IV-A Sociologia do Direito
Para que possamos nos debruçar sobre as críticas que Hans Kelsen dirige à sociologia do direito é importante que, antes, apresentemos o pensamento de alguns sociólogos do direito. A sociologia do direito, ou melhor, a sociologia como um todo, não constitui um corpo de pensamento unívoco e coeso. Há diversas teorias e diversas interpretações. É imperioso que identifiquemos alguns autores que lidam com a sociologia do direito a fim de que possamos apontar mais precisamente quais teses Kelsen critica e com base em que.
Serão trabalhados aqui quatro sociólogos do direito. Eugen Ehrlich é por vezes considerado um dos fundadores da sociologia do direito e sua obra "Fundamentos da Sociologia do Direito" é tida como uma referência essencial para quem se interessa por este campo da sociologia. Ademais, Ehrlich é contemporâneo de Kelsen e recebe deste autor críticas diretas, incluindo um artigo bastante extenso dedicado exclusivamente a criticar a obra mencionada, "Una Fundamentación de la Sociología del Derecho".
Em seguida trata-se da obra de Durkheim. Este autor dava muita importância para a compreensão do direito. Era por meio do direito que se poderia identificar as formas de solidariedade, ou de vínculo social de uma dada sociedade, era o direito um meio bastante confiável de aferição da consciência coletiva concentrada. O principal mérito de Durkheim, pode-se dizer, é a clareza. Ele torna explícitas suas concepções acerca do direito e da sociedade, o que permite que sejam identificadas facilmente diversas teses que Kelsen pretende refutar.
Nicklas Luhmann foi selecionado para figurar neste trabalho por tratar-se de um autor que está escrevendo contemporaneamente. Trata-se de um importante sociólogo que dedicou uma importante obra à sociologia do direito. Sua teoria, ademais, apresenta uma concepção sistêmica do direito que diverge das concepções tradicionais, em especial por apresentar o direito como respondendo a uma necessidade sistêmica por limitação das contingências e por buscar explicitamente transpor a dicotomia entre "ser" e "dever-ser", tão importante na obra kelseniana.
Toma-se, por fim, a obra de Max Weber, que Kelsen considera a tentativa mais bem sucedida até o momento para construir uma sociologia do direito. É em especial com a teoria weberiana que estamos preocupados aqui. As críticas que Kelsen dirige às demais sociologias do direito são muito mais contundentes, entretanto, a sutileza da censura dirigida à Weber não deve nos levar a menosprezá-la. As críticas às concepções sociológicas mais próximas ao holismo metodológico são fortes, mas já bem conhecidas. Entretanto, as críticas dirigidas à sociologia weberiana apontam no sentido da impossibilidade desta sociologia construir conceitos que correspondam a "corpos coletivos" como Estado, Igreja, Família, Religião, Catolicismo, etc. Por mais insignificante que pareça uma tal crítica, ela alveja severamente a concepção sociológica weberiana, já que a sociologia não pode deixar de ambicionar descrever "instituições" e "corpos coletivos" em geral. Abandonar tal pretensão é, de uma certa forma, abandonar a sociologia. Se a sociologia compreensiva não for, como sugere Kelsen, capaz de apresentar definições que correspondam a tais objetos, de classificá-los e de formular explicações ou modelos descritivos para eles, tomando tais conceitos do senso comum ou de outras construções cognitivas, em nada se diferiria da História.
Novamente, para bem apreciarmos as críticas kelsenianas, urge que apreciemos previamente aquelas obras que ele pretende criticar.
4.1.Eugen Ehrlich
Eugen Ehrlich, jurista austríaco (1862-V 1922), é normalmente considerado, juntamente com vários outros, um dos fundadores da sociologia do direito. Sua obra Fundamentos de Sociologia do Direito é uma referência obrigatória para aqueles que se dedicam à sociologia do direito. Segue-se, agora, uma breve exposição do pensamento deste autor.
4.1.1.Conceito prático x conceito teórico de direito
Para Ehrlich um dos grandes problemas do pensamento jurídico contemporâneo reside em sua destinação prática. Estuda-se o direito não apenas para conhecê-lo, mas para aplicá-lo, utilizá-lo, de uma ou outra forma. Toda pesquisa da jurisprudência tradicional gira em torno da resolução de problemas imediatos. Em função disto, a jurisprudência não se erige em uma verdadeira ciência.
A ciência é, para o autor, desvinculada da prática. A química não é apenas a farmácia. As pesquisas do químico não se dirigem exclusivamente para obtenção de novos medicamentos ou de novos produtos, mas para o conhecimento dos elementos químicos, de suas reações e propriedades. Já a jurisprudência, Ehrlich a vê apenas dirigir seu olhar para questões práticas, objetivos imediatos que diferem do conhecimento. Em função disto a jurisprudência não tem, sequer, um conceito científico de direito.
Assim, a jurisprudência, na realidade, não conhece um conceito científico de direito. Da mesma forma como o técnico em construção de estruturas metálicas não está pensando na substância química pura que o químico ou mineralogista designa por metal, mas no material cheio de impurezas empregado em suas construções, assim o jurista, quando fala em direito, não está pensando naquilo que em sociedades humanas age na forma do direito, mas – com exceção de alguns campos do direito público – somente naquilo que entra em jogo na hora da aplicação da justiça. (Ehrlich, 1986: 14)
Uma verdadeira ciência do direito não pode, para Ehrlich, surgir desta forma. A ciência do direito não tem como preocupação primordial encontrar uma forma mais adequada de aplicação da justiça, mas o conhecimento do funcionamento efetivo do direito. Não se trata de conhecer o que se deve fazer em um caso concreto, mas de conhecer o que o direito de fato é. É necessário, para tanto, que se distingam a jurisprudência prática, de um lado, e a ciência teórica do direito, de outro.
Na jurisprudência, no entanto, a separação entre ciência do direito, de um lado, e ensino do direito prático, de outro, está se processando somente agora e para a maioria dos que trabalham neste campo, ainda ocorre de maneira inconsciente. Esta separação, porém, é fundamental para uma ciência autônoma do direito; esta não tem por objetivo servir a fins práticos, mas ao conhecimento puro; ela não trata de palavras, mas de fatos. (Ehrlich, 1986: 9)
A jurisprudência não constitui, portanto, uma ciência do direito, mas apenas uma doutrina prática. A ciência do direito está por nascer, ou está nascendo já, mas não tem o mesmo caráter da jurisprudência. De fato, para Ehrlich, o grande dilema do pensamento jurídico é que a jurisprudência tem tentado fazer os dois papéis simultaneamente.
O dilema da jurisprudência consiste no seguinte: apesarde ser somente uma doutrina prática do direito, continua sendo ao mesmo tempo a única ciência do direito. E isso significa que aquilo que ela ensina a respeito de direito e de condições jurídicas, não vai além do que a doutrina prática do direito pode fornecer em termos de orientação, objeto e método. (Ehrlich, 1986: 11)
Esta situação é perniciosa, na opinião do autor. A jurisprudência não tem os objetivos próprios de uma ciência, não tem seus métodos e nem tampouco toma por objeto todo o direito. Seu objetivo é prático, seu método é voltado para a solução de um caso litigioso e seu objeto são apenas aquelas relações jurídicas que, por uma ou outra razão, desembocam nos tribunais.
Importante ressaltar aqui que, novamente, o termo jurisprudência é empregado no sentido de "estudo do direito", e não de decisões recorrentes de tribunais ou outro sentido diverso. Em Ehrlich a Jurisprudência, enquanto estudo do direito, é voltada para a prática dos tribunais. Trata-se de um estudo e de um ensino voltados para a prática de juízes e advogados. Seu drama consiste em que apesar de ser apenas uma aplicação de conhecimento, é também, ainda, em larga medida, a única forma de construção do conhecimento acerca do direito.
A ciência do direito, como toda ciência, se debruça sobre fatos. Ela busca relacionar tais fatos por meio do método indutivo e não a partir apenas de deduções, como sói ser a prática da jurisprudência. Não se trata de apontar para aquilo que é justo, ou para o que deveria ser o comportamento das pessoas, mas antes de encontrar como de fato se dá o comportamento jurídico dos indivíduos.
Esta ciência teórica do direito é uma ciência social, mais precisamente, é a sociologia do direito.
Como o direito é um fenômeno social, qualquer tipo de jurisprudência pertence ao âmbito das ciências sociais, mas a ciência do direito propriamente dita é parte integrante da ciência social teórica, isto é, da sociologia. A sociologia do direito é a doutrina científica do direito. (Ehrlich, 1986: 26)
Temos, portanto, que para Ehrlich a ciência do direito digna deste nome é a sociologia do direito. Não se nega o valor da jurisprudência enquanto estudo do direito voltado para a prática, mas esta é uma técnica, não uma ciência pura. Não se trata de rejeitar qualquer jurisprudência, mas abrir o caminho para uma ciência empírica e indutiva do direito.
Temos aí exposta a tese segundo a qual a sociologia do direito é a única ciência do direito. A jurisprudência é uma arte, uma técnica, não uma ciência. A ciência do direito é, tal como as demais ciências, indutiva e empírica. Não se trata de afirmar o que deveria acontecer, mas o que de fato acontece na vida jurídica.
4.1.2.Direito como Associação
Ehrlich rejeita as inúmeras definições do direito que o vinculam essencialmente a uma forma coercitiva, ao Estado ou aos tribunais. Estes elementos são destacados pela jurisprudência em função das distorções que sua visão implica por estar dirigida essencialmente para a prática. Ao jurista que apenas se ocupa de casos litigiosos não é possível distinguir o direito dos tribunais. Àquele que busca o direito nos decretos e leis do estado, não é possível distinguir o Estado e o Direito. Àquele que determina a punição, como separar o direito e a coerção?
Entretanto, segundo Ehrlich, o direito vige, durante a maior parte do tempo e na maioria dos casos, sem que tribunais sejam chamados a dar sua opinião. As relações jurídicas em sua maioria não demandam a aplicação ou a ameaça de qualquer uso coercitivo da força. Inúmeros preceitos jurídicos nascem sem o concurso do Estado. Estas não são, para o autor, características essenciais do direito, mas apenas aspectos importantes para aqueles que lidam com a prática dos tribunais.
Não é inerente ao conceito de direito que ele se origine no Estado, nem que forneça a base para as decisões dos tribunais ou outras instâncias ou ainda fundamente a coação jurídica subseqüente. Há, porém, ainda uma quarta característica do conceito e parece que é desta que se deve partir: o direito é uma ordem. (Ehrlich, 1986: 25)
A característica primordial do direito é que ele é uma ordem, uma organização. Com isto, Ehrlich entende que o direito determina o lugar de cada membro dentro de uma dada comunidade, distribuindo atribuições e responsabilidades.
Com base nos resultados de suas pesquisas [de Gierke] pode-se considerar, como definitivo que em todo o âmbito abrangido pelo conceito de associação o direito é uma organização, isto é, uma regra que indica a cada membro desta organização sua posição, sua super ou subordinação na comunidade e suas tarefas; é totalmente inconcebível que a função do direito nestas comunidades seja, em primeiro lugar, a de decidir sobre disputas surgidas nas relações comunitárias. A norma jurídica, de acordo com a qual se decidem disputas jurídicas, isto é, a norma de decisão, é apenas uma variação da norma jurídica com tarefas e objetivos restritos. (Ehrlich, 1986: 25)
O direito é uma regra organizadora. É direito a organização das associações humanas.
Assim como encontramos a comunidade organizada, onde quer que sigamos seus passos, mesmo além dos limites estipulados por Gierke, assim vemos também que em todos os lugares o direito é o ordenador e o suporte de qualquer associação humana. (Ehrlich, 1986: 25)
O direito é, então, uma organização. E uma organização é definida por Ehrlich como uma regra da associação que indica a posição de cada elemento da associação.
Organização significa aquela regra da associação que indica aos componentes sua posição (de subordinação ou super-ordenação) e suas tarefas. Esta regra pode determinar não só a relação de uma pessoa com outra, mas também a relação de uma pessoa com coisas; de maneira indireta, também neste último caso, determina uma relação de pessoa a pessoa. (Ehrlich, 1986: 38)
A organização, entretanto, não é uma regra no sentido que os juristas normalmente atribuem a este termo. Para Ehrlich, uma organização social é uma regra apenas na medida em que tal regra é observada. De fato, segundo ele:
Uma associação ou organização social é um conjunto de pessoas que em seu relacionamento mútuo reconhecem algumas regras como determinantes para seu agir e em geral, de fato, agem de acordo com elas. (Ehrlich, 1986: 37)
Fica claro, portanto, que o conhecimento destas regras, da organização que constitui o direito, não pode advir senão de um estudo empírico-indutivo, que revele não aqueles preceitos que estão escritos em tal ou qual lugar, mas sim o modo como se dá efetivamente o comportamento dos indivíduos em uma dada associação.
Entretanto, não só o direito é uma organização. Este é um traço comum de toda a sociedade. A Sociedade é, para Ehrlich, "o conjunto das organizações ou associações humanas inter-relacionadas" (Ehrlich, 1986:27). Diversas organizações, tais como o estado comunidades religiosas, igrejas, corporações, classes, estamentos e famílias, "todo este mundo de anéis e círculos intercruzados forma em seu conjunto uma sociedade na medida em que se constata uma interação entre eles" (idem).
O traço essencial do direito é, portanto, o de tratar-se de uma ordem, uma organização. Ele ordena as associações humanas. Este traço é bastante enfatizado pelo autor.
É direito a ordem interna das associações humanas:
Toda a ordem jurídica em seus primórdios consiste, portanto, na ordem interna das associações humanas, entre as quais também está o Estado. Cada associação cria esta ordem autonomamente, mesmo que, com freqüência, imite uma ordem já existente em outras associações ou assuma e desenvolva a ordem que já existia na associação da qual se desmembrou. (Ehrlich, 1986: 32)
Quando ainda não está presente a legislação, o direito coincide completamente com a ordem interna das associações humanas:
Entre os povos primitivos o direito coincide totalmente com a ordem interna de suas associações; prescrições jurídicas são totalmente desconhecidas entre povos que ainda se encontravam num estágio de desenvolvimento inferior; somente em níveis de desenvolvimento um pouco mais elevados começam a aparecer sob a forma de mandamentos religiosos. (Ehrlich, 1986: 35)
Mesmo após o advento da legislação estatal e da centralização da produção legislativa, a ordem interna das associações permanece sendo a forma fundamental do direito:
A ordem interna das associações humanas não só é a primeira forma do direito, mas é, até hoje, a fundamental. A prescrição jurídica não só aparece bem mais tarde, como continua sendo derivada da ordem interna das associações. Para explicar as origens, o desenvolvimento e a essência do direito, deve-se pesquisar sobretudo a ordem das associações. Todas as tentativas realizadas até aqui para aclarar questões referentes ao direito fracassaram por não terem partido da ordem interna das associações, mas de prescrições jurídicas. (Ehrlich, 1986:36)
Por fim, o direito é uma ordem das associações humanas, mas não a única.
