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Uma teoria pura da sociedade:

os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito

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16/07/2006 às 00:00
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Hans Kelsen formulou diversas críticas à Sociologia do Direito. Estas críticas têm como fundamento o mesmo corpo de premissas que levam à Teoria Pura do Direito.

Resumo

Hans Kelsen formulou diversas críticas à Sociologia do Direito. Dentre estas se contam a de que tal sociologia incorre em jusnaturalismo, a de que confunde "ser" e "dever ser", personificando normas, e a de que é incapaz de definir corpos coletivos. Estas críticas têm como fundamento o mesmo corpo de premissas que levam à Teoria Pura do Direito. Tais premissas compõem uma Teoria da Sociedade: a Sociedade é um conjunto de elementos vinculados normativamente, tais elementos formam subconjuntos desconexos entre si, mas coerentes internamente e têm uma estrutura interna determinada. A natureza normativa da Sociedade implica em uma dicotomia nos estudos acerca da vida social, já que não se pode logicamente deduzir fatos de normas e vice versa. Desta forma tem-se uma ciência social causal e uma ciência social normativa. Aquela estuda o comportamento concreto de seres humanos, ainda que dotado de sentido subjetivo. A última estuda o conjunto de normas sociais enquanto sentido objetivo, independente dos seres humanos individuais.


Abstract

Hans Kelsen formulated several critics to the Sociology of Law. Amongst these: that it incurs in jusnaturalism, that it confuses "be" and "ought", treating norms as acting beings, and that it is incapable of creating a definition of any collective body. These critics are anchored on the same body of premises that lead to the Pure Theory of Law. Such premises compose a Theory of Society, according to which the Society is a set of entailed normative elements; such elements forms disconnected groups, internally coherent; and with a certain internal structure. The normative nature of the society implies a dichotomy in the studies concerning the social life, since there is no logically possible connection between facts and norms. Thus, there is a causal social science and a normative social science. The former studies the behavior of concrete human beings, endowed or not with subjective meanings. The last one studies the set of social norms as objective meanings, independent of the individual human beings.


I-Introdução

O jurista austríaco Hans Kelsen exerceu grande influência no mundo jurídico no século XX. Sua teoria influenciou legisladores, juristas e cientistas políticos. O mundo do direito, ainda hoje, se defronta incessantemente com seu pensamento, todos aqueles que se dedicam de alguma forma ao estudo do direito têm de fazer referência à Teoria Pura do Direito, seja para aderir ou para contrapor-se a ela. Este autor é conhecido como o expoente mais importante do "positivismo jurídico". Este termo tem um significado peculiar que difere daquele normalmente entendido por positivismo nas ciências sociais. Este nome decorre de que tal corrente de pensamento afirma existir apenas direito positivo, em contraposição ao direito natural. O direito positivo é aquele que é estatuído, posto, por atos humanos.

O positivismo jurídico pretende tornar o estudo do direito independente de considerações morais e sociológicas. Afirmando que direito e moral são duas ordens distintas, o autor em questão fez severas críticas a toda forma de jusnaturalismo, que considera que existe algum direito inscrito na natureza do homem ou da sociedade, por pretender legitimar o direito existente afirmando que corresponde a uma moral absoluta, porque natural. O relativismo moral kelseniano é bastante conhecido. Suas repetidas afirmações de que "justiça" é um conceito vazio e de que é impossível a determinação objetiva do que seja justo e injusto lhe renderam a fama de defender que o direito, mesmo injusto, deve ser aplicado com rigor.

Por outro lado, ao afirmar que a ciência do direito e a sociologia têm objetos distintos, pretendeu o autor afastar da ciência jurídica quaisquer referências à gênese causal ou às conseqüências de normas. Para ele, um estudo empírico-causal é incapaz de alcançar o sentido específico de uma norma, o estudo de fatos não pode concluir com uma norma, e o estudo de normas não pode concluir com um fato. Assim, a sociologia não é capaz de determinar a origem do direito enquanto um sistema normativo, mas apenas a origem de certas representações cognitivas na mente de indivíduos humanos. Isto, entretanto, não é o direito. Da mesma forma, a ciência jurídica não é capaz de determinar as conseqüências empírico-causais de uma norma. Pode apenas determinar o que deve ser, de acordo com a norma, mas isto não é realidade empírico-causal.

Apesar de preconizar a distinção radical entre ciência jurídica e sociologia, Kelsen formulou críticas contundentes à Sociologia do Direito e do Estado. Tais críticas chegam a afirmar a impossibilidade de a sociologia elaborar um conceito adequado de Estado, a inexistência de unidade sociológica naquilo a que chamamos "Estado" e um freqüente desvio jusnaturalista da sociologia.

Quando nos indagamos acerca dos fundamentos de tais críticas, encontramo-los em uma concepção kelseniana um tanto mais ampla que a teoria pura do direito, que abrange não apenas o Direito e o Estado, mas também todas as, assim chamadas pelo autor, ordens sociais. Esta concepção de fundo da obra do autor não é apenas uma teoria jurídica, mas uma teoria da sociedade. Nela vamos encontrar a afirmação da distinção radical entre sociedade e natureza, e a conseqüente separação entre ciência natural e social


II- Hans Kelsen, apresentação biográfica

2.1.Vida

Há quem diga que a sorte é uma virtude. A sorte deu a Hans Kelsen uma longevidade rara, o que foi, sem dúvida, uma virtude. Este autor escreveu suas últimas obras já nonagenário. Mesmo assim o tempo não lhe bastou, e ele deixou alguns trabalhos incompletos. Nem sempre a sorte lhe sorriu. Kelsen teve uma vida conturbada por duas guerras mundiais, pelas mudanças que teve de empreender com sua família, alterando seu convívio social e tendo de reerguer sua carreira em países e línguas diversas, e, é claro, pelas conseqüências de ter ascendência judia.

Kelsen nasce em Praga, a 11 de outubro de 1881, mas ainda aos três anos de idade se muda para Viena, onde realiza seus estudos. Em 1906, aos 25 anos, Kelsen obtém sua titulação como Doutor em Direito, um ano após a publicação de sua primeira obra: "A doutrina do Estado de Dante Alighieri" (Die Staatslehre des Dante Alighieri).

Ainda em 1905, antevendo as conseqüências de sua origem judia, Kelsen, agnóstico resoluto, converte-se ao catolicismo. Esta manobra, no entanto, não foi bem sucedida e não impediu que sofresse com o sentimento anti-semita. Numa nota biográfica, Ladavac observa:

Although Kelsen was resolutely agnostic, he converted to Catholicism in 1905 in an attempt to avoid integration problems. His particular concern was to ensure that his ambition to lecture at university would not be jeopardized by his family’s religious background. Unfortunately, this solution did not prove to be very useful. Indeed, Kelsen’s Jewish ancestry caused him serious difficulties on many occasions, right until his decision to emigrate. (Ladavac,1998: 1)

Conhece-se um episódio em que, antes de sua última migração, Kelsen foi ameaçado por estudantes anti-semitas e presenciou os maus-tratos infligidos a alunos judeus. Ian Stewart assim o narra:

Fearing the outcome if the secret police found it in his house, the sacked law professor wrapped his old service revolver in a banana skin and plopped it into the Rhine. He escaped with his family to Prague, where, at his first lecture, fascists packed the hall and shouted: ‘Everybody except Jews and communists, out!’ Those students who remained were beaten up. He continued to teach, under police protection. Plans of a plot to assassinate him were discovered by a lecture theatre cleaner. He brought his family out, to the USA, where he was allowed a chair of political science but not of law. (Stewart, 1990: 1)

Mas isto não ocorreu antes que Kelsen tivesse desempenhado um papel importante no mundo jurídico, acadêmico e político da Europa. Durante a Primeira Guerra Mundial assumiu o cargo de consultor jurídico do Ministério da Guerra da Áustria. Apesar disto, seus biógrafos afirmam que permaneceu agindo de forma politicamente neutra, mesmo tendo inclinações social-democratas. Em 1919, ainda em Viena, Kelsen fundou a "Revista de Direito Público", que chegou a publicar 23 volumes. Ele já era então reconhecido como um grande jurista e foi incumbido de elaborar o projeto de Constituição da Áustria, documento adotado em 1920 e que vige ainda atualmente sem alterações quanto a seus preceitos fundamentais.

No ano seguinte, 1921, ele foi indicado para tomar parte na Corte Constitucional Austríaca, cuja criação havia defendido intensamente e constituía uma parte importante da Constituição cujo projeto havia feito.

O ano de 1930 marca o início de um período conturbado da vida do autor. Neste ano ele é excluído da Corte Constitucional Austríaca por defender, ao que parece em concordância com o Direito Austríaco vigente à época, o divórcio e o novo casamento. As cortes inferiores da Áustria estavam negando esta possibilidade e, subindo a questão para a Corte Constitucional, esta decidiu, com a influência de Kelsen, pela legalidade do segundo casamento. As forças políticas tendiam para a opinião contrária, o que resultou na exclusão de Kelsen daquela Corte.

A partir daí ele passou a ser alvo de perseguições políticas. Estas tinham uma intensidade tal que impeliram Kelsen a deixar a Áustria. "The political attacks on Kelsen were so vehement as a result of this major controversy that he decided to move to Cologne"(Ladavac, 1998: 1). Em Colônia Kelsen prossegue sua produção acadêmica o que, entretanto, não perduraria muito. Com a ascensão do movimento anti-semita e a tomada do poder pelos nazistas, ele foi removido do cargo que ocupava na Universidade de Colônia e viu-se obrigado, novamente, a migrar, desta vez para a Suíça.

However, when the Nazis seized power in 1933 the situation at the University of Cologne changed rapidly, with the result that Kelsen was removed. Together with his wife and two daughters, he left for Geneva in autumn 1933 to start a new academic career at the Institut Universitaire des Hautes Etudes International. (Ladavac, 1998: 1)

A Suíça não lhe parecia segura. Estava convicto de que também aquele país estaria envolvido nos conflitos que já se faziam sentir. Partiu, então, sexagenário, para sua última migração, em 1940. Desta vez, dirigiu-se para os Estados Unidos. Um novo continente, uma nova cultura, uma nova língua, mas, enfim, um ambiente mais tranqüilo e propenso à vida acadêmica. Ali se naturalizou em 1942 e, pouco depois, tornaria a figurar no cenário internacional, trabalhando na ONU e escrevendo sobre ela.

Um episódio interessante é relatado por Oscar Schachter, em uma entrevista a Antonio Cassesse, membro da "European Journal of International Law":

A.C: Did you ever meet Kelsen?

O.S.: Yes, in a curious way. When I was an Assistant General Counsel at the United Nations Relief and Rehabilitation Administration (UNRRA) in 1944 or 1945 (located in Washington), I was asked by the Personnel Office to interview a job-seeker with a legal background. When he presented his card to me, I said in some astonishment, `Are you the Hans Kelsen? He then said. `I have been looking for a job in Washington and you are the first person to recognize my name.'' It was, of course, not surprising that government lawyers or officials did not know of Kelsen''s eminence.

A.C: Did he get the job?

O.S.: No. My chief, Abe Feller, did not think that it would be fitting to have Kelsen deal with our mundane legal questions and that it would be undignified for him to have a librarian''s post. Actually, Kelsen''s problem arose because the law school at Berkeley - where he had been lecturing - had to `downsize'' because student enrolment during the war had been reduced. (Arangio-Ruiz, 1998:1)

Tal episódio é representativo não apenas das dificuldades pelas quais passou este jurista, mas também da recepção que tem sua teoria. Não havia, como não há ainda, qualquer grande jurista que passe ao largo da obra de Kelsen. Entretanto, sua obra costuma ter pouca influência entre os juristas preocupados com questões práticas, além de que, nos países do chamado "common law", sua teoria é entendida como elaborada para o sistema romano-germânico de direito.

Em 1945, Kelsen tornou-se conselheiro da Comissão de Crimes de Guerra das Nações Unidas e foi incumbido da tarefa de preparar os aspectos técnicos e jurídicos do tribunal de Nuremberg. É irônico que Kelsen, o mais proeminente dentre os positivistas jurídicos tenha colaborado na preparação do tribunal que julgou praticamente todos os seus casos com base em um Direito Natural.

De 1945 em diante a produção acadêmica de Kelsen fluiu com maior tranqüilidade. Aos 70 anos publicou uma extensa obra, de mais de 900 páginas sobre o Direito das Nações Unidas. Ao final de sua vida o autor havia publicado em torno de 400 trabalhos, entre livros e artigos e, ainda assim, tinha trabalhos de porte considerável por publicar, tais como "A ilusão da Justiça" e "Teoria Geral das Normas", que ultrapassam cada um 400 páginas.

Em 1971 o Governo Austríaco fundou o Instituto Hans Kelsen, incumbido de preservar a obra do autor, que faleceria dois anos depois, em 1973, aos 92 anos de idade, já contando aproximadamente 70 anos de estudos dedicados à teoria do Direito e do Estado.

Hans Kelsen died in Berkeley on 19 April 1973 at the age of 92 years, leaving behind him almost 400 works, legacy of an immensely productive life. Several of these works have been translated into as many as 24 languages. In 1971, to celebrate his 90th birthday, the Austrian government founded the Hans Kelsen Institute in Vienna which houses most of his original writings and is responsible for maintaining this important cultural heritage. The Institute, for instance, produced the first edition of the path-breaking General Theory of Norms in 1979). The influence of Kelsen continues to be felt in areas as far-ranging as the general theory of law (Pure Theory of Law), critical legal positivism (constitutional law and international law), philosophy of law (issues of justice, natural law), sociology (causality and retribution), political theory (democracy, socialism, Bolshevism) and critiques of ideology. Indeed, Hans Kelsen remains an essential point of reference in the world of legal though ( Ladavac, 1998: 2).

2.2.Obra Acadêmica

Como já salientado, a obra kelseniana é muito vasta, compreendendo quase 400 trabalhos entre artigos e livros publicados. Ao longo de sua vida Kelsen se debruçou especialmente sobre problemas relacionados ao Direito Público e ao Direito Internacional, mas sua obra abrange também importantes trabalhos em Filosofia do Direito, Filosofia da Justiça, Sociologia, ou mais especialmente Sociologia do Conhecimento.

Entre a publicação de sua primeira obra e de sua última medeia um período de praticamente 70 anos. Resta claro, portanto, que o presente trabalho não terá a pretensão de cobrir todo o pensamento do autor. Entretanto, seu pensamento não parece ter sofrido mudanças significativas nos vários períodos de sua vida quanto às questões fundamentais. Isto vale em especial para os pontos que serão abordados neste trabalho. Assim, apesar de não ter tido acesso à obra "O conceito sociológico e jurídico de Estado" (1922), a descrição que dela faz Norberto Bobbio apresenta idéias que são ainda as mesmas que aparecem em "Teoria Geral do Direito e do Estado" (1945) e nas obras de direito internacional publicadas no final de sua vida, em especial "Princípios de Direito Internacional" (1952).

Por certo, é bastante pretensioso selecionar de uma obra tão vasta aquilo que seria mais relevante. Mesmo ciente deste risco cabe tentar destacar alguns trabalhos. Em primeiro lugar cabe destacar o papel de Teoria Pura do Direito e Teoria Geral do Direito e do Estado. Estas são as duas obras sintéticas do autor, dirigidas cada uma a uma das tradições jurídicas predominantes no ocidente, mas sem diferenças significativas. Estas obras tratam da Teoria do Direito e do Estado (que para o autor se identificam). Em segundo lugar destaco, as obras nas quais o autor manifesta um intenso relativismo moral. São obras que eu classificaria como de Filosofia da Justiça, dentre as quais destacaria O que é justiça?. Em terceiro lugar, as obras dedicadas aos estudos de Direito Internacional, sobressaindo Princípios de Direito Internacional e O Direito das Nações Unidas. Uma obra à parte é Sociedade e Natureza que se trata de uma espécie de sociologia do conhecimento ancorada sobre uma extensa bibliografia etnográfica, algo bastante diverso das demais obras. Por fim, ressalto as obras em que o autor apresenta suas preferências políticas, donde se destaca A democracia.

Temos, portanto: obras de teoria jurídica, de filosofia da justiça, de sociologia, de direito internacional e obras políticas. As obras de teoria jurídica apresentam uma teoria jurídica formal e abstrata, que busca se desvincular de apreciações valorativas e de considerações sociológicas. Tem-se aí uma teoria que vê no direito e no estado tão somente determinados conjuntos de normas. As obras de filosofia da justiça dedicam-se a rechaçar as doutrinas jusnaturalistas, demonstrando que o termo "justiça" é vazio de conteúdo e se presta, o mais das vezes, apenas a legitimar o direito positivo. A obra "Sociedade e Natureza" destaca-se das demais por procurar demonstrar que o princípio da causalidade decorre de uma corruptela da "lei de Talião", além de deixar a entender que a mentalidade humana é, em princípio, social, o que no pensamento do autor significa dizer que ela formula idéias com um formato normativo. As obras dedicadas ao direito internacional têm uma preocupação em demonstrar que este é realmente um direito, que não se diferencia essencialmente do direito nacional, além de diversas teses menores, como a afirmação de que o direito internacional positivo adota o princípio da "guerra justa". Finalmente, as obras políticas do autor apresentam sua preferência pela democracia apesar de buscar demonstrar que isto não pode decorrer da razão humana, das estruturas sociais ou de outros motivos que não uma opção pessoal e subjetiva.

