distinção semântica entre ser e dever ser. Quando Luhmann afirma que a distinção entre o normativo e o cognitivo, entre o ser e o dever ser, não é semântica, podemos entender apenas que ele não está tratando de "ser" e "dever ser" no sentido tradicional, já que estes são geralmente entendidos como duas estruturas semânticas distintas. Se "ser" e "dever ser" não se distinguem por seu significado, mas pela função que desempenham em um determinado sistema social, "ser" e "dever ser" não são conteúdos de sentido, mas eventos psíquicos ou sociais. Conteúdos de sentido não têm "funções" [11] em sistemas sociais, o fato psicológico da representação de tais conteúdos de sentido pode ter tais funções.

Desta forma, a construção de Luhmann não pode afastar a tradicional oposição entre "ser" e "dever ser", mas apenas construir novos conceitos de "ser" e "dever ser", referentes a expectativas de expectativas.

Kelsen afirma que:

La oposición de ser y debe ser es lógico-formal y mientras que uno se mantenga dentro del límite de las consideraciones lógico-formales, no habrá camino que conduzca del uno al otro; los dos mundos se encuentran separados por un abismo insalvable. La pregunta por un por qué de un debe ser concreto, puede llevar en la lógica solamente hacia un debe ser, tal como la pregunta por el por qué de un ser obtiene siempre únicamente una respuesta del ser. (in Correa, 1989: 286)

Luhmann pretende refutar uma oposição lógico-formal por uma constatação de que determinadas representações psíquicas correspondem a determinadas funções e outras representações psíquicas correspondem a outras. Entretanto, a norma enquanto um conteúdo de sentido é algo diverso da representação psíquica deste mesmo conteúdo de sentido. A norma "não adulterarás" não é o mesmo que o fato: "Antônio (ou um grupo de pessoas) pensa: não adulterarás". Estudar o fato de que indivíduos têm idéias liberais não é o mesmo que estudar as idéias liberais.

A definição de direito a que Luhmann alcança a partir desta desconstrução da noção de "dever ser" é diversa da definição de direito dos juristas. O direito, para Luhmann corresponde a uma determinada estrutura de redução da complexidade, um sistema de expectativas que não podem ser alteradas com facilidade e em cada situação particular.

Retomemos a definição de direito apresentada anteriormente pelo autor. Segundo ele, direito são "expectativas comportamentais generalizadas congruentemente. (...) O direito não é primariamente um ordenamento coativo, mas sim um alívio para as expectativas" (Luhmann, 115). A vigência do direito é definida como a "impossibilidade fática" de rever as expectativas a cada momento. Esta definição não corresponde à definição de direito dos juristas. A norma da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que afasta a vigência da própria CLT no que toca às relações de trabalho doméstico (art. 7º, alínea "a") é considerada como parte do Direito pelos juristas, inclusive com a conseqüência de que não haja no direito brasileiro regulamentação referente à jornada de trabalho doméstico. Entretanto, é no mínimo discutível se existe a expectativa congruentemente generalizada e que não pode ser alterada a cada instante, de que as empregadas domésticas não têm direito à limitação da jornada de trabalho. Desta forma não é verdade, ao menos não para todos os casos, que as normas jurídicas são expectativas que não podem ser facilmente revistas.

Por outro lado, é bastante comum que as donas de casa dêem férias de 30 dias a suas empregadas domésticas, apesar de que legalmente elas têm direito apenas a vinte dias úteis. É comum que as pessoas esperem que uma empregada doméstica trabalhe aproximadamente oito horas diárias, ou seja, que receba algo a mais quando tiver de trabalhar à noite ou em feriados. Isto não implica que o direito assim o determina.

Caso a sociologia do direito de Luhmann seja coerente, deverá tratar como direito apenas as expectativas congruentemente generalizadas, tal como definido pelo autor. Neste caso, inúmeras normas jurídicas não serão tidas como direito, e outras inúmeras expectativas poderão ser tidas como direito. Teremos, então, um direito em sentido sociológico e um direito em sentido jurídico. A sociologia do direito se debruça sobre o direito em sentido sociológico, não em sentido jurídico.

Ao rejeitar a distinção entre ser e dever ser, e, portanto, rejeitar a definição jurídica de direito, que envolve um ordenamento normativo, Luhmann se vê na necessidade de definir um conceito sociológico do direito. Ao elaborar tal conceito, diverge daquilo que normalmente se entende por direito. Assim, ou a sociologia do direito toma para si a definição jurídica de direito ou se debruça sobre um fenômeno diverso daquele que chamamos de direito. Neste último caso não há qualquer razão para esta sociologia se chamar sociologia do "direito". Não há uma razão para que se atribua o mesmo nome para fenômenos completamente distintos. A sociologia do direito de Luhmann, se levar a sério suas próprias definições, será uma sociologia das expectativas congruentemente generalizadas, não do direito.

Um conceito sociológico de direito é, portanto, tanto melhor quanto mais se aproxime da definição jurídica de direito. Kelsen tem, assim, razão quando afirma que a sociologia do direito apenas pode encontrar seu objeto de estudo com auxílio das noções desenvolvidas pela jurisprudência. Em suas palavras:

A sociologia do Direito não pode traçar uma linha entre seu objeto – o Direito – e os outros fenômenos sociais; não pode definir seu objeto – o Direito – e os outros fenômenos sociais; não pode definir seu objeto específico como distinto do objeto da sociologia geral – a sociedade – sem pressupor, ao fazê-lo, o conceito de lei como definido pela jurisprudência normativa. A questão de qual conduta humana, como lei, pode ser o objeto da sociologia, de como a conduta efetiva dos homens a ser caracterizada como lei é distinguível de outra conduta, provavelmente só pode ser respondida da seguinte maneira: a "lei" no sentido sociológico é a conduta efetiva estipulada como condição ou conseqüência em uma norma jurídica, no sentido da jurisprudência analítica. (...) A função da norma jurídica, para a sociologia do Direito, é designar seu objeto particular e destacá-lo da totalidade dos fatos sociais. Nessa medida, a jurisprudência sociológica pressupõe a jurisprudência normativa. É um complemento da jurisprudência normativa. (Kelsen, 2001: 265)

5.4.Impossibilidade de definição sociológica de Direito e Estado

Anteriormente tratou-se de deixar clara a posição de Kelsen segundo a qual Direito e Estado não são senão uma mesma realidade. Entretanto, preocupava-nos mostrar ali a crítica que Kelsen dirige à tese segundo a qual há um Estado independente do Direito, enquanto um ente coletivo ou, de uma maneira geral, dotado de uma realidade sociológica. Há, entretanto, correntes de pensamento sociológico que não incorrem neste tipo de pensamento. A sociologia compreensiva, e a sociologia que adota o individualismo metodológico como um todo, não toma o Estado como um ente concreto, dotado de uma realidade distinta daquela dos indivíduos. Aqui, apesar de o Estado diferir do Direito, ele não passa de um determinado conjunto de relações humanas. Também o Direito é definido por esta sociologia desta mesma forma. O Direito não é idêntico ao estado, mas é, antes, um determinado conjunto de ações humanas individuais.

É ainda mais importante analisar esta forma de pensamento sociológico, presente em Weber, porque ela escapa das críticas anteriormente formuladas por Kelsen. Desta forma Weber aceita a distinção entre ser e dever ser, não toma o Estado como um ente superior aos indivíduos e que lhes outorga o direito e nem constrói o direito como um conjunto de normas derivadas de considerações acerca do comportamento efetivo dos indivíduos.

Em Weber o Estado é um conjunto de ações humanas individuais recíprocas por seu sentido e que se repetem no tempo. O direito também é um determinado conjunto de ações humanas individuais orientadas por um determinado sentido, qual seja, a representação da legitimidade de uma determinada ordem. Direito, portanto, não é tratado aqui como um conjunto de normas, mas como um conjunto de ações ou um conjunto de representações.

As críticas que Kelsen dirige a esta forma de sociologia são, a um só tempo, mais sutis e mais importantes. Para Kelsen a sociologia compreensiva de Weber constitui a tentativa mais bem sucedida de elaboração de uma sociologia do direito:

Até agora, a tentativa mais bem-sucedida de definir o objeto de uma sociologia do direito foi feita por Max Weber. Ele escreve: "Quando nos ocupamos com '' direito'' e, '' ordem jurídica'', ''regra de direito'', devemos observar estritamente a distinção entre um ponto de vista jurídico e um sociológico. A jurisprudência pede as normas jurídicas idealmente válidas. Ou seja... qual significado normativo deverá ser vinculado a uma sentença que aparenta representar uma norma jurídica. A sociologia investiga o que efetivamente está acontecendo na sociedade por que existe certa possibilidade de que os seus membros acreditem na validade de uma ordem e adaptem a sua conduta a essa ordem". Daí, segundo essa definição, o objeto de uma sociologia do direito é a conduta humana que o indivíduo adaptou a uma ordem porque considera essa ordem como sendo "Válida"; e isso significa que o indivíduo cuja conduta constitui o objeto da sociologia do direito considera a ordem da mesma maneira que a jurisprudência considera o direito. Para ser objeto de uma sociologia do direito a conduta humana deve ser determinada pela idéia de uma ordem válida. (Kelsen, 2000b: 254)

Esta delimitação do objeto de estudo da sociologia do direito não trata o direito como algo diretamente experimentável, nem como um determinado sistema de condutas humanas ou de expectativas humanas. O objeto da sociologia do direito é o comportamento humano quando adaptado por uma determinada idéia de direito. Assim, segundo Kelsen, a sociologia compreensiva do direito precisa, para definir seu objeto de estudo, fazer referência a um determinado conteúdo de sentido que esteja efetivamente presente nas mentes dos indivíduos.

Esta delimitação, no entanto, não é suficiente. É necessário que se identifique a que ordem em especial têm os indivíduos de orientar sua conduta para que ela seja considerada como um objeto da sociologia do direito.

O objeto da jurisprudência sociológica não são normas válidas - as quais constituem o objeto da jurisprudência normativa - mas a conduta humana. Que conduta humana? Apenas a conduta humana tal que, de um modo ou de outro, está relacionada ao "Direito". O que distingue sociologicamente tal conduta da conduta que está fora do campo da sociologia do direito? Um exemplo pode servir para esclarecer o problema. Alguém recebe um aviso das autoridades fiscais, solicitando o pagamento de $10.000 de imposto de renda, ameaçando com uma sanção a omissão do pagamento. No mesmo dia, a mesma pessoa recebe um aviso do chefe de uma famigerada quadrilha exigindo que ela deposite $10.000 em determinado lugar, ameaçando matá-la caso ela não cumpra exigência, e uma terceira carta, na qual um amigo pede uma grande contribuição para o seu sustento. Em que aspecto a notificação do imposto difere, sociologicamente, da carta de chantagem; em que aspecto ambas diferem da carta do amigo? É óbvio que existem três diferentes fenômenos, não apenas a partir de um ponto de vista jurídico, mas também a partir de um ponto de vista sociológico, e que a carta do amigo, pelo menos, com o seu efeito sobre a conduta do destinatário não é um fenômeno que esteja dentro do campo da sociologia do direito. (Kelsen, 2000b: 253)

Neste exemplo temos três situações em que as ações exteriores dos indivíduos podem ser idênticas. Entretanto, o pagamento feito a um amigo, segundo Kelsen, não é um objeto da sociologia do Direito. O pagamento feito ao criminoso seria objeto da sociologia do direito, ou melhor, da chamada criminologia, e o pagamento feito às autoridades fiscais também seria um objeto da sociologia do direito. No entanto, como se podem diferenciar sociologicamente tais comportamentos? A referência ao conteúdo de sentido subjetivamente real não basta. As dificuldades são inúmeras. Como se pode verificar tal conteúdo de sentido? Este sentido tem de ser comum a todos os indivíduos? À maioria deles?

Caso esta definição sociológica do objeto da sociologia do direito seja tomada a sério, ou seja, a sociologia do direito se ocupe daquelas ações que têm por conteúdo subjetivo de sentido uma determinado corpo de normas, teríamos que inúmeras ações normalmente abarcadas pelo direito seriam deixadas de lado.