O direito, portanto, é a ordem da vida estatal, social, espiritual e econômica, mas não é sua ordem exclusiva; além do direito há outras ordens de importância equivalente e possivelmente mais eficientes. (Ehrlich, 1986: 51)
O direito se torna uma espécie de super-ordem. É a ordem das ordens no sentido de que regula todas as áreas da vida humana, mas convive com diversas ordens parciais, que regulam cada área especificamente. O direito trata da vida espiritual, mas também o faz a religião; o direito trata das relações sexuais e afetivas, mas também o faz a família, etc.
Temos aqui a tese segundo a qual o direito é associação. Ele não pode ser distinguido em função da coerção ou da vinculação com o Estado, definido como aparato coercitivo ou como "organização militar". As associações humanas fornecem a organização que, em larga medida, compõe o direito. Para ilustrar esta tese podemos tomar a frase de Ehrlich "A ordem interna das associações humanas não só é a primeira forma do direito, mas é, até hoje, a fundamental" que admite ainda a participação da legislação na composição do direito, ainda que de forma secundária.
4.1.3.Normas de Decisão x Normas do Agir
Talvez o ponto mais importante do pensamento ehrlichiano seja a distinção entre as normas de decisão e as normas do agir. Esta distinção fundamenta sua censura à jurisprudência tradicional, que se debruça tão-somente sobre as normas de decisão e, em função disto, se torna incapaz de compreender o direito em sua realidade.
Para Ehrlich a jurisprudência equivoca-se quando identifica o direito com as regras que os juízes utilizam para decidir casos controversos. Isto porque a regra do agir humano se distingue da regra de decisão utilizada pelos tribunais.
Do ponto de vista do juiz o direito é uma regra de acordo com a qual ele deve decidir as controvérsias jurídicas que lhe são apresentadas. Conforme a conceituação dominante, sobretudo na ciência alemã, o direito seria uma regra do agir humano. A regra do agir humano e a regra de acordo com a qual o juiz decide controvérsias jurídicas podem, no entanto, ser coisas muito diversas, pois com certeza os homens nem sempre agem segundo as regras que são aplicadas nas decisões referentes às suas querelas. (Ehrlich, 1986: 14)
Tem-se portanto, que há duas espécies de normas que precisam ser distinguidas. De um lado há aquelas "regras do agir humano" e de outro as "regras de decisão". Aquelas são as regras que vigem na vida cotidiana e no interior das associações humanas. Estas outras são as regras com base nas quais os tribunais decidem os casos litigiosos. Para Ehrlich as regras de decisão apenas têm ocasião de serem aplicadas quando as regras do agir falham. Apenas quando as regras do convívio familiar desmoronam pode o jurista decidir sobre o destino dos filhos e bens do casal.
Como as regras de decisão apenas podem ser aplicadas nos casos em que as regras do agir falham, são desrespeitadas ou são ignoradas, desdobra-se que tais regras de decisão devem ser distintas das regras do agir. Não seria possível ao juiz decidir sempre justamente com base nas mesmas regras que acabaram de se mostrar ineficazes ou danosas. Quando um determinado caso chega a ser apresentado perante o juiz, tal se dá porque as regras do agir ordinário em sociedade já foram desrespeitadas e não puderam se impor.
Daí que a sociologia do direito, na medida em que pretende conhecer e explicar o direito vivo, ou seja, o direito tal como de fato se processa na realidade empírica, tenha como tarefa primordial, na visão de Ehrlich, estabelecer uma distinção entre as normas que os juízes usam para decidir e as normas que são efetivamente observadas.
A primeira e mais importante tarefa da sociologia do direito é, portanto, estabelecer uma distinção entre as componentes do direito que regulam, ordenam e determinam a sociedade, demonstrando a sua natureza organizatória, e aquelas que são puras normas de decisão. (Ehrlich, 1986: 39)
Normas de decisão são aquelas normas que são utilizadas como base para a derivação de normas para determinados casos concretos litigiosos. São as normas nas quais os juízes se ancoram para decidir uma determinada questão pontual.
De acordo com a concepção da função de juiz desenvolvida no continente europeu no século XVI e ainda hoje dominante, este deve, num caso jurídico específico, tomar uma decisão a partir dos enunciados gerais estabelecidos. O ensino jurídico prático teria como tarefa fornecer ao juiz normas cujos enunciados fossem suficientemente amplos para que deles possa ser derivado um grande número de decisões; elas deveriam mostrar ao juiz como se aplicam enunciados gerais a casos concretos; por isso o ensino deveria ser abstrato e dedutivo. (Ehrlich, 1986: 14)
A orientação prática dos estudos jurídicos leva à procura de "normas de decisão" ao invés de "normas do agir". A jurisprudência quando se debruça sobre seu objeto de estudo não tem por objetivo descobrir como se dá a vida jurídica, mas apenas encontrar fórmulas a partir das quais seja possível derivar normas que colaborem na resolução de um determinado litígio. A jurisprudência não tem como preocupação primordial o conhecimento do direito, não se debruça sobre a realidade. Sua preocupação é a construção de uma técnica que possibilite intervenções práticas.
Esta, entretanto, não é para Ehrlich a única orientação possível aos estudos sobre o direito. De fato, também é possível uma orientação científica, que se debruce sobre a realidade ao invés de sobre as necessidades imediatas de determinados indivíduos. Uma orientação científica não se debruça apenas sobre aquilo que é apresentado perante os tribunais, mas procura encontrar o direito tal como vivido no cotidiano, o direito tal como efetivamente se processa no comportamento real dos seres humanos.
Para aquele, porém, que vê no direito sobretudo uma regra do agir, tanto o caráter coativo, visando a punição, quanto o que visa a execução, passam para segundo plano. Para ele a vida humana não se desenvolve diante dos tribunais. A própria intuição lhe ensina que cada pessoa se encontra numa infinidade de relações jurídicas e que, com muito poucas exceções, ela faz aquilo estas relações lhe determinam. (Ehrlich, 1986: 22)
O direito vivido não é o direito dos tribunais, mas o direito das relações jurídicas do dia-a-dia. As pessoas se encontram, tal como expresso pelo autor, em diversas relações jurídicas em seu cotidiano. Contratos de compra e venda, locação, relações matrimoniais, obrigações tributárias, tudo isto é parte do cotidiano das pessoas e não apenas do cotidiano dos tribunais. As relações matrimoniais não se processam diante dos juízes. Quando o fazem isto se dá por algum fator alheio, que distorce o desenrolar ordinário desta relação. A esmagadora maioria dos contratos de compra e venda jamais são contemplados por qualquer juiz e, ainda mais, jamais chegam sequer a ganhar expressão escrita.
Os juízes podem imaginar que sua orientação voltada para a prática dos tribunais ainda tem grande relevância, uma vez que, argumentam, as pessoas se comportam de acordo com as regras do agir justamente porque existe a possibilidade de coação pelas decisões de tribunais. Segundo Ehrlich esta é uma idéia errônea.
Mas se ele [o jurista] se desse ao trabalho de observar as pessoas em seu agir no dia-a-dia, facilmente se convenceria de que estas pessoas nem pensam numa coação que lhes possa ser imposta por tribunais. Via de regra agem como que por instinto e, quando este não é o caso, suas justificativas são bem outras... (Ehrlich, 1986: 26)
A jurisprudência tem demonstrado uma tendência a valorizar unilateralmente as relações jurídicas apresentadas diante de tribunais. Ao fazê-lo, deixa de lado, segundo o autor, o direito vivo, o direito que de fato se pode observar, em prol de um direito prático, um direito elaborado para dar soluções a casos controversos ou difíceis.
Na visão de Ehrlich, o direito vivo é, por fim, muito distinto do direito de que se valem os tribunais. O direito vivo não tem como caráter específico a coerção. As regras do agir são observadas sem que se haja qualquer preocupação com a possibilidade de aplicação coercitiva de qualquer sanção. "A concepção do direito como ordem coercitiva, portanto, repousa no fato de que estas partes constitutivas do direito, cuja força emana do Estado, recebem um destaque unilateral" (Ehrlich, 1986: 63). É porque o jurista está preocupado em aplicar normas de decisão, em especial normas de decisão emanadas do aparato do Estado, que é, segundo Ehrlich, originalmente uma organização militar, que a coerção ganha destaque decisivo. Não tivesse o jurista uma visão assim enviesada, perceberia claramente que o caráter marcante do direito vivo é o fato de decorrem sempre de uma associação e de ser válido apenas nos limites da mesma. A característica mais marcante do direito é, para este autor, seu caráter associativo.
Esta conclusão de Ehrlich é muito interessante pois se diferencia das concepções dominantes hoje tanto entre juristas como entre sociólogos, apesar do que não é muito rara entre sociólogos do direito. Outros sociólogos do direito, como Nicklas Luhmann, não fazem sua definição do fenômeno jurídico depender em grande medida da coerção. De outro lado, autores como Kelsen e Weber, que interessam sobremaneira neste trabalho, apontam para a coercitividade como o único fator que distingue o direito de outras ordens sociais. Para Ehrlich não só este fator não é essencial como tal concepção é fruto de um erro cuja origem é identificável. Ele decorre da preocupação prática que leva à ênfase em normas de decisão estatais.
4.1.4.A formação dos preceitos jurídicos
Para Ehrlich, "dentre todos os fatos do direito, o único original é o hábito" (Ehrlich, 1986: 93). O contrato e a posse surgem apenas muito posteriormente na história do direito, mas é o hábito, as práticas usuais e reconhecidas, que compõem originariamente as regras do agir. É a partir do hábito que surgem as normas do agir humano.
O autor afirma que como o direito e as relações jurídicas são coisas mentais, que não existem senão nas mentes dos indivíduos humanos, encontrar as origens destes fatos mentais passa por encontrar quais processos reais lhes dão origem:
Direito e relações jurídicas são uma coisa mental que não existe na realidade palpável e perceptível pelos sentidos, mas somente na cabeça das pessoas. Não haveria direito se não existissem pessoas que fossem portadoras da concepção de direito. Mas, como em toda parte, também aqui as concepções são moldadas a partir de matéria que tomamos da realidade palpável e perceptível. Na base das concepções sempre estão fatos observáveis. Estes fatos devem ter existido antes que no cérebro humano se formasse qualquer idéia de direito ou de relação jurídica. E mesmo no presente precisamos ter diante de nós determinados fatos, para podermos falar de direito e de relações jurídicas. É aqui, portanto, que devemos procurar a oficina do direito. A questão fundamental da ciência jurídica, a questão referente à origem do direito, transforma-se deste modo na seguinte pergunta: quais instituições reais que no decorrer do desenvolvimento histórico se transformam em relações jurídicas e quais os processos sociais que conduzem a isto? (Ehrlich, 1986: 70)
Eis aí a pergunta acerca da origem do direito. Como, de fato, surge o direito? Esta pergunta é encarada por Ehrlich de uma forma estritamente sociológica. O direito, enquanto algo mental, enquanto um determinado conjunto de idéias humanas, deve surgir a partir de relações humanas concretas. Identificar os processos que levam à transformação de determinadas instituições reais em relações jurídicas seria uma tarefa da sociologia do direito.
Tais "instituições reais" que o sociólogo deve encontrar devem ser mais diretamente ligadas a alguma espécie de comportamento bruto, no sentido de que ainda não dotado de uma reflexão, do que as relações jurídicas. O hábito é, para Ehrlich, como salientado anteriormente, uma espécie de matéria prima a partir da qual podem surgir instituições.
O hábito, segundo a expressão de Jellinek, apresenta sua eficiência através da "força normativa do fato dado". Sua força ordenadora e reguladora dentro da associação repousa no fato de expressar o equilíbrio das forças na associação. (Erlich, 1986: 71)
É o hábito que sustentaria uma das associações mais básicas de uma sociedade, a família:
A única associação cuja ordem até hoje depende predominantemente do hábito é a comunidade familiar, não só como comunidade moral e social, mas também econômica. Ela é uma comunidade de produção e consumo entre o campesinato, uma comunidade só de consumo na classe burguesa urbana e uma comunidade exclusivamente de convivência entre uma parte do proletariado. (Ehrlich, 1986: 72)
Entretanto, o hábito não é a única relação real que sustenta as associações humanas. Não é exclusivamente a partir do hábito que se formam todas as relações jurídicas. É possível, para o autor, identificar outros "fatos do direito", relações que dão sustentação real a associações jurídicas, na dominação, na posse e na disposição.
Toda a ordem econômica e social da humanidade é mantida por meio destes poucos fatos: hábito, dominação, posse, disposição (fundamentalmente, o contrato e a declaração de última vontade). São estes fatos que através de sua simples existência determinam às associações humanas de que se compõe a sociedade as regras do agir e estas naturalmente não se constituem unicamente das normas jurídicas. (Ehrlich, 1986:93)
Posse, dominação e disposição são fatos que constituem outras associações humanas mais complexas, distintas da comunidade familiar. Ehrlich afirma que a posse e o contrato apenas surgem como fatos do direito em associações "mais evoluídas, compostas de diversas associações simples, e simplesmente inexistem onde ainda não há associações compostas" (Ehrlich, 1986: 93). Por outro lado, a dominação pode ser reduzida à posse, já que originalmente, pode-se, segundo Ehrlich, conjecturar, a dominação consistia na posse jurídica do dominado.
É pertinente apresentar um exemplo da redução que Ehrlich faz do direito ao "fato do direito". O seguinte exemplo trata da redução do direito hereditário e do modo como se pode reduzi-lo ao fato do direito. Nesse caso, a posse:
A reconstituição da pré-história do direito hereditário deve partir da comunidade doméstica. O direito hereditário tem suas raízes na casa. E aqui duas questões se colocam: a quem pertence o espólio de um morto que vivia numa comunidade doméstica, e a quem ele pertenceria caso o morto vivesse sozinho, eventualmente acompanhado só de escravos ou empregados? Este último caso parece ter sido raro na sociedade primitiva, torna-se, porém, cada vez mais freqüente à medida que se desenvolve um sistema estatal que também possibilita a existência individual. Compreende-se facilmente que a propriedade do morto, na medida em que não era sepultada com ele, ficava para os familiares que tinham vivido e trabalhado com ele. Este costume, no entanto, só se refere aos objetos móveis, pois esta prática já existe entre caçadores e criadores, sendo assim mais antiga que a propriedade fundiária. Os membros da comunidade doméstica não precisam tomar posse dos bens deixados pelo morto, pois já os possuem na hora de sua morte e são capazes de repelir qualquer investida de parte de terceiros, com os mesmos meios já utilizados enquanto ele vivia. Os membros da comunidade familiar mantêm os bens e continuam a trabalhar como até agora: não mudou muita coisa, apenas há uma pessoa a menos na casa. O fato do direito é, portanto, a posse. O direito hereditário primitivo não ia além desta permanência dos bens com os integrantes remanescentes da comunidade doméstica. (Ehrlich, 1986: 90)
Neste exemplo Ehrlich tenta reduzir o direito hereditário, ou mais precisamente, a norma segundo a qual os bens de uma pessoa falecida, não havendo disposição em contrário, se tornam, por ocasião do falecimento, bens de seus descendentes ou familiares, a um "fato do direito", qual seja, a posse. Como os familiares continuavam na posse dos bens após a morte, estabeleceu-se uma regra do agir, que posteriormente pôde ser usada como regra de decisão em casos controversos.