Destas, nos interessam neste trabalho em especial as obras de teoria jurídica. Em sua maior parte, portanto, as considerações que serão apresentadas aqui podem ser encontradas em "Teoria Pura do Direito" e "Teoria Geral do Direito e do Estado", ambas traduzidas para o português, além de "Teoria Geral do Estado", traduzida para o espanhol.


III.O pensamento kelseniano

3.1.Introdução

Considerando que o pensamento kelseniano não é suficientemente, para os propósitos deste trabalho, difundido no âmbito da sociologia, cumpre empreender uma breve introdução ao pensamento do autor, a fim de que se tenha uma adequada compreensão daquilo que aqui se pretende dizer.

3.1.1.Objetivos do autor

O grande objetivo da obra de Kelsen é alçar o estudo do direito a uma verdadeira ciência. A jurisprudência [01] sempre havia se preocupado não apenas em descrever e explicar o direito, mas também em distinguir o direito justo do direito injusto, e assim orientar aqueles que criam o direito e aqueles que com ele lidam. Kelsen pretendia alterar este quadro. Segundo ele, ao elaborar a teoria pura:

Importava explicar, não as suas tendências [da jurisprudência] endereçadas à formação do direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do direito, e aproximar tanto quanto possível seus resultados do ideal de toda ciência: objetividade e exatidão (Kelsen:2000a: XI)

Ao aproximar a jurisprudência, tanto quanto possível, dos ideais de objetividade e exatidão, pretendia o autor elevá-la ao status de ciência do direito. Para fazê-lo, urgia afastar do conhecimento jurídico juízos de valor subjetivos. A ciência do direito deveria se abster de considerar as normas jurídicas justas ou injustas de acordo com critérios de valor próprios do cientista. Antes, deveria tomar as normas tais quais estão postas, positivadas. A ciência do direito, acatando a validade das normas jurídicas, abstém-se de confrontá-las com normas de qualquer outra ordem.

O momento histórico em que o autor elaborou sua teoria, entretanto, não era acolhedor à idéia da neutralidade axiológica. Isto é especialmente válido para uma teoria jurídica. Seu intuito de estudar o direito sem levar em consideração questões de justiça e de moral era visto com maus olhos pelos intelectuais de uma época envolvida em intermináveis conflitos. Ainda depois da Segunda Guerra Mundial, o quadro internacional permaneceu conturbado com o desenvolvimento da guerra-fria, de modo que a obra kelseniana foi sempre tida, por quaisquer dos lados em conflito, como representativa da doutrina política do lado contrário.

Antepus a esta segunda edição o prefácio da primeira. Com efeito, ele mostra situação científica e política em que a teoria pura do direito, no período da primeira guerra mundial e dos abalos sociais por ela provocados, apareceu, e o eco que ela então encontrou na literatura. Sob este aspecto, as coisas não se modificaram muito depois da segunda guerra mundial e das convulsões políticas que dela resultaram. Agora, como antes, uma ciência jurídica objetiva que se limita a descrever o seu objeto esbarra com a pertinaz oposição de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciência e política, prescrevem ao direito, em nome daquela, um determinado conteúdo, quer dizer, crêem poder definir um direito justo e, conseqüentemente, um critério de valor para o direito positivo. É especialmente a renascida metafísica do direito natural que, com esta pretensão, sai a opor-se ao positivismo jurídico. (Kelsen, 2000a: 18)

Talvez o quadro politicamente conturbado que marcou a vida do autor desempenhe um papel importante em uma explicação das razões pelas quais Kelsen dedicou-se com tanto empenho a combater as doutrinas que chamava de jusnaturalistas. O autor estava convencido de que qualquer doutrina que pretendesse reconhecer na natureza dos homens ou da sociedade um direito natural, anterior e superior ao direito positivo, incorreria no erro lógico de concluir algo normativo de premissas factuais, ou assumiria alguma premissa normativa não explícita. Mas não apenas isto. Presenciava ele diversas teorias jurídicas que tinham como objetivo justificar as doutrinas políticas dos estados em conflito, inclusive ressuscitando a doutrina do direito natural que já então não mais prevalecia entre os juristas.

Kelsen pretendeu afastar da ciência do direito qualquer consideração desta espécie. Ao cientista do direito não cabia indagar sobre a justiça ou sobre o valor do direito, mas apenas sobre como ele efetivamente é. Assim, segundo o autor:

O problema da justiça, enquanto problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do direito que se limita à análise do direito positivo como sendo a realidade jurídica. (Kelsen: 2000a: XVIII)

O problema da justiça, portanto, apesar de sua longa tradição nos estudos jurídicos, foi deliberadamente afastado da teoria kelseniana do direito, que se pretende uma ciência jurídica. É verdade que o autor também teceu considerações sobre a justiça e sobre o valor de diversas ordens jurídicas, chegando mesmo a participar da elaboração da Constituição de seu país. Entretanto, ao fazê-lo não pretendia que suas opiniões estivessem ancoradas na Teoria Pura do Direito. Por diversas vezes se pronunciou a favor da democracia, entretanto, afirmava sempre que isto não decorria de qualquer ciência, mas de preferência pessoal. Tanto assim, que apesar de sua descendência judia, afirmou que o direito nazista era direito verdadeiro e, como tal, válido, e que o Tribunal de Nuremberg, ao punir os "Criminosos de Guerra" alemães por violarem um direito natural e evidente, era tão somente um tribunal de exceção, que criou normas novas e as aplicou retroativamente aos oficiais nazistas.

A Teoria Pura do Direito, portanto, não tem pretensões de apresentar um direito ideal segundo critérios de justiça, tampouco a de indagar sobre a natureza da sociedade ou do homem para apresentar um direito necessário e indispensável, mas tão só o de explicar e descrever o direito positivo, ou seja, o direito tal qual posto por atos humanos.

Não obstante, a Teoria Pura é bastante ambiciosa. Não pretende julgar o direito com base em valores diversos de seus próprios, mas tem a intenção de explicar o direito em geral. Ela pretende-se aplicável a qualquer ordenamento jurídico, seja monárquico-absolutista, seja o direito da República ou do Império Romanos, o Direito Comum dos países anglo-saxônicos, o Direito dos países orientais, Muçulmanos, além do direito da família Romano-Germânica.

A teoria que será exposta na primeira parte deste livro é uma teoria geral do Direito positivo. O Direito positivo é sempre o Direito de uma comunidade definida: o Direito dos Estados Unidos, o Direito da França, o Direito Mexicano, o Direito Internacional. Conseguir uma exposição científica dessas ordens jurídicas parciais que consituem as comunidades jurídicas correspondentes é o intuito da teoria geral do Direito aqui exposta. (Kelsen, 2000b: XXVII)

Trata-se, portanto, de uma teoria geral do direito, ou seja, aplicável a qualquer ordem jurídica encontrável em qualquer momento da história. Trata-se de uma teoria axiologicamente neutra, que não tece quaisquer juízos valorativos sobre as ordens sobre as quais se debruça. Por fim, trata-se de uma ciência normativa, que descreve normas, que não se confunde com a sociologia jurídica e não tem por objeto a conduta efetiva dos homens, mas as normas jurídicas que a rege.

3.1.2.Alcance da teoria

É importante que bem se compreenda o alcance que o autor pretendeu dar a sua teoria, delimitando aquilo que tal teoria se propõe a explicar e aquilo que ela deliberadamente deixa de lado.

A Teoria Pura compreende todas as ordens jurídicas, independente do contexto histórico-social, do regime ou forma de governo, do tipo de estado e de quaisquer condições geográficas ou antropológicas. Entretanto, apesar disso, não tem a pretensão de encontrar normas jurídicas que sejam comuns a todos os momentos históricos e que, em função disso, sejam de alguma forma necessárias, nem tampouco de identificar a "função" que o direito porventura tenha desempenhado ao longo da história nas diversas sociedades, apresentando a forma mais adequada de cumprimento de tais funções. Trata-se tão somente de uma teoria geral do direito.

A teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo - do direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do direito, não interpretação de normas jurídicas, nacionais ou internacionais. (...) Procura responder a esta questão: o que é e como é o direito? Mas já não lhe importa a a questão de saber como deve ser o direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do direito. (Kelsen: 2000a: 1)

A questão quanto ao direito ideal ou justo é deliberadamente afastada, não sendo abordada pela teoria kelseniana. Tais considerações são deixadas a uma política do direito ou a alguma espécie de filosofia valorativa do direito.

Afirma o autor:

A teoria geral, tal como é apresentada neste livro, está voltada antes para uma análise estrutural do Direito positivo que para uma explicação psicológica ou econômica das suas condições ou uma avaliação moral ou política dos seus fins.(Kelsen, 2000b: XVIII)

Aqui temos ainda que a Teoria Pura não alcança considerações sobre o agir concreto dos seres humanos submetidos a uma dada ordem jurídica. As afirmações da Teoria Pura não se referem ao comportamento de juízes, advogados ou cidadãos. Não se trata de oferecer uma explicação psicológica do comportamento humano porventura chamado de jurídico. Não se trata, portanto, de tomar o direito como sendo, de alguma forma, composto pelo sentido subjetivo aos indivíduos humanos a ele submetidos. Também não se trata de encontrar uma explicação econômica do direito, oferecendo, por exemplo, condições sócio-econômicas de sua existência, ou encontrando correlações entre a estrutura jurídica e uma dada constelação relações de produção ou bens materiais, de forma que não pretende partir das relações efetivas dos homens a fim de compreender o direito, mas de compreender o direito independentemente das ações efetivas dos homens.

Apesar disto, ao contrário do que possa parecer, a Teoria Pura do Direito não é um pensamento especulativo. Seu autor chega mesmo a chamá-la "empírica". O direito não pode ser conhecido por um processo introspectivo, mas antes admitem-se como válidas apenas as normas postas por atos de seres humanos em uma forma determinada.

3.2.A "pureza"

Kelsen atribuía a sua teoria o qualificativo de "pura". Isto porque pretendia que tal teoria fosse uma teoria jurídica livre de elementos estranhos ao direito. Para tanto deveria ela afastar-se, em especial, da moral, da política e da filosofia da justiça.

Quando esta doutrina é chamada "teoria pura do Direito", pretende-se dizer com isso que ela está sendo conservada livre de elementos estranhos ao método específico de uma ciência cujo único propósito é a cognição do Direito, e não a sua formação. Uma ciência que precisa descrever o seu objeto tal como ele efetivamente é, e não prescrever como ele deveria ser do ponto de vista de alguns julgamentos de valor específicos. Este último é um problema da política, e, como tal, diz respeito à arte do governo, uma atividade voltada para valores, não objeto da ciência, voltada para a realidade.(Kelsen, 2000b: XXVIII)

A teoria pura do direito tem como uma preocupação central distinguir aquilo que é teoria jurídica daquilo que é uma prescrição jurídica. Esta distinção nem sempre é levada a cabo pelos juristas. Inúmeros juristas afirmam que dentre as "fontes do direito", ou seja, as autoridades competentes para estabelecer normas jurídicas, se conta a "doutrina jurídica", ou seja, as obras empreendidas pelos próprios juristas. É certo que tais obras, ao interpretar as leis e normas jurídicas em geral, influenciam decisões de juízes, autoridades administrativas e quaisquer outros que tenham que lidar com o direito. Entretanto, tais obras não são "fontes do direito" no mesmo sentido em que o são o costume e a legislação.

A "doutrina" não é comumente constituída pelo ordenamento jurídico positivo como uma autoridade produtora de normas. Caso o seja, por certo, será uma "fonte do direito" no sentido de uma autoridade criadora de normas. No entanto, quando não é assim estabelecida, a doutrina não faz mais do que descrever normas prescritas, e não prescrever normas. O fato de que um jurista interprete as normas que estuda não significa nada além de que ele descreve tais normas com palavras e em uma forma distintas daquela em que a norma foi originalmente posta. Qualquer espécie de alteração de sentido que não se constitua em uma precisão ou exemplificação seria negada pelo próprio jurista. O caso, entretanto, é muito diferente quando se trata do que faz um juiz. Este é, de fato, uma autoridade criadora de normas e sua "interpretação" é, na verdade, criação de direito novo. A teoria pura do direito não se pretende uma orientação para juízes, mas apenas uma teoria jurídica, desvinculada da prática.

Para Kelsen urge distinguir a ciência do direito da filosofia da justiça e da moral. Ocorre que grande número de pensadores que se dedicaram ao estudo do direito se colocaram, e se colocam ainda, a pergunta acerca da justiça ou injustiça do direito que estudam. Esta ordem de questões é totalmente alheia à Teoria Pura do Direito, que pretende oferecer única e tão somente uma descrição do direito tal qual ele é, independentemente de considerações morais ou de justiça.

Entretanto, a "pureza" da teoria kelseniana tem, ainda, um outro aspecto. Não se trata tão somente de distinguir entre direito e moral, mas também de distinguir entre sociologia e direito.

É confinando a jurisprudência a uma análise do Direito positivo que se separa a ciência jurídica da filosofia da justiça e da sociologia do Direito e se obtém a pureza do seu método (Kelsen, 2000b: XXX)

Se, por um lado, descrever prescrições não é o mesmo que prescrever, também não é o mesmo que descrever fatos. A ciência do direito descreve normas que supõe serem válidas. Um jurista está, todo o tempo, fazendo juízos de valor. Quando afirma que determinado comportamento é um delito, o está julgando segundo um valor, ou melhor, segundo uma norma determinada. Por certo que este julgamento de valor é distinto de um julgamento subjetivo de valor. Este último seria aquele em que um indivíduo afirma sua opinião valorativa pessoal. Quando afirmo que uma tal ação é injusta, posso estar me referindo a que ela é condenada por um determinado ordenamento jurídico e, neste caso, "injusta" é sinônimo de "ilegal", ou posso estar apenas afirmando que por um motivo ou outro ela não me apetece.

Quando Kelsen distingue a ciência do direito da filosofia do direito, quer separar a descrição de normas da apreciação valorativa das normas. Mas a própria ciência do direito não deixa de ser uma descrição de normas e, por isso, uma apreciação valorativa de fatos. Desta forma, um jurista não descreveria o fato de um indivíduo entrar em uma loja, apontar uma arma ao atendente e levar o dinheiro do caixa como uma mera seqüência de comportamentos humanos, mas como um crime. Afirmar que tal comportamento é um crime é fazer uma apreciação valorativa. A Sociologia do Direito, por outro lado, não descreve normas, não julga comportamentos humanos como legais ou ilegais, mas apenas descreve os próprios fatos. Onde o jurista afirma haver um crime, o sociólogo afirma haver uma conduta que tem determinada probabilidade de anteceder uma sanção estabelecida por outros indivíduos que consideram aquela conduta como criminosa.

Há, para Kelsen, uma distinção clara entre juízos de fatos e juízos de valor, e, na medida em que a Sociologia realiza juízos de fato, deve ser distinta da ciência do direito, que realiza juízos de valor objetivos, que Kelsen distingue, como veremos mais adiante, de juízos de valor subjetivos.

Para que se conheça o Direito não urge que se conheça a realidade social para a qual tal direito vige. A recíproca também é verdadeira. Alguém que tenha estudado durante anos a fio a realidade da criminalidade nas cidades satélites de Brasília pode ser um leigo em Direito Penal. Da mesma forma um penalista pode desconhecer completamente as estatísticas de homicídios do município em que reside.

Kelsen pretende separar a ciência do direito da filosofia da justiça e da moral, por um lado, mas também da sociologia do direito, por outro. De fato, este é o principal postulado metodológico da teoria pura do direito. Esta tem toda sua base nestas distinções.

Quando a si própria se designa como "pura" teoria do direito, isso significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito de excluir desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como direito. Quer isso dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. (Kelsen, 2000a: 1)

A teoria kelseniana, quando define o direito como um determinado conjunto de normas que têm em comum a referência a uma sanção coercitiva procura justamente retirar do conceito de direito considerações acerca da justiça e considerações acerca do comportamento efetivo dos seres humanos. Isto resultou em uma teoria "formalista" do direito, que o entende como "pura forma", ou seja, que o define pela estrutura de suas normas, independentemente de seu conteúdo.

3.2.1.Separação entre Direito e Moral

Vejamos, em primeiro lugar, a separação que Kelsen pretende estabelecer entre Direito e Moral.

A teoria pura do Direito insiste numa distinção clara entre o Direito empírico e a justiça transcendental, excluindo esta de seus interesses específicos. Ela vê o Direito não como a manifestação de uma autoridade supra-humana, mas como uma técnica social específica baseada na experiência humana; a teoria pura recusa-se a ser uma metafísica do Direito. Conseqüentemente, ela procura a base do Direito - isto é, o fundamento da sua validade - não num princípio metajurídico, mas numa hipótese jurídica - isto é, uma norma fundamental - a ser estabelecida por meio de uma análise lógica do pensamento jurídico efetivo.(Kelsen 2000b, XXIX)

O fenômeno jurídico não está diretamente relacionado a qualquer idéia de uma justiça transcendental. Para Kelsen o Direito não passa de um determinado conjunto de normas. Tais normas não decorrem, para o autor, sua validade de qualquer critério de justiça ou de quaisquer necessidades sociais. O Direito não é válido porque deve sê-lo em função das necessidades que os homens têm de paz, ou de que estabelece uma relativa igualdade e liberdade sem as quais os homens não poderiam viver. A teoria pura do direito considera o direito como válido em função de uma pressuposição. Ela simplesmente pressupõe que a "norma fundamental", a norma segundo a qual deve-se obedecer à constituição de um determinado ordenamento jurídico, é válida.