Segundo Kelsen:

A definição de Max Weber do objeto da jurisprudência sociológica: a conduta humana adaptada pelo indivíduo atuante a uma ordem que ele considera válida, não é inteiramente insatisfatória. De acordo com a sua definição, um delito que foi cometido sem que o delinqüente tivesse qualquer consciência da ordem jurídica não seria considerado um fenômeno relevante. Nesse aspecto, a sua definição do objeto da sociologia é obviamente muito restrita. Uma sociologia do direito que investiga as causas da criminalidade também levará em consideração delitos que foram cometidos sem que o delinqüente adaptasse a sua conduta à ordem jurídica. (Kelsen, 2000b: 257)

De fato, é realmente difícil conceber uma criminologia que não considere como crimes as condutas de indivíduos que não tomam por crimes aqueles atos assim definidos pelo direito. Tomemos o seguinte exemplo. Um sociólogo do direito contratado para fazer uma investigação acerca dos crimes contra a infância em um determinado estado brasileiro descobre que, em uma certa cidade, é comum os padrastos abusarem sexualmente das crianças. Descobre ainda que naquele município nenhum dos atores envolvidos, seja a própria criança, seja a mãe e mesmo os policiais, considere tal prática como criminosa. Ora, neste caso, a levar a sério a definição sociológica não estaríamos diante de algo relevante para a sociologia do direito. Dificilmente, no entanto, este fato ficaria fora do escopo de um tal estudo. Todo e qualquer fato que seja juridicamente considerado como relevante para o direito, é considerado relevante para a sociologia do direito.

A definição weberiana de direito, tal como apresentada em Economia e Sociedade, quando o autor apresenta o caminho que se pode traçar da ação individual à relação social que compõe o direito, também é bastante problemática. Ali o direito é apresentado como relações sociais recíprocas por seu sentido, onde este é uma ordem considerada legítima pelos atores envolvidos. Para Kelsen, uma tal definição está em aberta contradição com os fatos. Assim, afirma o autor, comentando a definição de estado da sociologia de cunho individualista:

Para probar que el Estado es una realidad natural, se acude a la explicación de la unidad de los elementos en la cual consiste el Estado como un caso de acción recíproca, como una interacción psíquica. Una multitud de hombres llega a constituir una unidad si estos hombres mantienen relaciones espirituales recíprocas, es decir, si el alma de uno ejerce un determinado efecto sobre la de otro, siendo a su vez influenciada por ésta (Simmel). Es claro que no sólo los hombres entre sí, sino que todo – si se prescinde de específicamente psíquico – está en conexión mutua, porque este princípio de la acción recíproca es el principio sintético con arreglo al cual puede ser comprendido el mundo como una unidad, desde el punto de vista de la ciencia de la naturaleza. Luego si el Estado ha de poseer alguna característica especial que lo distinga de los restantes objetos constituidos en unidad por la interacción psíquica, es preciso que se añada alguna nota a la de acción recíproca. En esta nueva nota si piensa cuando se lanza esta afirmación: hay grados diversos de interacción psíquica y, en correspondencia, grupos sociales humanos más o menos sólidos. El Estado es aquella especie de la interacción psíquica cuyos elementos mantienen entre sí relaciones espirituales mutuas más intensas; el Estado constituye, pues, el grado más potente de la acción recíproca. Dejemos a un lado lo que haya de entenderse propiamente por "grados" de la acción recíproca. Demos por establecido únicamente que semejante determinación psicológica (o si se prefiere, psicológico-social) del Estado está en abierta contradicción con los hechos. Los hombres que forman y pertenecen al mismo Estado no necesitan en modo alguno hallarse perpetuamente entre sí en la relación de acción recíproca intensa, es decir, no tienen por qué mantener entre sí un intercambio de sus energías espirituales más intenso que con cualesquiera individuos no pertenecientes al mismo Estado. (Kelsen, 1934: 10)

E ainda, com relação à sociologia compreensiva em Weber:

La "Sociología compresiva" designa, pues, con la palabra Estado tanto el orden jurídico normativo (que, en cuanto contenido de ciertas representaciones, posee validez ideal), como el hecho real de las representaciones de este contenido, motivadoras de una conducta adecuada; y de este modo cree haber distinguido la existencia meramente "juridica" de la existencia "sociologica" del Estado. Esta última consistiría tan sólo en la "probabilidad" mayor o menor de que se realice de hecho un determinado obrar, cuyo "sentido" radicaría justamente en su orientación al orden jurídico estatal, atendiendo a su validez normativa. (…) En lo esencial, tratase aquí de una variante del ensayo de comprender el "Estado" como la eficacia de las representaciones psíquicas de las normas, según ya vimos, con la modificación de que aquí es comprendido también como "Estado" el orden jurídico normativamente válido. En lugar de la contraposición corriente de Derecho y Estado, se ofrece aquí la distinción entre un Estado jurídico y un Estado sociológico. (Kelsen, 1934: 26)

Não é verdade que os homens que compõe um determinado estado mantenham entre si relações sociais mais intensas do que as que mantêm com outros homens. Basta considerar cidades fronteiriças, as relações travadas via Internet e relações travadas por acadêmicos com outros profissionais da área. Tampouco é verdade que os homens que compõem um estado mantenham relações sociais recíprocas por seu sentido. Quais são as relações que mantêm entre si o funcionário de um cartório de um tribunal com um assessor da Câmara dos Deputados? E que relações eles mantêm com um fazendeiro de Rondônia?

Tampouco o direito pode ser definido, como o faz Weber, como relações sociais recíprocas por seu sentido, ou como o sentido de determinadas relações sociais recíprocas. Geralmente as pessoas que assinam contratos não têm em mente o direito. Em geral aquelas pessoas que roubam e fogem da polícia, ao contrário do que Weber afirma, não têm em mente uma norma jurídica que as proíbe de roubar, mas sim os maus-tratos dos policiais, a vergonha para a família, a humilhação que se sofre no presídio. Nada disso é jurídico.

Weber se livra deste problema afirmando que não se trata de que tal conteúdo de sentido esteja realmente presente nas mentes dos indivíduos, mas sim que haja a possibilidade, por remota que seja, (Weber, 1997: 252) de que o mecanismo coativo force o cumprimento das normas. Neste segundo caso, toda e qualquer ação pode ser interpretada como objeto da sociologia do direito, já que toda e qualquer ação cairá dentro do âmbito do direito. Sempre há uma probabilidade muito remota de que tribunais condenem indivíduos por condutas que fizeram ou não. Quando um indivíduo discute com outro, sempre há a remota probabilidade de que sua fala seja interpretada como um insulto e seja instaurado um processo contra ele por danos morais. Da mesma forma um elogio dirigido a uma dama distinta pode (ao menos remotamente) ensejar um processo por assédio sexual.

A sociologia do direito não pode definir seu objeto por uma probabilidade "por pequeña que pueda ser". Esta definição de direito é demasiado estranha e pouco útil para que possa ser aceita pela sociologia do direito.

Retornando à definição em termos da unidade do conteúdo de sentido a que fazem referência os indivíduos em questão, Kelsen afirma que, neste caso, a sociologia pressupõe que os indivíduos tenham efetivamente em suas mentes o conceito de direito que têm os juristas.

A sociologia do Direito, tal como definida por Max Weber, é possível apenas referindo a conduta humana que é o seu objeto ao Direito tal como existe nas mentes dos homens como conteúdo das suas idéias. Na verdade, o Direito existe nas mentes dos homens como um corpo de normas válidas, como um sistema normativo. Apenas referindo a conduta humana ao Direito como um sistema de normas válidas, ao Direito tal como definido pela jurisprudência normativa, é que a jurisprudência sociológica é capaz de delimitar o seu objeto específico daquela da sociologia geral; apenas por meio dessa referência é possível distinguir sociologicamente o fenômeno da conduta jurídica do fenômeno da conduta antijurídica, o Estado de uma quadrilha de chantagistas. (Kelsen 2000b: 256)

A sociologia do direito encontra nas mentes dos indivíduos concretos a idéia de direito tal como formulada pelos juristas. A sociologia do direito dificilmente afirmaria haver uma norma jurídica que não correspondesse à norma jurídica tal como descrita pelos juristas. Esta ordem, entretanto, não está efetivamente nas mentes dos indivíduos. A sociologia remete então à probabilidade de que tal ordem venha a ser forçada, ainda que a probabilidade seja remota.

A sociologia do direito chega, assim, a um conceito "sociológico" de direito que equivale ao conceito jurídico de direito. A ordem jurídica, quando for eficaz, ou quando houver probabilidade de que o seja, é o objeto da sociologia do direito.

A conduta humana pertence ao domínio da sociologia do Direito não por ser "orientada" à ordem jurídica, mas por ser determinada por uma norma jurídica como condição ou conseqüência. Apenas por ser determinada pela ordem jurídica que pressupomos como válida é que a conduta humana constitui um fenômeno jurídico. A conduta humana assim qualificada é um objeto da jurisprudência normativa; mas é também um objeto da sociologia do direito na medida em que efetivamente ocorre ou provavelmente ocorrerá. Esta parece ser a única maneira satisfatória de traçar um limite entre a sociologia do direito e a sociologia geral. Essa definição, assim como a formulação de Max Weber, demonstram claramente que a jurisprudência sociológica pressupõe o conceito jurídico de direito, o conceito de direito definido pela jurisprudência normativa. (Kelsen, 2000b: 257):

5.4.1.Conceitos jurídicos definidos sociológicamente

A sociologia weberiana chegou mesmo a definir sociologicamente diversos conceitos tradicionalmente definidos no âmbito do direito. Assim os conceitos de propriedade e de representação.

Grosso modo a propriedade, em sentido jurídico, se refere a um direito oponível erga omines, ou seja, à existência de uma obrigação geral, de todos os demais, de tolerar, ou seja, abster-se de interferir, no uso, gozo, fruição e disposição de uma determinada coisa pelo indivíduo proprietário. Trata-se, portanto, de um dever ser. Em Weber, a propriedade é um conjunto de probabilidades monopolizadas (Weber, 1997: 35). Não está muito claro nos textos pesquisados o que Weber entende por probabilidades monopolizadas, mas tal conceito parece apontar para a propriedade como uma situação fática em que, aparentemente, não há, ou há pouca, probabilidade de que outros indivíduos interfiram.

Por certo que um conceito de propriedade que envolva a baixa probabilidade de interferência por terceiro é, no mínimo, estranho. João, suponhamos, mora de favor na casa de seu cunhado. Ali, utiliza um quarto e os móveis que guarnecem aquele cômodo, sendo que, juridicamente, tal cômodo e seu mobiliário pertencem a seu cunhado. Sociologicamente, quem detém a probabilidade monopolizada? Há pouca probabilidade de que o cunhado de João interfira no uso do mobiliário daquele quarto, mas há uma alta probabilidade de que a namorada dele o faça. A sociologia toma, então, por propriedade aquilo que juridicamente é definido como posse, e mesmo o que não tem relevância jurídica (o uso por parte da namorada)?

Quando o economista fala de propriedade parece referir-se ao conceito jurídico antes que ao sociológico. Qualquer economista conhece as diversas formas de propriedade, tais como definidas juridicamente. Conhece a propriedade imóvel e suas formas de registro, a propriedade de bens móveis e as formas de propriedade por títulos, juridicamente considerados como bens móveis. Dificilmente um economista, ou um sociólogo, consideraria uma alienação como uma transferência de um monopólio de probabilidades, mas como uma transferência de um direito.

O conceito de representação é apresentado por Weber como uma conseqüência de uma relação social. Tal conseqüência consiste em que as ações de um indivíduo sejam consideradas como ações de todos os indivíduos. Esta definição diverge da definição jurídica, segundo a qual o exercício de direitos e o cumprimento de deveres do representado podem ser feitos pelo representante, ou seja, este está autorizado a agir juridicamente em nome daquele. Por esta definição sociológica efetivamente se considera, ou existe uma determinada probabilidade de que se considere, como atos do representado os atos do representante. Pela definição jurídica determinados atos do representante devem ser considerados como atos do representado.

5.4.2.As sociologias do direito e do estado pressupõem a jurisprudência

A sociologia do direito e a sociologia do estado, na medida em que definem seus objetos de estudo como a conduta dos indivíduos orientada a uma determinada ordem, a um determinado sentido, pressupõem a construção elaborada pela jurisprudência normativa.

A que sentido a sociologia se refere quando afirma que o comportamento recíproco dos indivíduos orientado por um determinado sentido constitui o estado ou o direito? Refere-se a uma determinada ordem que não está presente inteira na mente de qualquer dos indivíduos e que, por vezes, sequer é pensada por eles? Segundo Kelsen o estado não se identifica com qualquer das ações que são objeto da sociologia do direito. Ações recíprocas não implicam em algo diferente de duas ou mais ações. Quando a sociologia faz dependente seu conceito de estado de uma ordem que supostamente, com alguma probabilidade ou com uma possibilidade por pequena que seja, está presente na mente dos indivíduos, faz seu conceito de estado dependente da ordem construída pelos juristas.