Enfim, toda expressão ideal de uma relação jurídica corresponde a um "fato do direito", sendo que dentre todos os fatos do direito, o mais fundamental é o hábito, e a comunidade que se estabelece primordialmente sobre o hábito é a comunidade familiar. Os fatos do direito dão origem a regras do agir, que
constituem os elementos em que se distribui a infinita multiplicidade de fenômenos de nossa vida jurídica e em parte de todo o mundo normativo. Inicialmente cada pequena associação humana faz seu próprio ordenamento e, quando as associações pequenas se unificam ou são unificadas em associações maiores, esta associação composta deve criar uma nova ordem na relação com suas partes constitutivas, mas ao mesmo tempo deve assumir a ordem que já existia em suas células originárias, deixando-a, grosso modo, como se desenvolvera ali. (Ehrlich, 1986: 94)
Eis como se desenvolvem as instituições e associações. Através da construção de associações mais amplas compostas por associações menores a sociedade se complexifica e, com ela, as normas do agir. Segundo esta concepção o direito vivo, composto por regras do agir e não por regras de decisão, surge das associações humanas. Ele emana da vida dos homens, não da pena dos legisladores.
As normas de decisão, diferentemente das regras do agir, não são diretamente observáveis. São construídas a partir das normas do agir, mas têm um caráter mais estático, já que objetivam atender necessidades diversas daquelas que atendem as regras do agir. Enquanto as regras do agir possibilitam o convívio, as normas de decisão fornecem meios de encontrar uma solução para casos controversos. Demanda-se das normas de decisão uma maior estabilidade. Daí a chamada "lei da constância das normas de decisão":
Esta é a lei da constância das normas de decisão; ela é extremamente importante para a criação do direito. Em princípio ela repousa sobre a psicologia social. Caso houvesse decisões diferentes diante de casos iguais ou semelhantes, não teríamos direito, mas arbitrariedade. Mas ao mesmo tempo a constância das normas de decisão corresponde a uma racionalidade na atividade de pensar. Poupa-se o trabalho intelectual, que sempre é necessário para encontrar normas de decisão, quando se pronuncia uma sentença com base em normas de decisão já encontradas. Além disso há na sociedade uma forte necessidade por normas de decisão fixas, que permitam, ao menos em âmbito restrito, a previsão das decisões, permitindo às pessoas prepararem-se de antemão. (Ehrlich, 1986: 105)
É em função desta lei da constância das normas de decisão que se explica que as normas de decisão sejam geralmente formuladas de uma forma suficientemente maleável para serem adaptadas a casos diferentes daqueles que elas efetivamente prevêem. Também é em função dela que Ehrlich explica que as normas de decisão estejam sempre um tanto atrasadas com relação ao ritmo da vida social, donde surge o conhecido conservadorismo dos juristas. Estes foram treinados a aplicar normas que surgiram em uma situação necessariamente diferente e, claro, anterior
4.1.5.Estado e Direito
Apesar de que atualmente a idéia de que o Estado seja capaz de criar direito é muito difundida e aceita sem mais problemas, Ehrlich procura argumentar que isto não é necessariamente assim. O Estado não apenas nem sempre foi visto como um legítimo produtor de direito como também a idéia de que o fosse apenas se impôs com muita dificuldade. Tanto maior foi a dificuldade no estabelecimento da idéia de que o estado é o único produtor legítimo de direito. Tanto na Roma Imperial como na Idade Média, segundo o autor, esta idéia não era aceita sem reservas, se é que o era. Ainda mais, o autor prossegue afirmando a dificuldade de aceitação desta idéia mesmo em um estágio mais desenvolvido da sociedade:
Mesmo entre os povos mais desenvolvidos da humanidade, a idéia de um direito estatal só se impôs com muita dificuldade e muito lentamente. (Ehrlich, 1986:117)
Apesar de qualquer historiador do direito, segundo Ehrlich, poder afirmar claramente a separação que se encontra ao longo da história entre direito e determinações estatais, no pensamento do ocidente moderno dá-se uma inegável ênfase ao direito emitido pelo Estado. Segundo Ehrlich, isto ocorre em função da crença segundo a qual o direito apenas se pode impor por meio do poder coercitivo do Estado.
Parece que há quatro aspectos que contribuem para que se dê tanto destaque ao Estado como fonte do direito: sua participação na formação do direito através do ato de legislar, sua participação na administração da justiça através de tribunais estatais e em parte também outras instâncias governamentais, seu poder de mando sobre os órgãos estatais, que lhe servem de instrumento para executar suas leis e, finalmente, a concepção de que a manutenção de uma situação que corresponda ao direito só é possível, seja em primeira ou em última instância, através da força de coação do Estado. (Ehrlich, 1986: 110)
Assim, o aparelho estatal, com uma burocracia destinada a executar e aplicar as leis, um órgão destinado a criar leis e a crença de que a validade destas leis depende do poder coercitivo do estado jogam um papel primordial no modo como a jurisprudência tem estudado o direito.
A questão mais importante a se colocar aqui, segundo Ehrlich, não é aquela quanto a se todo o direito é direito estatal, já que a sua resposta é evidentemente negativa, mas sim aquela quanto ao por que de o Estado ter assumido o papel de criador de normas. Para compreender isto é necessário compreender o papel que tem o Estado na concepção deste autor.
Em primeiro lugar, o Estado é, essencialmente, uma associação de dominação. Segundo o autor:
Esta ordem [o Estado], muito mais que a ordem interna das associações, tem o caráter de ordem de dominação e de luta: em grande parte ela é a expressão da posição das associações dominantes na sociedade em relação às dominadas e da luta das associações organizadas na sociedade contra outras que não se integram na organização. E grande parte das normas sociais não têm o objetivo direto de criar uma ordem nas associações, mas somente o de levar a ordem emanada da sociedade para dentro das associações: são, portanto, apenas normas de segunda ordem. (Ehrlich, 1986: 120)
Como já expresso anteriormente, a sociedade é, para Ehrlich, composta por diversas associações, e é no interior destas associações que surgem as regras do agir humano. Porém, como coloca o autor, chega um determinado momento em que a sociedade tem de impor às diferentes associações certas regras comuns, que emanam da sociedade enquanto uma associação de associações. Nem todas as regras do agir podem ser deixadas ao arbítrio de cada associação diferente. Não se pode admitir que a comunidade familiar incorpore certas regras do agir que sejam diametralmente opostas àquelas que são adotadas nas instituições educacionais. Não pode a família exigir das crianças que trabalhem enquanto não estiverem na escola ao mesmo tempo em que a escola determina que o brincar é uma parte necessária do processo de desenvolvimento da criança.
Desta forma, a sociedade também impõe sobre as associações certas regras que não decorrem das relações internas à própria associação, mas da associação de associações.
Assim, na verdade, a expansão do direito estatal, que aparece tão claramente na história, não é outra coisa que a expressão da crescente uniformidade da sociedade. Com o sentimento cada vez mais vivo de que tudo o que existe na sociedade pertence a ela, de que tudo o que acontece na sociedade lhe interessa, aparece também a necessidade de prescrever a todas as associações sociais autônomas uma base legal unitária, através do Estado. (Ehrlich, 1986: 123)
O Estado, portanto, quando passa a ser admitido como um legítimo criador de direito, o faz como um órgão da sociedade como um todo, que percebe a necessidade de impor um determinado conjunto comum de normas a todas as associações que são relativamente autônomas.
O enorme significado do Estado para o direito repousa no fato de que a sociedade se utiliza do Estado, como seu órgão, quando se trata de dar um respaldo consistente ao direito que dela emana. (Ehrlich, 1986: 120)
Via de regra o Estado não cria direito a partir do nada. Ele funciona, segundo o autor, como um órgão da sociedade, impondo às associações regras comuns que possibilitam sua convivência pacífica.
Em regra, porém, a idéia de que todo direito deriva do Estado apenas quer dizer que uma norma, independente de como surgiu, só se transforma em norma jurídica quando é reconhecida como tal pelo Estado, o qual a envolve com normas de segunda ordem, com ameaças, processo, regras administrativas. (Ehrlich, 1986: 125)
As normas jurídicas não surgem da mera vontade de um indivíduo enquanto legislador. A própria concepção do legislador é orientada por normas que emanam da própria sociedade. Uma norma jurídica não é meramente imposta.
Em todos estes estágios [estágios de produção normativa] a sociedade é tão ativa quanto o jurista. O preceito jurídico é constituído de matéria social, moldado pelo jurista. São as normas dominantes na sociedade que são generalizadas e uniformizadas para transformar-se em normas jurídicas, mas depende do jurista o que será generalizado e uniformizado, depende dele qual das ordens familiares que encontra à sua frente lhe servirá de modelo para julgar as disputas nas demais, qual dos diferentes conteúdos de contratos lhe servirão de parâmetro nas decisões sobre disputas em torno de contratos semelhantes (...) Desta forma, apenas um resíduo da prescrição jurídica está tão intimamente ligado à personalidade do seu autor, que seria de esperar uma formulação diferente, caso fosse feita por outrem. E mesmo neste caso não se deve esquecer em que medida cada pessoa, e mesmo o gênio mais singular, é um resultado de seu contexto, que cada pessoa só pode ter nascido numa determinada sociedade e agir nela, sendo muito provável que fracassaria em qualquer outro lugar.
A jurisprudência dominante que em todo preceito jurídico vê, de fato, mesmo que não de forma consciente, a expressão da "vontade do legislador", engana-se totalmente quanto à enorme participação da sociedade. (Ehrlich, 1986: 166)
Assim, a formação de um preceito jurídico decorre da sociedade. A participação do legislador individual deve ser considerada apenas em sua proporção. Um preceito jurídico não nasce tão somente das necessidades que o legislador supõe ter a sociedade. Nasce, antes das relações sociais, dos fatos do direito. O legislador, via de regra, apenas dá uma certa expressão para tais regras, cristaliza-as de forma a poderem servir de parâmetro para decisões dos administradores e juízes.
Também não é meramente um hábito de associações particulares o que constitui o direito. O autor caracteriza a norma jurídica, em especial, pela opinio necessitatis. Por opinio necessitatis os juristas geralmente entendem a opinião difundida segundo a qual determinado comportamento não é tão somente um hábito, mas também algo que deve ser observado, a opinião de que se trata de algo devido, algo que se deve observar. Alguns juristas acrescentam que não basta a opinião de que tal comportamento é devido, mas de que é juridicamente devido. Para Ehrlich, a opinio necessitatis apenas pode ser encontrada nas normas que emanam dos fatos do direito e naquelas que emanam do direito dos juristas e das prescrições estatais, considerando, é claro, que já foi abordada a relação que estas duas últimas têm com aquelas, qual seja, não surgem senão com base naquelas, ainda que tenham um escopo e uma definição diferenciada.
Com base nestas características deveria ser possível determinar mais claramente a norma jurídica. Normas jurídicas são as normas que emanam dos fatos do direito: dos hábitos que nas associações sociais indicam a cada um dos membros a sua posição e suas tarefas, da dominação, das relações de posse, dos estatutos, dos contratos, das declarações de última vontade e de outras determinações; além disso, são normas jurídicas as que derivam das prescrições jurídicas do direito estatal e do direito dos juristas. Somente nestas normas podemos encontrar a opinio necessitatis; creio que, por isso, não há outras normas jurídicas. Mas não se pode inverter esta frase: nem todas as normas que surgem desta maneira são normas jurídicas. (Ehrlich, 1986: 132)
Normas jurídicas, portanto, não são meras expressões lingüísticas criadas pelos legisladores e administradores, mas, antes, regras do agir humano. A principal característica destas normas não é a coercitividade estatal, mas a opinio necessitatis. São regras consideradas obrigatórias e que de fato orientam o comportamento dos indivíduos em sociedade.
Podemos considerar, portanto, que, conforme o pensamento de Ehrlich, o Estado e o Direito são duas coisas essencialmente distintas; que é enganosa a idéia de que o Estado tem um monopólio da criação jurídica; que é equivocada a noção de que os preceitos jurídicos nascem da pena do legislador e que as normas jurídicas decorrem de preceitos jurídicos. O Estado não cria um direito para a sociedade, ele é, antes, um órgão da sociedade que regula relações que necessitam uma certa uniformidade dentre as mais diversas associações que compõe a própria sociedade.
Ehrlich fala de um direito estatal em contraposição a um direito geral. O direito válido não é apenas aquele direito que é criado pelo Estado. As regras do agir não estão todas contidas nos preceitos jurídicos emanados do estado e tampouco o estão todas as regras de decisão. Os juízes, ainda quando de uma ou outra forma vinculados ao Estado, não aplicam tão somente os preceitos jurídicos. Estes necessitam sempre uma interpretação que tem suas bases em preceitos que não foram postos pelo Estado.
Deixemos, portanto, clara a posição de Ehrlich quanto às relações entre Direito e Estado:
Resumindo a influência do direito estatal sobre o direito em geral no decorrer do desenvolvimento histórico até aqui, ela consiste basicamente no seguinte: o Estado concedeu através do direito estatal e do direito administrativo a si e a seus órgãos um direito próprio. Ele juntou os diferentes grupos humanos que vivem em seu território, transformando-os em povo e iniciando desta forma, em muitos sentidos, um desenvolvimento jurídico unitário. Ele garantiu através de seus tribunais e órgãos estatais, com a ajuda de suas normas de segunda ordem, do direito penal, do direito policial, do direito processual a paz nas instituições estatais e sociais. Ele fundou a propriedade estatal e possibilitou o direito hereditário dos parentes colaterais. Ele deu origem pensões e monopólios. Ele influenciou profundamente as instituições sociais, a vida comunitária, as dominações, a propriedade, a posse, o contrato, a herança através de suas proibições e restrições.
Sobre os fundamentos criados pelo Estado e a sociedade, na seqüência, continua a sua estruturação. As comunidades, as relações de dominação e de posse, os contratos, os estatutos, as declarações de última vontade têm sua ordem, ao menos em parte, determinada segundo as instruções dos órgãos estatais, segundo o tipo e o grau de proteção que conseguem diante dos tribunais e dos órgãos estatais ou então criam institutos especiais com que procuram fugir aos obstáculos e peias que estes procuram criar. Desta forma a situação jurídica definitiva é resultado da ação conjunta, recíproca e contraditória de Estado e sociedade. E é desta forma que direito estatal pode levar ao direito dos juristas. (Ehrlich, 1986: 297)
Assim, o Estado tem intensa participação no desenvolvimento do direito, mas o tem enquanto um órgão da sociedade. Estabelecer regras comuns às diferentes associações humanas, pacificá-las com tais regras, estabelecer normas que, apesar de serem necessárias à sociedade como um todo não podem surgir no interior das associações autônomas, como as normas sobre pensões e monopólios. O Estado não cria o direito a partir do nada, mas o profere enquanto um órgão da sociedade. Entretanto, Ehrlich se refere também à ação "recíproca e contraditória de Estado e sociedade". Esta expressão deixa a entender que Estado e sociedade agem em sentidos opostos na formação do direito.