A preocupação de Kelsen não era responder à pergunta acerca das razões pelas quais o direito deve ser considerado válido, mas tão somente afastar esta pergunta. Daí que simplesmente presuma a validade do direito e passe, desde então a trabalhar sobre esta pressuposição.

A Teoria Pura do Direito, ao rejeitar quaisquer asserções que pretendam oferecer fundamentos morais, filosóficos ou científicos para a ordem jurídica assume, segundo o autor, um caráter antiideológico.

É precisamente por seu caráter antiideológico que a teoria pura do Direito prova ser uma verdadeira ciência do Direito. A ciência como cognição tem sempre a tendência imanente de revelar seu objeto. Mas a ideologia política encobre a realidade, seja transfigurando-a a fim de conservá-la ou defendê-la, seja desfigurando-a a fim de atacá-la, destruí-la ou substituí-la por outra realidade. (Kelsen, 2000b: XXXII)

Não há qualquer moralidade, filosofia ou necessidade social que justifique a aceitação da validade do ordenamento jurídico. É nesta afirmação que reside o caráter antiideológico da Teoria Pura do Direito. O Direito apenas pode ser considerado válido se o pressupusermos como tal, ou pressupusermos uma outra ordem normativa que delegue autoridade ao Direito. Entretanto, não há qualquer razão para que um direito seja preferível a outro. Não há qualquer razão para que se reconheça a validade de um ordenamento jurídico e não de outro.

Esta separação entre ciência do direito e moral é, para o autor, necessária para o desenvolvimento do estudo do direito. Não é, porém, facilmente alcançável. É suficientemente bem conhecido nas ciências sociais a dificuldade que a teoria social tem de se desvencilhar de concepções políticas e valorativas. O esforço humano despendido na elaboração de um pensamento social que sirva de alguma maneira a fins práticos ainda é muito maior e mais bem acolhido do que o esforço despendido no sentido de elaborar um pensamento social objetivo.

O postulado de uma separação completa entre jurisprudência e política não pode ser sinceramente questionado, caso deva existir algo como uma ciência do Direito. Duvidoso apenas é o grau em que a separação é concretizável neste campo. Neste preciso aspecto, existe de fato uma pronunciada diferença entre a ciência natural e a ciência social. Naturalmente, ninguém sustentaria que a ciência natural não corre absolutamente risco algum de tentativas de influenciá-la, motivadas por interesses políticos. A história demonstra o contrário e mostra com clareza suficiente que uma potência terrestre por vezes se sentiu ameaçada pela verdade a respeito do movimento dos astros. Mas o fato de, no passado, a ciência natural ter sido capaz de alcançar a sua independência completa da política deve-se ao poderoso interesse social por esta vitória: o interesse no avanço da técnica que apenas uma ciência livre pode garantir. Mas a teoria social não leva a vantagens diretas tais como as proporcionadas pela física e pela medicina na aquisição de conhecimento técnico e terapia médica. Na ciência social, e especialmente na ciência jurídica, ainda não há nenhuma influência capaz de se contrapor ao interesse esmagador que os que residem no poder, assim como os que anseiam por ele, têm por uma teoria que satisfaça os seus desejos, isto é, por uma ideologia política.(Kelsen, 2000b: XXXII)

3.2.2.Separação entre Direito e Sociologia

A distinção entre fato e valor, entre o factual e o normativo, é geralmente encarada pelos sociólogos como equivalente à distinção entre objetividade e subjetividade. Quando se afirma que determinado trabalho em sociologia está carregado de subjetividade, subentende-se que comporta não apenas opiniões pessoais de seu autor, ou uma visão que depende de seu ponto de vista particular, mas também que, dentre tais opiniões se encontram opiniões valorativas. Da mesma forma, quando se afirma que determinado trabalho tem uma conotação normativa, subentende-se que se trata não apenas de uma apreciação normativa, mas que os valores e normas que a pautam são valores e normas subjetivos.

Pode-se dizer que, segundo a concepção corriqueira na sociologia uma das características peculiares ao juízo de valor é a subjetividade. Por certo que se pode contestar a afirmação segundo a qual também seria uma característica do juízo de fato sua objetividade, já que há, nas ciências sociais, diversas correntes de pensamento que afirmam que a apreciação que o cientista social faz, ainda que factual, é sempre subjetiva.

Este modo de colocar as coisas pode até ser apropriado para o manejo empírico dos "dados" acerca de fenômenos sociais. Entretanto, quando se distingue simplesmente juízos de fato de juízos subjetivos de valor, deixa-se necessariamente de fora o tipo de estudo que realiza o jurista. Este, quando afirma que determinado fato constitui um crime não realiza nem uma coisa nem outra. A afirmação de que a subtração da propriedade móvel alheia constitui um crime não é, por certo, um juízo de fato, mas também não é um juízo subjetivo de valor. É, antes, um juízo objetivo de valor. Este juízo, ainda que valorativo, não depende da opinião pessoal de quem formula o juízo (trata-se, aqui, do jurista, e não do juiz).

Quando designamos os juízos de valor que exprimem um valor objetivo como objetivos, e os juízos de valor que exprimem um valor subjetivo como subjetivos, devemos notar que os predicados "objetivo" e "subjetivo" se referem aos valores expressos não ao juízo como função do conhecimento. Como função do conhecimento tem um juízo de ser sempre objetivo, isto é, tem de formular-se independentemente do desejo e da vontade do sujeito judicante. Isto é bem possível. Podemos, com efeito, determinar a relação de uma determinada conduta humana com o ordenamento normativo, ou seja, afirmar que esta conduta está de acordo ou não está de acordo com o ordenamento, sem ao mesmo tempo tomarmos emocionalmente posição em face dessa ordem normativa, aprovando-a ou desaprovando-a. (Kelsen, 2000a: 22)

Assim, em Kelsen, um juízo de valor não é, necessariamente, um juízo subjetivo, antes ao contrário. Um juízo de valor, enquanto função do conhecimento, é a apreciação de algo de acordo com dados critérios valorativos. Os critérios não são subjetivos, mas tão somente valorativos. Um juízo de valor pode ser feito sem a interferência de convicções pessoais.

A resposta à questão de saber se, de acordo com a moral cristã, é bom amar o inimigo, e o juízo de valor que daí resulta, pode e deve dar-se sem ter em conta se aquele que tem de responder e formular o juízo de valor aprova ou desaprova o amor dos inimigos. A resposta à questão de saber se, de acordo com o direito vigente, um assassino deve ser punido com pena capital, e, assim, se a pena de morte para o homicida é valiosa de acordo com este direito, pode e deve verifica- se sem ter em conta se aquele que deve dar a resposta aprova ou desaprova a pena de morte. Então, e somente então, é objetivo este juízo de valor. (Kelsen, 2000a: 23)

A jurisprudência consiste em fazer juízos valorativos, e não factuais. O jurista não afirma que determinados indivíduos humanos crêem que se devem pagar os tributos e obedecer às leis de trânsito, mas que, de acordo com o direito vigente, deve-se pagar tributos e obedecer a leis de trânsito. No entanto, um jurista não descreve normas de acordo com suas preferências morais pessoais, mas de acordo com um determinado conjunto de normas que lhe é exterior, de cuja construção, muitas vezes, não participou em nenhuma medida e com as quais pode ter uma profunda antipatia.

Tomemos um exemplo. Determinada senhora, já de idade avançada, tem seu marido passando mal em sua casa. Segundo as crenças desta senhora, a casca de uma determinada árvore é eficaz no combate ao mal de que sofre seu esposo e, por esta razão, ela se dirige a um bosque e retira a casca de uma tal árvore. Como, entretanto, não pretende retornar várias vezes ao bosque, retira toda a casca que consegue. Quando está retornando para casa é abordada por um policial florestal, que a prende em flagrante. Ela é processada, julgada e condenada por crime ambiental. Um determinado jurista pode estar absolutamente convicto da injustiça desta sentença, pode afirmar que ela não corresponde ao padrão de moralidade que ele ou a sociedade aceita, mas, ainda assim, admitir que, de acordo com o Direito vigente, o fato constitui um crime ambiental.

É importante notar, portanto, que a distinção entre juízos de fato e juízos de valor não diz respeito ao caráter subjetivo ou objetivo da apreciação que é feita. Quando se afirma que juízos de valor devem ser distinguidos de juízos de fato, o que se tem em mente é uma impossibilidade lógica, qual seja, a de deduzir-se sentenças normativas de sentenças factuais e vice-versa.

Quando Kelsen afirma que o Direito deve ser diferenciado da Sociologia o que tem em mente é esta impossibilidade lógica. Segundo ele, o Direito é um fenômeno normativo. Trata-se de um determinado conjunto de normas e, enquanto tais, não podem de forma alguma ser deduzidas de quaisquer espécie de premissas factuais, nem pode o pensamento que as tenha como premissas redundar em conclusões factuais. Ainda que não seja corriqueiro observar a impossibilidade de transposição do normativo para o factual, este é um erro bastante comum. Assim, admite-se que hindus não comem carne de vaca, quando se sabe apenas que não o devem fazer. Admite-se que protestantes levam uma vida frugal quando se sabe apenas que a devem levar. É também um erro comum tratar a norma como possibilidade ou probabilidade factual. Entretanto, a partir da afirmação de que os protestantes devem levar uma vida frugal, não se pode deduzir que haja qualquer probabilidade de que de fato o façam.

Assim também, quando encontramos uma norma segundo a qual os motoristas devem dar preferência aos pedestres quando estes pretendem atravessar a rua na faixa, não podemos supor a existência de uma probabilidade qualquer de que de fato o façam. Quando se altera uma norma, como, por exemplo, determinando que o pedestre apenas tem o direito a passar se fizer determinado sinal, isto não implica, logicamente, em qualquer alteração de probabilidades. A partir de premissas factuais não se podem deduzir quaisquer normas, bem como a partir de premissas normativas não se podem deduzir quaisquer fatos.

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O Direito, segundo Kelsen, não é um conjunto determinado de fatos, não é o agregado de ações ou comportamentos de seres humanos que tenham tal ou qual conteúdo subjetivo de sentido, mas um determinado conjunto de normas. Estas são duas realidades distintas.

A realidade específica do Direito não se manifesta na conduta efetiva dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica. Esta conduta pode ou não estar em conformidade com a ordem cuja existência é a realidade em questão. A ordem jurídica determina o que a conduta dos homens deve ser. É um sistema de normas, uma ordem normativa. A conduta dos indivíduos, tal como ela é efetivamente, é determinada por leis da natureza de acordo com o princípio da causalidade. Isto é a realidade natural. (Kelsen, 2000b: XXIX)

Na concepção de Kelsen aquilo que está em qualquer relação causal com qualquer outro elemento, é parte da natureza. Causal e natural são sinônimos em sua terminologia. Assim, quando afirma a distinção entre o Direito e o comportamento dos indivíduos submetidos à ordem jurídica, está afirmando a distinção entre uma norma e um fato, entre algo "natural" e algo "normativo".

O autor afirma que há uma tendência entre juristas de considerar o direito como um agregado de fato e norma, um misto de comportamento efetivo de indivíduos e valores. Busca-se, então, deduzir de afirmações factuais as normas do direito. Assim, afirma-se que tal ou qual direito decorre da própria natureza do homem, ou da natureza da sociedade. Supõe-se que o dever de abstenção do ato de matar é algo que decorra necessariamente do fato da vida dos indivíduos. Da mesma forma, busca-se estabelecer alguma forma de nexo entre a norma e o comportamento. Não só a norma decorre de algum comportamento efetivo dos indivíduos, mas também tal comportamento depende, ou é influenciado de alguma forma pela norma.

Por outro lado, algumas teorias de jurisprudência mostram uma tendência para ignorar a fronteira que separa a teoria das normas jurídicas que regulam a conduta humana de uma ciência que explica em termos causais a conduta humana efetiva, uma tendência que resulta do fato de se confundir a questão de como os homens devem se conduzir juridicamente com a questão de como os homens se conduzem de fato e de como provavelmente se conduzirão no futuro. Esta última questão pode ser respondida, se é que o pode, apenas com base numa sociologia geral. (Kelsen, 2000b: XXX)

Estas duas ordens de coisas, fato e norma, são, para o autor, radicalmente distintas. A questão acerca de como os homens se comportam de fato, quer seja acerca de uma matéria religiosa quer jurídica, não pode ser respondida nem pelo teólogo nem pelo jurista. Esta é uma questão factual, que apenas pode ser respondida com afirmações factuais, que podem ser deduzidas apenas de premissas factuais. Esta é uma matéria própria da sociologia, não do direito. Entretanto, à questão acerca de como, juridicamente, devem os homens se comportar, também não pode ser respondida sociologicamente. Esta é uma questão normativa, que necessita ser respondida com base em premissas normativas, que não são próprias da sociologia.

Separar Sociologia e Direito é o mesmo, em Kelsen, que separar fato e valor. Ocorre apenas, entretanto, que o que lhe interessa não é a questão factual, como é para a Sociologia, mas a questão normativa. Ele não pretende fundar uma ciência factual do direito, mas uma ciência puramente normativa, livre de considerações factuais, que lhe são alheias. O Direito, para ele, portanto, é um determinado conjunto de normas, nada mais. Não é comportamento humano, não é uma realidade factual qualquer. É uma realidade puramente normativa. O fenômeno de que os homens se comportam de alguma maneira relacionada ao direito não é objeto de seu estudo, mas da sociologia.

3.3.O Direito como uma Ordem Normativa

Kelsen define o Direito como uma determinada Ordem Normativa, uma Ordem Normativa que regula coercitivamente a conduta recíproca dos homens. A afirmação de que "regula coercitivamente" significa apenas que estabelece sanções que devem ser levadas a cabo ainda contra a resistência daquele que a sofre e, se necessário, com o emprego da força física. Não se trata de uma questão de fato, mas simplesmente da espécie de sanção que é estabelecida como devida.

O que é, porém, uma Ordem Normativa? Este é um conceito central no pensamento kelseniano, de modo que cabe elucidá-lo com bastante clareza. A Ordem Normativa é um conjunto coerente de normas. Esta definição, apesar de aparentemente bastante simples, necessita ser precisada a fim de que fique claro o que se pretende dizer. Deste modo, analisa-se a seguir, o conceito kelseniano de norma, suas características, o conceito de ordem e aquilo que confere à Ordem uma unidade.

3.3.1.Definição de Norma

O termo "norma" é tão elementar que parece prescindir de definição. Entretanto tal não é o caso. Este termo presta-se a confusões sem fim, a disputas em filosofia da linguagem, e em filosofia da moral, a debates acerca das distinções entre normas, regras, valores, princípios e uma série de outros termos referentes a conteúdos valorativos de sentido. Trataremos aqui da definição kelseniana de norma, e não nos arriscaremos a discutir definições alternativas, que nos afastariam ainda mais de nosso objeto próprio.

Mesmo feita esta reserva, permanece a dificuldade em definir um conceito tão básico. Como ele desempenha um papel importante no pensamento do autor, sendo, aliás, a unidade sobre a qual se ergue toda a construção de sua teoria, peço ao leitor que se digne tolerar algumas páginas de questões ainda mais abstratas e de definições de idéias aparentemente óbvias.

Direito, como já mencionado, é, na visão kelseniana, um determinado sistema de normas. Daí sabemos que são normas todos os elementos constitutivos do conjunto a que damos o nome de direito. Estes elementos são um determinado conteúdo de sentido, um significado, que remete ao caráter devido de uma determinada conduta. Uma norma é um "dever ser".

Na verdade, o direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo "Norma" se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. (Kelsen, 2000a: 5)

A norma, portanto, consiste na afirmação de que determinada conduta deve ser observada. Afirmar uma norma significa afirmar que algo deve ser. Daí que o autor afirme que a existência de uma norma se confunde com sua validade. Quando digo que há uma norma segundo a qual devem-se respeitar os idosos, pretendo dizer que se devem respeitar os idosos. Uma norma inválida não é uma norma, é apenas uma oração, uma sentença. A norma é um determinado conteúdo de sentido, que não se confunde com a opinião que qualquer indivíduo tenha acerca deste conteúdo de sentido, nem com os atos que estabeleceram a própria norma.

Esta questão é importante e delicada. O conteúdo de sentido de uma norma não se confunde com o conteúdo subjetivo de sentido de um ato humano qualquer. Uma norma é um conteúdo de sentido, mas este conteúdo pode diferir do conteúdo que tinha em mente o sujeito que estabeleceu esta norma. Assim, se um determinado indivíduo afirma que "na minha casa não podem entrar maltrapilhos", e, por qualquer motivo, fôssemos descrever esta afirmação como uma norma e tomá-la por imutável, afirmaríamos que "na casa deste senhor não devem entrar maltrapilhos". Suponhamos que, em um momento posterior, este próprio indivíduo, tendo passado por uma situação, digamos, de um assalto e, em decorrência, tenha sido machucado e se encontre em um estado tal que possamos classificá-lo como "maltrapilho", teríamos então de admitir que, de acordo com a norma estabelecida por ele, ele mesmo não deve entrar em sua casa.

Ainda que esdrúxulo, este exemplo demonstra que o conteúdo de sentido de uma norma determinada não coincide, necessariamente, com o conteúdo de sentido subjetivo pensado pelos indivíduos humanos concretos. Podemos adotar como um exemplo mais realista qualquer das leis que hoje estão vigentes no Brasil. Praticamente todas elas foram elaboradas por mais de um indivíduo, seja pelo parlamento ou por confidentes dos chefes de estado autocráticos que tivemos. Dificilmente seria possível admitir que todos estes indivíduos sequer conhecem todo o conteúdo de todas as normas que subscreveram, ou que pretendiam que elas tivessem a interpretação que lhes foi dada.