Essas ações [que compõem o Estado] são, na terminologia de Weber, "orientadas" para certa idéia, ou seja, adaptadas a certa idéia; tal idéia é uma ordem normativa, a ordem jurídica. A ordem jurídica fornece esse esquema de acordo com o qual os próprios indivíduos, atuando como sujeitos e órgãos do Estado, interpretam sua conduta e de acordo com o qual, portanto, a sociologia, que pretende compreender o "Estado", tem de interpretar seu objeto. É um tanto quanto enganoso dizer que esse objeto é o Estado, o Estado "sociológico". O Estado não se identifica com nenhuma das ações que formam o objeto da sociologia, nem com a soma de todas elas. O Estado não é uma ação ou uma quantidade de ações, não mais do que é um ser humano ou uma quantidade de seres humanos. O Estado é aquela ordem da conduta humana que chamamos de ordem jurídica, a ordem à qual se ajustam as ações humanas, a idéia à qual os indivíduos adaptam sua conduta. Se a conduta humana adaptada a essa ordem forma o objeto da sociologia, então o seu objeto não é o Estado. Não existe nenhum conceito sociológico de Estado ao lado do conceito jurídico. Tal conceito duplo de Estado é impossível logicamente, senão por outro motivo, pelo menos pelo fato de não poder existir mais de um conceito do mesmo objeto. Existe apenas um conceito jurídico de Estado: o Estado como ordem jurídica centralizada. O conceito sociológico de um padrão efetivo de conduta, orientado para a ordem jurídica, não é um conceito de Estado, ele pressupõe o conceito de Estado, que é um conceito jurídico. (Kelsen, 2000b 272)

A definição sociológica do estado como um complexo de ações que tem por unidade uma determinada ordem, ou seja, um complexo de ações cuja única coisa em comum é a referência a algo que é definido em outros termos que não sociológicos, não é uma verdadeira definição de estado. A ordem à qual as ações que são objeto do estudo dos sociólogos fazem referência é o estado, tal como definido juridicamente. As ações que se orientam por essa ordem recebem da sociologia o mesmo nome que a própria ordem tradicionalmente recebe do direito.

Entretanto, tais ações não precisam efetivamente, para a sociologia, fazer referência a esta ordem, mas basta que exista uma probabilidade, por mais remota que seja, de que a ordem se faça obedecer por meios coercitivos. Ora, para que uma determinada ordem seja considerada como válida para a jurisprudência, ela precisa ser minimamente eficaz, ou seja, uma determinada ordem que não tem qualquer eficácia é considerada como revogada. Desta forma, o conceito sociológico de estado liga-se ao conceito jurídico de estado. Com efeito, o estado seria um conjunto de ações que tem alguma probabilidade de serem interpretados como correspondendo a uma determinada ordem, definida pela jurisprudência.

Para Kelsen, o conceito sociológico de estado, apesar de construído de forma a assemelhar-se o mais possível ao conceito jurídico de estado, sendo uma espécie de tentativa de tradução em termos de "ser" de um conceito formulado no "dever ser", não é o conceito que os sociólogos aplicam de fato. O autor afirma que:

É o conceito jurídico de Estado que os sociólogos aplicam quando descrevem as relações de dominação dentro do Estado. As propriedades que atribuem ao Estado são concebíveis apenas como propriedades de uma ordem normativa ou de uma comunidade constituída por tal ordem. Os sociólogos também consideram uma qualidade essencial do Estado a de ser uma autoridade superior aos indivíduos, obrigando os indivíduos. Apenas como ordem normativa o Estado pode ser uma autoridade com poder de obrigar, especialmente se essa autoridade for soberana. A soberania é concebível (...) apenas dentro do domínio do normativo. (Kelsen, 2000b: 273)

Quando o sociólogo se pergunta acerca de quais são os governantes de um determinado estado, não procurará saber quem é o indivíduo que de fato obtém obediência a suas ordens em uma determinada comunidade ou em um determinado território, mas procurará saber, juridicamente, que indivíduo deve ser considerado como a autoridade governante. Seria possível que uma análise sociológica viesse a demonstrar que um outro indivíduo que não Luís Inácio Lula da Silva efetivamente preside o Brasil. Isto, entretanto, não implica em que o presidente do Brasil seja outro que não Lula, nem que os parlamentares sejam outros que não os que foram eleitos.

Uma análise sociológica poderia revelar que em um determinado território próximo ou distante daquele que juridicamente é o território brasileiro, fala-se o português e se crê estar sob a autoridade das pessoas investidas no governo do Brasil. Entretanto, isto não levaria a sociologia a considerar tal território como território brasileiro. O território hoje conhecido como o estado do Acre não passou a ser parte do território brasileiro quando a maioria de sua população passou a falar português ou mesmo a considerar que ele era parte do Brasil, mas sim, precisamente, em 17 de novembro de 1903, quando foi assinado o tratado de Petrópolis, entre Brasil e Bolívia. O território brasileiro é definido jurídica e não sociologicamente.

Assim, o conceito de estado que os sociólogos, historiadores e antropólogos utilizam é o conceito jurídico de estado. E este é o único possível. A unidade jurídica conhecida como estado não corresponde a qualquer unidade sociológica ou histórica. O conceito jurídico de estado, no entanto, não é diferente do conceito jurídico de direito nacional, ou seja, uma ordem jurídica relativamente centralizada. Daí que tanto sociológica quanto juridicamente estado e direito se confundam.

A identificação de Estado e ordem jurídica é óbvia a partir do fato de que mesmo os sociólogos caracterizam o Estado como uma sociedade "politicamente" organizada. Já que a sociedade – como unidade – é constituída por organização, é mais correto definir o Estado como "organização política". Uma organização é uma ordem. Mas em que reside o caráter político dessa ordem? No fato de ser uma ordem coercitiva. O Estado é uma organização política por ser uma ordem que regula o uso da força, porque ela monopoliza o uso da força. Porém, como já vimos, esse é um dos caracteres essenciais do Direito. O Estado é uma sociedade politicamente organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordem coercitiva, e essa ordem coercitiva é o Direito. (Kelsen, 2000b: 273)

Assim, a sociologia do direito não apenas não pode delimitar seu objeto de estudo senão recorrendo a um conceito extra-sociológico, mas também tal objeto se confunde com o objeto de uma sociologia do estado, que também apela para o mesmo conceito extra-sociológico.


VI-Uma Teoria Pura da Sociedade

6.1.Estrutura das críticas kelsenianas

Uma crítica a uma determinada teoria pode ter um caráter interno ou externo. As críticas acima apresentadas, formuladas por Hans Kelsen à sociologia do direito, não têm, o caráter de críticas internas. Por críticas internas entendo aqui aquela que revela uma incoerência na utilização de conceitos ou equívocos lógicos, demonstrando que das premissas apresentadas não se pode chegar às conclusões. Tratam-se, antes, de críticas externas. Por críticas externas entendo aquelas em que se compara a tese criticada com uma outra cuja validade é aceita. Rejeita-se a tese que diferir daquela já aceita.

Podemos identificar algumas críticas internas dentre aquelas que Kelsen dirige a Ehrlich. De fato, a este autor são dirigidas diversas críticas desta natureza. Segue um exemplo de uma crítica interna formulada por Kelsen:

O que se deve pensar, sem embargo, da distinção completa e fundamental na obra ehrlichiana entre enunciado jurídico e norma jurídica quando Ehrlich, após haver declarado nas páginas 22 e 29 que o enunciado jurídico - diferentemente da norma jurídica - é formulado verbalmente, afirma na página 135, referindo-se à diferença entre as normas jurídicas e as outras normas: "Por outra parte, a norma jurídica, diferentemente das outras normas, é sempre exprimível com palavras claras e determinadas. Dita norma jurídica dá estabilidade às coletividades que repousam sobre a norma jurídica... as normas da moral e das boas maneiras também se convertem em normas jurídicas tão pronto emergem de sua generalidade e são formuladas com palavras claras"? E o que se deve entender sob o termo ehrlichiano "enunciado jurídico" quando afirma na página 39 que este é uma "disposição jurídica" qualificada e em outra parte que o ordenamento jurídico vinculante se compõe, ao menos em parte, de tais "enunciados jurídicos", enquanto que na página 138 identifica o conceito de enunciado jurídico com o de lei formal, desmentindo-se, portanto, e alterando completamente a terminologia: "Na forma do enunciado jurídico, especialmente na forma da lei, podem ser incorporados os conteúdos mais diversos. Existem, portanto, enunciados jurídicos sem conteúdo normativo, sem conteúdo legal vinculante, leis no sentido formal". Aqui toda crítica se torna impossível! A maneira como Ehrlich dá saltos de um lado para o outro com estes conceitos fundamentais para seu sistema não tem uma relação individual (por oposição ao enunciado jurídico que esta vigente com caráter "geral" ou para "relações similares"); por outro lado define as "normas" na página seguinte como "mandatos e proibições abstratas" e sustenta - o que é já francamente inconcebível - que o referir-se à convivência humana é parte da essência da norma: de maneira que as regras lingüísticas, as regras do gosto ou da higiene não são normas! (Kelsen, 1992: 227-228)

Esta consideração aponta para inconsistências lógicas e utilização inadequada de conceitos definidos pelo próprio autor. Entretanto, a maioria das críticas que o autor formula, dentre as quais se encontra a maioria daquelas apresentadas anteriormente, não têm o caráter de críticas internas. Via de regra as críticas que o autor formula são críticas externas, como poderá ser constatado a seguir.

Seguem-se, de forma sucinta, as teses que Kelsen critica e as críticas formuladas:

Tese 1: Há um direito que decorre da natureza. O valor é imanente na natureza.

Tese 2: O direito que decorre da natureza prevalece sobre o direito positivo (dos juristas)

Tese 3: O direito positivo corresponde a um direito que decorre da natureza.

Crítica: O direito é um conjunto de normas. Normas são sentenças na forma "se A então deve ser B". A natureza é um conjunto de sentenças na forma "se A é, então B é". É impossível derivar de um conjunto de premissas na segunda forma qualquer conclusão na primeira forma.

Esta pode ser considerada uma crítica interna se considerarmos que os sociólogos concordam que o direito tenha a forma normativa e que a natureza tenha a forma causal. Na media em que tais premissas são rejeitadas, por exemplo, quando se afirma que o Direito não é normativo, mas tão somente um determinado conjunto de relações entre indivíduos humanos, esta crítica deixa de ser aplicável como uma crítica interna. A normatividade, de acordo com a tese 1, é inerente à natureza, seja inerente às relações sociais, ao processo comunicativo, decorrente da superioridade cognitiva do grupo sobre o indivíduo. Desta forma, devemos tomar esta crítica como uma crítica externa. A tese de que o direito decorre da natureza é rejeitada por Kelsen porque ela diverge da concepção kelseniana segundo a qual o "dever ser" é irredutível ao "ser".

As teses dois e três são rejeitadas por Kelsen por sua função ideológica. Ambas legitimam, segundo ele, o direito positivo. A tese 2 porque tem de assumir uma presunção de validade do direito até que se demonstre que ele está em contradição com o direito natural. A tese 3 porque o direito positivo assume uma autoridade pseudo-científica, na medida em que se torna uma espécie de descrição do direito tal qual dado na natureza. Estas críticas também estão vinculadas à mesma idéia de que o "dever ser" é irredutível ao "ser".

Vejamos, agora, as críticas daquilo que Kelsen chama teoria "dualista" do direito e do estado.

Tese 4: direito e estado são duas realidades distintas.

Tese 5: o direito corresponde a uma realidade normativa, enquanto que o estado corresponde a uma realidade sociológica.

Tese 6: o direito é válido na medida em que garantido pelo estado.

Crítica: O direito é uma ordem normativa da conduta humana, caracterizada pelo estabelecimento de sanções coercitivas para um determinado território e população. O estado é uma personificação desta ordem, um instrumento para facilitar a descrição. Não existe uma correspondência desta ordem normativa com nenhum fenômeno na natureza, em especial, com nenhuma unidade identificável de relações entre homens.

Disto resulta que a sociologia do direito e a sociologia do estado não são capazes de elaborar um conceito sociológico de direito ou de estado e, portanto, não são capazes de identificar seu próprio objeto de estudo. Tratam-se de conceitos, segundo Kelsen, tão somente jurídicos. A sociologia do direito depende, portanto, da jurisprudência.

Note-se que o problema das teses de 4 a 5 não é que sejam incompatíveis entre si ou que não tenham um sentido preciso ou sejam incoerentes com seu sentido. O problema destas teses é que são incompatíveis com as afirmações kelsenianas, e que de acordo com um recurso a um padrão de validação (não há qualquer unidade identificável na miríade de ações humanas, salvo a normativa) de certa forma empírico, deve-se preferir as afirmações kelsenianas.