O Estado é apresentado pelo autor como um órgão da sociedade que participa da criação do direito sem, no entanto, ter alguma espécie de poder legisferante especial, superior ao poder criador de normas dos fatos do direito, por exemplo. É difícil aceitar juntamente com isto que as ações de Estado e sociedade sejam contraditórias.
De uma forma ou de outra, a sociologia do direito de Ehrlich constata que a participação do Estado na criação do Direito é modesta. Não se lhe pode reconhecer, sem distorcer os fatos, um poder legisferante absoluto, ou um monopólio na criação do direito.
Levando em conta tudo isto, se deverá considerar como modesta a participação do Estado na criação do direito. E, mesmo assim nós todos somos dominados pela concepção da onipotência do Estado e esta fez surgir algumas idéias amplamente difundidas que, apesar de historicamente condicionadas e por isso talvez condenadas ao desaparecimento dentro de um futuro não previsível, dominam hoje em dia toda a sociedade civilizada. Destaca-se sobretudo a idéia de que a legislação estatal constitui o poder supremo na sociedade moderna e que a resistência de qualquer forma é condenável; que não pode haver dentro do âmbito do Estado qualquer direito que contraria a lei e que o juiz que, no exercício de seu cargo, se sobrepõe à lei se torna culpado de um grave descumprimento de seu dever. A ciência jurídica sociológica, que, como toda ciência, só tem de registrar os fatos e não de avaliá-los, ao contrário do que se cria, não pode, no estágio da evolução em que a humanidade se encontra no momento, defender uma doutrina que induza o juiz à quebra do seu juramento. E quando ela não pode deixar de constatar que o juiz, no exercício de seu cargo, freqüentemente se encontra de forma inconsciente, mas muitas vezes também de forma consciente, sob o domínio de outras forças que não sejam a lei, ela, como é seu dever, mais uma vez só apontou para um fato e não fez um julgamento. (Ehrlich, 1986: 298)
Desta forma, a sociologia apenas constata que o direito estatal não é todo o direito; que o direito aplicado pelos juízes e tribunais do estado também não é apenas direito estatal; que o próprio direito estatal deriva de outras fontes bastante diversas da mera vontade estatal. Enfim, a participação do Estado no processo de criação do direito é modesta apesar de ele servir como um órgão da sociedade, tornando válidas normas que extrapolam o âmbito interno de uma associação e pacificando as diversas associações humanas dentro de uma mesma sociedade.
Parece imperioso concluir que Ehrlich chama de modesta a participação do Estado no conteúdo do direito tão somente. Sua participação na forma do mesmo, dando-lhe a forma de preceitos jurídicos e impondo-o às mais diversas associações humanas, é essencial. Se o direito vivo surge no interior das associações, não haveria, salvo a participação do estado, quaisquer regras comuns entre as diversas associações, no entender do autor. Se os juízes do Estado aplicam outras normas que não apenas o direito emanado do Estado, todo o direito processual, por outro lado, ou seja, toda a forma do procedimento por meio do qual este juiz pode decidir, é composto de direito estatal.
Direito e Estado, em Ehrlich, são, portanto, bastante distintos. O direito é composto por regras do agir e, de alguma forma, também por regras de decisão, que surgem das relações mútuas dos indivíduos humanos dentro das associações que formam. O direito tem como base certos "fatos do direito", como a disposição (contrato, declaração de vontade), posse, dominação e hábito. O Estado, por outro lado, é uma associação de dominação. Trata-se de uma evolução ou corruptela de uma associação de cunho militar, que foi chamada pela sociedade para dar uma forma e sustentação para certas normas que não podem contar simplesmente com a força das associações. O direito estatal é o direito que não poderia ser sustentado tão somente pelas diversas associações. O fato de que o estado reivindica posteriormente o monopólio da criação de direito não passa de um equívoco de nossa percepção dos fenômenos jurídicos. Ao considerar como direito apenas aquelas normas que são utilizadas pelos juízes para decidir casos conflituosos, decisões estas impostas coercitivamente pelo Estado, tomamos por direito apenas uma parte dele, e exatamente a parte vinculada ao Estado.
Para Ehrlich, há muito mais direito para além do Estado. Originariamente, o direito não surge do Estado. Ainda hoje, a participação do Estado na criação do direito é modesta. O Estado apenas dá forma e sustentação a normas que têm uma origem bastante distinta da mera vontade estatal e que cabe ao sociólogo do direito desvendar. Todas estas afirmações de Ehrlich apontam no sentido de dissociar Direito e Estado e afirmar a validade de um direito diferente daquele "direito positivo". Ademais, o direito pode ser encontrado, para o autor, por meio de uma análise sociológica acerca de fatos.
Este pensamento é radicalmente distinto do pensamento kelseniano. Em Ehrlich direito e Estado são duas realidades distintas, em Kelsen, uma única e mesma realidade. Em Ehrlich as normas jurídicas são padrões de conduta humana efetiva, em Kelsen são apenas conteúdos de significado com uma forma normativa. Em Ehrlich uma análise do comportamento efetivo dos homens, uma sociologia, é capaz de desvendar normas jurídicas, inclusive normas jurídicas distintas daquelas que são aplicadas nos tribunais. Em Kelsen apenas uma pesquisa "empírico-normativa", ou seja, uma análise daqueles significados que são postos como normas válidas, tal como é realizada pelos juristas, é capaz de encontrar normas jurídicas.
4.1.6.Metodologia da Sociologia do Direito
A jurisprudência é um conhecimento prático, voltado para a busca de normas de decisão para os juízes nos tribunais. A sociologia do direito, para Ehrlich, é a ciência do direito digna deste nome. É a sociologia do direito que se debruça sobre os fatos sociais e jurídicos que compõe o fenômeno que denominamos Direito. Ela está preocupada com o direito vivo e não com as construções abstratas dos juristas interessados em resolver casos conflituosos. A sociologia do direito se vale de um método científico, o método indutivo, enquanto a jurisprudência pretende encontrar todo o direito por meio tão-somente da dedução.
Assim, a jurisprudência se contrapõe frontalmente a toda ciência autêntica, onde predomina o método indutivo, que procura aprofundar o conhecimento da essência das coisas através da observação de fatos e da coleta de experiências. (Ehrlich, 1986: 14)
A sociologia do direito, como uma verdadeira ciência, vale-se do método indutivo. Para ela a observação dos fatos é fundamental. "Também a sociologia, incluindo aí a sociologia do direito, deve ser uma ciência da observação." (Ehrlich, 1986: 362) Diferentemente da jurisprudência, que tem como preocupação fundamental derivar logicamente normas de outras normas, a sociologia do direito está preocupada em compreender fatos, fenômenos e processos reais.
O sociólogo do direito tem de encontrar os fenômenos reais que lhe interessam diretamente enquanto parte do fenômeno jurídico, e tem de encontrar um método adequado para descrevê-los e analisá-los.
A principal questão que ela [a sociologia do direito] deve resolver em nossa época é a seguinte: com que fenômenos o sociólogo deve preocupar-se e de que modo ele deve coletar os fatos para conhecê-los e interpretá-los. Os fenômenos sociais na área do direito que interessam ao conhecimento científico do direito são sobretudo os próprios fatos do direito: o hábito que dentro das associações humanas determina a cada um sua posição e suas tarefas, as relações de dominação e de posse, os contratos, estatutos, declarações de última vontade e outras disposições, além do processo hereditário. (Ehrlich, 1986: 362)
O sociólogo do direito não tem como objeto de estudo tão somente as normas prolatadas pelos legisladores ou as sentenças dos juízes. Seu objeto de estudo são, sobretudo, "os próprios fatos do direito". A principal tarefa da sociologia do direito, assim Ehrlich o entendia, em sua época, era a determinação de seu objeto e método de estudo.
A resposta que Ehrlich dava a essa pergunta é a de que a sociologia do direito encontrará seu material na história social e econômica, e seu método será o da observação.
Se existe uma regularidade nos fenômenos da vida jurídica, que a sociologia deveria descobrir e apresentar, ela só pode situar-se no condicionamento determinado pela constituição social e econômica; se existe uma evolução do direito que obedece a uma regularidade ela só pode ser conhecida e apresentada no contexto de toda a evolução social e econômica. Desta forma a sociologia do direito buscará seu material não no antiquário jurídico, mas na história social e econômica. (Ehrlich, 1986:364)
A sociologia do direito, como se percebe nas alegações de Ehrlich, é sociologia, e não jurisprudência. Trata-se da própria sociologia aplicada ao conhecimento do direito. O objeto de estudo da sociologia é o objeto de estudo da sociologia do direito. A história social e econômica enquanto objeto de estudo não é uma característica distintiva da sociologia do direito em face da sociologia em geral, mas tão somente em face da jurisprudência. A sociologia, quando se debruça sobre o direito, constrói o conhecimento científico acerca desta matéria. O direito como fenômeno social é estudado exatamente como os demais fenômenos sociais.
A ciência do direito, a sociologia, descreve um direito vivo, distinto das normas de decisão do jurista. Ela pode tomar por base a jurisprudência mas sempre a ultrapassa, fornecendo uma descrição metódica acerca de como o fenômeno jurídico efetivamente se processa.
Creio que a sociologia do direito no futuro terá de prosseguir o seu trabalho, tendo por base a jurisprudência comum. Ela não poderá ser confundida com a "doutrina geral do direito" ou com a assim chamada enciclopédia do direito. Seu papel não consiste em apresentar abstrações formalísticas das ciências jurídicas nacionais, mas sim seu conteúdo vivo. (Ehrlich, 1986: 367)
Ao descrever o direito vivo, a sociologia do direito preenche uma importante lacuna no conhecimento acerca do direito. A jurisprudência não tem a preocupação de descrever o direito tal como efetivamente tem se processado, dando-se por satisfeita sempre que encontra uma norma de decisão para o caso conflituoso que tem em mente em um dado momento.
Se além disso se levar em conta que cada uma das leis já estava superada pelo direito vivo no momento em que ficou pronta e a cada dia está sendo mais superada, então se deve reconhecer o imenso campo de trabalho, praticamente virgem, que aqui se abre ao pesquisador do direito. (Ehrlich, 1986: 374)
A descrição do direito vivo supera a descrição das leis antigas. A descrição da jurisprudência, que se volta para as leis, apresenta sempre apenas normas de decisão, e normas de decisão que já não correspondem ao direito vivo. Se considerarmos o longo processo que leva das normas do agir às prescrições jurídicas ficará claro que a descrição das normas de decisão estará sempre e necessariamente atrasada com relação ao direito vivo. Isto esclareceria, para Ehrlich, não apenas o conservadorismo dos juristas, mas também a relevância da sociologia do direito.
A sociologia do direito descreve a vida real, descreve o direito tal como se processa. A sociologia do direito "cumpre mal sua tarefa se ela se limita a descrever o que a lei prescreve e não o que de fato acontece" (Ehrlich, 1986: 377). Ao descrever como de fato se processa a vida jurídica, a sociologia alcança uma descrição do direito vivo, distinto do direito apenas vigente, mas que de fato domina a vida.
Este, portanto, é o direito vivo em contraposição ao apenas vigente diante de tribunais e órgãos estatais. O direito vivo é aquele que, apesar de não fixado em prescrições jurídicas, domina a vida. As fontes para conhecê-lo são sobretudo os documentos modernos, mas também a observação direta do dia-a-dia do comércio, dos costumes e usos e também das associações, tanto as legalmente reconhecidas quanto as ignoradas e até ilegais. (Ehrlich, 1986: 378)
Para descrever o direito vivo são necessários os métodos próprios das ciências sociais. O estudo de fontes documentais e a observação direta são fundamentais. A vida jurídica não é dominada por leis de juristas, mas por documentos. "Uma rápida análise da moderna vida jurídica mostra que ela é dominada não pela lei, mas pelo documento comercial." (Ehrlich, 1986: 379). Os documentos jurídicos, no entanto, não devem receber do sociólogo o mesmo tratamento que as leis recebem dos juristas. O documento não é uma fonte irrefutável de conteúdo do direito vivo. O sociólogo lida com os documentos a partir dos quais procura elucidar o direito da mesma forma como o historiador lida com os documentos a partir dos quais procura elucidar eventos passados. O documento é apenas um indício do comportamento efetivo dos indivíduos, que constitui o direito vivo.
A análise sociológica do direito, portanto, terá de comparar com a realidade não só as prescrições jurídicas, mas também os documentos, ela também neste particular terá de distinguir entre direito vigente e direito vivo. Direito vigente (norma de decisão) parece ser o conteúdo decisivo do documento, pois em caso de processo é que ele conta; mas ele só é direito vivo na medida em que as partes o observam, mesmo que não pensem em processo. (Ehrlich, 1986: 381)
O direito vivo, portanto, que o sociólogo busca descrever, não é o direito registrado em documentos, mas o direito tal como efetivamente se processa. Também não é apenas o direito litigioso, ou as normas que as partes acordam para prevenir eventuais disputas, mas também o direito não litigioso, o direito que se observa sem necessidade de coerção.
Mas mesmo assim se supervalorizaria o documento, se a gente quisesse extrair dele, sem mais, direito vivo. Não é tão evidente que todo o conteúdo do documento seja seja portador e testemunho de direito vivo. Direito vivo no conteúdo de um documento não é aquilo que os tribunais no caso de uma disputa jurídica declaram como obrigatório, mas somente aquilo que as partes, na vida real, de fato observam. (...) As pessoas, no dia-a-dia, procuram fazer sobretudo negócios não litigiosos com os outros; mesmo que exista a perspectiva de ganharem um processo, não lhes interessa movê-lo. (Ehrlich, 1986: 381)
O direito vivo, portanto, inclui também o direito não litigioso e aquele que resta inscrito nos documentos, mas apenas na medida em que tal direito for efetivamente observado.
O documento evidentemente só mostra do direito vivo aquilo que é registrado. Como se pode chegar ao direito vivo não documentado, que certamente é muito importante? Creio que para isto não há outro meio do que abrir os olhos, instruir-se através da observação atenta do dia-a-dia, inquirir as pessoas e registrar suas manifestações. Sei que significa exigir muito dos juristas quando se lhes pede para procurarem aprender através da percepção direta e não através dos parágrafos; mas isto é inevitável e por aí ainda há muita novidade a ser detectada. (Ehrlich, 1986:382)
A sociologia do direito, na medida em que pretenda descrever o direito vivo, o direito tal como efetivamente se processa, não se pode furtar de empreender uma descrição minuciosa a partir das fontes documentais e da observação direta do comportamento dos indivíduos. Os métodos "histórico e etnológico não se tornarão supérfluos" (Ehrlich, 1986: 386).