Assim, o artigo 37, inciso XI, da Constituição Federal estabelece que os servidores públicos não serão remunerados com uma quantia superior à do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Ocorre, porém, que tais ministros não recebem qualquer "subsídio", mas sim uma "remuneração", donde tal norma não é, ainda, aplicável. Pode-se até pretender que dos deputados e senadores que aprovaram este texto, alguns tivessem conhecimento disto, mas certamente não todos. Se admitirmos que o sentido subjetivo do ato dos deputados que estabeleceram este ato era o de limitar a remuneração de servidores públicos, teremos de admitir que este sentido diverge do sentido da norma que estabeleceram, que estabelece que, se os ministros do Supremo Tribunal Federal receberem subsídio mensal, então os servidores públicos não deverão receber remuneração superior à deste subsídio.

É importante frisar que o que aqui se pretende afirmar não é a pluralidade de interpretações possíveis de um mesmo texto, mas única e simplesmente a distinção entre o sentido subjetivo de um ato e o sentido de uma norma. Este sentido da norma, independente dos indivíduos particulares, chamamos aqui de "sentido objetivo".

Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela estatui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. (Kelsen, 2000a: 6)

O ato que estatui a norma, dotado de um sentido subjetivo, é um fenômeno da ordem do ser, é um fato concreto. O "sentido objetivo" da norma, porém, é um dever ser, é o sentido de acordo com o qual os indivíduos aos quais a norma se dirige devem se comportar em conformidade com aquilo que foi estatuído pela própria norma.

O "sentido objetivo" não é algo ontologicamente mais "verdadeiro" ou "real", não é "superior" de qualquer forma ao sentido subjetivo. Não se trata de algo metafísico. Se trata unicamente do sentido da norma, tal como estabelecido na norma, ainda que ambíguo, impreciso ou vazio. Tomemos um outro exemplo, onde a norma estabelecida tem um sentido dos mais ambíguos: o artigo 7º, inciso IV da Constituição Federal. Este dispositivo se lê da forma que segue:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim

Podemos admitir como pelo menos plausível que o sentido subjetivamente pensado pelos parlamentares constituintes, ou ao menos por alguns deles, fosse o de proibir o pagamento, a título de salário, de valor inferior a uma quantia suficiente para cobrir todos os custos mencionados no inciso. Entretanto praticamente todos os termos utilizados são ambíguos. Pode haver controvérsias acerca do significado do termo "trabalhadores", que poderia incluir não apenas empregados, mas também patrões e profissionais autônomos; não está claro quem tem de pagar tal salário mínimo, se apenas o patrão ou se, não havendo patrão, deve o governo arcar com tal custo; não é claro o significado de "melhoria de sua condição social"; também não é claro o significado de "moradia", "alimentação", educação", "saúde", etc., tanto um barraco como uma mansão podem ser consideradas como moradia; tanto o primeiro grau como um curso superior podem ser considerados "educação", etc.

Desta forma, ainda que o sentido subjetivo desta norma, aquele que tinha em mente as autoridades que a estabeleceram seja claro, o sentido "objetivo" da norma é ambíguo e controverso. Afirmar que há um sentido objetivo não é afirmar que este sentido é claro. Ele é ambíguo. O sentido subjetivo que imputo à norma pode ser claro ainda que o objetivo não o seja. O sentido objetivo pode ser ambíguo. Descrevê-lo é descrevê-lo em sua ambigüidade, e não interpretá-lo de modo a torná-lo preciso.

Eis um outro exemplo. O artigo 50 da lei 10.409 de 11 de janeiro de 2002:

"art. 50. É passível de expulsão, na forma da legislação específica, o estrangeiro que comete qualquer dos crimes definidos nos artigos 14, 15,16,17 e 18, tão logo cumprida a condenação imposta, salvo se o interesse nacional recomendar a expulsão imediata."

Esta lei, conhecida como "lei de entorpecentes", tinha por objetivo combater o tráfico ilícito de entorpecentes. Este artigo, certamente, foi aprovado por indivíduos que imaginavam estar punindo com a extradição os indivíduos estrangeiros que cometessem os crimes relacionados ao tráfico de drogas relacionados nos artigos mencionados. Tais artigos, entretanto, foram vetados pelo Presidente da República, de modo que a norma do artigo 50 não tem qualquer sentido jurídico. Ela estabelece que determinados indivíduos que cometerem os crimes previstos em determinados artigos serão extraditados, mas tais artigos não existem. Logo, indivíduo algum pode ser extraditado com base nesta norma.

É um elemento essencial da norma o seu sentido de dever ser. Não é possível, na opinião de Kelsen, reduzir-se a norma a um ser. Vários autores divergem dele, afirmando que a norma pode ser adequadamente descrita como uma "expectativa" de comportamento, ou como uma "probabilidade" de comportamento. Entretanto, em uma perspectiva kelseniana, ainda que se possa demonstrar que há uma probabilidade determinada de que indivíduos se comportem de acordo com normas, o sentido específico da norma ainda é um dever ser.

Quando um indivíduo, através de qualquer ato, exprime a vontade de que um outro indivíduo se conduza de determinada maneira, quando ordena ou permite esta conduta ou confere poder de a realizar, o sentido do seu ato não pode anunciar se ou descrever se dizendo que o outro se conduzirá dessa maneira, mas somente dizendo que o outro se deverá conduzir dessa maneira. Aquele que ordena ou confere o poder de agir, quer, aquele a quem o comando é dirigido, ou a quem a autorização ou o poder de agir é conferido, deve. Desta forma o verbo "Dever" é aqui empregado com uma significação mais ampla do que a usual. (Kelsen, 2000a: 5)

O verbo "dever" engloba, em Kelsen, tanto uma obrigação como uma permissão, e ainda a autoridade. Afirmar que um indivíduo deve limpar seu quarto não é o mesmo que afirmar que sua mãe ordenou que o fizesse, ou quer que o faça. O sentido específico de uma norma é o "dever ser". Descrever uma situação na forma "a mãe ordenou que filho arrumasse seu quarto" não é o mesmo que descrever a situação na qual "o filho tem a obrigação de arrumar seu quarto". Na primeira forma temos uma descrição de acontecimentos concretos, mas não a descrição de uma norma. Ali perde-se o sentido específico da obrigação.

Norma é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém.(Kelsen, 2000a: 6)

Uma norma é, portanto, um "conteúdo de sentido", um "significado". É, porém, um significado com um sentido específico, o de "dever ser", que, latu sensu, na visão kelseniana, incorpora não apenas obrigações, mas também direitos e faculdades.

3.3.2.A Validade como existência da norma

Afirmar a existência de uma norma é afirmar sua validade. Isto porque a norma é o conteúdo de sentido normativo. Este conteúdo consiste em que determinados indivíduos se devem comportar de determinada forma. Quando afirmo a existência desta norma, afirmo que os indivíduos se devem comportar assim. Isto, é claro, não implica em prescrever tal comportamento, ou em tomar partido da norma, mas, pura e simplesmente, na descrição de uma prescrição.

Se, no entanto, ao invés de descrever a norma, descrevo os atos que estabeleceram a norma, afirmando que tal indivíduo determinou que tais outros indivíduos se comportassem de determinada forma, esta descrição deixa de lado o sentido específico da norma. Apresentam-se fenômenos concretos: o fato de que um indivíduo ordenou uma conduta, o fato de que este e outros indivíduos esperam que tal ordem seja acatada, o fato de que o indivíduo a quem a ordem é dirigida espera que caso infrinja a ordem, será castigado, etc. Mas não se descreve que este indivíduo deve se comportar desta forma. Descrevem-se comportamentos, não normas.

Para traduzir o sentido específico com que a norma jurídica se endereça aos órgãos e sujeitos jurídicos, aquela não pode formular a proposição jurídica senão como uma proposição que afirme que, de acordo com determinada ordem jurídica positiva, sob certos pressupostos deverá intervir uma determinada conseqüência. (Kelsen, 2000a: 88)

Assim, não se descreve, na opinião de Kelsen, uma norma, senão afirmando que, de acordo com uma dada ordem, deve-se agir de determinada forma em uma certa situação. Assim, não se descreve o primeiro dos "Mandamentos da Igreja" do Catolicismo afirmando que o Papa ou qualquer outra autoridade ordenou ou espera que se vá à Missa aos domingos e festas de guarda, mas sim afirmando que, de acordo com a Igreja Católica (com as normas que compõe o ordenamento normativo desta igreja), deve-se ir à missa aos domingos e festas de guarda.

3.3.3.O princípio da imputação

Para Kelsen temos dois importantes princípios ordenadores, que permitem a construção de sistemas de representação ou de descrição. Um destes princípios seria o princípio da causalidade, e o outro o da imputação.

O princípio da causalidade consiste na vinculação de elementos na forma "se A, então B". Assim, na construção de um modelo descritivo estabelecemos que se o metal for aquecido, dilata-se. Esta não é, porém, a única forma de vincular elementos, o único princípio ordenador.

Na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é aplicado aquele outro princípio ordenador, diferente da causalidade, que podemos designar como imputação. (Kelsen, 2000a: 86)

Percebe-se, com esta discussão, que Kelsen não está trabalhando com uma concepção de conhecimento que pretenda descrever a realidade tal como ela é, ou que suponha que a percepção que tem da realidade corresponde com o mundo real. O que se discute, na obra do autor, é o modo como construímos uma espécie de um modelo, um sistema de elementos, e a forma como ordenamos estes elementos. O princípio da imputação é, tal como o da causalidade, um princípio que nos permite ordenar elementos, e, portanto, construir modelos, ou sistemas de elementos.

A característica peculiar do princípio da imputação consiste em que ele vincula os elementos que comporão o sistema de uma forma diversa do princípio da causalidade, qual seja, na forma "se A é, B deve ser". Esta característica, porém, confere ao sistema de elementos construído com esta forma atributos distintos daqueles do modelo construído segundo o princípio da causalidade. Dentre estes atributos destaca-se que em um sistema construído com o princípio da imputação, torna-se impossível a refutação do elo estabelecido entre os elementos pela constatação de que tal elo inexiste empiricamente.

Assim:

Precisamente neste ponto se revela a distinção entre lei jurídica e lei natural. Quando se descobre um fato que está em contradição com uma lei natural, deve a lei natural ser posta de parte pela ciência, como falsa, e ser substituída por uma outra que corresponda ao fato. A conduta antijurídica, porém, quando a sua freqüência não ultrapassa uma certa medida, não constitui de forma alguma razão para a ciência jurídica considerar como não válida a norma jurídica violada por esta conduta e para substituir a sua proposição jurídica, descritiva do direito, por uma outra. As leis naturais, formuladas pela ciência da natureza, devem orientar-se pelos fatos. Os fatos das ações e omissões humanas, porém, devem orientar-se pelas normas que à ciência jurídica compete descrever. Por isso, as proposições que descrevem o direito têm de ser asserções normativas de dever ser (Soll-Aussagen).(Kelsen, 2000a: 98)

A "lei natural" seria uma construção que se vale do princípio da causalidade. Ela pode estabelecer, por exemplo, que se X é um metal e X é aquecido, dilata-se. Suponhamos que um determinado metal seja aquecido e que, não obstante, não se dilate. Esta experiência levaria a uma reformulação da "lei natural" que, digamos, passaria a ser descrita na forma "para todo X, se X é um metal e X é aquecido, dilata-se desde que não estejam presentes os elementos a, b, c", onde a, b e c seriam elementos distintivos daquele metal específico que não se dilatou. Ou seja, em face de um contra-exemplo, ou de uma contradição entre os fatos e a lei geral, repensa-se a lei. Esta se adequa aos fatos que pretende descrever.

Não ocorre o mesmo com as construções que seguem o princípio da imputação. Os elos normativos estabelecidos entre os elementos não necessitam adequar-se aos fatos. Assim, uma norma pode estabelecer que não se deve matar. Diante do fato de que as pessoas matam, repensam-se os fatos, não a norma. Uma norma não se altera porque é "falsa". De fato, não se pode afirmar que uma norma seja "verdadeira" ou "falsa", mas tão somente que seja "válida" ou "inválida".

Há, ainda, uma outra distinção importante entre uma ordem construída valendo-se da causalidade como princípio ordenador e uma ordem construída valendo-se da imputação, qual seja, os elos que compõe uma ordem causal formam uma cadeia potencialmente ilimitada, enquanto que os elos que compõe uma ordem normativa formam uma cadeia necessariamente limitada.

Uma outra distinção entre causalidade e imputação consiste em que toda a causa concreta pressupõe, como efeito, uma outra causa, e todo o efeito concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito, por tal forma que a cadeia de causa e efeito - de harmonia com a essência da causalidade - é interminável nos dois sentidos. (...) A situação é completamente diferente no caso da imputação. O pressuposto a que é imputada a conseqüência numa lei moral ou jurídica, como, por exemplo, a morte pela pátria, o ato generoso, o pecado, o crime, a que são imputados, respectivamente, a veneração da memória do morto, o reconhecimento, a penitência e a pena, todos esses pressupostos não são necessariamente conseqüências que têm de ser atribuídas a outros pressupostos. E as conseqüências, como, por exemplo a veneração da memória, o reconhecimento, a penitência, a pena, que são imputadas, respectivamente, à morte pela pátria, ao ato generoso, ao pecado e ao crime, não têm necessariamente de ser também pressupostos a que sejam de atribuir novas conseqüências. O número dos elos de uma série imputativa não é, como o número dos elos de uma série causal, ilimitado, mas limitado. Existe um ponto terminal da imputação. (Kelsen, 2000a: 101)

O princípio da imputação permite a construção de uma cadeia finita de elos normativos. As ordens normativas são, de fato, ordens finitas. Há um ponto terminal de imputação, consistente na aplicação da sanção. Uma sanção não implica em qualquer outra norma, não estabelece um novo elo normativo. Assim, uma norma pode estabelecer que se deva obedecer às leis, uma lei estabelecer que não se deva roubar, outra lei estabelecer que se alguém roubar deverá ser condenado, uma condenação estabelecer que alguém, porque roubou, deverá cumprir seis anos de prisão, mas o ato de prender o indivíduo em questão não estabelece qualquer norma nova. A cadeia de elos normativos tem na aplicação da sanção seu ponto terminal.

Esta característica das ordens normativas é importante. A ordem natural pode ser concebida como apenas uma ordem em que todos os elementos estão interligados, ainda que muito remotamente, entre si. Isto porque, mesmo que dois elementos não tenham qualquer nexo causal entre si, podemos sempre conceber que se voltarmos na cadeia causal, haverá um elo que será comum a ambos, da mesma forma que ambos podem ser elos que figurarão na cadeia de algum elemento posterior. Isto não ocorre na ordem normativa. Esta é dotada de um ponto terminal e, como veremos posteriormente, Kelsen afirma que também de um ponto inicial de imputação. Desta forma, um elo normativo, uma norma, de uma determinada ordem não tem qualquer relação com uma norma de outra ordem. Podemos, portanto, falar em diversas ordens normativas independentes entre si.

3.3.4.A Ordem Normativa

Temos estudado, até agora, a norma por ser a unidade que compõe uma ordem normativa. Como vimos, segundo Kelsen, o direito é uma ordem normativa, razão pela qual nos detemos no estudo desta. Passemos, então, propriamente ao estudo da ordem normativa.

Uma ordem normativa é um conjunto sistemático de normas que, como vimos, consistem em conteúdos de sentido com uma forma peculiar. Entretanto, importa notar que a ordem normativa não é um aglomerado de qualquer forma composto de sentidos subjetivos. Uma ordem normativa tem, necessariamente, um caráter objetivo. Entenda-se aqui por "caráter objetivo" o fato de ser aplicável a qualquer dos indivíduos e não depender de seu conhecimento e concordância. Entretanto, isto não implica que a ordem normativa tenha qualquer caráter transcendental ou supra-humano. Convém explicar melhor este caráter objetivo das ordens normativas.

3.3.4.1.O caráter objetivo da ordem normativa

Uma ordem normativa não se confunde com um modo determinado de os homens se comportarem. Uma ordem é tão somente um conjunto de normas, o que não implica no reconhecimento, dado o conceito de norma anteriormente trabalhado, de um conjunto de ações humanas concretas. Assim, a ordem jurídica, em especial, não é composta pelo comportamento de juízes, advogados e legisladores, mas por determinadas normas.

Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos o que têm qualquer conexão com o direito - por exemplo, uma resolução parlamentar, um ato administrativo, uma sentença judicial, um negócio jurídico, um delito, etc. -, poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível, ou uma série de tais atos, uma manifestação externa de conduta humana; segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do direito. Numa sala encontram-se reunidos vários indivíduos, fazem-se discursos, uns levantam as mãos e outros não - eis o evento exterior. Significado: foi votada uma lei, criou-se direito. Nisto reside a distinção familiar aos juristas entre o processo legisferante e o seu produto, a lei. Um outro exemplo: um indivíduo, de hábito talar, pronuncia, de cima de um estrado, determinadas palavras em face de outro indivíduo que se encontra em pé à sua frente. O processo exterior significa juridicamente que foi ditada uma sentença judicial. Um comerciante escreve a outro uma carta com determinado conteúdo, à qual este responde com outra carta. Significa isto que, do ponto de vista jurídico, eles fecharam um contrato. Certo indivíduo provoca a morte de outro em conseqüência de uma determinada atuação. Juridicamente isto significa: homicídio. (Kelsen, 2000a: 2)

A ordem normativa, e a ordem jurídica em especial, é o conjunto de tais significados, não o conjunto dos significados e comportamentos. Apenas o significado jurídico daqueles atos, ou seja, as normas, é parte da ordem normativa.