A tese 6 é rejeitada como uma "superstição animista" (Kelsen, 2000b: 275) por Kelsen. O estado não passa de uma personificação da ordem jurídica. Tratá-lo como uma realidade distinta do direito, autônoma e mesmo determinante daquele implica na substancialização da personificação originalmente elaborada como um instrumento para facilitar a descrição da ordem normativa.

A multiplicidade de ações humanas não compõe qualquer unidade correspondente à unidade do estado. Caso se tome alguma unidade identificável sociologicamente e lhe atribua o nome de estado, mesmo tendo ciência de que não corresponde ao conceito jurídico já consagrado de estado, incorre-se, na opinião de Kelsen, em outro problema.

La "Sociología comprensiva" llega a conceder que cuando habla del "Estado" – un determinado acaecer efectivo – atribuye un sentido enteramente distinto del que le es propio al concepto jurídico del mismo, concepto que ella utiliza en virtud de su precisión y arraigo. Pero ¿por qué utiliza esta terminología, ilícita por equívoca? ¿Por qué llama "Estado" a algo, sabiendo que esta palabra designa en sentido "preciso y arraigado" un objeto enteramente distinto? Pues porque como Sociología, es decir, como conocimiento de lo social, no puede renunciar en serio a convertir en su objeto propio la estructura específicamente "social" Estado, y porque sólo el concepto jurídico, sólo la idea de un orden normativamente válido pone aquella síntesis específica con la cual esta estructura se constituye en unidad de una multitud de actos humanos. El concepto jurídico no es utilizado por la Sociología comprensiva sólo en virtud de su precisión arraigo (…), sino que este concepto es también para la sociología comprensiva el concepto fundamental y primario, sin el cual no podría ser habida esa unidad peculiar que constituye el "Estado". (Kelsen, 1934: 26)

Quando a sociologia trata daquilo que designa "estado", não está falando daquilo que em um sentido preciso e arraigado se entende por estado. Por que então utilizar o mesmo nome? Segundo Kelsen, isto se deve justamente à impossibilidade de delimitação sociológica dos objetos que a sociologia se propõe a estudar. Não é concebível uma ciência da sociedade que não tenha por objeto as estruturas que geralmente se entende como sociais. Ademais, a única unidade delimitável na miríade de condutas humanas é a unidade dada pela ordem normativa.

Desta forma, as críticas que Kelsen dirige à sociologia do direito e do estado não têm um caráter de críticas internas. Não se trata de mostrar que a sociologia é incoerente em suas definições ou comete erros lógicos. Trata-se de mostrar que as afirmações da sociologia divergem das afirmações kelsenianas e que, de acordo com um determinado critério de validação, deve-se preferir as afirmações kelsenianas àquelas da sociologia.

Resta claro, portanto, que as críticas mais importantes dirigidas por Kelsen à sociologia do direito têm o seguinte formato: a sociologia afirma X, eu afirmo Y. X é incompatível com Y.

6.1..1O fundamento das críticas kelsenianas à sociologia do direito

Considerando que as críticas que Kelsen formula à sociologia do direito não têm o caráter de críticas internas e que, para Kelsen, a aceitação de sua teoria implica na rejeição de teses elaboradas pela sociologia do direito, e inclusive da própria possibilidade da sociologia do direito como uma ciência autônoma com relação à jurisprudência, devemos reconsiderar a afirmação de Kelsen de que a sociologia do direito e a sua própria teoria têm objetos distintos.

Caso Kelsen não tratasse do mesmo objeto que a sociologia do direito, as teses formuladas por ambos não poderiam ser alternativas, ou seja, não deveria ser necessária a rejeição de uma para a aceitação da outra. De fato, a Teoria Pura do Direito, formulada por Kelsen, pode ter como objeto de estudo um determinado conjunto de normas, ou melhor conjuntos de normas que têm determinadas características. A sociologia tem por objeto o comportamento humano.

As críticas que Kelsen formula contra as diversas formas de sociologia do direito têm por base um conjunto de teses que compõem uma teoria da sociedade, que diverge das teorias adotadas pelos sociólogos criticados. Inúmeras afirmações de Kelsen não se restringem ao direito, mas elas formam um conjunto coerente de teses acerca da sociedade. Trata-se, agora, de identificar e apresentar tais teses, demonstrando que elas não se restringem a uma teoria do direito, abrangendo uma teoria mais geral, de toda e qualquer ordem normativa, ou, na terminologia do autor, toda a sociedade.

6.2.Distinção entre Natureza e Sociedade

Uma das distinções mais importantes do pensamento kelseniano é aquela entre Natureza e Sociedade. Esta distinção é erigida a partir da dicotomia entre ser e dever ser, e serve de base para a distinção entre ciência social normativa e ciência social causal. As definições de Sociedade e Natureza, apesar de não serem apontadas, geralmente, como parte da construção teórica kelseniana, figuram em praticamente todas as suas obras. O autor, entretanto, dedicou a este problema um de seus trabalhos mais extensos, apesar de pouco conhecido, traduzido para o espanhol como Naturaleza y Sociedad (1945).

Neste trabalho o autor desenvolve a distinção entre Natureza e Sociedade como duas construções de sentido distintas porque feitas de acordo com dois modos diferentes de vinculação de elementos. Afirma o autor:

La sociedad y la naturaleza, concebidas como dos diferentes sistemas de elementos, son los resultados de dos métodos diferentes de pensar y sólo en cuanto tales dos objetos diferentes. Los mismos elementos, puestos en conexión conforme al principio de causalidad, constituyen la naturaleza; conforme a otro, a saber, un principio normativo, constituyen la sociedad. (Kelsen, 1945: 2)

Estes "dois métodos diferentes de pensar" correspondem à distinção entre ser e dever ser. Kelsen toma esta distinção como uma forma de vinculação de elementos. O primeiro é descrito como o "princípio da causalidade", que consiste em vincular elementos na forma "se A, então B", onde A e B são dois fenômenos. Assim, de acordo com o princípio da causalidade, descreve-se algo na forma "se A é, então B é". É importante notar que esta fórmula abarca também relações probabilísticas e relações de pluricausalidade. Para Kelsen, o conjunto composto por elementos assim vinculados é chamado de "Natureza". O segundo método de pensar consiste em vincular elementos de acordo com o "princípio da imputação". Este princípio consiste em que os elementos se vinculam na forma "se A, então deve ser B". O conjunto de elementos interligados nesta forma constituem o que o autor chama de "Sociedade".

Note-se que, para o autor, os elementos que compõem a Sociedade são os mesmos que compõem a Natureza. O que caracteriza a Natureza é o vínculo causal, enquanto que o que caracteriza a Sociedade é o vínculo normativo. Tanto um animal, as estrelas e o comportamento recíproco dos seres humanos são parte de ambos, Natureza e Sociedade. Para Kelsen, a forma mais comum de os homens interligarem elementos entre si é a forma normativa, ou seja, de acordo com o princípio da imputação. Por estranho que hoje nos pareça animais e seres inanimados costumam ser tomados como sujeitos de direitos e deveres. Um animal de estimação não deve satisfazer suas necessidades fisiológicas em qualquer lugar, e mesmo um animal selvagem não deve matar. Kelsen apresenta inúmeros exemplos de aplicação do princípio da imputação a animais:

Aun en la Edad Media sucedía que magistrados concluyeran tratados preventivos con animales dañinos, con langostas, por ejemplo, y que abrieran procesos y que los animales fueran castigados por haber violado su parte del acuerdo. (Kelsen, 1945: 116)

Procesos judiciales entablados contra animales, y su castigo por tribunales del estado y la iglesia durante la Edad Media es el tema de un interesante estudio de Kart Von Amira, Thirerstrafen un Thierprocesse (1891). Amira escribe que (pp.1 ss): "Los animales han sido sujetos, por daños causados por ellos, a castigo público o al menos a un proceso que se parecía a la prosecución pública. Las autoridades estatales han ejecutado sobre animales el castigo de ahorcar, enterrar vivo, quemar, por el verdugo ordinario, y ello se hacía con observancia de las mismas ceremonias solemnes y complicadas establecidas para la ejecución del castigo capital sobre hombres. Las autoridades eclesiásticas han excomulgado animales. Este anatema se declaraba por una sentencia que tenía la misma forma que la que se pronunciaba contra miembros de la iglesia. (…) El procedimiento que llevaba a la maledictio o excommunicatio, de los animales se describe en la mayoría de los informes más detallados, por ejemplo también en documentos legales oficiales, como procesal. Su peculiaridad más notable consiste en que se trata a los animales como acusados. (…) Amira (p. 30) explica el castigo seglar de los animales por la influencia del Antiguo Testamento: "El Señor prometió a Noé y a sus descendientes vengar su sangre no sólo sobre los hombre, sino también sobre todos los animales. A esto correspondió la ley dada en el Monte Sinaí según la cual el buey que acornee a un hombre mortalmente será lapidado y su carne no será comida" (Gen. 9: 5; Exod. 21: 28-32) (Kelsen, 1945: 509-510)

Não apenas animais figuram em conexões normativas, mas também seres inanimados. Kelsen apresenta inúmeros exemplos de subordinação de homens a ferramentas e instrumentos, tratando-os de forma respeitosa e imaginando haver sanções para o comportamento diverso. Assim como para os animais, houveram, segundo o autor, tribunais para julgar instrumentos que houvessem prejudicado homens. Isto não serve apenas para o pensamento primitivo. Kelsen identifica esta forma de pensamento também na Grécia antiga. Ele cita um trecho de Anaximandro como segue:

"El sol no traspasará sus medidas [esto es, el camino que le ha sido prescrito]; si lo hace, las Erinnias, las asistentas de la Justicia [Dike] lo atraparán". Las Erinnias son los conocidos demonios de la venganza de la religión griega. (Kelsen, 1945: 366)

Desta forma, o princípio da imputação, ou seja, a conexão normativa que se estabelece entre os elementos, não tem uma afinidade maior com o comportamento humano do que com seres inanimados ou animais. Não é por ser referente ao comportamento humano que a construção é feita de acordo com um "método de pensar" normativo. Também o comportamento humano pode ser descrito de acordo com o "método de pensar" causal, como são exemplos a história e a sociologia contemporâneas.

Para Kelsen os homens pensam naturalmente na forma normativa. A construção que se vale do princípio da imputação é mais freqüente do que a construção que se vale do princípio causal. O autor considera "um fato fundamental" o de que os seres humanos constroem sistemas cognitivos valendo-se do princípio da imputação.

Constitui um fato fundamental o de que, quando os homens vivem em comum num grupo, surge na sua consciência a idéia de que uma determinada conduta é justa ou boa e uma outra é injusta ou má, ou seja, de que os membros do grupo, sob determinadas condições, se devem conduzir por determinada maneira e, isto num sentido objetivo, por tal forma que um indivíduo singular que num caso concreto deseje uma conduta oposta e de fato se conduza de acordo com o seu desejo tem consciência de se não ter conduzido como se deve conduzir. Isto significa que, na consciência dos homens que vivem em sociedade, existe a representação de normas que regulam a conduta entre eles e vinculam os indivíduos. (Kelsen, 2000a: 85)

A partir do momento que se toma este fato como, ao menos, plausível, se torna possível a descrição destas crenças humanas. Os homens acreditam que determinadas condutas sejam justas, boas, más ou injustas independentemente da apreciação subjetiva de qualquer indivíduo. A construção cognitiva que se tem aí é uma vinculação de elementos que se vale do princípio da imputação. O princípio da imputação vincula diversos elementos na forma "se A, então deve ser B". Esta construção, assim como a construção que tem como base o princípio da causalidade, não é feita dependente de qualquer vontade individual ou subjetiva. A construção normativa tem, também, um caráter objetivo neste sentido.