Por fim,
Para realmente conhecer a situação jurídica é preciso investigar tanto o que a própria sociedade realiza quanto o direito estatal e as influências reais sobre o direito societal. Precisamos saber que tipos de matrimônio e de família ocorrem em um país, que tipos de contrato são firmados e qual o seu conteúdo, que tipos de declaração de última vontade existem, como tudo isto deveria ser julgado por tribunais e outras instâncias estatais segundo o direito vigente, como de fato são as decisões a respeito e em que medida as sentenças e outras decisões realmente são efetivas. Uma investigação deste tipo mostrará que apesar de as legislações de diferentes países, como por exemplo França e Rumênia, coincidirem, predomina em ambos um direito muito diferente; mostrará também que o direito na Boêmia, na Dalmácia e na Galícia não é o mesmo, apesar de que diante de tribunais e órgãos governamentais são utilizados os mesmos códigos e que, em virtude das condições jurídicas efetivas, independente do código civil único, também as diversas partes da Alemanha não formam uma unidade jurídica, abstraindo, no caso, do fato de existirem diferenças particulares na legislação. (Ehrlich, 1986: 387)
A sociologia do direito, na medida em que for capaz de revelar o direito vivo, revelará um direito distinto daquele que os juristas entendem como válido. Desvendará diversos direitos em ação em diversos contextos, demonstrando o equívoco de uma compreensão de um fenômeno da importância do direito a partir tão somente de uma análise dedutiva, sem referência ao comportamento real. A necessidade de compreensão do direito vivo, para Ehrlich, torna imperioso o desenvolvimento de uma ciência sociológica do direito.
4.2.Emille Durkheim
4.2.1.Visão Geral
Dentro os autores clássicos em sociologia, Durkheim talvez seja o que mais importância atribuiu ao fenômeno moral. De certa forma toda a Sociologia durkheimiana é uma Sociologia da Moral, da qual é apenas um capítulo a Sociologia da Moral Cívica, que se identifica em grande parte com o Direito. Desta forma, não busquei descrever os escritos de Durkheim relativos especificamente ao Estado e ao Direito mas suas idéias a respeito destes fenômenos dispersas ao longo de sua obra.
Segundo Durkheim há dois tipos básicos de solidariedade, entendido este termo como o vínculo que une os indivíduos em sociedade: a solidariedade mecânica e a orgânica. Aquela seria a solidariedade que decorre das similitudes: os indivíduos se aproximam porque são semelhantes. A segunda seria a solidariedade por interdependência: os indivíduos se aproximam porque necessitam uns dos outros. Uma sociedade em que predomina a solidariedade orgânica seria uma Sociedade Organizada, dotada de órgãos.
De fato, para Durkheim uma Sociedade é um conjunto de grupos sociais. Uma horda, ou seja, uma sociedade composta apenas por um grupo social onde há apenas solidariedade mecânica, é um caso ao qual o autor não reconhece historicidade. Todas as Sociedade conhecidas, portanto, são conjuntos de grupos sociais unidos por elos de interdependência.
O que caracteriza cada grupo social é um conjunto de crenças e representações, que são gerais neste grupo e exercem coerção sobre o indivíduo. Assim, os grupos sociais impõe padrões comportamentais aos indivíduos, da mesma forma como modelam suas crenças e opiniões. A este corpo de representações e crenças coletivas, o autor chama consciência coletiva.
Segundo ele há uma consciência coletiva que se pode chamar "difusa" e uma "concentrada". A consciência coletiva "difusa" seria algo próximo do que costumamos denominar "senso comum", qual seja, um corpo de crenças e representações compartilhadas por grande parte de um grupo social que não guarda necessariamente qualquer coerência interna e tampouco é dotado de um procedimento claro de criação. À consciência coletiva difusa contrapõe-se a consciência coletiva concentrada. Para Durkheim um corpo de representações subjetivas fortes e concentradas é o que compõe o Direito. Este seria uma manifestação da consciência coletiva concentrada. Recebe este nome porque está concentrada em um órgão específico da Sociedade, que o elabora de certa forma conscientemente, o cérebro social, o Estado.
Assim, dentre os diversos grupos sociais, o Estado desempenha um papel particular. Ele é caracterizado como o cérebro da Sociedade. A ele cabe as funções de regulamentação e organização. É ele que determina os rumos que a Sociedade irá tomar, tutelando os demais grupos, estabelecendo regras para suas relações e sancionando-as. Após este primeiro esboço, podemos entrar em maiores detalhes acerca do pensamento do autor.
4.2.2.O Estado e a Sociedade Política
Durkheim define o Estado como um órgão determinado dentro de uma Sociedade Política, responsável por estabelecer representações e volições para tal Sociedade como um todo. Em Lições de Sociologia o autor oferece uma definição de Sociedade Política:
Mais geralmente, quando uma sociedade é formada por uma reunião de grupos secundários, de naturezas diferentes, sem que seja por sua vez um grupo secundário com relação a uma sociedade mais ampla, ela constitui uma entidade social de espécie distinta; é a sociedade política que definiremos: uma sociedade formada pela reunião de um número mais ou menos considerável de grupos sociais secundários, submetidos a uma mesma autoridade, que por sua vez não depende de nenhuma autoridade superior regularmente constituída. (Durkheim, 2002: 63)
Assim, a Sociedade Política é um conceito próximo da própria noção de sociedade. É o grupo principal, no qual se encontram inseridos uma série de grupos secundários. Já o Estado é definido como segue:
Podemos então dizer em resumo: o Estado é um órgão especial encarregado de elaborar certas representações que valem para a coletividade. Essas representações distinguem-se das outras representações coletivas por seu maior grau de consciência e de reflexão. (...) Eis o que define o Estado. É um grupo de funcionários sui generis, no seio do qual se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade, embora não sejam obra da coletividade. (Durkheim, 2002: 70)
Temos portanto que o Estado é um grupo particular dentro de uma Sociedade Política, um grupo ao qual cabe estabelecer representações e volições para a Sociedade Política como um todo.
Cada grupo social que compõe a Sociedade política também elabora para si representações e volições ou, como o autor denomina, uma moral particular. Assim, haveria uma moral familiar, uma moral profissional, uma moral geral, uma moral religiosa. O termo moral é aí entendido tão somente como o conjunto de representações e volições coletivas. Para o autor é necessário, inevitável, que seja assim. Segundo ele a vida social sempre produz tais representações, de modo que onde haja qualquer grupo social tais representações irão surgir.
Tais representações, porém, não surgem de forma arbitrária, mas em conformidade com as necessidades do próprio corpo social. Estas representações e volições o são de um corpo coletivo, do grupo social, seja ele uma determinada categoria profissional ou a própria sociedade política, e não representações e volições de indivíduos. Esta é, ao mesmo tempo, a razão pela qual tais volições e representações costumam diferenciar-se daquelas dos próprios indivíduos a elas ‘submetidos’ e também a razão pela qual elas sobrepujam as deste, impondo-se sobre eles, pela qual elas têm uma força moral.
Tais representações o são de um corpo coletivo que ultrapassa o indivíduo. Ele é mais do que o indivíduo pode ser e, para o autor, é o próprio corpo coletivo que eleva o indivíduo acima de si mesmo. Daí decorre a força moral que têm tais representações e volições coletivas: elas respondem a necessidades de um ente coletivo que é o responsável pela própria "humanidade" dos indivíduos que a ele estão submetidos. Ressalte-se aqui que: 1) tais representações e volições coletivas não são obras individuais; 2) não obedecem a interesses e representações que os indivíduos possam ter; 3) não são arbitrárias e contingentes, mas respondem a necessidades do corpo coletivo; 4) têm força moral e não apenas física, qual seja, não determinam o comportamento individual de forma direta, senão por intermédio de representações morais; 5) decorrem esta força moral do fato de ser o grupo social superior ao indivíduo.
As representações da sociedade política, o direito, pode ser dividido em duas categorias básicas, o direito repressivo e o direito restitutivo. Este corresponde à solidariedade orgânica, enquanto aquele à solidariedade mecânica. O Direito Repressivo corresponde às sanções por violações das representações mais fortes de uma determinada sociedade. Estas representações ofendem a sociedade como um todo e, de certa forma, clamam por vingança. Já o Direito Restitutivo corresponde à solidariedade orgânica e é identificável por estabelecer, como sanções, a mera observância dos deveres que impõe. Isto porque tutela ofensas que não são dirigidas à sociedade como um todo, mas a grupos particulares e à interdependência dos grupos. O não pagamento de dívidas ofende a interdependência dos órgãos da sociedade, mas não desperta vingança ou ira. Busca-se tão somente o cumprimento da obrigação descumprida, e não a punição do infrator.
Temos, portanto, que as "representações e volições" de uma dada sociedade dependem, quanto ao conteúdo, das necessidades dos diferentes grupos sociais, quanto à forma das sanções, do tipo de solidariedade.
4.2.3.Críticas desde a perspectiva kelseniana
Dentre as críticas que Kelsen formulou à Sociologia do Direito, várias se aplicam ao pensamento de Émille Durkheim. Destaco a crítica que afirma que a sociologia do direito incorre em uma certa confusão entre "ser" e "dever-ser" e a de um "jusnaturalismo sociológico". O afastamento das pré noções propugnado por Durkheim em suas obras metodológicas não envolve necessariamente a separação entre juízos de fato e juízos de valor, mas antes de juízos científicos e juízos de senso comum. Juízos de valor são tidos pelo autor como prejudiciais ao pensamento sociológico na medida em que são frutos de concepções construídas sem rigor ou precisão, são frutos de um pensamento desejante. A sociologia enquanto um pensamento científico pode, na opinião deste autor, chegar a formulações valorativas, tais como as decorrentes da distinção entre o normal e o patológico. Para o autor a sociologia não mereceria sua atenção se não fosse capaz de encontrar orientações práticas para a vida.
Confusão entre Juízos de Fatos e Juízos de Valor
Como dito anteriormente, toda a sociologia de Durkheim pode ser lida como uma sociologia da moral. De fato, o próprio autor assim se expressa:
A física dos costumes e do direito tem como objeto o estudo dos fatos morais e jurídicos. Esses fatos consistem em regras de conduta sancionada. O problema que a ciência se coloca é pesquisar:
1º Como essas regras se constituíram historicamente, ou seja, quais são as causas que as suscitaram e os fins úteis que elas preenchem.
2º A maneira pela qual elas funcionam na sociedade, ou seja, pela qual são aplicadas pelos indivíduos. (Durkheim, 2002: 1)
Esta "física dos costumes e do direito" se não compreende toda a sociologia, compreende ao menos uma grande parte dela. A "física social" deve ser em grande parte constituída por uma "física dos costumes". No trecho transcrito, retirado de sua obra dedicada ao estudo da moral e do direito, Durkheim afirma que o objetivo desta ciência é estudar as origens e conseqüências das regras de conduta sancionadas que constituem a moral e o direito.
Pode-se, por certo, argumentar que tal trecho foi retirado exatamente da obra em que Durkheim estuda a moral, donde não é razoável a partir dele afirmar que a sociologia durkheimiana consiste basicamente em uma sociologia da moral. No entanto, não é apenas aí que vemos o papel preponderante que tem a moral em sua sociologia. Passo agora a destacar na obra do autor evidências de que o "social" é aí idêntico, ou ao menos semelhante em grande medida, ao valorativo, normativo.
O fato social
Tomemos a definição que dá o autor de "fato social".
É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter. (Durkheim, 1995: 11)
O fato social, nesta definição, tem as mesmas características de uma norma de conduta. Em primeiro lugar, trata-se de uma maneira de agir suscetível de exercer coerção sobre o indivíduo. Não se trata aqui de uma maneira de agir de um indivíduo coagindo outro. Não se trata de um fenômeno de poder ou dominação de um indivíduo sobre outro. Esta "maneira de agir" exerce coerção sobre o próprio indivíduo que age. O que se quer dizer, no entanto, quando se afirma que esta "maneira de agir" exerce coerção sobre o indivíduo? Isto poderia significar que o indivíduo, ainda contra sua vontade, se comporta de acordo com tal "maneira de agir". No entanto, esta interpretação é incorreta, como destaca o próprio Durkheim, afirmando que o indivíduo não sente tal coerção senão quando se "desvia" desta "maneira de agir". Ou seja, esta é uma "maneira de agir" que quando não observada pelo indivíduo, ele sofre uma coerção. No entanto, dificilmente esta coerção se fará sentir em todos os casos, tanto assim que Durkheim menciona a diferença da "presença" da sociedade nas diferentes formas de solidariedade. Donde assumo que tal coerção pode, num caso ou outro, não se fazer sentir, apesar de que geralmente se impõe.
Temos, portanto, que esta primeira parte da definição de fato social corresponde a uma "maneira de agir" que o indivíduo observa ou não. Caso não observe sofrerá, via de regra, uma coerção. Ora, uma norma de conduta é uma "maneira de agir" determinada que o indivíduo deve observar sob pena de uma determinada coerção. Os conceitos são rigorosamente idênticos, senão pela omissão do "dever ser" na definição de Durkheim do fato social. Esta omissão, aliás, é superada quando afirma que o fato social é "imperativo", ou que tem uma "autoridade moral".
A segunda parte da definição de fato social também corresponde a uma característica da norma. Segundo Durkheim o fato social é geral na extensão de uma sociedade dada, sendo independente das manifestações individuais. O fato de ser geral pode ser restringido significativamente. Não se entende por "geral" apenas aquele fato que ocorre na extensão de toda uma "Sociedade Política", ou seja, do grupamento de grupos sociais, mas também aquele que ocorre na extensão de apenas um dado grupo social. Assim, um comportamento comum apenas aos membros de uma dada religião é, ainda, um fato social, mesmo que não seja observado no resto da sociedade. Pode-se mesmo dizer que quando há um comportamento que seja comum a determinado grupo, já por isto mesmo este grupo é a "extensão" relevante para tal generalidade. De uma forma ou de outra, tal generalidade corresponde à "esfera de validade de uma norma". Qualquer norma é considerada válida para determinadas pessoas, assim, a regra segundo a qual sacerdotes não podem contrair matrimônio é aplicável apenas a sacerdotes católicos e não a monges budistas. A norma, portanto, é "geral na extensão de uma da sociedade" da mesma forma que o é o fato social.
Mais importante é a afirmação de que o fato social independe de suas manifestações individuais. O fato de que um determinado indivíduo não aja da forma dada na "maneira de agir" que se impõe "coercitivamente" sobre ele, e mesmo o fato de que, apesar da ‘infração’ tal coerção não se faça sentir, não desfaz o fato social determinado por tal "maneira de agir". Assim, digamos que se reconheça que o fato de crianças se dirigirem à escola e, em casa, realizarem tarefas seja um fato social, então, o fato de que determinadas crianças não se comportem assim não será relevante para a caracterização deste fato social. Da mesma forma, o fato de que um determinado policial militar vendeu, certa feita, drogas aos traficantes que deveria prender não é relevante para assumirmos como um fato social que policiais prendem traficantes. Ora, é próprio de uma norma de conduta que o contra-exemplo não redunde em uma substituição da própria norma. Quando digo que não se deve matar e observo que se mata alguém, concluo que esta ação determinada está "errada" ou é um "delito". Quando "constato" um fato social determinado, digamos, que as pessoas, em geral, não matam, e observo que um dado indivíduo mata alguém, da mesma forma concluo que tal ação está "errada", que sofrerá (ao invés de que deve sofrer) uma certa "coerção".