Os atos concretos de indivíduos humanos a que atribuímos o qualificativo de "jurídicos", ou que vinculamos a uma determinada ordem são atos que estão regulados por tais normas. Estes atos não figuram na ordem normativa, apenas descrições ali figuram como "tipos" no sentido utilizado pelos penalistas [02]. Sua descrição serve de condição ou de conseqüência nos elos normativos da ordem.

Nem o comportamento concreto dos indivíduos, ainda que reincidente, compõe a ordem normativa, nem o sentido subjetivo dos atos humanos o fazem. Aqui se trata do mesmo problema anteriormente apresentado da dicotomia entre o sentido subjetivo de uma ação e o sentido objetivo de uma norma. Na medida em que uma ordem normativa é um conjunto sistemático de normas, ela é um conjunto de conteúdos objetivos de sentido. Entende-se por "objetivos" tão somente que tais conteúdos não correspondem necessariamente ao sentido subjetivamente pensado pelos indivíduos humanos que estabeleceram tais normas.

Na verdade o indivíduo que, atuando racionalmente, põe o ato, liga a este um determinado sentido que se exprime de qualquer modo e é entendido pelos outros. Este sentido subjetivo, porém, pode coincidir com o significado objetivo que o ato tem do ponto de vista do direito, mas não têm necessariamente de ser assim. Se alguém dispõe por escrito do seu patrimônio para depois da morte, o sentido subjetivo deste ato é o de um testamento. Objetivamente, porém, do ponto de vista do direito, não é, por deficiência de forma. Se uma organização secreta, com o intuito de libertar a pátria de indivíduos nocivos, condena à morte um deles, considerado um traidor, e manda executar por um filiado aquilo que subjetivamente considera e designa como uma sentença de condenação à morte, objetivamente, em face do direito, não estamos perante a execução de uma sentença, mas perante um homicídio, se bem que o fato exterior não se distinguia em nada da execução de uma sentença de morte. (Kelsen, 2000a: 3)

Uma ordem normativa, portanto, é "objetiva" no sentido de que independe dos seres humanos individuais, independe da vontade destes seres individuais e isto ainda mesmo que haja coincidência entre tais vontades. A ordem normativa é um construto de significato. Trata-se apenas da construção metódica das diversas normas.

3.3.4.2.A Unidade da Ordem Normativa

Foi dito aqui que o princípio da imputação permite a construção de diversas ordens normativas independentes entre si. O que, entretanto, confere unidade às normas que compõe uma ordem normativa? Como se pode identificar uma norma como pertencendo a uma determinada ordem normativa ou afirmar que não pertence a uma outra ordem normativa? A questão da finitude das ordens normativas leva-nos à indagação acerca da unidade de cada uma destas ordens.

A unidade de uma ordem normativa é função daquilo que Kelsen chama de "norma fundamental". Toda norma apenas pode ser considerada válida em função de que uma outra norma lhe confere validade. Assim, considero que devo obedecer às ordens do policial porque estão em conformidade com a lei, e devo obedecer à lei porque está em conformidade com a Constituição. Esta série, entretanto, não prossegue indefinidamente. Há normas que não decorrem sua validade de qualquer outra norma. Tais normas são chamadas de normas fundamentais. Fazem parte de uma mesma ordem normativa todas aquelas normas que remetam a uma mesma norma fundamental. A questão da norma fundamental será mais bem trabalhada na seção acerca da Dinâmica Jurídica.

3.3.4.3.A coerência interna da ordem

Uma ordem normativa, como já foi dito, não é apenas um conjunto de normas, mas um conjunto sistemático de normas. Aproximemo-nos um pouco mais desta questão, que nos ajudará a identificar os elementos que conferem unidade a uma ordem normativa.

Um conjunto é definido como vários elementos com alguma característica em comum. Diz-se que um determinado elemento faz parte de um conjunto quando este elemento tem uma dada característica que é comum a todos os demais deste conjunto. O conjunto é, portanto, o grupo formado por estes elementos com algo em comum. Um sistema, porém, não é apenas um conjunto. Trata-se de um conjunto onde os diversos elementos estão inter-relacionados. Quando se afirma que os elementos de um sistema estão inter-relacionados, entende-se que estão em relação uns com os outros e que, portanto, uma alteração em um dos elementos implica em uma alteração nos demais.

Uma ordem normativa é um sistema de normas. Ou seja, trata-se de um conjunto de normas que estão inter-relacionadas. Quando aqui se afirma que as normas estão inter-relacionadas, tem-se em mente que a ordem normativa compõe um todo coerente, de modo que as normas que a compõem não podem ser contraditórias entre si. Isto nos leva a questionar a aplicabilidade dos princípios lógicos a normas.

3.3.4.4.Aplicação do princípio da não-contradição a normas

A aplicabilidade dos princípios lógicos a sentenças normativas, em especial do princípio da não contradição, requer certas considerações.

Deve-se salientar que uma asserção normativa apenas pode ser contraditória com outra asserção normativa. Assim, uma asserção na forma "A, então deve ser B" não é contraditória com uma asserção na forma "A e não-B". Exemplificando: a asserção "as crianças devem fazer as tarefas de casa" (para todo x, se x é criança, x deve fazer as tarefas de casa), não é contraditória com a asserção "as crianças não fazem as tarefas de casa" (existe um, ou mais, x, em que x é criança e x não faz as tarefas de casa). Estas asserções podem ser aceitas simultaneamente. A asserção "as crianças devem fazer as tarefas de casa e elas não fazem as tarefas de casa" é coerente, enquanto que a asserção "as crianças fazem as tarefas e elas não fazem as tarefas" não é uma asserção coerente.

Em segundo lugar, cabe notar que uma contradição entre duas normas não reside em que seu sentido teleológico seja contraditório. Neste ponto devemos notar a distinção entre o sentido teleológico de uma norma e o sentido "objetivo". Este último já foi anteriormente explicado. O sentido teleológico consiste no dever ser da conduta que evita a sanção (ou provoca a recompensa). Assim, a norma "Matar alguém: 6 a 20 anos de reclusão" estabelece como devida uma pena, caso se verifique uma dada conduta, ou seja, "quando alguém matar outrem, deverá ser condenado a reclusão por um período entre 6 e 20 anos". O sentido teleológico desta norma seria aquele que estabelece como devida a conduta que evita a sanção, qual seja, a abstenção da ação de matar outrem. Podemos redigir este sentido teleológico na forma "para todo x, se x é alguém, deve-se abster de matá-lo".

Estabelecida esta distinção, devemos destacar que a contradição entre o sentido teleológico de duas normas não implica uma contradição entre tais normas. O sentido teleológico de uma norma não se confunde com ela. Podem-se aceitar simultaneamente duas normas que tenham sentidos teleológicos conflitantes. pode haver uma norma que estabeleça como uma infração o fato de um médico mentir sobre o estado de saúde de um paciente, e outra norma que estabeleça como infração o fato de um médico desacreditar um paciente de suas chances de sobrevida. Neste caso, uma vez que o médico tenha um paciente terminal, deverá ser, necessariamente, considerado um infrator. Apesar do conflito teleológico, ou seja, condutas contrárias são igualmente devidas, não há qualquer contradição lógica.

Na ordem jurídica esta situação é muito provável uma vez que ela não estabelece como devidas as condutas que almeja obter, mas as sanções contra as condutas contrárias às que se almeja obter. Assim, não se proíbe o homicídio, mas estabelece-se como devida uma pena a quem cometa homicídio. Não se proíbe o aborto, mas estabelece-se como devida uma conduta que puna a pessoa que cometer um aborto.

Daí resulta que, dentro de uma tal ordem normativa, uma mesma conduta pode, neste sentido, ser "Prescrita" e simultaneamente "Proibida", e que tal situação pode ser descrita sem contradição lógica. As proposições: A deve ser e A não deve ser, excluem-se mutuamente; de ambas as normas assim descritas apenas uma pode ser válida. Não podem ser ambas simultaneamente observadas ou aplicadas. Mas as duas proposições: se A é, X deve ser e, se não-A é, X deve ser, não se excluem mutuamente e ambas as normas por elas prescritas podem ser simultaneamente válidas. (Kelsen, 2000a: 27)

Assim, são contraditórias as normas "se alguém matar outrem deve ser punido" e "se alguém matar outrem, não deve ser punido". Entretanto, não são contraditórias as normas "se alguém matar outrem, deve ser punido" e "se alguém não matar outrem, deve ser punido". Imagine-se, por exemplo, a situação de um soldado nazista que pudesse antever as normas pressupostas pelo tribunal de Nuremberg. Ele teria de aceitar que se não acatasse as ordens de seus superiores, seria punido, e também o seria se as acatasse. Há um conflito teleológico, mas não uma contradição lógica.

No domínio de uma ordem jurídica pode surgir uma situação – e de fato surgem tais situações, como veremos – em que uma determinada conduta humana e, ao mesmo tempo a conduta oposta, têm uma sanção como conseqüência. Ambas as normas - as normas que estatuem as sanções - podem valer uma ao lado da outra e ser efetivamente aplicadas porque se não contradizem, isto é, porque podem ser descritas sem contradição lógica. (Kelsen, 2000a: 27)

Tem-se, portanto, que a aplicação do princípio da não-contradição a relações entre normas deve ser feita sem consideração dos conflitos teleológicos. Apesar disto, tal princípio se aplica às relações entre normas. Afirmar que "se A, então deve ser B" e que "se A, então não deve ser B" é tão contraditório quanto afirmar que "se A, então B" e "se A, então não-B". Tanto em um como no outro caso não se podem admitir ambas as asserções ao mesmo tempo.

3.3.4.5.A descontinuidade lógica entre norma e fatos

Apesar de que se pode aplicar a normas os mesmos princípios lógicos aplicáveis a afirmativas acerca de relações causais, isto não implica em que haja uma continuidade lógica entre tais afirmações. Normas não podem ser deduzidas de premissas em que não constem normas, assim como fatos não podem ser deduzidos em premissas em que constem apenas normas. Isto se explica pela razão de que a conclusão em um raciocínio dedutivo deve estar contida nas premissas, de modo que se as premissas não contêm qualquer "dever ser", as conclusões também não conterão.

A partir das premissas de que os seres humanos são seres vivos, inteligentes, sociais, interdependentes ou comunicativos, não decorre que não devam ser mortos, escravizados, isolados, excluídos ou que devam ser ouvidos. Caso aceitássemos o fato de que em uma democracia os homens são mais felizes que em uma autocracia, não se seguiria que se deve adotar um regime democrático, a não ser que também aceitássemos a premissa normativa segundo a qual os homens devem ser felizes.

Não se pretende aqui rejeitar quaisquer premissas normativas, que por vezes dificilmente se poderia afirmar que encontram, no Brasil contemporâneo, qualquer oposição (ex: não se deve tomar dos pobres para dar aos ricos). Pretende-se apenas apresentar a tese segundo a qual tais as sentenças normativas não podem ser deduzidas de premissas factuais, e vice-versa. Esta tese é abraçada por Hans Kelsen e constitui uma importante premissa dentro da Teoria Pura do Direito.

3.3.4.6.Contradição entre normas: Derrogação

Constatada uma contradição entre duas asserções, não se segue necessariamente que se possa dizer qual das asserções, se é que alguma, deve permanecer. As contradições entre duas asserções que estabelecem relações causais entre dois elementos costumam ser resolvidas com um apelo à experiência empírica.

Já as contradições entre normas não são passíveis de verificação empírica. Diante de duas normas contraditórias não se pode adotar como critério aquela norma que de fato ocorre. Entretanto, há um critério possível quando aceitamos a validade de uma ordem normativa e tomamos uma dada norma no interior desta ordem.

Dentro de uma mesma ordem normativa, as relações entre normas contraditórias resolvem-se por derrogação. A derrogação é a "derrubada" de uma norma por outra, ou seja, a aceitação de uma norma em detrimento de outra. A questão que se coloca é a dos critérios de derrogação.

Tais critérios dependem da ordem normativa em questão. Em uma ordem normativa encontramos, como veremos, normas que estabelecem autoridade para a criação de novas normas, ou seja, normas que regulam a produção de normas. Estas normas que regulam a elaboração de novas normas podem conferir a uma autoridade a competência para criar normas revogáveis ou irrevogáveis. Caso a competência seja para estabelecer normas revogáveis, aplica-se a regra segundo a qual a norma posterior derroga a norma anterior, e o inverso é verdadeiro no caso contrário. Caso sejam admitidas normas mais gerais e normas mais específicas regulando a mesma matéria, a norma específica derroga a geral. Além disso, as normas superiores derrogam as inferiores.

As relações de derrogação e hierarquias de normas se tornarão mais claras na parte que se refere à Dinâmica jurídica, razão pela qual aqui são apresentadas apenas estas breves palavras.

3.3.5.A finitude e independência das Ordens Normativas

O princípio da imputação, diferentemente do princípio da causalidade, permite a criação de sistemas finitos de normas. As normas pertencentes a uma determinada ordem normativa não têm relações lógicas com as normas pertencentes a uma outra ordem normativa. Desta forma, uma norma de direito penal finlandês não é afetada por normas de direito penal brasileiro. Também normas da ordem normativa do catolicismo não dependem de normas de um determinado código de ética profissional.

Cada ordem normativa é, portanto, finita, limitada. Cada uma guarda uma coerência interna, mas não tem relações com as demais ordens normativas. Como visto anteriormente, a unidade de uma ordem normativa é dada pela unidade da norma fundamental à qual todas as demais normas de uma certa ordem fazem referência. Duas ordens normativas, portanto, têm duas normas fundamentais distintas. Disto decorre que a validade das normas de cada uma destas ordens depende tão somente da validade das normas fundamentais respectivas.

Assim, podemos conceber uma ordem normativa fundada na máxima "amai os vossos inimigos" e uma outra ordem, também moral, fundada na máxima "buscai aumentar a glória da pátria". Podem-se deduzir diversas normas de cada uma destas máximas. Da máxima "amai os vossos inimigos" deduz-se que não se devem prejudicar os inimigos, não se deve querer-lhes mal, não se deve matá-los ou discriminá-los. Pode-se aceitar que todas estas normas já estão contidas na norma fundamental que determina que se deve amar aos inimigos. Por outro lado, da máxima "buscai aumentar a glória da pátria" podem-se deduzir as normas segundo as quais se deve favorecer nacionais antes que estrangeiros, se deve comprar de firmas nacionais antes que de estrangeiras, deve-se lutar com afinco contra nações inimigas em guerras, deve-se enaltecer a pátria respeitando hinos e bandeiras, etc.

A validade da norma segundo a qual não se deve prejudicar os inimigos depende tão somente da aceitação da validade da norma fundamental segundo a qual se devem amar os inimigos. Ela não tem qualquer relação com a validade da norma segundo a qual se deve buscar aumentar a glória da pátria. É isto que se pretende afirmar quando se diz que as diversas ordens normativas são finitas e independentes.

Por certo que alguém pode argumentar que tais normas dependem umas das outras uma vez que indivíduos concretos que aceitem uma delas geralmente rejeitam a outra ou a aceitam com restrições. Pode-se afirmar ainda que tais ordens são interdependentes já que o conteúdo de uma influencia a interpretação que os indivíduos fazem da outra, etc. Isto, no entanto, não é incompatível com a afirmação kelseniana segundo a qual as diversas ordens normativas são independentes entre si. Isto porque, a independência de que se trata aqui é uma independência lógica. Implica tão somente que as normas de uma ordem não podem ser deduzidas da norma fundamental de outra e que não há contradições lógicas entre normas de ordens diferentes.

3.5Estática Jurídica

A Teoria Pura do Direito divide o estudo das ordens jurídicas em duas grandes partes: a Estática e a Dinâmica Jurídica. A Estática Jurídica é aquela parte do estudo que se dedica a apreender o direito vigente no momento, sem se debruçar sobre o modo como tal direito se transforma. A Dinâmica Jurídica se debruça sobre o modo como o direito regula sua própria criação.

Aquilo na obra kelseniana que é mais importante para o nosso propósito está, em sua maior parte, abrangido pela Dinâmica Jurídica. Entretanto, cumpre que analisemos algumas noções da Estática Jurídica kelseniana que desempenham um papel decisivo no seu pensamento. Assim, tomemos a definição kelseniana de Direito, a identidade entre Direito e Estado, a distinção entre Direito Objetivo e Direito Subjetivo, a definição de Pessoa Jurídica e Pessoa Física.

3.5.1.O direito: definição

Para definirmos o conceito de direito, em Kelsen, é necessário que tenhamos claras várias idéias. Ao final direito será definido como qualquer ordem social que estabeleça como sanções atos coercitivos imanentes e que tenha uma esfera material de validade ilimitada. Assim, cumpre que estejam claras as noções de norma, ordem normativa, ordem social, sanção e esfera de validade, que compõem este conceito. Destas, várias já foram tratadas, de forma que passamos agora a construir este conceito e esclarecer as noções que ainda se fazem necessárias.

Na concepção kelseniana o direito é uma técnica social, isto é, trata-se de um construto humano que tem um objetivo específico, qual seja, controlar o comportamento de outros seres humanos. O direito não é, portanto, o fato de que determinados indivíduos controlem ou influenciem determinados outros indivíduos, mas uma técnica específica utilizada para impor determinados comportamentos a determinados seres humanos. Esta técnica social é caracterizada pelo apelo à coerção.