O princípio da imputação se distingue do da causalidade pela forma do elo estabelecido. Esta distinção implica em que as construções feitas com base no princípio normativo não estão sujeitas a contestação por contra-exemplos. No princípio da causalidade temos uma orientação de adequação diferente daquela do princípio da imputação. De acordo com o princípio da causalidade, deve-se adequar o sistema por ele construído de acordo com o mundo. De acordo com o princípio da imputação, o mundo deve se adequar ao sistema construído normativamente. Esta não é, entretanto, a única distinção, como parece supor Luhmann. Segundo Kelsen,

Uma outra distinção entre causalidade e imputação consiste em que toda a causa concreta pressupõe, como efeito, uma outra causa, e todo o efeito concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito, por tal forma que a cadeia de causa e efeito - de harmonia com a essência da causalidade - é interminável nos dois sentidos. (...) A situação é completamente diferente no caso da imputação. O pressuposto a que é imputada a conseqüência numa lei moral ou jurídica, como, por exemplo, a morte pela pátria, o ato generoso, o pecado, o crime, a que são imputados, respectivamente, a veneração da memória do morto, o reconhecimento, a penitência e a pena, todos esses pressupostos não são necessariamente conseqüências que têm de ser atribuídas a outros pressupostos. E as conseqüências, como, por exemplo a veneração da memória, o reconhecimento, a penitência, a pena, que são imputadas, respectivamente, à morte pela pátria, ao ato generoso, ao pecado e ao crime, não têm necessariamente de ser também pressupostos a que sejam de atribuir novas conseqüências. O número dos elos de uma série imputativa não é, como o número dos elos de uma série causal, ilimitado, mas limitado. Existe um ponto terminal da imputação. (Kelsen, 2000a: 101)

Diferentemente da Natureza (o conjunto de elementos vinculados causalmente), a Sociedade (o conjunto de elementos vinculados normativamente) não é infinita, ou seja, a série de vínculos estabelecidos entre os elementos não é interminável. Este caráter finito da construção normativa permite que haja diferentes construções normativas, ao passo que existe apenas uma natureza. A cadeia causal de elementos que compõe a natureza é, de acordo com o princípio da imputação que supõe que toda causa é uma conseqüência de outra causa, uma cadeia única e interminável. As cadeias normativas (ou "sociais", na terminologia kelseniana) de elementos são finitas e em número indeterminado. Um mesmo elemento pode fazer parte de inúmeras cadeias sociais.

Cada uma destas cadeias "sociais" de elementos interligados normativamente é chamada por Kelsen de "ordem social". Posteriormente será discutido este conceito e apresentadas suas características.

Deve-se notar que esta distinção entre Natureza e Sociedade extrapola uma Teoria Pura do Direito. Não é parte da descrição e explicação de um determinado conjunto de normas, mas uma tese muito mais ampla. Ademais, esta tese se contrapõe a certas teses da sociologia do direito que, como o pensamento de Ehrlich, entendem que as "regras do agir", ou seja, o "direito vivo" constituem não apenas aquilo que os homens fazem, mas também o que devem fazer. Esta confusão entre ser e dever ser é inaceitável diante da admissão da dicotomia entre "Natureza" e "Sociedade" adotada por Kelsen. Isto porque não há correspondência necessária entre os vínculos normativos e os vínculos causais, que constituem duas formas diferentes e independentes de pensar. Se são duas formas diferentes de pensar, as construções feitas a partir delas não têm correspondência necessária e, portanto, não se pode encontrar regras que sejam, a um só tempo, regras que descrevem o comportamento efetivo e regras que determinam como deve ser o comportamento.

Por certo que a admissão de que os homens devem agir como de fato têm agido parece apontar no sentido desta confusão entre normas e descrições factuais. Entretanto, o comportamento efetivo dos homens muitas vezes diverge do comportamento costumeiro. Esta regra estabelece como devendo ser o comportamento costumeiro, não qualquer comportamento.

A dicotomia entre "Sociedade e Natureza" implica, na concepção kelseniana, na dicotomia entre ciências sociais normativas e ciências causais.

O teórico da sociedade, como teórico da moral ou do direito, não é uma autoridade social. A sua tarefa não é regulamentar a sociedade humana, mas conhecer, compreender a sociedade humana. A sociedade, como objeto de uma ciência social normativa, é uma ordem normativa da conduta dos homens uns em face dos outros. (...) Quando dizemos que uma sociedade determinada é constituída através de uma ordem normativa que regula a conduta recíproca de uma pluralidade de indivíduos, devemos ter consciência de que ordem e sociedade não são coisas diferentes uma da outra, mas uma e mesma coisa e de que a sociedade não consiste senão nesta ordem e de que, quando a sociedade é designada como comunidade, a ordem que regula a conduta recíproca dos indivíduos é, no essencial, o que há de comum entre estes indivíduos. (Kelsen, 2000a: 96)

6.3.Ciência Social Normativa e Ciência Causal

Como exposto anteriormente, para Hans Kelsen a Sociedade é definida como um conjunto de elementos vinculados normativamente. De fato, é o elo normativo que, para ele, caracteriza a Sociedade. Em contraposição, a Natureza é vista como um conjunto de elementos vinculados causalmente. Natureza e Sociedade são, para ele, portanto, resultados de duas formas diferentes de pensar, ou seja, construções realizadas por dois métodos distintos.

A natureza é a construção da ciência natural. A ciência, na medida em que vincula diferentes elementos com elos causais, constrói a "Natureza" no sentido kelseniano. Para o autor, qualquer ciência que empreenda a vinculação de elementos por um elo causal (ou natural, que para ele são sinônimos) pode ser chamada de ciência natural. Neste sentido, por certo, a sociologia é uma "Ciência Natural".

Entretanto, como a Sociologia e demais ciências que tratam causalmente do comportamento humano recíproco são chamadas ciências "sociais", Kelsen distingue estas das ciências "sociais" (no sentido próprio de Kelsen) que descrevem a "Sociedade" enquanto conjunto de elementos vinculados normativamente. Assim, a Sociologia, Economia, Ciência Política e demais ciências correlatas são chamadas "Ciências Sociais Causais", ao passo que a Jurisprudência (enquanto descrição do direito), a Teologia (enquanto descrição da religião), a Ética (enquanto descrição da moral), Etiqueta (enquanto descrição da etiqueta), e demais descrições de sistemas de normas, são chamadas de "Ciências Sociais Normativas".

Segundo o autor, não existe uma distinção essencial entre as "Ciências Naturais" e as "Ciências Sociais Causais", mas apenas entre ambas e as "Ciências Sociais Normativas":

Se há uma ciência social que é diferente da ciência natural, ela deve descrever o seu objeto segundo um princípio diferente do da causalidade. Como objeto de uma tal ciência a sociedade é uma ordem normativa da conduta humana. Mas não há uma razão suficiente para não conceber a conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da causalidade, ou seja, para a não explicar, como os fatos da natureza, como causa e efeito. Não pode duvidar-se de que uma tal explicação - pelo menos em certo grau - é possível e efetivamente resulta. Na medida em que uma ciência que descreve e explica por esta forma a conduta humana seja, por ter como objeto a conduta dos homens uns em face dos outros, qualificada de ciência social, a ciência social não pode ser essencialmente distinta das ciências naturais. (Kelsen, 2000a: 85)

Assim, como a Sociologia se ocupa do comportamento humano procurando estabelecer laços de causa e efeito (mesmo a sociologia compreensiva tem esta preocupação), não é considerada pelo autor como uma construção distinta das ciências naturais. O que a Sociologia descreve é o comportamento humano enquanto parte da "Natureza" de acordo com o conceito kelseniano.

A Psicologia, a Etnologia, a História, a Sociologia são ciências que tem por objeto a conduta humana na medida em que ela é determinada através de leis causais, isto é, na medida em que se processa no domínio da natureza ou da realidade natural. (Kelsen, 2000a: 95)

Apesar de que o autor mencione acima "leis causais", não se deve tomar por isso que ele interprete a sociologia como sendo necessariamente uma ciência causal-nomológica, tanto assim que Kelsen considera a sociologia weberiana, que não se pretende causal-nomológica, como a mais bem sucedida sociologia do direito e do estado. A distinção que ele procura traçar é suficientemente estabelecida se entendermos a sociologia como uma ciência simplesmente causal, e por causal deve-se entender tão somente aquele formato significativo que repetidamente tem sido apresentado: "se A, então B". As ciências mencionadas na última citação são todas ciências causais neste sentido, e abordam o comportamento humano, o principal elemento que figura contemporaneamente nas construções normativas. Entretanto, estas ciências não são as únicas possíveis do comportamento humano. É possível, segundo o autor, descrever o comportamento humano enquanto elemento de vínculos normativos, e não apenas causais. Esta é, aliás, a forma tradicional de descrição do comportamento humano.

Uma distinção essencial existe apenas entre as ciências naturais e aquelas ciências sociais que interpretam a conduta recíproca dos homens, não segundo o princípio da causalidade e, mas segundo o princípio da imputação; ciências que não descrevem como se processa a conduta humana determinada por leis causais, no domínio da realidade natural, mas como, determinada por normas positivas, isto é, por normas postas através de atos humanos, se deve processar. (Kelsen, 2000a: 96)

Esta descrição, feita pelas "ciências sociais normativas", é essencialmente distinta da descrição das ciências naturais. Elas vinculam os elementos de acordo com um princípio distinto daquele da causalidade. Seu objeto de estudo, portanto, não é a Natureza. Não tem como preocupação descrever o comportamento enquanto parte da natureza, enquanto um fenômeno natural, mas descrevê-lo como um fenômeno "social" (no sentido kelseniano), ou seja, como parte da "Sociedade".

Somente quando a sociedade é entendida como uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é que ela pode ser concebida como um objeto diferente da ordem causal da natureza, só então é que a ciência social pode ser contraposta à ciência natural. Somente na medida em que o Direito for uma ordem normativa da conduta dos homens entre si pode ele, como fenômeno social, ser distinguido da Natureza, e pode a ciência jurídica, como ciência social, ser separada da ciência da natureza. (Kelsen, 200a: 86)

A distinção entre ciências sociais normativas e ciências naturais (incluindo as sociais causais) justifica-se na medida em que as aquelas não têm por objeto algo que esteja na ordem da natureza. a sociedade, seu objeto de estudo, é tomada como um conjunto de elementos vinculados normativamente. A descrição que se constrói com base neste objeto não corresponde ao comportamento recíproco dos homens definido pela Sociologia como sociedade. Daí que a ciência jurídica seja distinguida das ciências naturais, incluindo a Sociologia enquanto uma ciência social causal.

É importante frisar que em nenhum momento Kelsen apresenta a Ciência Jurídica como a única ciência social normativa. Anteriormente já se mencionou exemplos de tais ciências, além do que os exemplos que o autor emprega em suas obras freqüentemente se referem a outras ordens sociais que não o direito.

Exemplos de aplicações do princípio da imputação no domínio das ciências sociais normativas são: quando alguém que fez algum bem, deves mostrar-te agradecido; quando alguém sacrifica a sua vida pela pátria, a sua memória deve ser honrada; quando alguém pecou, deve fazer penitência. (Kelsen, 2000a: 100)

Nenhum dos exemplos acima citado figuraria em uma descrição do direito enquanto uma ordem normativa, mas em descrições de etiqueta, moral patriótica e religião. É evidente, nas obras de Kelsen que o autor admite a descrição de outras ordens sociais de acordo com o modelo que ele constrói para a descrição do Direito. A normatividade que seu pensamento procura desvendar não é exclusivamente aquela do direito e do estado, mas do social de modo geral.

Na individuação desta normatividade específica, do social de modo geral e do Estado ou do Direito em particular, a Escola de Viena reconhece uma das suas principais realizações, uma vez que todos os seus resultados parciais só são alcançados como conseqüência lógica, deduzida da normatividade específica da área do Estado e do direito. (Kelsen, 2003: 9)

O pensamento da "Escola de Viena" não chegou a desenvolver uma teoria da sociedade em geral, mas isto não estava, de forma alguma, fora de cogitação.

Entretanto, como até agora ela se propunha desenvolver apenas uma teroria do Estado e do direito, mas não uma teoria geral da sociedade e menos ainda uma filosofia da cultura (do espírito), para ela bastava colocar o problema de determinar o âmbito geral, ao mesmo tempo diferente da natureza, no qual se desenvolve o social e, em particular, o direito, e individuar a lei específica que governa o Estado e o direito como fenômenos sociais especiais. A primeira pergunta é respondida energicamente pela Escola de Viena, determinando como espaço existencial do social, de modo geral, e do Estado, em particular, não a natureza, mas o espírito, definindo assim a teoria do Estado como ciência do espírito. A segunda responde, ao invés, reconhecendo como a lei essencial - talvez da esfera social de modo geral - mas certamente do Estado e do direito em particular, a legalidade da norma ou do valor, porque entende o Estado e o Direito como sistemas de norma ou de valor. (Kelsen, 2003: 9)

O Estado e o Direito são objeto da particular atenção de Kelsen. A formulação de uma teoria da Sociedade não era sua preocupação principal. Kelsen e seus companheiros eram juristas. Por mais que o pensamento kelseniano apontasse na direção de uma teoria geral da sociedade, a principal preocupação do autor era o direito.

Por certo que a teoria da sociedade que os autores entrevêem, e cuja existência se afirma aqui, não é substitutiva da Sociologia enquanto uma ciência social causal. Entretanto, o pensamento oposto, o da irrelevância da descrição normativa em face da descrição causal, é também equivocado.