Ora, os juízos de fato ordinários são diversos, portanto, do juízo acerca de um fato social. Quando afirmo que um dado elemento químico não reage com outro em dada temperatura e observo o contrário, concluo não pela coerção a ser imposta ao elemento químico infrator, mas pela substituição de minha afirmação preliminar. Já quando afirmo que os homens de uma dada sociedade submetem-se a determinados outros homens (policiais) e constato que de fato não o fazem (ainda que o número de contra-exemplos seja razoavelmente grande), concluo que sofrerão (devem sofrer) uma coerção.
Assim, o chamado "fato social" é, na verdade, um "fato normativo".
4.2.3.1.O Suicídio
Pode soar estranho associar a sociologia da moral em Durkheim, apresentada como saber empírico, com a análise de sistemas de normas nos moldes daquilo que Kelsen chama de ciência normativa. Entretanto, este é um exercício plausível, mesmo com uma das obras durkheimianas em que mais ressalta o caráter empírico. "O Suicídio" de Durkheim é uma obra fascinante, que corresponde quase literalmente às regras do método sociológico que o autor estabeleceu. É uma obra recheada de estatísticas e contém até mesmo depoimentos de pessoas que tentaram suicidar-se. Segundo o autor, para a efetivação desta obra "foi necessário fazer um levantamento dos dossiês de cerca de 26.000 suicidas, classificando-os separadamente por idade, sexo, estado civil, presença ou ausência de filhos". É a obra ideal para o que aqui se pretende. Segundo o autor, em "O suicídio" é
"difícil que, de cada página (...) não se extraia, (...), a impressão de que o indivíduo é dominado por uma realidade moral que o ultrapassa: é a realidade coletiva. (...) sentiremos que são forças reais, vivas e atuantes, que, pela maneira como determinam o indivíduo, comprovam que não dependem dele; pelo menos, se ele entra como elemento na combinação de que elas resultam, elas se impõem a ele à medida que se formam" (Durkheim, 2000: 6)
Em linhas gerais, nesta obra, o autor apresenta dados estatísticos que comprovam que a distribuição de suicídios difere de sociedade para sociedade e é, dentro de cada sociedade, mais constante que, por exemplo, a taxa de mortalidade. Procura demonstrar que esta taxa varia em função de variáveis propriamente sociais e que, portanto, não pode ser explicada pelo mero acaso da confluência de fatores individuais. A partir disso elabora uma classificação dos suicídios. Esta classificação é feita em função das causas dos mesmos, e não de suas características exteriores. O autor identifica o suicídio (e portanto sua causa) próprio das sociedades modernas. Pois bem, o suicídio é definido pelo autor da forma que segue:
Chama-se suicídio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima e que ela sabia que produziria esse resultado. (Durkheim, 2000: 14)
O Suicídio definido desta forma, no entanto, não é de especial interesse ao sociólogo. Trata-se, em princípio, de um fenômeno individual, um fenômeno da psique, que, para Durkheim, não é senão objeto de estudo da Psicologia. Não obstante, quando se toma como objeto de estudo não o suicídio individual, mas uma multidão de suicídios particulares, percebe-se que este fenômeno aparentemente individual varia, ou melhor, a taxa de suicídios varia de sociedade para sociedade e em diferentes períodos dentro de uma mesma sociedade de uma maneira que seria pouco plausível caso admitíssemos que tal variação depende apenas da concomitância de fatores individuais, sendo completamente fortuita, portanto. Durkheim tenta mostrar que o suicídio varia de país para país, de religião para religião, de período para período. Ora, a explicação para um tal fato por certo não pode advir de fenômenos que atinjam apenas alguns indivíduos isoladamente, mas tem necessariamente de vir de fenômenos que afetem de maneira bastante ampla um grupo social.
O autor afirma que podem haver duas espécies de causas deste tipo, e as classifica em causas "sociais" e "extra-sociais". Dentre as causas extra-sociais contam-se: fatores genéticos (raciais, étnicos), fatores climáticos (cósmicos) e as psicopatias. Ora, o próprio autor não negligencia que tais fatores influenciam o comportamento humano, e o fazem de forma ampla, ou seja, influenciam o comportamento de inúmeros indivíduos. Este, entretanto, não é o critério para que algo seja considerado "social" em sua opinião. É importante notar que o suicídio é tido como um fenômeno social não porque aconteça em grande escala, mas porque, segundo o autor, tem causas sociais. Não é qualquer causa que afete em grande escala o comportamento humano que pode ser considerada social, e também não é qualquer comportamento humano em grande escala que pode ser considerado como tal.
Dentre as causas "sociais" para o suicídio contam-se: a Religião, o Estado Civil, as Crises Econômicas. O suicídio é classificado pelo autor conforme suas causas sociais. O suicídio altruísta corresponde àquele determinado pela coerção da sociedade. Neste caso a sociedade "obriga", impele, o indivíduo a tirar sua vida. Ao fazê-lo, o indivíduo apenas cumpre seu papel. No suicídio egoísta a sociedade dá ao indivíduo autonomia para decidir o destino de sua vida, não se intromete em seus assuntos individuais e toma sua vida como assunto individual. Aqui o indivíduo se mata porque está de certa forma permitido a fazê-lo. O suicídio egoísta surge quando a sociedade atribui um tal valor ao individualismo que se pode dizer que vida do indivíduo lhe "pertence". Já não mais cabe à sociedade dizer o que o indivíduo deve fazer. Já não é mais ela quem determina o que é e o que não é suportável. Desta forma, o indivíduo assume um domínio sobre sua própria existência, ou melhor, simplesmente, na sociedade individualista há uma "norma" que determina que não cabe aos outros interferirem na vida pessoal de um indivíduo. Já no suicídio anômico o indivíduo se mata porque carece das regulamentações sociais, a sociedade não lhe diz coisa alguma a respeito da vida ou da morte. A vida deixa de ter sentido, não há razões pelas quais se deva viver.
Todas as causas apresentadas como "sociais" por Durkheim têm relação com normas de conduta. O suicídio altruísta é aquele em que há o dever de se suicidar. Suicidar-se é, aí, obedecer a uma norma. No suicídio egoísta há uma espécie de autorização para o suicídio. O indivíduo é "dono" de sua própria existência. Isto significa tão somente que há um dever geral que determina que os demais não têm o direito de interferir na vida pessoal do indivíduo. Em caso de uma decepção qualquer, ou por quaisquer razões que este indivíduo considere relevantes, está ele autorizado a suicidar-se. Por fim, o suicídio anômico reflete tão somente a ausência de quaisquer normas reguladoras da conduta humana. A tese durkheimiana é, aqui, a de que os seres humanos "necessitam" de normas de tal forma que, em situações em que as normas perdem sua autoridade, em que não há mais regulação claramente aceita para a vida social, os indivíduos podem até mesmo chegar ao suicídio.
4.2.3.2.Natureza Moral da Sociedade
A Solidariedade Social é, para Durkheim o vínculo que une os homens, é propriamente o vínculo social. Esta solidariedade é um fenômeno "moral", como o admite o próprio autor.
A solidariedade social, porém, é um fenômeno totalmente moral, que, por si, não se presta à observação exata, nem, sobretudo, à medida. Para proceder tanto a essa classificação quanto a essa comparação, é necessário, portanto, substituir o fato interno que nos escapa por um fato externo que o simbolize e estudar o primeiro através do segundo. (…) Esse símbolo visível é o direito. (Durkheim, 1999: 31)
O que significa afirmar que a solidariedade social é um fenômeno moral? Em princípio, o que se depreende do texto é apenas que se trata de um fenômeno inapreensível diretamente pelos sentidos. Mais precisamente, não se trata de algo material, mas de algo "ideal" no sentido de composto por representações humanas. Parece-me, no entanto, que esta afirmação também traz consigo a idéia de que a solidariedade não é apenas algo ideal, mas que tais idéias tem uma forma normativa. Por certo que Durkheim não o afirma expressamente, no entanto, quando busca identificar os diversos tipos de solidariedade o faz pela classificação de um fenômeno paralelo, por assim dizer, um fenômeno que "expressa" a solidariedade social: o Direito.
Interessante notar aqui que o Direito expressa um fenômeno imaterial. Entretanto, também o Direito não é senão um fenômeno imaterial. As normas jurídicas que Durkheim classifica para distinguir os diferentes tipos de sociedade não são coisas materiais que se possa ver e ouvir. São simplesmente idéias, idéias normativas. Se elas têm uma "concretude" maior do que a solidariedade social isto seria apenas no sentido de que são idéias mais claramente expressas, no sentido de que são formuladas com um grau maior de precisão ou de que, por vezes, chegam a ser escritas.
Por outro lado, a solidariedade social seria um fenômeno "moral" e, portanto, imaterial? Ora, para Durkheim tal solidariedade é o vínculo que faz com que os homens se aproximem, que determina que suas vidas sejam levadas em grupo e não isoladamente. Esta "força" que une os homens, aparentemente, tem uma concretude maior do que o direito. Inúmeros autores, como Eugen Erhlich, não relutam em afirmar que o direito tal como o estudam os juristas não passa de sentenças mortas, enquanto que na vida social encontramos um direito vivo, um direito em ação. Ora, este direito vivo tem uma semelhança muito grande com a idéia de uma solidariedade social, um fenômeno moral. Entretanto, aqui Durkheim afirma que a solidariedade social não é apreensível senão por sua manifestação sensível: o Direito.
O que em Durkheim se apresenta como paralelismo, para Kelsen é identidade. Afirma este autor que é um equívoco afirmar que um determinado grupo "tenha" uma determinada ordem moral. É a própria ordem moral o único elemento que identifica o grupo. É ela que o constitui. Segundo este autor, uma sociedade e a ordem social não são senão uma só coisa, isto é, um determinado conjunto de normas.
A partir de uma perspectiva kelseniana, Durkheim teria se equivocado justamente quando define o fato social como um "fato". Aquilo a que este autor chama "fato social" não é senão uma norma social. Da mesma forma a solidariedade social que se "manifesta" através do direito não é senão o próprio direito. Uma distinção importante do ponto de vista da teoria pura do direito que não é levada em consideração pela abordagem durkheimiana é justamente a distinção entre o comportamento humano e a norma social. A afirmação de que os homens se comportam de uma dada maneira não é idêntica à afirmação de que há uma ordem social que determina que devem fazê-lo. Durkheim transita imperceptivelmente entre estas duas idéias.
A solidariedade mecânica é um fenômeno moral. No entanto, ela é um fato. O fato de que os homens se unam em função de suas semelhanças. Afirmar que existe solidariedade mecânica é afirmar que os indivíduos têm crenças semelhantes e comportamentos semelhantes. Entretanto, os indivíduos, de fato, não têm tais crenças e comportamentos semelhantes, tanto assim que há punições para os casos em que o comportamento ou a crença seja divergente. Esta punição é justamente o símbolo visível da solidariedade mecânica. Assim, o fato de que os homens têm comportamentos e crenças similares se manifesta justamente na punição infligida a estes mesmos homens por não terem comportamentos e crenças similares. Isto é, obviamente, contraditório.
Da mesma forma a solidariedade orgânica é, para Durkheim, um fenômeno moral, mas tal fenômeno é um fato social. Este fato social caracteriza-se por uma relação de interdependência que gera determinadas normas para a conduta. O fato de que os homens dependam uns dos outros gera normas que regulam as diferentes tarefas que os homens devem cumprir. Afirmar que há solidariedade orgânica, portanto, pode significar que há normas que dividem os homens em grupos atribuindo a cada grupo diferentes tarefas, ou pode significar que de fato há diferentes grupos que desempenham diferentes papéis. Nesta segunda hipótese, mais condizente com as afirmações de Durkheim, chega-se ao mesmo problema anteriormente levantado. Constata-se que, na verdade, os diversos grupos não cumprem seu papel, e que há sanções que os obrigam a cumpri-lo. Na verdade, a solidariedade orgânica também é perceptível justamente pelas sanções que são impostas para o caso em que não seja "cumprida". Assim, quando se diz que há, em um dado grupo social, solidariedade orgânica, quer-se dizer que tal grupo é divido em sub-grupos, desempenhando cada qual um papel diferente. Sabe-se que há tal solidariedade porque os indivíduos pertencentes a estes grupos não desempenham o papel que lhes é atribuído e, nestes casos, se lhes aplica uma coação para que o façam. A contradição é, novamente, clara.
Estas contradições se dissipam se entendermos o fenômeno pesquisado por Durkheim como puramente "moral" no sentido de normativo. Se chamarmos de solidariedade mecânica a característica de um determinado conjunto de normas que se imponha sobre todo um grupo de uma mesma forma, estabelecendo para todos a mesma crença e mesmos comportamentos, então faz sentido perguntarmos pela sanção contra o comportamento divergente. De fato, a norma, e não o fato, se caracteriza pela estipulação de uma sanção. Da mesma forma, se chamarmos de solidariedade orgânica a característica de um dado conjunto de normas que dividem um determinado grupo de indivíduos em sub-grupos, atribuindo a cada sub-grupo diferentes direitos e deveres, então também fará sentido nos perguntarmos pelos casos em que os indivíduos não se comportem de fato da forma prescrita pela norma.
Durkheim não distingue o fato da norma. Para ele um determinado indivíduo se suicida porque há um costume segundo o qual os indivíduos que chegam a uma determinada idade se suicidam. Mas este costume tem caráter cogente, imperativo. Isto apenas pode significar que alguns indivíduos chegam a esta idade e não se suicidam, e que podem ser de alguma forma punidos por isso. É muito provável que nas sociedades das quais trata Durkheim havia o costume segundo o qual os indivíduos devem se suicidar em dada idade, e não de que de fato o faziam.
4.2.3.4.A origem do caráter moral da Sociedade
Para Durkheim não só a Sociedade tem uma natureza moral, sem deixar de ter uma natureza causal, factual, como esta característica moral decorre justamente de um fato. Segundo o autor a Sociedade "ultrapassa" em muito ao indivíduo em conhecimento e moralidade. Ela é "superior", e é este "fato" que lhe empresta a supremacía moral que exerce sobre o indivíduo. É por isso que o fato social exerce "coerção". Não se trata aqui de uma coerção no sentido de um poder causal determinante da conduta dos indivíduos, mas sim de coerção no sentido de autoridade para estabelecer regras de conduta que devem ser observadas. Neste ponto Durkheim pressupõe um "fato" que tem, na verdade um caráter normativo e que, figurando nas premissas de sua teoria, confere o caráter normativo a toda ela.
4.2.4.Jusnaturalismo Sociológico
Durkheim aceita como premissa uma asserção eminentemente valorativa, a saber, a de que a sociedade é "boa" em si mesma. Ela é superior ao indivíduo cognitiva e moralmente. É a sociedade que distingue os homens dos demais animais. Fora da Sociedade o homem não é senão um animal qualquer, em sociedade, porém, adquire uma elevação cognitiva e moral que o distinguem. Não só o distinguem, mas também o tornam um ser valioso, algo bom. Sob influências positivistas, Durkheim chega a afirmar explicitamente que não há distinção entre homens e animais a não ser de grau. Veremos, no entanto, que, apesar de ver o ser humano como um animal entre outros, Durkheim ainda assim lhe confere um lugar elevado em uma hierarquia valorativa. O indivíduo humano é valioso, mas tal valor decorre não de características imanentes ao indivíduo isolado, mas de características que lhe são emprestadas pela sociedade.