Existem inúmeras formas pelas quais se pode tentar impor a alguém determinado comportamento. O direito se vale especialmente da ameaça e efetiva aplicação da violência física contra aqueles que se comportam da maneira que se procurou coibir.

O direito, esta técnica social, é uma ordem social, o que em Kelsen quer dizer que se trata de um determinado conjunto de normas que pretende reger o comportamento recíproco de indivíduos humanos. Há, entretanto, inúmeras ordens sociais, de modo que cumpre que sejam apresentadas as características distintivas da ordem jurídica.

3.5.1.1. O direito: uma ordem social

Para Kelsen o direito é uma ordem social. Uma ordem social tem certas características no pensamento kelseniano. Trata-se, em primeiro lugar, de um conjunto determinado de normas. Em segundo lugar, fala-se de ordem porque tal conjunto guarda uma coerência interna, ou seja, não é apenas um conjunto, mas um sistema de normas já que os elementos deste conjunto estão inter-relacionados. Em terceiro lugar, o qualificativo "social" se refere à característica de que esta ordem é composta por normas que pretendem regular o comportamento recíproco dos indivíduos.

Existem, no entanto, várias ordens deste tipo. Um determinado sistema moral ou uma ética religiosa seriam exemplos de outras ordens sociais. O termo "direito" se refere a uma determinada espécie de "ordem social", a um tipo específico de ordens, não a uma ordem em particular. Ou seja, o termo "direito" se aplica a um determinado tipo de conjunto de normas que regulam o comportamento humano. Cumpre esclarecer, agora, qual é a característica definidora destas ordens sociais, ou seja, que característica que, estando presente, permite a classificação da ordem como "jurídica", como "direito".

3.5.1.2.Características da ordem jurídica: coercitividade e esferas territorial, pessoal, temporal e material de validade

Para Kelsen toda norma, na medida em que se pretende válida para reger atos humanos, deve determinar para que atos humanos pretende valer. Isto quer dizer que toda norma tem uma determinada esfera de validade. A norma que estatui que é devido um imposto em função da renda que um indivíduo qualquer aufira ao longo de um ano, pertencente ao ordenamento jurídico brasileiro, se supõe válida apenas para certos indivíduos: suponhamos que tais sejam aqueles que estão no Brasil e que aqui aufiram qualquer espécie de renda; pressupõe-se também válida apenas sobre um determinado território: o território brasileiro; e pressupõe-se válida por um determinado período de tempo: de, suponhamos, um ano após sua edição em diante.

Toda norma tem, portanto, uma esfera territorial, uma esfera pessoal e uma esfera temporal de validade. Além disto, toda ordem tem uma determinada esfera material de validade, o que quer dizer, ela é tida como válida apenas para determinadas espécies de comportamento humano. Assim, as regras do xadrez não são tidas como válidas para o relacionamento amoroso.

Temos, portanto, que qualquer ordem social deve ter uma esfera pessoal, material, temporal e espacial de validade. As ordens normativas a que chamamos "direito" também o têm.

É característico das ordens jurídicas que tenham uma esfera material de validade ilimitada. O direito de um determinado estado pode regular qualquer espécie de matéria, desde crenças religiosas até as regras de determinado esporte. O fato de que as constituições de diversas ordem jurídicas contemporâneas vedem a proibição de cultos religiosos, atendidos certos critérios, é já indício deste fato, uma vez que autorizar ou proibir a proibição são já formas de regulação.

As esferas pessoal, territorial e temporal de validade da ordem jurídica são uma questão à parte, uma vez que surge aqui, com especial importância, o problema da ordem, jurídica internacional. Ocorre que se pode com clareza afirmar que tais esferas são limitadas no que tange às ordens jurídicas nacionais, mas não no que tange à ordem jurídica internacional. O debate que Kelsen trava em torno desta questão não nos interessa aqui, razão pela qual passamos ao largo deste problema.

Desta forma, toda ordem jurídica é caracterizada por ter uma esfera material de validade ilimitada.

Uma outra, e a mais importante característica de uma ordem jurídica na percepção kelseniana, é o fato de que estabelece ações coercitivas como sanções. Segundo o autor, como veremos mais adiante, toda norma tem uma estrutura determinada, na qual figura a sanção como uma parte importante. As normas de uma ordem jurídica têm a característica de que, direta ou indiretamente, estabelecem sanções coercitivas.

No entanto, há um elemento comum que justifica plenamente essa terminologia e que dá condições à palavra "Direito" de surgir como expressão de um conceito com um significado muito importante em termos sociais. Isso porque a palavra se refere à técnica social específica de uma ordem coercitiva, a qual, apesar das enormes diferençãs entre o Direito da antiga Babilônia e o dos Estado Unidos de hoje, entre o Direito dos ashanti na África Ocidental e o dos suíços na Europa, é, contudo, essencialmente a mesma para todos esses povos que tanto diferem em tempo, lugar e cultura: a técnica social que consiste em obter a conduta social desejada dos homens através da ameaça de uma medida de coerção aplicada no caso de conduta contrária. (Kelsen, 2000b: 27)

Aqui se faz necessário precisar o que se pretende dizer com o termo "sanções coercitivas". Um ato é uma sanção coercitiva se deve ser levado a cabo mesmo contra a vontade do indivíduo ou indivíduos contra os quais deve ser efetivado. Note-se, e isto é importante ao longo de toda a obra kelseniana, que coerção não se refere a uma violência efetivamente empregada, nem à possibilidade real de aplicação de força física, mas única e exclusivamente ao "dever ser" aplicada mesmo contra a resistência do sancionado.

Há ainda uma outra característica comum a qualquer ordem jurídica, qual seja, o fato de que as sanções deste tipo de ordem têm um caráter imanente, isto é, devem ser efetivadas por indivíduos humanos determinados direta ou indiretamente pela própria ordem.

Em resumo, as características que devem estar presentes para que um dado conjunto de normas seja considerado uma ordem jurídica, um direito, são: 1) ter uma esfera material de validade ilimitada; 2) estabelecer como sanções atos coercitivos; 3) estabelecer sanções imanentes, ou seja, aplicadas por indivíduos humanos.

Direito, portanto, é toda ordem social com esfera material de validade ilimitada que estabelece sanções coercitivas imanentes.

3.5.2.A estrutura da norma

Diz-se "norma", na concepção kelseniana, todo conteúdo de sentido que tenha uma determinada forma, que pode ser resumida como "Se A, então deve ser B, de acordo com C". Este ponto é bastante importante para uma adequada compreensão do pensamento do autor. A norma não é uma determinada forma de comportamento humano, mas uma determinada construção de sentido, que é caracterizada não por um conteúdo qualquer, mas por sua forma, sua estrutura.

Podemos detalhar melhor esta definição de "norma", atentando para cada um de seus elementos constitutivos.

Tomemos a estrutura de significado "Se A então deve ser B de acordo com C", onde "A" são as condições, "B" é uma sanção e "C" é o fundamento de validade.

Devemos, então, notar, antes de tudo, que tal estrutura não corresponde à forma com a qual comumente expressamos idéias normativas. É clássico o exemplo retirado dos mandamentos de Moisés: "Não matarás" ou "não se deve matar". Esta forma tem suas condições, sua sanção e seu fundamento de validade ocultos, sendo manifesta simplesmente a conduta por meio da qual se pode evitar a sanção, isto é, daquela estrutura anteriormente apresentada temos apenas "não-A", acrescida do imperativo. Esta mesma idéia, expressa na forma normativa, estaria disposta da seguinte forma: "se alguém matar, em qualquer circunstância, deve ser punido (a punição não está clara), de acordo com os mandamentos divinos".

Feita esta breve observação, podemos prosseguir para uma análise de cada elemento da estrutura das normas.

3.5.2.1.Condições

O primeiro elemento da estrutura da norma aqui apresentado são as "condições". Entende-se por este termo tudo aquilo que deve estar presente para que a conseqüência, ou "sanção" seja devida (note-se que não se trata das condições para que a sanção de fato ocorra, mas tão somente daquelas que necessitam estar presentes para que a sanção deva ocorrer). Entram nestas condições todas aquelas circunstâncias anteriormente referidas como "esferas de validade pessoal, material e temporal" das normas, além de quaisquer outras circunstâncias que condicionem a aplicação (devida, não efetiva) da sanção.

Tomemos alguns exemplos:

1."Matar alguém"

Uma norma do Código Penal brasileiro prevê:

Art. 121. Matar alguém:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos

"Matar alguém" é uma condição para que seja devida a aplicação da pena. Entretanto, entre as condições desta norma incluem-se diversas outras, como por exemplo, esta ação tem de ter ocorrido no território brasileiro (há diversas exceções, mas não nos alongaremos neste assunto); esta ação tem de ter sido "dolosa", ou melhor, tem de ter sido feita propositalmente, seu autor tem de ter almejado o resultado morte quando da prática do ato (existem exceções); o indivíduo que realizou a ação de matar tem de ter mais de 18 anos de idade, etc. Vê-se que as condições de aplicabilidade da norma, o elemento "A" na estrutura da norma anteriormente apresentada, não correspondem necessariamente àquilo descrito em uma norma como condição da sanção, mas incluem todos os demais elementos necessários para que uma sanção deva ser aplicada.

Estas outras condições não são deduzidas de qualquer maneira da natureza da norma ou do direito, mas, simplesmente, estão presentes em outras normas do mesmo ordenamento. Por exemplo, a norma que determina que uma das condições de aplicação do artigo 121 do Código Penal acima apresentado é que o fato tenha ocorrido no território brasileiro é o artigo 5º também do Código Penal:

Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional.

Pode-se ampliar bastante a análise sobre tais condições, uma vez que incluem tudo aquilo compreendido entre o oferecimento de denúncia, a constituição de advogados, o convencimento do júri acerca do ocorrido, etc; ou seja, dentre as condições de aplicação da pena incluem-se as normas de Direito Processual Penal. Desta forma esta norma seria descrita com mais precisão em uma forma semelhante à que segue: "se for oferecida denúncia contra um indivíduo, for instaurado um processo criminal, se o tribunal do júri entender que ele matou alguém no Brasil, que o fez de propósito, que tem mais de 18 anos, que estava lúcido quando o fez, etc., então o juiz deverá condenar-lhe a uma pena de reclusão que pode variar entre 6 e 20 anos."

2."Pacta Sunt Servanda"

Outro exemplo: a norma de Direito Internacional Geral que determina que os tratados internacionais devem ser respeitados, geralmente designada como o princípio do pacta sunt servanda. Esta norma estabelece como sanções a represália e a guerra. As condições aí são o descumprimento de um acordo celebrado entre dois estados. Incluem-se, porém, em tais condições que o tratado tenha sido celebrado por certos indivíduos em suas capacidades enquanto órgãos de, pelo menos, dois estados; que este tratado tenha sido descumprido por indivíduos investidos de determinadas atribuições como órgãos dos mesmos estados. Desta forma, também aí se incluem nas condições de aplicabilidade da sanção as condições de validade da norma.

3.5.2.2.Deve ser

O segundo elemento presente na estrutura de uma norma é o "então dever ser", ou simplesmente "dever". Deve-se ressaltar aqui que Kelsen trata deste termo em um sentido amplo que envolve não apenas o dever, mas também o "direito", a permissão, a competência. [03] Assim, toda norma contém, necessariamente, um dever, que pode ser um "direito" ou uma "autorização".

A afirmação: um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta é idêntica à afirmação: uma norma jurídica prescreve aquela conduta determinada de um indivíduo; e uma ordem jurídica prescreve uma determinada conduta ligando à conduta oposta um ato coercitivo como sanção. (Kelsen, 2000a: 129)

E ainda:

A este respeito recorde-se uma vez mais que, se a proposição jurídica é formulada com o sentido de que, sob determinadas condições ou pressupostos, deve intervir um determinado ato de coação, a palavra "deve" nada diz sobre a questão de saber se a aplicação do ato coercitivo constitui conteúdo de um dever jurídico, de uma permissão positiva ou de uma atribuição de competência (autorização), antes, as três hipóteses são igualmente abrangidas. (Kelsen, 2000a: 133)

Assim, quando se afirma que a estrutura de uma norma tem a forma "se A, então deve ser B", pode-se entender por "deve" tanto uma obrigação como uma autorização ou uma competência para a realização de um determinado ato.

3.5.2.3.Sanção

Quando se fala de sanções, no pensamento kelseniano, tem-se em mente não apenas "penas" e "execuções civis", mas também "recompensas". Sanção é o termo genérico empregado pelo autor para designar as conseqüências devidas em função do implemento das condições previstas na norma.

As sanções jurídicas, entretanto, têm o caráter de sempre se referirem a atos coercitivos, daí que, quando se trata do direito, as recompensas têm muito pouca relevância. Mesmo quando uma determinada recompensa é estabelecida, estabelece-se também uma punição para o caso de o órgão competente não entregar a recompensa no caso adequado, de forma que o dever estabelecido diretamente é o do órgão: o dever de entregar a recompensa.

Tem-se, de qualquer forma, que o termo sanção se refere aqui a qualquer conseqüência prevista pela norma como devida em função do implemento das condições também estabelecidas. A sanção é qualquer conseqüência que figure como "B" na estrutura da norma anteriormente apresentada. (se A, então deve ser B).

3.5.2.4.Fundamento

A questão em torno do fundamento de validade de uma norma dentro de um ordenamento, e do próprio ordenamento, será analisada na parte referente à "Dinâmica Jurídica", mas pode-se apresentá-la brevemente aqui.

A norma é um conteúdo de sentido com uma estrutura determinada, da qual temos tratado. A validade de uma norma é o próprio dever desta norma, é o dever ser ela aplicada. Quando dizemos que a norma "não matar" é válida, entendemos que "não se deve matar". Quando afirmamos que a norma "deve-se amar os inimigos" é válida, pretendemos com isto que "deve-se amar os inimigos". Assim, afirmar a validade de uma norma é afirmar a própria existência da norma. A validade de uma norma, segundo Kelsen, é a existência específica da norma.

Uma norma inválida seria o mesmo que uma norma inexistente. Quando digo que a norma "deve-se tomar dos pobres e dar aos ricos" não é válida, estou dizendo que esta "norma" não passa de uma frase qualquer, estou negando seu próprio significado normativo. Neste caso, entende-se exatamente que tal frase não é uma norma, não existe.

Quando afirmo que uma norma é válida, portanto, estou afirmando que ela deve ser obedecida. Ora, isto pode não passar de uma repetição da mesma norma ou pode constituir uma norma nova. Neste segundo caso, temos uma norma que estabelece como devida, sob certas condições, a obediência à primeira norma. Assim, teríamos a norma X que determina que "Se A, então deve ser B". Teríamos também a norma Y, que determina que "Se Z, então deve ser X". Logo, a norma X pode ser escrita da seguinte forma: "Se A, então deve ser B, em razão de Y".

Até agora estivemos trabalhando o conceito de direito em Kelsen. O direito é, para Kelsen, uma ordem normativa, cujas normas estabelecem sanções coercitivas. Uma ordem normativa é um conjunto internamente coerente de normas que tem em comum a referência a uma mesma norma fundamental. Uma norma é um conteúdo de sentido que tem uma estrutura caracterizada pela imputação de uma conseqüência como devida em decorrência de certas condições. Buscou-se acima esclarecer cada uma destas idéias.

3.5.3.Direito Objetivo e Subjetivo

Até agora analisamos idéias necessárias para a compreensão da definição kelseniana de direito: as características da ordem jurídica e a estrutura da norma. Passaremos, agora, a lidar com alguns conceitos importantes no estudo daquilo que Kelsen chama de "Estática Jurídica". É compreensível que juristas considerem tal exposição um tanto quanto irrelevante e sociólogos a considerem cansativa. Porém, cumpre que se permita ao leitor conhecer algumas conseqüências do modo kelseniano de ver o direito. Em função disto veremos agora os conceitos de direito objetivo e subjetivo, pessoa física e jurídica.

A distinção entre Direito Objetivo e Direito Subjetivo é corriqueira entre os juristas. Direito subjetivo é o direito que alguém possui: o direito à vida, à propriedade privada, à herança. Neste sentido, direito subjetivo contrapõe-se à obrigação. Direito objetivo são as normas das quais deduzimos as obrigações e direitos. É direito objetivo a norma do artigo 5º da Constituição Federal que protege a vida, a propriedade privada e a herança (inciso XXX). São direitos subjetivos o direito à vida, à propriedade e a herança de um indivíduo.

Aquilo que Kelsen chama de "direito positivo" engloba aquilo que os juristas brasileiros em geral conhecem por "direito objetivo", ou seja, quaisquer normas jurídicas válidas, sejam decorrentes da legislação, do costume, da jurisprudência ou de qualquer outra "fonte" aceita como autoridade criadora de normas.

Kelsen trava uma árdua polêmica com diversos autores que encontram no direito subjetivo o fundamento do direito objetivo. O direito subjetivo seria anterior e superior ao direito objetivo, de modo que o Estado seria incompetente para interferir no exercício de determinados destes direitos, tais como a liberdade, a vida, a propriedade privada. Diversas doutrinas jusnaturalistas adotam esta posição, que Kelsen procura refutar. Não adentraremos nesta polêmica, mas cabe ressaltar neste ponto que Kelsen opera uma redução do direito subjetivo ao direito objetivo, à norma.