A possibilidade e a necessidade de uma tal disciplina, endereçada ao direito como teor de sentido normativo, são demonstradas pelo fato secular da ciência do direito que, como jurisprudência dogmática, e enquanto houver direito, servirá às necessidades intelectuais dos que deste se ocupam. Não há qualquer razão para deixar insatisfeitas estas necessidades inteiramente legítimas e para renunciar a tal ciência do direito. Substituí-la pela sociologia do direito é impossível, pois esta ocupa-se de um problema inteiramente diferente daquele. Assim como, enquanto houver uma religião, terá de haver uma teologia dogmática que não pode ser substituída por qualquer psicologia ou sociologia da religião, também haverá sempre - enquanto houver um direito - uma teoria jurídica normativa. A sua posição no sistema global das ciências é uma outra questão, uma questão subalterna. O que importa não é fazer desaparecer esta ciência juntamente com a categoria do dever-ser ou da norma, mas limitá-la ao seu objeto e clarificar criticamente o método. (Kelsen, 2000a: 117)

Enquanto houver uma interpretação "social", ou melhor, enquanto os homens construírem sistemas de elementos vinculados normativamente entre si, não será irrelevante a descrição destes sistemas. O direito enquanto um sistema de normas tidas como válidas não pode ser descrito de outra forma senão como um sistema de normas tidas como válidas. Não há qualquer razão para se supor que tal descrição possa ser substituída por uma história ou sociologia do direito. A necessidade que advogados, cidadãos e juízes têm de uma descrição sistemáticas das normas jurídicas não é justificadamente deixada de lado pela afirmação de que a ciência causal é única "verdadeira" ou a única possível.

Da mesma forma, como afirma o autor, enquanto houver religião, haverá teologia, e, extrapolando, enquanto houver etiqueta, haverá um conhecimento normativo que hoje chamamos também etiqueta, enquanto houver moral, haverá um conhecimento normativo acerca dela, uma "ética", enquanto houver família, esportes, estado, jogos, romances, enfim, enquanto houver valores e idéias normativas, será possível a descrição destes valores e destas normas segundo um princípio de imputação.

Podemos dizer, portanto, que de acordo com a concepção kelseniana existem dois métodos distintos para as ciências sociais, métodos essencialmente distintos, compondo, de fato duas formas distintas de ciências sociais. Portanto, seu pensamento diverge da afirmação de certos sociólogos que abordaram o direito, como Ehrlich, que entendia que a sociologia do direito era a única ciência possível acerca do fenômeno jurídico. Para Kelsen é possível uma sociologia do direito, mas esta dependerá, sempre, de conceitos formulados por uma ciência normativa acerca do fenômeno jurídico, já que seu objeto é o comportamento humano na medida em que relacionado de alguma forma às normas descritas pela jurisprudência normativa.

6.3.1.Ceticismo com Relação à Possibilidade da sociologia causal

Apesar de que podemos encontrar diversas referências de Kelsen à possibilidade lógica de uma ciência causal acerca do fenômeno jurídico, desde que em uma permanente dependência da jurisprudência normativa, encontramos também um ceticismo quanto à viabilidade do conhecimento sociológico nas condições contemporâneas da ciência. Este ceticismo se revela, por exemplo, nas afirmações do autor de que não se elaborou ainda qualquer descrição sociológica de qualquer ordem jurídica e de que não existem hoje os meios adequados para tal empreendimento.

Kelsen demonstra uma certa simpatia tão somente pela sociologia de cunho individualista metodológico, em especial pela sociologia compreensiva. O que esta sociologia tem de atraente é justamente o fato de não tratar o comportamento recíproco dos indivíduos como algo "sui generis", na expressão de Durkheim, ou melhor, de negar que a sociologia se debruce sobre um objeto distinto da ação individual. Entretanto, a sociologia compreensiva é censurada por Kelsen por não ser capaz de elaborar os conceitos com os quais tem de trabalhar, tais como Estado, Direito e Igreja.

Para Kelsen estes conceitos se referem a ordens normativas, e não existe qualquer unidade na miríade de comportamento humanos individuais que possa ser identificada como, por exemplo, "Brasil" ou "Catolicismo", de modo que a sociologia compreensiva necessita tomar estes conceitos de empréstimo de outro ramo do conhecimento. Dado que tais conceitos têm um caráter normativo, não causal, não podem ser utilizados pela sociologia para o estabelecimento de relações causais, mas apenas para a identificação das ações individuais que são seu objeto de estudo quando se debruça sobre uma determinada ordem. A sociologia consistiria, nesta medida, na descrição do comportamento dos indivíduos, delimitados estes por ordens normativas.

Por certo isto é muito menos do que aquilo que a Sociologia ambiciona. Contemporaneamente tem-se feito um esforço no sentido de superar a dicotomia entre "Sociedade" e "Indivíduo" ou entre "Ação" e "Estrutura". Se, entretanto, considerarmos as estruturas normativas, teremos em Kelsen uma reafirmação desta dicotomia, deixando à Sociologia tão somente o estudo da "ação" e tratando a "estrutura" como objeto de uma ciência social normativa.

6.2.Ordens Normativas

Cumpre considerar agora certas teses kelsenianas relativas às ordens sociais, que nos indicam claramente que seu pensamento não é restrito, tão somente, ao estudo do direito. Anteriormente já foi apresentada uma definição de ordem normativa e o que lhe confere unidade. Uma ordem normativa é entendida aqui como um conjunto de normas vinculadas entre si por se referirem ao mesmo fundamento de validade. Quando uma ordem normativa tem por objeto a conduta humana, é chamada "ordem social".

6.2.1.Tipos de ordens sociais

Kelsen elabora classificações destas ordens sociais.

As ordens sociais podem ser classificadas em ordens sociais dinâmicas ou ordens sociais estáticas, em função de seu fundamento de validade.

Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer a conduta dos indivíduos por elas determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: por que a sua validade pode ser reconduzida a uma norma para cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. (Kelsen: 2000a: 217)

Aqueles sistemas de normas, ou seja, aquelas ordens sociais, nas quais as normas inferiores decorrem das normas superiores de acordo com um princípio dinâmico, ou seja, apenas sua razão de validade, e não o seu conteúdo, depende da norma superior, são designados como sistemas dinâmicos ou ordens dinâmicas. Em uma ordem dinâmica, a própria estrutura da ordem implica em uma divisão de funções, uma vez que a ordem, por definição, confere a determinados indivíduos ou processos, um "poder" criador de normas, ou melhor a ordem determina que quando por determinada forma (que pode ser um procedimento ou uma mera declaração de vontade de um indivíduo) for produzido um ato cujo sentido seja uma norma, esta norma deve ser obedecida. Inúmeros exemplos podem ser mencionados aqui. A Igreja Católica Apostólica Romana, a Igreja Universal do Reino de Deus, o Banco do Brasil, o estado brasileiro, são todos exemplos de ordens sociais dinâmicas assim conceituadas.

As ordens sociais em que as normas inferiores decorrem tanto seu conteúdo como seu fundamento de validade da norma fundamental são chamadas ordens estáticas. As ordens sociais estáticas têm um grau maior de descentralização. A aplicabilidade ou não de uma determinada norma não é conferida a um órgão (indivíduo ou indivíduos) de qualquer forma determinado, mas deixada aos próprios indivíduos que têm de observar as normas. Não há procedimentos por meio dos quais seja possível criar novas normas a partir da norma fundamental senão por meio da dedução do geral para o particular. A moral é geralmente o exemplo apresentado. A moral cristã, por exemplo, decorre inúmeras normas da norma segundo a qual é devido o amor mesmo aos inimigos. Se tomarmos esta norma como uma norma fundamental, teremos uma ordem social (moral) estática. Um outro exemplo seria a etiqueta. A partir da norma segundo a qual deve-se ser agradável deduzem-se inúmeras outras normas.

Esta classificação, afirma o autor, não é tão rígida, já que todas as ordens sociais se valem de ambos os princípios estático e dinâmico. A classificação é mantida na medida em que predomine em uma determinada ordem um ou outro destes princípios.

Uma outra classificação é feita pelo autor a partir das sanções estipuladas pela ordem.

As sanções estabelecidas numa ordem social têm ora um caráter transcendente, ora um caráter socialmente imanente. Sanções transcendentes são aquelas que, segundo a crença das pessoas submetidas ao ordenamento, provêm de uma instância supra-humana. (Kelsen, 2000a: 30)

As ordens sociais podem ser classificadas também em função das sanções que estabelecem. As ordens sociais podem estabelecer sanções a serem levadas a cabo por seres humanos ou por outros seres quaisquer. Quando as sanções são efetivadas por seres não-humanos como deuses, anjos, animais ou outros quaisquer, são consideradas sanções transcendentais. Assim, tanto a norma segundo a qual a criança não deve mentir ou alguma mágica fará seu nariz crescer, ou o Papai Noel não lhe trará presentes, como a norma segundo a qual se deve professar uma determinada fé ou se incorrerá na punição da privação da vida eterna ou de uma vida após a morte repleta de dores e tormentos, são normas dotadas de sanções transcendentes.

Em contraposição às sanções transcendentes, temos as sanções socialmente imanentes.

Completamente distintas das sanções transcendentes são aquelas que não só se realizam no aquém, dentro da sociedade, mas também são executadas por homens, membros da sociedade, e que, por isso, podem ser designadas como sanções socialmente imanentes. As sanções podem consistir na simples aprovação ou desaprovação, expressa de qualquer maneira, por parte dos nossos semelhantes, ou em atos específicos, determinados mais rigorosamente pelo ordenamento social, o qual também designa os indivíduos por quem esses atos são realizados ou postos num processo pelo mesmo ordenamento regulado. Nesta última hipótese podemos falar de sanções socialmente organizadas. (Kelsen, 2000a:31)

Uma norma pode estabelecer como sanção a vingança de sangue, por exemplo. Neste caso, quando um homem matar outro, o irmão da vítima, por exemplo, deve matar o assassino. Esta sanção é realizada por um homem determinado pela própria ordem, não individualmente, é claro, mas suficientemente determinado por uma relação com a vítima. As sanções imanentes subdividem-se por sua vez em sanções socialmente organizadas e sanções que não têm este caráter. Uma norma que determine que não se deve comer com a boca cheia ou sem talheres, e que estabeleça como sanção a reprovação ou a qualificação como "mal-educado" não determina qualquer indivíduo como responsável pelo cumprimento da sanção. Esta sanção, tampouco é transcendente. Trata-se, apenas, de uma sanção imanente mas completamente descentralizada. No exemplo da vingança de sangue temos uma norma que estabelece mais claramente o indivíduo que deve efetivar a sanção. No caso da norma do direito brasileiro que proíbe o furto, por exemplo, temos determinados diversos indivíduos que devem participar de inúmeros atos para a aplicação da sanção. Temos, então uma sanção socialmente imanente e socialmente organizada.

Uma mesma ordem pode ser dotada de normas que estabeleçam sanções imanentes e transcendentes, socialmente organizadas e não-organizadas. Assim, o Catolicismo envolve sanções socialmente organizadas tais como a excomunhão e a penitência, que devem ser aplicadas por órgãos específicos, bem como a absolvição (a sanção é a conseqüência devida, seja punição ou recompensa), mas também de sanções transcendentes, tal como a vida de penúria ou gozo no além.

Note-se que tais classificações de ordens sociais não têm como escopo simplesmente tratar do direito, mas de todas as ordens sociais. Ademais consistem em classificações realizadas a partir de determinados elementos da norma, não de qualquer espécie de comportamento efetivo ou característica de fato encontrada em um determinado grupo de indivíduos. Uma ordem é organizada se suas normas estabelecem órgãos, não se é empiricamente verificável uma "divisão do trabalho social". A divisão funcional de papéis não consiste em uma constatação empírica de que homens trabalham fora e mulheres cuidam da casa. Há profissões que são tradicionalmente femininas, como arrumadeira, governanta, enfermeira, assistente social, entre inúmeras outras. Mesmo uma família tradicionalmente patriarcal não teria muitos problemas em aceitar que uma enfermeira despendesse seu tempo trabalhando em um hospital. Esta divisão de papéis consiste em que os homens devem sustentar economicamente suas mulheres. Este dever ser não corresponde necessariamente ao comportamento efetivo dos indivíduos. Trata-se de uma norma, não de um fato.

Também a distinção entre ordens transcendentes não tem qualquer relação com algum sentimento místico, experiência sobrenatural ou carisma extraordinário. Trata-se, novamente, de uma característica da própria norma. Não se estabelece um indivíduo como o responsável por efetivar as sanções, mas um ser não-humano. As sanções transcendentes não implicam o um sentimento de superioridade de outros seres ou da natureza sobre o homem, mas apenas que outros seres são responsáveis pela aplicação de certas sanções. Podem-se citar inúmeros exemplos de homens que se vingam de deuses ou de outros seres sobrenaturais.