Em verdade, a sociedade é algo valioso. Ela supera os indivíduos. Ela lhes confere aquilo que os torna homens. Sem ela, estes seres não são mais que animais. Ou melhor, com ela, eles são mais do que animais. Durkheim valoriza o indivíduo, sua personalidade, sua liberdade, sua maneira de pensar, agir, sentir, porém, vislumbra que é a sociedade que confere ao indivíduo tais características, donde é ela, e não ele, que seria dotada de valor.
A sociedade ultrapassa os indivíduos, logo não pode ser explicada apenas por estes. Mas estes são constituídos por ela. Assim, elementos acerca da natureza humana, como os derivados de pesquisas em psicologia experimental, devem ser levados em conta por sociólogos, mas não são capazes de explicar a sociedade, que, sendo uma realidade sui generis, deve ser explicada com recurso a fatos sociais.
Em "Lições de Sociologia", Durkheim polemiza contra a doutrina do jusnaturalismo em um ponto especialmente relevante para o que seria uma antropologia filosófica. Por jusnaturalismo entenda-se, aqui, qualquer doutrina que afirme que o ser humano é dotado de determinados direitos devido a características que lhe são inerentes, ou que se encontrem na natureza das coisas, como na linguagem ou na razão. Durkheim tem em mente especialmente autores como Rousseau, Kant e Spencer. Em cada um desses autores, apesar de que de maneiras diferentes, decorrem-se direitos individuais da natureza mesma dos indivíduos.
Durkheim apresenta um argumento empírico contra tais teses. Em primeiro lugar, o autor pretende ter demonstrado que o Estado e o indivíduo têm interesses divergentes. Ora, constata-se que o individualismo, os direitos individuais, aumenta com o decorrer da evolução. O Estado também aumenta em tamanho e importância. Tal situação, segundo Durkheim, não se coaduna com as doutrinas que atribuem ao indivíduo direitos intrínsecos, uma vez que, se tais direitos são dados com o indivíduo, caberia ao Estado apenas evitar que um indivíduo viole o direito de um outro. O Estado interfere cada vez mais em cada recanto da vida individual e, ao mesmo tempo, garante e aumenta os direitos individuais.
A solução para esse problema, segundo Durkheim, é rejeitar a tese segundo a qual os direitos individuais são dados com o indivíduo:
Mas então chegamos a uma antinomia insolúvel? Por um lado, constatamos que o Estado vai se desenvolvendo cada vez mais; por outro, que os direitos do indivíduo, que são vistos como opostos aos direitos do Estado, se desenvolvem paralelamente. Se o órgão governamental assume proporções cada vez mais consideráveis é porque sua função se torna cada vez mais importante, porque os fins que ele persegue, que estão ligados à sua própria atividade, se multiplicam; e no entanto negamos que ele possa perseguir outros fins que não os que interessam ao indivíduo. Ora, estes são vistos, por definição, como pertencentes ao âmbito da atividade individual. Se, como se supõe, os direitos do indivíduo são dados com o indivíduo, o Estado não tem de intervir para constituí-los; eles não dependem do Estado. mas então, se não dependem dele, se estão fora de sua competência, como os limites dessa competência podem se ampliar constantemente, ao passo que, por outro lado, eles devem conter cada vez menos coisas estranhas ao indivíduo?
O único meio de eliminar a dificuldade é negar o postulado segundo o qual os direitos do indivíduo são dados com o indivíduo, é admitir que a instituição desses direitos é obra do próprio Estado. (Durkheim, 2002: 80)
É interessante que a refutação de Durkheim assuma um caráter empírico. Cabe colocar que as teses que pretende refutar buscam encontrar na natureza humana elementos que fundamentem direitos individuais. Dizer que o homem é um ser naturalmente moral e que, portanto, deve ser respeitado, ou que é vivo e, portanto, deve viver é fazer afirmações acerca da realidade, que, em princípio, podem ser verificadas. É claro que não há como verificar empiricamente sentenças deontológicas. Durkheim, portanto, não está buscando demonstrar que o homem não deva ser respeitado, ou que não deva viver, mas apenas que tais conclusões não decorrem das premissas.
Assim, Durkheim apresenta as seguintes premissas, que são aceitas pelos que ele chama de individualistas: os direitos do homem são dados com o homem e os direitos do Estado são opostos aos direitos do homem. Assim sendo, não seria possível que, ampliando-se os direitos do indivíduo, ampliassem-se os direitos do Estado. Este fato é constatado. Logo as premissas não podem estar corretas.
O homem não é dotado, segundo Durkheim, de direitos decorrentes de sua própria natureza. Não é intrinsecamente valioso.
O homem não é outra coisa, do ponto de vista físico, que um sistema de células e, do ponto de vista mental, que um sistema de representações: em ambos os aspectos, ele diferencia-se apenas em grau do animal. (Durkheim, 2000: 236) [05]
4.2.5.Individualismo
Se, por um lado, Durkheim afirma sem hesitação que o homem é um sistema de células e representações, isso não o impede de atribuir a ele um valor. Durkheim é um "individualista" no sentido de que valoriza positivamente a liberdade individual, liberdade de expressão e de crença, etc. O autor comunga também com muitos dos valores que se costuma associar à "Modernidade". O repúdio à instituição da herança, a valorização da educação laica. Estes são apenas alguns elementos que nos permitem perceber o individualismo durkheimiano. A singularidade de Durkheim está em que ele não decorre tais valores de características do indivíduo, mas de características da sociedade, e não desta em abstrato, mas da sociedade moderna.
Em primeiro lugar cumpre esclarecer que o homem, na visão de Durkheim, deve sua humanidade à sociedade:
E, com efeito, o homem só é homem porque vive em sociedade. Retire-se do homem tudo o que é de origem social e não restará mais que um animal, análogo aos outros animais. Foi a sociedade que o elevou tão acima da natureza física, e ela alcançou esse resultado porque a associação, agrupando as forças psíquicas individuais, intensifica-as, leva-as a um grau de energia e de produtividade infinitamente superior ao que poderiam atingir se continuassem isoladas umas das outras. Surge assim uma vida psíquica de novo tipo, infinitamente mais rica, mais variada do que aquela de que o indivíduo solitário poderia ser o palco, e a vida que assim se produz, penetrando o indivíduo que dela participa, transforma-o. (Durkheim, 2002: 84)
Percebe-se aqui que o homem é algo distinto dos demais animais, e não apenas em grau. O que é propriamente humano não são características biológicas ou físicas, mas características sociais. Um homem não social não seria um homem. O abismo que há entre um homem e um animal é o mesmo que haveria entre um homem e um homem não-social. A sociedade não apenas confere uma natureza diferente ao homem, confere uma natureza mais elevada, uma natureza superior.
Em outro lugar Durkheim argumenta que:
Nada vem do nada, e o indivíduo abandonado a si mesmo não poderia elevar-se acima de si mesmo. O que faz com que ele se supere, com que ele tenha ultrapassado a tal ponto o nível da animalidade, é o fato de a vida coletiva repercutir nele, de penetrá-lo; são esses elementos adventícios que lhe fazem uma outra natureza. (Durkheim, 2002: 127)
Esta expressão "elevar-se acima de si mesmo" aparece repetidas vezes na obra do autor. Claro está que não é isenta de juízos valorativos. O indivíduo, elevado acima de sua natureza, não é mais um ser qualquer. É agora um ser de uma natureza distinta, é um ser valioso. Não mais se equipara aos demais animais, tendo superado o "nível da animalidade".
Bem, poderíamos aqui estabelecer uma distinção que considero importante. Dizer que o homem é um ser valioso não é o mesmo que dizer que é considerado valioso. Durkheim ao afirmar que a sociedade eleva o homem acima de sua natureza, tanto intelectualmente como moralmente, poderia ainda admitir que tais características não fazem dele um ser mais ou menos valioso. Poderia mesmo admitir que a sociedade o considera valioso e compele os indivíduos a pensar e agir assim, sem admitir que ele o seja, ou melhor, sem julgar que esta constatação implique na fundamentação de uma determinada moralidade.
Tal não é o caso. Efetivamente Durkheim pretende fundamentar uma moralidade. Esta moralidade é a que valoriza o indivíduo. A diferença entre o pensamento de Durkheim, neste ponto, e o pensamento dos autores que ele chamou individualistas, consiste em que os atributos do indivíduo não lhe são dados naturalmente, mas socialmente, bem como seu valor e seus direitos. Não são atributos imanentes, mas lhe são atribuídos pela sociedade.
Da mesma forma como refutou o que chamou de "individualismo" (o jusnaturalismo) com recurso a elementos empíricos, Durkheim pretende fundamentar a moralidade individualista e a democracia empiricamente. O argumento é, em suma, o de que a evolução da sociedade caminha no sentido de uma moralidade individualista, e a forma de governo que mais se adequa a tal moralidade é a democrática, tal como o autor a define. Tomemos, em princípio, a moralidade individualista, ou seja, em especial a idéia de que o indivíduo é valioso. Sobre este ponto afirma o autor:
Porém, quanto mais avançamos na história mais vemos as coisas mudarem. Antes perdida no seio da massa social, a personalidade individual se destaca dela. O círculo da vida individual, antes restrito e pouco respeitado, amplia-se e torna-se o objeto eminente do respeito moral. O indivíduo adquire direitos cada vez mais extensos a dispor de si mesmo, das coisas que lhe são atribuídas, a se fazer do mundo as representações que lhe pareçam mais convenientes, a desenvolver livremente sua natureza. (...) O Estado deve voltar-se para revelar sua natureza. Haverá quem diga que esse culto do indivíduo é uma superstição da qual devemos nos desvencilhar. Mas isso é contrariar todos os ensinamentos da história; pois quanto mais se avança, mais cresce a dignidade da pessoa. Não há lei mais estabelecida. (Durkheim, 2002: 78)
Aqui Durkheim pretendeu apresentar fatos acerca da realidade. Ao longo do tempo, segundo o autor, o indivíduo foi sendo cada vez mais valorizado. A história mostra, então, que quanto mais se avança, mais cresce a dignidade da pessoa. Esse fato contestaria a tese segundo a qual o "culto do indivíduo é uma superstição da qual devemos nos desvencilhar". Ora, a tese segundo a qual com a evolução da sociedade aumenta o valor atribuído à pessoa humana não é incompatível com a outra que estabelece que devemos nos desvencilhar de tal culto à pessoa humana. Do mesmo modo uma tendência da taxa de homicídios a aumentar não constitui refutação da norma segundo a qual não se deve matar. O fato não nega a norma. A história não refuta valores.
Acerca da democracia, Durkheim a define como a forma de governo em que há uma concentração da consciência coletiva em um determinado órgão, sendo que a abrangência das matérias por ele tratadas é máxima, mas também é máxima a comunicação desta consciência coletiva concentrada com a consciência coletiva difusa. Em suma, é um governo laico, que delibera sobre os mais variados assuntos, que expõe sua deliberação à apreciação da coletividade, que recebe de volta como que pareceres das diversas partes da coletividade e os leva em consideração e, por fim, que decide com base nestes elementos acrescidos de sua própria contribuição.
A democracia seria a forma de governo mais adequada ao valor que se atribui à personalidade individual e a mais adequada a enfrentar as transformações por que tem de passar uma sociedade complexa. Além disso, a democracia é para onde tende a evolução da sociedade.
Portanto, não é que há quarenta ou cinqüenta anos a democracia começasse a fluir com sua plena capacidade; sua escalada foi contínua, desde o início da história. (Durkheim, 2002: 125)
A Democracia entendida como o regime da reflexão, é a direção natural para que tende a sociedade. Aqui novamente convém colocar que o fato de que a democracia seja o rumo que as sociedades tomam não constitui fundamento para tal regime. Ou melhor, não constitui a não ser que se suponha que as coisas devam ser tais como o rumo de sua evolução aponta, ou que as coisas devam ser tais quais são. Durkheim parece fazer esta suposição. Procurarei mostrar agora que Durkheim entende que se algo é, deve ser. Assim também se a história caminha em determinado sentido, deve fazê-lo.
Um primeiro trecho em que isso aparece de forma explícita é o que segue:
A autonomia de que o indivíduo pode desfrutar não consiste então em se insurgir contra a natureza; uma tal insurreição é absurda, estéril, quer a tentemos contra as forças do mundo material ou contra as do mundo social. Ser autônomo é, para o homem, compreender as necessidades às quais ele deve se dobrar e que ele deve aceitar com conhecimento de causa. Não podemos fazer com que as leis das coisas sejam diferentes do que são; mas nos libertarmos delas pensando-as, ou seja, fazendo-as nossas pelo pensamento.
Que se insurgir contra a natureza seja estéril bem pode ser uma afirmação destituída de conteúdo normativo, mas que seja absurdo não. Durkheim afirma aqui que o homem deve compreender as forças às quais deve se dobrar. Com tal afirmação não parece o autor estar se referindo a que a vontade humana seja causalmente condicionada e que a compreensão de tal causalidade não a torne estéril. Está a dizer que não deve o homem insurgir-se contra a natureza, que deve agir como pedem "as leis das coisas". Como não podemos impedir que as coisas sejam como são, Durkheim conclui que devemos aceitá-las tais como são. Em outra passagem, que acima comentamos em parte, Durkheim afirma de maneira mais clara este axioma:
quanto mais se avança, mais cresce a dignidade da pessoa. Não há lei mais bem estabelecida. Por isso qualquer tentativa de assentar as instituições sociais no princípio oposto é irrealizável e só pode ter um sucesso de um dia. Pois não se pode fazer com que as coisas sejam diferentes do que são. Não se pode fazer com que o indivíduo não tenha se tornado o que é, ou seja, um foco autônomo de atividade, um sistema imponente de forças pessoais cuja força não pode mais ser destruída que a das forças cósmicas. Já não é possível, a esta altura, transformar nossa atmosfera física, no seio da qual respiramos. (Durkheim, 2002: 79)
Durkheim está argumentando contra os que defendem que devemos nos desvencilhar do culto ao indivíduo. A argumentação caminha no sentido de que é impossível tal desvencilhamento. Ora, Durkheim sabe muito bem que a impossibilidade de se realizar determinado ato não constitui a negação do dever de fazê-lo. Assim diz o autor:
O pensamento verdadeira e propriamente humano não é um dado primitivo, é um produto da história, é um limite ideal do qual nos aproximamos sempre mais, mas que provavelmente nunca chegaremos a atingir. (Durkheim, 2000: 496)
Neste caso Durkheim não conclui que não devamos tentar atingir o pensamento propriamente humano. Mas anteriormente concluiu que não se deveria abrir mão do culto ao indivíduo por ser tal ato impossível. Ocorre que em um dos casos Durkheim fez intervir o pressuposto de que as coisas devem ser como são, e no outro não. Este pressuposto parece estar na base da distinção entre normal e patológico. Tanto assim que a generalidade é um dos atributos essenciais da normalidade. (Durkheim, 1995: 56) A patologia é anormal, não é geral, é efêmera.