3.5.3.1.Conceitos Auxiliares

Da mesma forma que se fala em um direito subjetivo referindo-se ao "direito reflexo", ou seja, a norma vista do ponto de vista do indivíduo, também se fala no dever jurídico. O dever jurídico é o dever de um determinado indivíduo de praticar determinado ato. A norma estabelece um dever ser, por exemplo, todos os indivíduos maiores de 18 anos devem votar. Dever jurídico é o nome dado à obrigação que um determinado indivíduo, maior de 18 anos, tem de votar.

O dever jurídico, o direito subjetivo, a competência, a responsabilidade, todos estes são, para Kelsen, conceitos auxiliares da ciência jurídica. São conceitos formados a partir de uma consideração da norma ou de várias normas, ou seja, do direito objetivo, a partir de um ponto de vista especial, diferente daquele da ordem jurídica. Assim, o direito subjetivo é o direito que tem um determinado indivíduo, que nada mais é do que um modo diferente de descrever uma norma que estabelece algo como devido. O dever jurídico é a conduta oposta àquela que a norma estabelece como condição para a aplicação de uma sanção. A competência é a capacidade de um indivíduo de participar da vida civil, ou, dito de uma perspectiva normativa, é o fato de que o direito estabelece a conduta deste indivíduo como condição para a produção de novas normas jurídicas, gerais ou individuais, especialmente os contratos ou negócios jurídicos.

Aqui deve ter-se em conta que a afirmação de que um indivíduo é sujeito de um dever jurídico, ou tem um dever jurídico, nada mais significa senão que uma determinada conduta deste indivíduo é conteúdo de um dever pela ordem jurídica estatuído, quer dizer: que a conduta oposta é tornada pressuposto de uma sanção; e que, com a afirmação de que um indivíduo é sujeito de um poder jurídico, de uma faculdade (poder) ou competência, ou de que tem um poder jurídico, faculdade ou competência, nada mais significa senão que, de acordo com ordem jurídica, são produzidas ou aplicadas normas jurídicas através de determinados atos deste indivíduo ou que determinados atos deste indivíduo cooperam na criação ou aplicação de normas jurídicas. No conhecimento dirigido às normas jurídicas não são tomadas em consideração - nunca é demais acentuar isto - os indivíduos como tais, mas apenas as ações e omissões dos mesmos, pela ordem jurídica determinadas, que formam o conteúdo das normas jurídicas. (Kelsen, 2000a: 189)

A ciência jurídica, segundo Kelsen, é um conhecimento dirigido às normas, e não aos atos de indivíduos. A adoção de tais conceitos reflexos, que têm por referência não as normas, mas o indivíduo, é útil na medida em que simplifique ou facilite a descrição de uma situação jurídica dada. Assim, diz-se que um indivíduo maior de 18 anos e que não tenha distúrbios em suas capacidades intelectivas é dotado de capacidade para a vida civil. Esta afirmação significa que as declarações de vontade deste indivíduo podem figurar como condições para a criação de novas normas, tais contratos, testamentos, declarações unilaterais de vontade, etc. Contratos, testamentos e declarações unilaterais de vontade são normas jurídicas. Pertencem ao ordenamento jurídico porque sua validade depende da lei (da norma que confere a capacidade civil), que depende da Constituição, que remete à norma fundamental fictícia da ordem jurídica.

Outro conceito auxiliar da ciência jurídica é o conceito de responsabilidade, que aponta para aquele indivíduo contra o qual a norma determina que sejam aplicadas sanções em determinadas situações. Note-se que é obrigado juridicamente a uma determinada conduta aquele indivíduo cuja conduta é tornada, por uma norma jurídica, o pressuposto de uma sanção. Entretanto, a sanção não tem, necessariamente, de ser dirigida contra o mesmo indivíduo. Daí o conceito jurídico de "responsabilidade" [04]

Conceito essencialmente ligado com o conceito de dever jurídico, mas que dele deve ser distinguido, é o conceito de responsabilidade. Um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta quando uma oposta conduta sua é tornada pressuposto de um ato coercitivo (como sanção). Mas este ato coercitivo, isto é, a sanção como conseqüência do ilícito não tem de ser necessariamente dirigida - como já se fez notar - contra o indivíduo obrigado, quer dizer, contra o indivíduo cuja conduta é o pressuposto do ato coercitivo, contra o delinqüente, mas também pode ser dirigido contra um outro indivíduo que se encontre com aquele numa relação determinada pela ordem jurídica. O indivíduo contra quem é dirigida a conseqüência do ilícito responde pelo ilícito, é juridicamente responsável por ele. (Kelsen, 2000a: 133)

Assim, o indivíduo obrigado pela ordem jurídica não é necessariamente o mesmo que é responsável. Responsável é aquele que deve, segundo a ordem jurídica, suportar a sanção. Assim, uma ordem normativa pode estabelecer que, caso uma criança destrua propriedade alheia, seu pai deverá indenizar os danos. Neste caso, a criança é obrigada a abster-se de destruir a propriedade alheia (uma conduta possível sua figura como pressuposto de uma sanção) e o pai é o responsável (a sanção é dirigida contra ele).

O direito subjetivo, entretanto, não apenas é um conceito auxiliar, pois se trata apenas de uma consideração diversa da mesma norma, mas também é prescindível. Um direito subjetivo é apenas o reflexo de um dever jurídico, que é a conduta oposta àquela estipulada como condição de uma sanção. Desta forma, segundo Kelsen, o direito subjetivo não é senão um direito reflexo. Assim como aquilo que chama de norma secundária (o "não se deve matar" como conduta que permite evitar a sanção de "matar alguém: reclusão de 6 a 20 anos"), o direito subjetivo não é nada além da mesma norma vista de uma forma teleológica. A norma "matar alguém. Pena: reclusão de 6 a 20 anos" constitui tanto a obrigação de abster-se do homicídio como constitui também o direito à vida. Quando afirmo que tenho direito à vida, estou dizendo simplesmente que todos os demais têm a obrigação de não me matar. E isto significa tão somente que o fato de alguém me matar seria uma condição para que uma certa pena fosse devida.

Há um segundo sentido para direito subjetivo, que Kelsen chama de direito subjetivo em sentido técnico ou estrito. Aqui, o direito subjetivo significa a autorização para ingressar com uma ação judicial contra outrem, a fim de que faça ou abstenha-se de fazer algo. Assim, quando digo que tenho direito à propriedade isto pode significar: 1) em sentido lato, enquanto direito reflexo, que todos os demais estão obrigados a não interferirem em meus atos de gozo, fruição ou disposição de certos bens, ou; 2) em sentido estrito, enquanto direito de ação, que estou autorizado a ingressar com um pedido em juízo contra qualquer que interfira em meu gozo, fruição ou disposição dos mesmos bens, sendo que desta forma participo da criação de uma norma particular que estabelece como devida uma punição àquele indivíduo particular.

em resumo, pode-se dizer: o direito subjetivo de um indivíduo ou é um simples direito reflexo, isto é, o reflexo de um dever jurídico existente em face deste indivíduo; ou um direito privado subjetivo em sentido técnico, e isto é, o poder jurídico conferido a um indivíduo de fazer valer o não-cumprimento de um dever jurídico, em face dele existente, através da ação judicial, o poder jurídico de intervir na produção da norma individual através da qual é imposta a sanção ligada ao não-cumprimento; ou o direito político, isto é, o poder jurídico conferido a um indivíduo de intervir, já diretamente, como membro da assembléia popular legislativa, na produção das normas jurídicas gerais a que chamamos de leis, já indiretamente, como titular de um direito de eleger para o parlamento ou para a administração, na produção das normas jurídicas que o órgão eleito tem competência para produzir; ou é, como direito ou liberdade fundamental garantida constitucionalmente, o poder de intervir na produção da norma através da qual a validade da lei inconstitucional que viola a igualdade ou liberdade garantidas é anulada, quer por uma forma geral, isto é, para todos os casos, quer apenas individualmente, isto é, somente para o caso concreto. Finalmente, também pode designar-se como direito subjetivo e a permissão positiva de uma autoridade. (Kelsen, 2000a: 162)

3.5.4.Pessoa Física e Jurídica

Também os conceitos de pessoa física e pessoa jurídica são objeto de atenção e debates entre Kelsen e aquilo que ele chama de "doutrina dominante" entre os juristas. Apresentarei aqui tão somente a definição kelseniana destes conceitos, deixando de lado a polêmica que o autor travava então com os juristas de sua época.

Para Kelsen a pessoa jurídica é tão somente a personificação de um determinado conjunto de normas. Uma pessoa jurídica, digamos uma empresa, seria o conjunto de todos os direito e deveres que são imputados a ela. Entretanto, para que se possa bem compreender isto é necessário que primeiro verifiquemos a idéia que Kelsen tem da pessoa física.

Afirma este autor que a pessoa física não é um ser humano concreto, um organismo biológico dotado de quaisquer capacidades intelectivas. A pessoa física, para ele, como qualquer outro conceito jurídico, se refere tão somente a normas. A pessoa física é o conjunto de todas as obrigações e direitos de um determinado indivíduo. Ela é a personificação das normas que, desde um ponto de vista teleológico, constituem obrigações e direitos do indivíduo.

Mas estas tentativas são tanto mais baldadas quanto é certo que uma análise mais profunda revela que também a chamada pessoa física é uma construção artificial da ciência jurídica, que também ela é apenas uma pessoa "jurídica". (Kelsen 2000a: 192)

Na verdade, para o autor, toda pessoa física é uma pessoa jurídica. Ambas são apenas personificações de normas, não indivíduos humanos. Personifica-se o conjunto de normas que têm um mesmo ponto de imputação, ou seja, que se referem à conduta de um mesmo indivíduo, ou de uma mesma organização.

a pessoa física ou jurídica que "tem" - como sua portadora - deveres jurídicos e direitos subjetivos é estes deveres e direitos subjetivos, é um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos cuja unidade é figurativamente expressa no conceito de pessoa. A pessoa é tão somente a personificação desta unidade. (Kelsen, 2000a: 193)

A distinção entre uma e outra não está no substrato humano, mas na distinção de dois tipos de fatores que conferem unidade a um determinado conjunto de normas.

o que em ambos os casos - tanto o da pessoa física como o da pessoa jurídica - realmente existe são deveres jurídicos e direitos subjetivos tendo por conteúdo a conduta humana e que formam uma unidade. Pessoa jurídica (pessoa em sentido jurídico) é a unidade de um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos. Como estes deveres jurídicos e direitos subjetivos são estatuídos por normas jurídicas - melhor: são normas jurídicas -, o problema da pessoa é, em última análise, o problema da unidade de um complexo de normas. A questão é a de saber qual é, num caso e no outro, o fator que produz esta unidade. (Kelsen, 2000a: 193)

A unidade das normas que compõe a chamada "pessoa física" é dada pela referência comum ao comportamento de um mesmo indivíduo.

a unidade de deveres e direitos subjetivos, quer dizer, a unidade das normas jurídicas em questão, que formam uma pessoa física resulta do fato de ser a conduta de um e mesmo indivíduo que constitui conteúdo desses deveres e direitos, do fato de ser a conduta de um e mesmo indivíduo a que é determinada através das suas normas jurídicas. A chamada pessoa física não é, portanto, um indivíduo mas a unidade personificada das normas jurídicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo indivíduo. Não é uma realidade natural, mas uma construção jurídica de fatos juridicamente relevantes. Neste sentido, a chamada pessoa física é uma pessoa jurídica.(juristische person) (Kelsen, 2000a: 194)

Já a unidade das normas que compõe a chamada "pessoa jurídica" é dada pela referência a uma "Corporação". A diferença consiste em que a "Corporação" não é um indivíduo ou qualquer elemento material. Ela é, ela própria, um conjunto de normas.

Com efeito, designa-se por corporação uma comunidade organizada, quer dizer, uma comunidade que é constituída através de uma ordem normativa que estabelece que certas funções devem ser desempenhadas por indivíduos que forem chamados a essas funções por uma forma indicada no estatuto, quer dizer, constituída por uma ordem normativa que institui órgãos desta espécie funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho. (Kelsen, 2000a: 197)

Uma corporação é, para Kelsen, um determinado conjunto de normas que estabelecem, entre outras coisas, os indivíduos que deverão cumprir determinadas obrigações jurídicas. Uma norma que obriga um indivíduo a pagar um imposto e uma que obriga uma organização a pagá-lo são distintas apenas no sentido de que a primeira estabelece diretamente o indivíduo responsável pelo pagamento, enquanto que a segunda delega a um segundo ordenamento a competência para estabelecer o indivíduo particular que pagará o tributo. Da mesma forma, a execução civil será dirigida, no primeiro caso, ao patrimônio de um indivíduo determinado diretamente pelo ordenamento jurídico, enquanto que no segundo será dirigido contra um patrimônio comum a vários indivíduos, regulado também pelo estatuto da organização ou empresa.

Assim, a pessoa física e a pessoa jurídica são ambas, em Kelsen, apenas conteúdos de normas, cujo conjunto é formado em função de terem um ponto comum de imputação, e que é visto de forma personificada.

3.6.Dinâmica Jurídica

Enquanto a Estática Jurídica consistia no estudo das normas jurídicas tais como dadas em um determinado momento, o estudo da Dinâmica Jurídica se refere ao estudo das normas jurídicas em seu processo de transformação. Não se pretende, é claro, que tal estudo se refira ao modo como surgem, nas mentes de indivíduos humanos concretos, determinadas idéias normativas. Este estudo se refere, antes, ao modo como o direito regula sua própria criação, ou seja, às normas que, dentro de um ordenamento normativo, estabelecem os procedimentos que devem ser observados para a criação de novas normas.

Esta é, a meu ver, a parte mais importante do pensamento kelseniano, já que é no estudo da dinâmica jurídica que são abordadas as questões da norma fundamental, do fundamento de validade das normas, e da unidade da ordem normativa.

3.6.1.O Ordenamento Hierárquico

Um ordenamento normativo qualquer não apenas tem uma coerência interna, mas também tem uma forma hierárquica. Esta forma independe de qualquer ordenamento normativo particular, sendo uma característica da própria estrutura normativa.

Afirmar que o ordenamento normativo tem uma estrutura hierárquica significa que existem normas superiores e normas inferiores. Uma norma superior não é sinônimo de uma norma mais geral, melhor ou de qualquer forma mais importante. Da mesma forma, uma norma inferior não é, necessariamente, menos geral ou menos importante. Superioridade e inferioridade têm aqui um significado preciso. A superioridade equivale a supra-ordenação e a inferioridade a subordinação.

3.6.1.1.Relações entre normas

Há três formas possíveis de relações entre normas dentro de uma mesma ordem normativa. Uma norma pode ser supra-ordenada, subordinada ou coordenada a outra norma.

Uma norma é subordinada a uma outra norma quando sua validade decorrer daquela norma. Assim, se aceitarmos como válido um determinado ordenamento moral que estabeleça como norma fundamental que "se devem amar os inimigos"; e aceitarmos ainda que a norma "não se devem matar os inimigos" decorre logicamente desta norma fundamental, então a norma "devem-se amar os inimigos" é superior à norma "não se devem matar os inimigos". Um outro exemplo: se aceitarmos a norma "as crianças devem obedecer a seus pais" e constatarmos que um determinado pai ordenou a seu filho João que fizesse suas tarefas de casa, teríamos que a norma "as crianças devem obedecer a seus pais" é superior àquela segundo a qual "João deve fazer suas tarefas de casa".

Com a afirmação de que uma norma é superior a outra quer dizer que a inferior decorre sua validade da superior. Um exemplo: tem-se uma norma x "se A, então deve ser B", onde B, dentre outras coisas, confere autoridade para criação de normas a um indivíduo P. P estabelece uma norma p com a forma "se Y, então deve ser não-x". Temos aí, portanto.

x:Se A, então deve ser B

Onde B, entre outras coisas, confere autoridade para P

p:Se Y, então deve ser não-x

Estas normas não são contraditórias em seu conteúdo. Se aceitássemos ambas teríamos que "se A, então deve ser B e se Y, então deve ser não-x". Porém, a norma p está apresentada de forma incompleta. Falta-lhe o fundamento de validade. Quando aceitamos que p é válido em função de que x estabeleceu P como uma autoridade criadora de normas e que P estabeleceu a norma p, tomamos x como seu fundamento de validade. Podemos, então, escrever a norma p da seguinte forma: "Se Y, então deve ser não-x, segundo x"

Teremos, assim, que não-x é devido segundo a norma p. Entretanto, não-x significa que a norma x é inválida. Se a norma x é inválida e a norma p é válida em função de x, então p também não é válida. Se p não é válida, então não há razão para que x não seja válida. Desta forma, o raciocínio será circular sempre que aceitarmos a validade de uma norma inferior cujo conteúdo derrogue a norma que lhe é superior.

Na hipótese contrária não há qualquer problema: p só é válida se estiver em conformidade com x.

Apresentemos a mesma situação usando os exemplos anteriores. A norma x é "as crianças devem obedecer a seus pais". P é o Pai, e ele estabelece que se seu filho fizer as tarefas de casa, não precisará cumprir a norma x, ou seja, não precisará obedecer a seu pai. Entretanto, se o filho faz sua tarefa de casa e, portanto, fica desobrigado, segundo seu pai, de obedecer à norma segundo à qual deve obedecer a seu pai, não haverá mais qualquer razão para que o filho considere como válida a autorização que recebeu de seu pai. Se seu pai não é competente para estabelecer normas (não-x), não se pode aceitar a validade da norma por ele estabelecida segundo a qual ele não tem mais a competência para estabelecer normas.