Que un hombre ejerza retribución sobre sus dioses no sólo recompensándolos por beneficios recibidos o por recibir, sino también castigándolos por no concederle tales beneficios, ocurre parejamente entre pueblos con religiones más avanzadas. En Herodoto, vii, p. 35 leemos: "De modo que cuando Jerjes supo de ello [que el puente había sido destruído] se llenó de ira, y de inmediato dio orden de que el Helesponto recibiera trescientos azotes y de que se le arrojara un par de grilletes" (…)

Augusto castigó a Neptuno por la pérdida de su flota ordenando que en los juegos circenses la imagen de éste no fuera portada junto con las de los otros dioses. Enfurecidos por la muerte de Germánico, los romanos lapidaron los templos de los dioses, destruyeron sus altares, y removieron sus imágenes. Hechos similares ocurrieron después de la muerte de Calígula a fin de castigar a los dioses por haber admitido a tal monstruo al trono. (Kelsen, 1945: 498)

Desta forma, não é um sentimento de inferioridade perante os deuses ou perante a natureza que caracteriza uma ordem transcendente, no sentido kelseniano, mas tão somente a característica de um dos elementos da norma, a sanção, de não estar destinada a ser efetivada pelas ações de qualquer indivíduo humano.

6.2.3.Organização

Uma ordem social, enquanto um determinado conjunto de normas, pode estabelecer órgãos, caso em que falamos de comunidades organizadas. Afirmar que uma ordem estabelece um órgão significa que uma determinada função, ou seja, um conjunto de atos estabelecido como devido pela ordem, deve ser desempenhada por um determinado indivíduo.

Quando uma função regulada por uma ordem normativa não pode, segundo essa ordem, ser desempenhada por qualquer indivíduo à mesma ordem sujeito mas apenas por certos indivíduos qualificados, estamos perante uma divisão funcional do trabalho. (...) As comunidades que têm "Órgãos" chamam-se comunidades "Organizadas"; e por comunidades "Organizadas" entendem-se aquelas que têm órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho. (Kelsen, 2000a: 171)

Quando se fala, portanto, em órgãos e funções de uma dada comunidade, não se refere à coletividade como um ente que tem "necessidades" que têm de ser satisfeitas. Os conceitos de órgão e função não têm aqui uma conotação biológica. Uma função é uma tarefa, algo que se deve realizar, um determinado conjunto de atos estabelecido como devido, não um conjunto de atos que cumpram uma função no sentido de contribuir para o atendimento de certas necessidades. O órgão é o indivíduo ou conjunto de indivíduos que uma ordem estabelece como sendo como objeto da obrigação de realizar uma determinada função, no sentido apontado acima.

Ocorre freqüentemente a personificação da ordem que regula a conduta dos indivíduos. Esta personificação pode ser bastante útil para tornar mais breve a descrição de uma situação.

Como já acima foi acentuado, toda ordem normativa que regula a conduta de uma pluralidade de indivíduos pode ser personificada; a conduta por ela determinada e os deveres a cumprir ou os direitos a fazer valer através desta conduta podem ser referidos à unidade daquela ordem, podem ser atribuídos à pessoa jurídica assim construída. (Kelsen, 2000: 212)

Dizemos que uma determinada empresa, digamos, um supermercado determinado, vende produtos baratos mas maltrata seus clientes. Por certo quem vende produtos baratos e que maltrata clientes são indivíduos, não supermercados. Quando uma conduta determinada pode ser atribuída ao supermercado? Quando o indivíduo que realizou tal conduta a realizou enquanto um funcionário do supermercado no exercício de suas funções, ou seja, quando este indivíduo agiu em cumprimento de um determinado conjunto de normas (exercendo suas obrigações enquanto funcionário) estabelecidas no estatuto (não necessariamente escrito, mas de uma forma ou de outra um conjunto de normas) que compõe o supermercado.

Há aí uma ficção, pois não é a comunidade, mas um indivíduo humano, quem exerce a função. A comunidade consiste na ordem normativa que regula a conduta de uma pluralidade de indivíduos. Diz-se, na verdade, que a ordem constitui a comunidade. Mas orden e comunidade não são dois objetos distintos. Uma comunidade de indivíduos, quer dizer, aquilo que a estes indivíduos é comum, consiste apenas nesta ordem que regula sua conduta.(...) Atribuir à comunidade um ato de conduta humana não significa absolutamente nada mais que referir esse ato à ordem que constitui a comunidade, concebê-lo como um ato que a ordem normativa autoriza (no sentido mais amplo da palavra). (...) Um indivíduo é órgão de uma comunidade porque e na medida em que realiza uma conduta atribuível à comunidade quando está determinada na ordem normativa constitutiva da comunidade como pressuposto ou conseqüência. (Kelsen, 2000a: 168)

Este ponto é de especial importância na medida em que um pensamento acerca da sociedade trata justamente de explicar o comportamento dos homens em coletividade, de modo que os homens surgem constantemente como órgãos de determinadas comunidades. Palavras como empregado, patrão, presidente, pai e mãe referem-se a órgãos de determinadas comunidades, não a tipos ou padrões de conduta efetiva de indivíduos, nem tampouco a um conjunto de ações que têm de ser desempenhadas em função de uma necessidade da comunidade.

Quando falamos de um pai, referimo-nos a um indivíduo que tem a obrigação de cuidar de um filho, a obrigação de dar-lhe instrução, de responder pelos atos daquele, que tem ainda o direito de dar-lhe ordens e puni-lo quando tais ordens não forem obedecidas. Este direito a punir é, no entanto, limitado. Não pode castigá-lo imoderadamente, feri-lo, etc.

Uma comunidade não é constituída por um conjunto de ações recíprocas de indivíduos, nem tampouco por uma espécie paralelismo de crenças ou ações. Se dois indivíduos saem em uma viagem ao mesmo tempo, dirigindo-se a um mesmo lugar, com um mesmo objetivo, digamos, fazer comércio, isto não faz com que tal comportamento seja considerado uma empreitada comum. Apenas quando ambos subordinam seu comportamento a um determinado conjunto de normas, eles passam a compor uma comunidade. Assim, se ambos os indivíduos estiverem sob a norma segundo a qual eles deverão dividir os lucros resultantes das vendas, ou sob a norma de que um deles deverá empreender as negociações enquanto o outro verifica a qualidade dos produtos, consideraremos tal comportamento como uma empreitada e os indivíduos como membros de uma sociedade comercial.

Da mesma forma, de dois ou muitos mais indivíduos compartilham uma determinada crença acerca do poder de determinado ser sobrenatural, ou acerca dos poderes sobrenaturais de um determinado animal, por exemplo, não consideramos tais indivíduos como pertencentes a uma mesma comunidade religiosa a não ser que estejam subordinados a uma regra segundo a qual devem sustentar tais crenças, ou a qualquer outra norma que constitua essa comunidade. Não se trata de coincidência de crenças subjetivas, mas de co-subordinação a uma determinada ordem social.

Quando dois ou mais indivíduos querem perseguir em comum, por qualquer motivo, certos fins econômicos, políticos, religiosos, humanitários ou outros, dentro do domínio de validade de uma ordem jurídica estadual, formam uma comunidade na medida em que subordinam a sua conduta cooperante endereçada à realização desses fins, em conformidade com a ordem estadual, a uma ordem normativa particular que regula esta conduta, e, assim, constitui a comunidade. (Kelsen, 2000a: 196)

Desta forma, não pode um conhecimento dirigido à descrição de fatos chegar à constatação da unidade de uma comunidade. Associações humanas têm um caráter normativo, donde uma descrição destas associações não pode prescindir daquilo que Kelsen chama de ciência social normativa.

A sociologia, enquanto ciência social causal, é capaz tão somente de descrever um paralelismo no comportamento de indivíduos, o que não necessariamente corresponde a uma associação. O conjunto das pessoas que efetivamente crêem que Jesus Cristo é Deus feito homem, que se devem observar seus mandamentos e que tais mandamentos estão inscritos na Bíblia e na tradição, e que o Papa é o guardião desta tradição e que está investido do poder de estabelecer dogmas sobre fé e moral, garantidos pela autoridade divina, não necessariamente coincide com o conjunto dos indivíduos que compõem a comunidade dos católicos. São católicos aqueles que foram batizados, segundo as diferentes formas de batismo, e não aqueles que têm determinadas crenças. Da mesma forma, são brasileiros aqueles determinados pelo ordenamento jurídico como nacionais do Brasil, e não aqueles que falam português ou que têm um determinado sentimento de afeto com relação ao Brasil.

A natureza normativa das ordens sociais implica, portanto, em uma divergência entre o pensamento kelseniano e o pensamento sociológico. Para o pensamento kelseniano uma ordem social apenas pode ser adequadamente descrita enquanto um sistema de normas, enquanto que para a sociologia o comportamento recíproco dos indivíduos constitui, de alguma forma, diversas unidades, tais como família e igreja, que são identificáveis e podem ser descritas em suas inter-relações com diversos outros elementos.

A crítica que Kelsen dirige à sociologia do direito, afirmando não ser esta capaz de delimitar seu objeto de estudo, devendo, portanto, recorrer à definição elaborada pela jurisprudência, tem por base justamente esta dicotomia entre ser e dever ser que, no pensamento kelseniano, implica em uma distinção entre o comportamento de seres humanos e as ordens sociais. Enquanto que o comportamento é parte da natureza, a ordem social é parte da sociedade, ou seja, o comportamento consiste em um determinado complexo de elementos interligados causalmente, mas a ordem social (a associação, a religião, o direito, etc.) consiste em um conjunto de elementos interligados por um elo normativo.

6.2.4.Relações entre Ordens

O pensamento kelseniano afirma que as construções sociais são limitadas e independentes entre si. Como uma ordem social é um conjunto de normas vinculadas entre si por derivarem sua validade de uma mesma norma fundamental, normas que não têm sua validade derivada a partir de uma mesma norma fundamental não têm qualquer relação entre si no pensamento kelseniano. Assim, aquilo que é proscrito por uma determinada ordem pode ser devido segundo uma outra.

Um homem que mata a esposa adúltera ou o seu amante é, segundo a maioria das ordens jurídicas vigentes, um criminoso, mas o seu feito pode por muitos não ser de forma alguma reprovado, sim, pode mesmo ser aprovado como exercício de um direito natural a proteger a sua honra. O duelo, contra o qual é cominada uma pena, é considerado por uma determinada camada social, não apenas como não imoral, mas como dever moral, e a pena de prisão que lhe corresponde não é tida como desonrosa. (Kelsen, 2000a: 125)

Não há nesta situação qualquer contradição ou conflito entre normas. Uma determinada ordem pune o comportamento que segundo outra ordem deve ser feito. Se admitirmos que subjetivamente um mesmo indivíduo considera válidas ambas as ordens, teremos um conflito teleológico. Isto, porém, não pode ser deduzido da descrição das ordens normativas.

Diferentes ordens normativas válidas apenas podem ser, no pensamento kelseniano, superiores, inferiores ou coordenadas entre si. Em todos estes casos, as diferentes ordens normativas compõe uma só ordem mais ampla. Desta forma, do ponto de vista de um conhecimento normativo, na visão de Kelsen, é impossível qualquer relação entre ordens normativas desconexas entre si.

Duas ordens sociais apenas podem ser descritas como estando em conflito entre si de um ponto de vista distinto do normativo. Assim, quando tomamos o ponto de vista de um determinado indivíduo, podemos ter de aceitar tanto a proibição quanto a prescrição de um duelo, por exemplo. Entretanto, mesmo neste caso teremos não uma relação entre ordens sociais, mas um determinado evento psicológico, qual seja, um "conflito teleológico".

Portanto, quando a sociologia busca compreender as relações entre direito e estado ou entre direito e igreja, o pensamento de Kelsen apenas pode responder que tais relações não são relações entre direito e estado, mas entre o indivíduo A e o indivíduo B.