A trivialidade deste exemplo tem como objetivo tão somente a apresentação clara. Entretanto, exemplos mais importantes são produzidos com bastante freqüência por leis inconstitucionais e decretos ilegais.

Vimos, então, que duas normas podem estar relacionadas por supra e subordinação. Há uma outra forma de relação: a coordenação. Duas normas são coordenadas se forem ambas subordinadas a uma mesma norma superior. Assim, um pai estabelece que seu filho 1) deve fazer suas tarefas de casa; e 2) deve escovar os dentes após as refeições. Estas duas normas são coordenadas, já que a validade de ambas depende da validade de uma norma que estabeleça como devida a obediência ao pai. Da mesma forma, todas as leis federais, ordinárias e complementares, no ordenamento brasileiro, são coordenadas, já que a validade delas decorre da Constituição Federal.

3.6.2.O fundamento de validade

Vimos anteriormente que as normas podem estar em relações de supra, infra e coordenação em um ordenamento normativo. Nos deteremos nas relações de supra e subordinação, enfocando o fundamento de validade das normas e do ordenamento normativo como um todo.

3.6.2.1.O fundamento de validade da norma

Uma norma apenas pode ser considerada como válida em função de uma outra norma, isto é, à questão acerca da validade de uma norma, apenas podemos responder fazendo referência a uma outra norma. Assim, à pergunta acerca do por que se deve promover uma maior distribuição de renda, pode-se responder pela afirmação de que todos são iguais e têm iguais direitos à participação na vida econômico-social. Ora, esta segunda afirmação significa que não deve haver exclusão na vida econômico-social, o que é, também, uma norma. À pergunta acerca do por que não deve haver exclusão econômico-social, pode-se responder afirmando que isto fere a dignidade do ser humano. Ora, quando se faz esta afirmação pressupõe-se que não se deve ferir a dignidade do ser humano, o que, novamente, é uma norma.

Uma norma apenas pode ter como fundamento de validade uma outra norma porque, enfim, a pergunta acerca das razões de validade de uma norma é uma pergunta acerca das premissas a partir das quais aquela norma pode ser deduzida. Se eu pergunto por que não devo tomar propriedade alheia, pergunto pelas premissas a partir das quais é possível deduzir que não devo tomar propriedade alheia. Nestas premissas encontra-se, necessariamente, ao menos uma normativa. Suponhamos que seja apresentado como resposta a esta pergunta a de que isto pode provocar sofrimento à pessoa de quem eu tomaria a propriedade. Esta não é uma razão suficiente, ou melhor, desta premissa não decorre necessariamente que não devo lhe tomar a propriedade. Para que tal conclusão decorra, preciso admitir também a premissa segundo a qual não devo provocar sofrimento nos meus semelhantes.

A resposta à indagação acerca das razões pelas quais não devo tomar propriedade alheia poderia ser, então, a de que isto provocaria sofrimento em meus semelhantes, e eu não devo provocar tal sofrimento.

Tomemos um exemplo do próprio autor:

em todo caso, no silogismo cuja premissa maior é a proposição de dever ser que enuncia a norma superior: devemos obedecer aos mandamentos de deus (ou aos mandamentos de seu filho), e cuja conclusão é a proposição de dever ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos dez mandamentos (ou que nos ordena que amemos os inimigos), a proposição que verifica (afirma) um fato da ordem do ser: deus estabeleceu os dez mandamentos (ou o filho de deus ordenou que amássemos os inimigos), constitui, como premissa menor, um elo essencial. Premissa maior e premissa menor, ambas são pressupostos da conclusão. Porém apenas a premissa maior, que é uma proposição de dever ser, é conditio per quam relativamente à conclusão, que também é uma proposição de dever ser. Quer dizer, a norma afirmada na premissa maior é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. A proposição de ser que funciona como premissa menor é apenas conditio sine qua non relativamente à conclusão. Quer dizer: o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor não é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão.(Kelsen, 2000a: 216)

Enfim, o fundamento de validade de uma norma é uma outra norma. Esta outra norma é chamada por Kelsen de norma superior com relação à norma que ela fundamenta. Ambas não podem contradizer-se ou a norma inferior não é considerada válida e, portanto, não é uma norma, pois carece do significado específico da norma, qual seja, o de que deve ser observada. Ambas fazem parte de uma mesma ordem normativa, dado que uma ordem normativa é um conjunto internamente coerente de normas que fazem referência a uma mesma norma fundamental.

Passemos a considerar a questão da validade de uma ordem normativa, onde veremos a questão da norma fundamental, em torno da qual gira o pensamento kelseniano.

3.6.2.2.O fundamento de validade da ordem normativa: a norma fundamental fictícia

Como apresentado anteriormente, a validade de uma determinada norma apenas pode ser deduzida de uma outra norma. Isto porque uma norma apenas pode figurar como conclusão em uma estrutura argumentativa que tenha pelo menos uma norma como premissa. Ora, se uma norma apenas pode ter uma outra norma por fundamento de validade, percebe-se claramente que teremos uma regressão ao infinito, já que a norma que fundamenta também apenas pode ter uma norma por fundamento. Entretanto, na perspectiva kelseniana, normas são apenas normas positivas, e positivas significa artificiais, ou seja, feitas por atos humanos (ainda que não subjetivamente voltados para a construção de normas, como as normas surgidas pelo costume).

Não é possível, para o autor, admitir o regresso ao infinito em função de que os atos humanos que põe normas não são infinitos, donde tem de haver um limite para a fundamentação. Este limite, por certo, é também uma norma, à qual Kelsen chama de "norma fundamental". A norma fundamental é uma norma pressuposta pelo pensamento jurídico, uma "hipótese" ou mesmo uma ficção da ciência jurídica, formulada para que seja possível admitir como válidas as normas de um determinado ordenamento.

como já notamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, isso que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm). Já para ela tivemos de remeter a outro propósito. (Kelsen, 2000a: 217)

Tem-se, então, no pensamento do autor, que um determinado conjunto de normas é composto por diversas normas escalonadas em função de seu fundamento de validade. As normas inferiores são assim chamadas por serem derivadas de outra norma no ordenamento. Haverá uma norma que não é derivada de nenhuma outra no mesmo ordenamento, mas que, se aceita como válida, confere validade a todas as demais normas deste ordenamento. Kelsen oferece um exemplo bastante claro quanto a isto:

Um exemplo aclarará este ponto. Um pai ordena ao filho que vá à escola. À pergunta do filho: por que devo eu ir à escola, a resposta pode ser: porque o pai assim ordenou e o filho deve obedecer às ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que devo eu obedecer às ordens do pai, a resposta pode ser: porque deus ordenou a obediência aos pais e nós devemos obedecer às ordens de deus. Se o filho pergunta por que devemos obedecer às ordens de deus, quer dizer, se ele põe em questão a validade dessa norma, a resposta é que não podemos sequer pôr em questão tal norma, quer dizer, que não podemos procurar o fundamento da sua validade, que apenas a podemos pressupor. O conteúdo da norma que constitui o ponto de partida: o filho deve ir à escola, não pode ser deduzido dessa norma fundamental. Com efeito, a norma fundamental limita-se a delegar numa autoridade legisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a qual devem ser criadas as normas deste sistema. (Kelsen, 2000a: 219)

A norma fundamental, como fica claro neste exemplo, não é uma norma positiva, mas apenas uma norma pressuposta como válida por quem pretenda considerar um determinado ordenamento como válido. A norma fundamental não decorre da natureza humana ou da natureza do direito, trata-se, simplesmente, de um pressuposto da ciência normativa, uma ficção, como Kelsen admitiu em sua obra póstuma.

Tendo apresentado o conceito de norma fundamental fica mais clara a idéia de que uma ordem normativa é um conjunto de normas que decorrem de uma mesma norma fundamental. Tomemos o exemplo de Kelsen citado anteriormente. Suponhamos que sejam aceitas as afirmações de que deus também ordenou que todas as pessoas se abstivessem de trabalhar em sábados e dias santos, que fizessem oblações e se abstivessem de proferir em vão um nome sagrado. Para quaisquer destas normas, se perguntássemos pela razão de sua obediência, chegaríamos à mesma resposta: porque deus o ordenou e deve-se obedecer às ordens de deus. Ou seja, a norma "deve-se obedecer às ordens de deus" é o fundamento de validade que confere unidade a toda esta estrutura normativa.

3.6.3.Formas de Derivação de Normas

No estudo da Dinâmica Jurídica, ou seja, na terminologia kelseniana, no estudo de uma ordem normativa quanto às formas de derivação, Kelsen identifica dois princípios por meio dos quais normas podem ser derivadas. Estes princípios são denominados "princípio estático" e "princípio dinâmico". Atente-se para não confundir tais princípios com a Estática e Dinâmica jurídicas que são, para o autor, o estudo da ordem jurídica no que respeita a suas normas tais como postas em um determinado momento e o estudo das formas pelas quais, em uma ordem jurídica, pode-se derivar novas normas.

3.6.3.1.Derivação Estática

A derivação de normas segundo o princípio estático seria, para o autor, a derivação de novas normas quando não apenas o fundamento de validade, mas também o próprio conteúdo da nova norma pode ser deduzido da norma superior.

segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer a conduta dos indivíduos por elas determinadas, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: por que a sua validade pode ser reconduzida a uma norma para cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. (Kelsen, 2000a: 217)

Deduzindo-se do geral para o particular a partir de uma norma, obtém-se uma outra norma que fará parte do mesmo ordenamento normativo. Um ordenamento em que predomine a derivação estática é chamado por Kelsen de um ordenamento estático. Exemplificando: tomemos uma norma de etiqueta "deve-se ser agradável aos demais". A partir desta norma podem-se deduzir diversas outras normas, tais como "uma pessoa deve se vestir de forma que não cause desconforto aos demais", "deve-se tratar visitas e hóspedes de forma que não se sintam desconfortáveis ou acanhados", "não se deve ser rude no trato com os demais", etc. Todas estas normas têm seu próprio conteúdo já contido na norma "deve-se ser agradável aos demais".

como todas as normas de um ordenamento deste tipo já estão contidas no conteúdo da norma pressuposta, elas podem ser deduzidas daquela pela via de uma operação lógica, através de uma conclusão do geral para o particular. Esta norma, pressuposta como norma fundamental, fornece não só o fundamento de validade como o conteúdo de validade das normas dela deduzidas através de uma operação lógica. (…) um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio estático. (Kelsen, 2000a: 218)

Assim, o princípio estático de derivação de normas é o princípio segundo o qual podem ser derivadas normas novas a partir de uma norma anterior desde que o conteúdo e o fundamento de validade das normas novas já estejam contidos na norma superior.

3.6.3.2.Derivação Dinâmica

Há uma outra forma de derivação de normas diferente da mera dedução do geral para o particular. A esta forma, Kelsen designa "princípio dinâmico" de derivação de normas. De acordo com o princípio dinâmico apenas o fundamento de validade, mas não o conteúdo da norma derivada está contido na norma superior. Tem-se, tão somente, na norma superior, a delegação de autoridade ao órgão competente para estabelecer a norma inferior.

Tomemos um exemplo: a Constituição da República Federativa do Brasil, a partir do artigo 59, confere ao Congresso Nacional a competência legislativa. O processo legislativo é ali determinado, para leis ordinárias, como devendo ocorrer da seguinte forma (simplificada): Um órgão que detenha iniciativa legislativa apresenta um projeto de lei (qualquer parlamentar tem iniciativa legislativa para leis ordinárias). O projeto deve ser aprovado, com o mesmo texto, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, por maioria simples dos votos, estando presente a maioria absoluta dos parlamentares da casa. O projeto aprovado deve ser encaminhado para sanção e promulgação do Presidente da República que, no entanto, pode vetá-lo total ou parcialmente. A lei assim aprovada, sancionada e publicada reputa-se válida.

A mesma constituição, entretanto, estabelece diversos outros preceitos com os quais as leis deverão estar conformes, tais como os contidos em seus artigos 5º, 6º e 7º que contém os chamados "direitos fundamentais" e "sociais". Desta forma, uma norma aprovada segundo o procedimento acima referido, desde que não contrarie outras normas da Constituição, é reputada válida.

Assim, uma determinada lei (10406/2002), o Código Civil brasileiro, estabelece que:

"Art. 1.283. Os frutos caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular".

O conteúdo desta norma não pode ser, de forma alguma deduzido de qualquer norma constitucional. Tal norma apenas é considerada válida porque foi aprovada segundo o procedimento especificado na Constituição.

Uma ordem normativa em que predomine o princípio dinâmico de derivação sobre o estático é chamada por Kelsen de uma ordem dinâmica. A ordem jurídica, ou seja, o direito, é uma ordem dinâmica.

Cabe considerar, porém, que quase todas as normas podem dar ensejo a uma derivação estática, de modo que não pode haver qualquer ordem normativa que seja exclusivamente dinâmica. Assim, a partir do artigo 1283 do Código Civil acima citado é possível deduzir, como do geral para o particular, diversas outras normas, por exemplo: "os abacates caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular", ou ainda "as laranjas que caírem da laranjeira do João no terreno do Francisco, seu vizinho, pertencerão a este último".

Isto não impede, porém, que as ordens sociais sejam classificadas, como o faz Kelsen, em dinâmicas ou estáticas. Uma ordem estática seria, por exemplo, uma ordem moral, cuja norma fundamental é "amem-se uns aos outros". Não se estabelece aí qualquer autoridade criadora de novas normas, mas podem-se deduzir inúmeras normas a partir daí, tais como "não se odeiem", "tenha afeição para com seu próximo", "não deseje a morte de seus amigos", etc. Uma ordem dinâmica seria, por exemplo, uma derivada da norma fundamental "deve-se obedecer aos comandos do papa". Tem-se aí uma autoridade competente para a criação de novas normas cujo conteúdo não está de antemão presente na norma fundamental.

O princípio dinâmico não funciona apenas delegando autoridade a um indivíduo determinado. Também pode estabelecer que qualquer norma que surja de uma forma determinada, por um certo procedimento, é uma norma válida. Assim, uma ordem costumeira é ainda uma ordem dinâmica. Os preceitos "deve-se comportar como os nossos antepassados se comportaram" ou "deve-se comportar como usualmente se comporta" conferem ao comportamento dos antepassados e ao comportamento usual uma competência criadora de normas. O conteúdo das normas inferiores não pode ser deduzido da norma superior.

Assim, o princípio dinâmico de derivação de normas pode ser descrito como aquele que confere validade a um determinado conteúdo de sentido (uma norma) produzido conforme um determinado procedimento. Este procedimento pode ser a mera manifestação de vontade de um ditador, ou o processo legislativo de uma democracia contemporânea.

3.6.4.A norma fundamental como limite superior da ordem social

Como vimos, a norma fundamental é, para Kelsen uma norma que não tem qualquer fundamento de validade. Uma norma apenas pode ser fundamentada por outra norma. Isto leva a um regresso ao infinito. Entretanto, normas são postas por atos de seres humanos, donde não cabe imaginar um regresso ao infinito. Qualquer norma que não tenha qualquer fundamento de validade mas que, por um motivo ou outro, se pretenda tomar por válida (ficção jurídica, hipótese fundamental) é chamada de norma fundamental.

Uma ordem normativa é o conjunto das normas que derivam direta ou indiretamente, quanto ao fundamento de validade, de uma norma fundamental. Normas que não podem ter sua validade reconduzida a uma mesma norma fundamental não pertencem à mesma ordem normativa.

Duas normas que não pertencem à mesma ordem normativa não têm qualquer relação entre si. Tais normas não podem se contradizer, não se derrogam nem se alteram mutuamente. Assim, a norma da alínea "a" do inciso XLVII do artigo 5º da Constituição Federal que autoriza a pena de morte no caso de guerra declarada pelo Presidente da República, autorizado pelo Congresso Nacional, não é incompatível com a norma dos dez mandamentos "não matarás". A primeira afirma "dadas determinadas condições, dentre as quais a declaração de guerra e o cometimento de um dado crime, deve-se aplicar a pena de morte, de acordo com o direito brasileiro". A segunda afirma, "em qualquer situação, não se deve matar, segundo os preceitos de deus".

Ora, "deve-se matar, segundo o direito" e "não se deve matar, segundo deus" não são sentenças contraditórias. Pode-se aceitar ambas simultaneamente: segundo o direito, em tal situação se deve matar e segundo deus em situação nenhuma se deve matar". As ordens normativas são independentes umas das outras. Isto significa que as normas de uma não se contradizem com as normas da outra.

Para Kelsen não se podem tomar como válidas simultaneamente duas ordens normativas. Se aceito a validade de uma ordem normativa, uma outra ordem apenas pode ser considerada válida se derivar sua validade da ordem que aceitei como válida. Neste caso teríamos uma ordem subordinada a outra. Assim, se aceito a validade da norma fundamental do ordenamento jurídico "deve-se obedecer à constituição", não posso aceitar a validade de uma certa ordem moral, salvo se tomá-la como uma ordem subordinada à ordem jurídica. Assim, ter-se-ia que a própria ordem moral é parte da ordem jurídica, já que deve ser obedecida apenas naquilo em que não contrariar a ordem jurídica.

Uma norma moral que afirmasse "não matarás", seria lida por quem aceite a validade da ordem jurídica, como "não matarás a não ser que o direito determine que se deve matar". "Não se deve mentir, salvo quando direito determinar o contrário", etc.

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Sobre o autor
Nelson do Vale Oliveira

sociólogo, mestrando em sociologia pela Universidade de Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nelson Vale. Uma teoria pura da sociedade:: os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1110, 16 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8626. Acesso em: 23 dez. 2024.

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