Por fim, deve-se salientar que ao longo de toda a obra de Kelsen o direito é tratado como um exemplo em particular de uma ordem social. Quando o autor delimita conceitos como ordem dinâmica e estática, norma fundamental e mesmo constituição, não o faz citando simplesmente o direito. Os exemplos apresentados ao longo de sua exposição soem ser exemplos retirados de outras ordens que não a ordem jurídica. Assim, quando o autor pretende explicar que uma norma apenas pode decorrer de uma outra norma afirma:

em todo caso, no silogismo cuja premissa maior é a proposição de dever ser que enuncia norma superior: devemos obedecer aos mandamentos de deus (ou aos mandamentos de seu filho), e cuja conclusão é a proposição de dever ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos dez mandamentos (ou que nos ordena que amemos os inimigos), a proposição que verifica (afirma) um fato da ordem do ser: deus estabeleceu os dez mandamentos (ou o filho de deus ordenou que amássemos os inimigos), constitui, como premissa menor, um elo essencial. Premissa maior e premissa menor, ambas são pressupostos da conclusão. Porém apenas a premissa maior, que é uma proposição de dever ser, é conditio per quam relativamente à conclusão, que também é uma proposição de dever ser. Quer dizer, a norma afirmada na premissa maior é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. A proposição de ser que funciona como premissa menor é apenas conditio sine qua non relativamente à conclusão. Quer dizer: o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor não é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. (Kelsen, 2000a: 216)

Não se trata aqui do direito, mas da religião. O pensamento de Kelsen não se restringe a uma explicação do direito. Trata-se de uma explicação de uma ordem social em particular, o direito, destacada de um complexo de ordens sociais, a Sociedade, que se distingue essencialmente da Natureza.

6.3.Uma teoria da Sociedade

Hans Kelsen, quando afirma que a Teoria Pura do Direito tem um objeto distinto do objeto de estudo da sociologia do direito, e posteriormente elabora críticas externas a esta sociologia, o faz porque seu pensamento não é restrito ao objeto da Teoria Pura do Direito. Esta teoria é uma formulação que tem por objeto descrever e explicar o direito, entretanto, tal formulação é erigida sobre as bases de uma concepção acerca do que é a sociedade como um todo. Seguem-se as teses que compõem este pensamento acerca da sociedade que servem de fundamento para as críticas trabalhadas aqui.

Tese 1: ser e dever ser distinguem-se fundamentalmente.

Tese 2: um conjunto de elementos interligados na forma "se A é, então B é" compõe a Natureza, e um conjunto de elementos interligados na forma "se A, então deve ser B" compõe a sociedade. Tais conjuntos distinguem-se fundamentalmente.

Tese 3: a descrição da Natureza distingue-se da descrição da Sociedade.

Tese 4: não há nexo causal entre ser e dever ser, não há nexo causal entre Sociedade e Natureza.

Tese 5: a representação subjetiva de um dever ser é um fenômeno da Natureza, não da Sociedade.

Tese 6: uma ordem social é um conjunto de normas vinculadas por decorrerem sua validade de uma mesma norma fundamental. Não há qualquer conjunto de representações subjetivas que corresponda a uma ordem social.

Tese 7: Associações de homens, tais como geralmente são entendidas, como a Igreja Católica, o Estado Brasileiro, o Clube de Regatas Flamengo, são ordens sociais.

Tese 8: É possível a descrição da estrutura das normas e da estrutura das ordens enquanto uma teoria geral das normas (do social).

Tese 9: É possível uma descrição "empírico-normativa" de uma ordem social, isenta de juízos valorativos.

Temos, portanto, um pensamento acerca da sociedade que, em primeiro lugar, distingue o comportamento dos indivíduos da sociedade, reafirmando a dicotomia entre ação e estrutura, entendida por estrutura apenas a estrutura normativa, e uma construção acerca do que é e da forma adequada de compreensão desta estrutura normativa. É a este conjunto de teses que aqui se designa por "teoria pura da sociedade", porque separa a o estudo das ordens sociais tanto de juízos de valor como da descrição do comportamento efetivo dos homens, da mesma forma como Kelsen pretende separar o estudo do direito da moral e da sociologia. Esta teoria pura da sociedade constitui a base sobre a qual Kelsen formula suas críticas à sociologia do direito.


VII_Conclusão

A sociologia do direito ambiciona descrever e explicar o fenômeno social mais bem descrito ao longo da história. O estudo do direito é bastante desenvolvido em todo o ocidente e pode-se construir uma história do direito simplesmente a partir de estudos de juristas acerca do objeto de seu estudo. O conhecimento jurídico nos oferece hoje imensas descrições e sistematizações de praticamente todos os ordenamentos jurídicos do mundo, contemplando desde assuntos tão corriqueiros como a queda de um fruto no terreno vizinho até as complexas normas relativas ao pagamento e recebimento de tributos e ao registro de títulos e documentos.

As críticas que Kelsen dirige à sociologia do direito têm um ar de rivalidade profissional. Entretanto, elas não consistem simplesmente na afirmação de que a sociologia não é capaz de substituir ou de concorrer com a jurisprudência, mas também na afirmação de que a sociologia comete determinados equívocos não apenas quando lidando com o direito.

Quando tomamos a crítica dirigida à sociologia do direito weberiana, segundo a qual esta é incapaz de delimitar seu objeto de estudo, temos não apenas a afirmação de que a sociologia do direito depende da jurisprudência, mas também, e na mesma medida, a de que a sociologia da religião depende da teologia.

Não se trata somente de rivalidade profissional, mas de um corpo conceitual e teórico que oferece as bases para o conhecimento do direito tal como formulado por Kelsen e que está em divergência com as formas pelas quais a sociologia do direito vem lidando com seu objeto.

A afirmação de que Sociedade e Natureza se distinguem enquanto sistemas de elementos vinculados normativa ou causalmente, e de que não existem nexos entre estes dois conjuntos de elementos é a negação de uma sociologia que estabeleça vínculos entre o comportamento efetivo de indivíduos e corpos coletivos tais como o catolicismo ou o estado. Trata-se da negação de uma sociologia enquanto conhecimento voltado para um objeto distinto daquele da psicologia ou da história. Aquilo que é propriamente "social", como afirma Kelsen, seria colocado fora do alcance da sociologia enquanto uma ciência causal. À sociologia restaria a história e a psicologia.

Daí a relevância destas críticas para o pensamento sociológico contemporâneo. Em um momento em que a principal preocupação teórica consiste na superação de uma dicotomia surgida de forma espontânea no pensamento sociológico, aquela entre ação e estrutura, cuida-se aqui de apreciar críticas formuladas por um autor que assume uma defesa de tal dicotomia. Se o conceito de estrutura não é tão preciso, ao menos é nítido que as estruturas normativas nele se incluem. A crítica formulada por Kelsen à sociologia do direito tem por base um pensamento que afirma que ação humana e estruturas normativas são duas coisas distintas e independentes entre si; que afirma que não há nexo entre essas duas realidades e que a tentativa de superação desta dicotomia implica, necessariamente, em um erro lógico que consiste na passagem do ser para o dever ou vice-versa.

Quando Kelsen formula críticas externas à sociologia do direito, ele o faz por ela ser incompatível com seu pensamento. Não um pensamento dirigido à ordem jurídica apenas, mas um pensamento mais amplo, que compõe uma teoria da sociedade, cuja premissa fundamental é a separação entre Natureza e Sociedade. É em uma teoria pura da Sociedade, e não apenas na teoria pura do direito que Kelsen baseia suas críticas à sociologia. O método de descrição empírico-normativo rendeu descrições detalhadas e profundas, cuja utilidade é indiscutível, do direito. É razoável que a sociologia leve em consideração a possibilidade de que tal método também possa render frutos na descrição da religião, de empresas ou de outras ordens sociais.

Kelsen estabelece uma oposição entre a sociologia e o conhecimento que chama de ciência social normativa. Entretanto, a preocupação do sociólogo não é tanto a descrição do comportamento de uma forma empírico-causal, mas a descrição do comportamento humano em sociedade. Se um conhecimento empírico-normativo puder ser utilizado para uma descrição da sociedade, então ele por certo interessa ao sociólogo. Não se procurou responder aqui à questão quanto à viabilidade de uma tal descrição referente a outras ordens sociais além do direito, mas tão somente demonstrar que é esta a concepção que orienta as críticas à sociologia do direito. Consideramos, em princípio, que tal descrição é viável e demanda menos esforço que uma descrição empírico-causal. De qualquer forma, sustenta-se que uma "teoria pura da sociedade", ou seja, um corpo teórico conceitual que abrange a descrição não apenas do direito, mas de toda e qualquer ordem social, serve de fundamento para as críticas kelsenianas dirigidas à sociologia do direito.


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NOTAS

01 O termo jurisprudência não tem um significado unívoco. Refere-se, pelo menos, tanto às decisões de juízes acerca de questões que lhes são apresentadas nas cortes e tribunais quanto ao estudo do direito. Neste caso e ao longo de todo este trabalho, "jurisprudência" remete, salvo expressa menção em contrário, ao estudo do direito.

02 Um "tipo penal" é uma descrição de uma conduta humana. Assim, a descrição "matar alguém" figura no Código Penal Brasileiro. Não se trata de um "tipo ideal" no sentido weberiano em que se pode falar em aproximações e gradações. Uma conduta é "típica" se, e somente se, é adequadamente descrita pelo "tipo penal".

03 O autor, de fato, busca reduzir estes outros conceitos à norma, e sempre à idéia de "dever" no sentido estrito de "ter a obrigação de fazer". A norma é a unidade básica de toda estrutura normativa. Quando Kelsen busca reduzir a "autorização" a uma norma, trata, também, de reduzi-la a um "dever" no sentido mais estrito. É relevante, entretanto, a observação de que "dever" em Kelsen engloba não apenas o "dever", mas também o "direito", a "autorização", etc., para que se compreenda o alcance que pretende ter sua explicação da estrutura da norma sem termos, necessariamente, de adentrar na questão acerca da redução de tais conceitos ao "dever" no sentido estrito.

04 Atente-se para que os conceitos jurídicos apresentados neste trabalho são todos, salvo expressa menção em contrário, definidos segundo a concepção kelseniana.

05 Podem-se encontrar passagens nos escritos de Durkheim que parecem indicar que o homem é um ser distinto (e melhor) que "os animais", no entanto, se assim parece, tal característica seria justamente o ser membro de uma sociedade. A sociedade, como veremos, eleva o indivíduo acima de si. O homem, enquanto ser social, é radicalmente distinto dos animais. Segue um exemplo de tais passagens: "É que o homem, com efeito, não é apenas o animal com algumas qualidades a mais: é outra coisa. A natureza humana deveu-se a uma espécie de remodelagem da natureza animal, e, ao longo das operações complexas de que resultou essa remodelagem, ocorreram perdas e ganhos ao mesmo tempo". Mas logo em seguida ele arremata: "Ora, a sociedade, para poder manter-se, requer com freqüência que vejamos as coisas sob um certo ângulo, que as sintamos de um certo modo; conseqüentemente, modifica as idéias que seríamos levados a ter dessas coisas, os sentimentos a que estaríamos inclinados se obedecêssemos apenas à nossa natureza animal; ela os altera ao ponto mesmo de substituí-los por sentimentos contrários (...) Portanto, é enganoso buscar inferir a constituição mental do primitivo tomando como base a dos animais superiores" (Durkheim, 2000: 55) Assim, há uma diferença radical entre homens e animais: a sociedade.

06 Cf. p.176

07 Cf acima pp. 43ss

08 A definição kelseniana de representação é bastante diversa desta, no entanto, esta definição simplista serve aos fins necessários aqui.

09 A citação se refere a um artigo publicado na revista Doxa, em espanhol. A tradução é própria.

10 Kelsen, em Naturaleza y Sociedad (1945) pretende mostrar que a hipostatização é uma tendência do pensamento humano que se manifesta nas mais diversas culturas e momentos históricos.

11 Deve-se observar aqui que o termo "função" é ambíguo. No sentido empregado por Luhmann "função" corresponde a algo independente da vontade de indivíduos. A "função" então se refere a um papel desempenhado dentro do sistema social, não a um objetivo de indivíduos. Para Kelsen o Direito é uma "técnica social" que, obviamente, cumpre uma "função". Em Kelsen, porém, a palavra "função" não tem um sentido técnico, próprio do funcionalismo, mas antes se refere ao objetivo visado pelos indivíduos que se valem do direito para a obtenção de seus fins. Assim, Kelsen afirma que o direito é uma técnica que visa obter um determinado comportamento com recurso à aplicação de uma sanção coercitiva ao comportamento contrário, isto significa que os indivíduos que criam o direito pretendem obter um determinado comportamento daquela forma. Quando Luhmann, entretanto, afirma que a função do direito é reduzir a complexidade da experiência, não pretende afirmar que este é o objetivo dos indivíduos que elaboram o direito. O direito no sentido kelseniano, ou seja, enquanto um determinado conjunto de normas, não pode ter qualquer função no sentido Luhmaniano. Normas podem ser utilizadas por indivíduos na medida em que procuram aplicá-las ou observá-las, mas normas enquanto conteúdos de sentido não têm, por si só, um impacto causal sobre o mundo.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nelson do Vale. Uma teoria pura da sociedade: os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1110, 16 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8626. Acesso em: 4 maio 2024.