Assim, o fundamento da deontologia durkheimiana é a idéia de que não se deve impedir que as coisas sejam como são, e isto porque tal empreendimento é impossível. Por isso muitos o têm como conservador a despeito de suas idéias propriamente políticas.
É com base nesta deontologia que Durkheim pretende reviver as corporações de ofício. Segundo ele elas correspondem a necessidades sociais permanentes. O fato de que as corporações de ofício tenham sido de fato abolidas não fez com que desaparecessem as necessidades sociais a que elas respondiam, ou deviam responder. A permanência de tais necessidades, e o papel que a vida econômica assumiu constituem a principal patologia da sociedade moderna, entendido que faltam à vida econômica os grupos capazes de gerar uma moralidade que lhe regule.
A partir de um estudo empírico, relacionando fatos, Durkheim conclui um dever ser. A partir da "constatação" de que não há uma moralidade que una os industriais e os operários, e de que "sempre houve" uma moralidade econômica, Durkheim conclui que "deve haver" uma moralidade econômico-industrial. A não existência constatada é um mal, algo a ser transformado.
Da mesma forma com relação à Democracia. Durkheim condena a democracia representativa em favor de uma nova espécie de democracia que não "sujeite" o Estado aos indivíduos. Estes estão aquém da sociedade, não são capazes de vislumbrar seus objetivos, interesses e necessidades, donde não convém que lhes caiba tutelar o trabalho decisório do Estado. Da mesma forma o Estado está muito "acima", muito distante, dos indivíduos, de forma que carece de um órgão intermediário, um tanto mais próximo, a fim de que possa atender na medida necessária aos interesses dos indivíduos.
Como Durkheim aceitou, dentre as premissas de seus estudos, premissas normativas, em especial a premissa de que a Sociedade é algo valioso, e que confere valor ao homem, e a premissa de que o que de fato ocorre com dada regularidade deve ocorrer, pôde chegar, ao longo de toda sua obra, a conclusões normativas. Dentre as premissas normativas aceitas por Durkheim contam-se, pelo menos, aquela segundo a qual aquilo que ocorre de fato com dada regularidade não apenas ocorre, mas deve ocorrer, e aquela segundo a qual a Sociedade é algo intrinsecamente valioso e capaz de conferir um pouco de seu valor aos indivíduos. Este valor da sociedade decorre de sua superioridade moral e cognitiva. Estas premissas permitem que o autor considere patológicas as situações em que um fato bastante geral não ocorre, e que ele valore positivamente determinados tipos de sociedade, a saber uma "democracia" não representativa, onde o Estado oferece algo de si próprio às decisões políticas a serem tomadas.
Temos aí, evidentemente, um jusnaturalismo sociológico. Na medida em que Durkheim se julga capaz de, a partir de um estudo factual acerca do desenvolvimento histórico do Estado e da Sociedade, chegar a uma conclusão acerca de qual forma de governo deveria determinada sociedade adotar, está justamente deduzindo um direito ideal dos fatos que observa. A democracia representativa é valorada negativamente, já que constitui um estado patológico da sociedade, não correspondendo às tendências evolutivas que apontam no sentido de um maior individualismo, que para Durkheim é um produto de um Estado que deve ser de alguma forma independente dos indivíduos. Assim, não obstante ter o próprio Durkheim polemizado com aqueles que chamou de jusnaturalistas, elaborou um jusnaturalismo sociológico, derivando de suas observações factuais acerca da sociedade não apenas um conjunto de normas que deveriam ser observadas, mas toda uma forma de governo.
4.3.Nicklas Luhmann
Luhmann é um sociólogo contemporâneo que dedicou uma importante obra ao estudo da sociologia do direito, que teve já alguma influência no pensamento de alguns juristas, em especial sua concepção do direito como um sistema autopoiético. Entretanto, tal recepção em geral se dá no sentido de rejeição do pensamento deste autor em função de pretender fechar o direito no próprio direito, deixando de perceber as relações que o direito tem com outros campos da vida social. Esta é uma crítica bastante semelhante à que normalmente é dirigida ao pensamento kelseniano. Isto, no entanto, não revela qualquer afinidade entre o pensamento destes dois autores.
O pensamento de Luhmann será exposto aqui de forma necessariamente seletiva. Por certo ficarão de fora da exposição elementos importantes de sua teoria, mas que não são indispensáveis para a apreciação das críticas que Kelsen dirige à sociologia do direito, tais como podem ser aplicadas ao pensamento luhmaniano.
4.3.1.O direito como um sistema de alta complexidade estruturada
A abordagem que Luhmann faz do direito é bastante diferente da abordagem clássica. Ele não toma o direito simplesmente como uma ordem coercitiva, mas como uma resposta a uma necessidade sistêmica da sociedade. Luhmann parte das relações entre indivíduos e suas necessidades para construir um modelo sistêmico de sociedade. As necessidades que os indivíduos têm de redução das contingências dão origem ao sistema jurídico que limita as contingências.
Luhmann também aceita a tese segundo a qual a sociologia do direito diverge da jurisprudência em sua interpretação sobre o direito. A construção que a sociologia do direito realiza não adota a "orientação normativa da vida em sociedade". Não se trata de descrever e explicar normas em suas relações com princípios mais gerais ou de alguma forma superiores, nem tampouco de descrever aquilo que os juristas pensam sobre o direito.
Por isso a sociologia não se sente obrigada, e sequer autorizada, a compartilhar com a orientação normativa da vida em sociedade, e a procurar a base de sua vigência em normas superiores e princípios indubitáveis, pois desta forma, como Emile Durkheim observou quase ironicamente, ela identificaria não a realidade da moral de determinadas sociedades, mas apenas o modo como o moralista concebe a moral. (Luhmann, 1983: 22)
A construção luhmaniana, portanto, não é uma construção normativa, que corresponda de alguma forma ao pensamento normativo dos juristas. Seu pensamento, entretanto, envolve conceitos pouco corriqueiros na sociologia, de modo que para apresentar o pensamento de Luhmann é necessária a definição de alguns conceitos. Aquilo que o autor chama de complexidade desempenha um importante papel na sociologia do direito luhmanniana.
Complexidade deve ser entendida aqui e no restante desse texto como a totalidade das possibilidades de experiências ou ações, cuja ativação permita o estabelecimento de uma relação de sentido – no caso do direito isso significa considerar não apenas o legalmente permitido, mas também as ações legalmente proibidas, sempre que relacionadas ao direito de forma sensível, como, por exemplo, ao se ocultarem. (Luhmann, 1983: 12)
Complexidade se refere ao conjunto de todas as possibilidades de experiência. O direito, neste sentido, seria um sistema de alta complexidade. Há portanto, inúmeras possibilidades de experiências humanas relacionadas ao direito. No entanto, o direito não é tão somente um sistema de alta complexidade, mas de alta complexidade estruturada.
A complexidade de um campo de possibilidades pode ser grande ou pequena, em termos quantitativos, de diversidade ou de interdependência. Além disso ela pode ser desestruturada ou estruturada. A complexidade totalmente desestruturada seria o caso limite da névoa original, do arbítrio e da igualdade de todas as possibilidades. A complexidade estruturada constitui-se na medida em que as possibilidades se excluam ou limitem reciprocamente. Na complexidade estruturada, portanto, surgem problemas de compatibilidade e compossibilidade. A ativação de uma determinada possibilidade bloqueia a da outra, mas permite, por outro lado, a construção de novas possibilidades que a pressupõem. (Luhmann, 1983: 13)
Assim, por um sistema de alta complexidade estruturada se entende um sistema em que há inúmeras possibilidades de experiências humanas. Estas possibilidades, entretanto, podem, estar de tal forma vinculadas que se excluam mutuamente. Segundo Luhmann, o direito é um sistema de alta complexidade estruturada. "O ordenamento jurídico, tal com nós o conhecemos atualmente, é uma construção de alta complexidade estruturada. (Luhmann, 1983: 12)". Com isto se pretende dizer que as possibilidades de experiência jurídica se excluem mutuamente de certa forma.
É justamente esta a função da estrutura: reduzir, ou tornar viável a experimentação de um sistema de alta complexidade. "Seguindo as considerações acima esboçadas, a estrutura de um sistema social tem por função regular a complexidade do sistema. (Luhmann, 1983: 14)". Regular a complexidade do sistema significa determinar compossibilidades e impossibilidades de coexistência de experiências.
O sistema jurídico desenvolveu-se em um sentido de aumento da complexidade. Para que uma complexidade maior, ou seja, um maior número de possibilidades de experiências, pudesse ser estruturada, o direito teve de alterar-se em um sentido determinado. O direito teve de tornar-se mais abstrato e mais maleável. Para que possa abranger um número crescente de experiências o direito tem de ser modificável. Para que possa regular inúmeras experiências muito distintas entre si, o direito tem de ser abstrato, ou seja, não fazer referência a experiências demasiado concretas, referindo-se, antes, em cada disposição a um amplo número de experiências de alguma forma relacionadas entre si.
No decorrer do desenvolvimento social em direção à complexidade mais elevada, o direito tem que se abstrair crescentemente, tem que adquirir uma elasticidade conceitual-interpretativa para abranger situações heterogêneas, tem que ser modificável através de decisões, ou seja: tem que se tornar direito positivo. Nesse sentido formas estruturais e graus de complexidade da sociedade condicionam-se reciprocamente. (Luhmann, 1983: 15)
Este sistema de alta complexidade estruturada tem sua expressão mais acabada no modelo do direito positivo. Luhmann considera uma importante lacuna na sociologia do direito a ausência de qualquer análise mais profunda sobre o tema da positividade. Em sua opinião é esta positividade uma resposta às necessidades de redução da contingência de experiências em um sistema altamente complexo e em constante transformação.
Até hoje não existe nenhuma abordagem digna de registro no sentido de uma teoria sociológica da positividade do direito. O debate sobre o positivismo foi relegado aos juristas, em cujas mãos ele inevitavelmente limitou-se à problemática jurídica imanente das bases legitimadoras do direito positivo. (Luhmann, 1983: 35)
Esta lacuna do pensamento sociológico sobre o direito tem, para Luhmann, certas razões que podem ser explicitadas. De um lado, segundo ele, a sociologia em geral estava sofrendo de um certo descrédito quando do surgimento da sociologia do direito, sendo rejeitadas àquele tempo as teses organicistas em sociologia. Entretanto, a explicação mais importante que este autor apresenta é a de que não houve uma disposição para aprofundar no estudo da noção de "dever ser".
(...) não estavam, e ainda não estão, esclarecidos os processos elementares da formação do direito, o sentido do dever ser, a função do direito como componente da estrutura de sistemas sociais. (Luhmann, 1983: 35)
O "dever ser" era tomado como uma noção básica, não como um objeto a ser mais bem analisado e explicado. Isto fechava à sociologia clássica do direito inúmeras questões. A sociologia sistêmica do direito, tal como formulada por Luhmann, ao colocar em questão o dever ser, buscando explicitar seu significado em termos funcionais, abre à visão do sociólogo questões importantes que apontam no sentido da sociologia da positividade do direito.
4.3.2.A análise sociológica do dever ser
Segundo Luhmann, o "dever ser" não é, e não deve ser tomado como, um conceito básico ou fundamental da sociologia do direito. Com isto, pretendo dizer, aqui, que o "dever ser" não é um conceito que não possa ser, na opinião do autor, explicado em outros termos. Não cabe à sociologia do direito, que não tem uma orientação normativa e não está presa ao modo de ver dos juristas, tomar a noção de "dever ser" como algo que dispensa maiores considerações.
Nenhuma das sociologias do direito até hoje apresentadas foi capaz de aprofundar-se até às raízes do direito. Podemos chegar rapidamente a uma visão geral sobre o que foi feito nesse sentido. O dever ser é pressuposto como uma qualidade experimentada, vivenciável mas não mais detalhadamente analisável, como o "fato" básico da vida jurídica. Com isso bloqueia-se de imediato o acesso às indagações mais ricas ao nível teórico. (Luhmann, 1983: 42)
O "dever ser" é normalmente, segundo o autor, tomado pela sociologia do direito como algo experimentado pelos indivíduos, como um fato vivenciável. A experiência normativa é, portanto, tomada como algo dado. Desta forma, o direito pode surgir como um problema de pesquisa sem que se coloque o próprio direito em questão. Não se pergunta, assim, por que há um sistema jurídico em uma sociedade determinada, nem quais são as funções que tal sistema desempenha na sociedade como um todo, mas tão somente, por que tal sociedade tem este, e não aquele, sistema jurídico.
O direito surge, então, como uma construção social em princípio indispensável, mas sempre contingente em cada efetuação. Essa contingência, esse condicionamento da opção por outras possibilidades torna-se o tema da sociologia do direito. (Luhmann, 1983: 21)
O direito é visto, aí, como algo necessário, mas que varia em função de determinados elementos. A tarefa da sociologia do direito seria, então, apenas determinar quais são estes elementos e o modo como afetam a experiência jurídica. O direito, em si, está simplesmente dado.
Luhmann busca ultrapassar esta abordagem. Como já mencionado, sua sociologia do direito não parte do direito como um fato dado. O autor busca, podemos dizer, reduzir o "dever ser" a certos elementos da interação dos indivíduos e, de forma ainda mais ousada, a necessidades societárias e necessidades individuais de limitação da contingência e complexidade da vida social.
Se quisermos ir mais ao fundo teremos primeiro que analisar o fato do dever ser. Não é suficiente apenas aceitar o dever ser de todas as normas como um dado básico do direito, ou supô-lo como uma qualidade, não mais definida, da experiência fática. Pode-se, ainda, indagar quanto ao sentido do dever ser, ou mais precisamente: quanto à sua função. O que afirma esse símbolo do dever ser? Qual o significado de que experiências e principalmente expectativas sejam experimentadas com essa qualidade do dever ser? Sob quais circunstâncias que essa qualificação é escolhida, e para quê? Quais temas são assim reforçados? E quais os comportamentos daí decorrentes? (Luhmann, 1983: 43)
O "dever ser", na sociologia de Luhmann, está em questão. Ele não está dado. Cumpre ao pensamento sociológico apresentar seu significado, desvendar suas funções.
Os resultados da engenhosa análise luhmaniana apontam para o "dever ser" como uma resposta a uma necessidade de limitação da dupla contingência gerada pela convivência social. Explicitaremos agora a argumentação do autor neste sentido. Para tanto é necessário que bem se compreenda o que se pretende dizer por complexidade, contingência e dupla-contingência.
Vejamos como o autor define a complexidade e a contingência:
Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas; ou seja, que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível, ou a algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta (por exemplo, indo-se ao ponto determinado), não mais lá está. Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos. (Luhmann, 1983: 45)
A experiência humana lida constantemente com a complexidade. A infinidade de possibilidades de agir força uma seleção, que sempre pode ser frustrante. Perante um rio, pode-se tentar atravessá-lo ou resignar-se a tomá-lo como uma barreira intransponível. Na primeira hipótese as conseqüências podem ser desastrosas. Pode-se perder um carregamento ou mesmo a vida na travessia. Na segunda hipótese, também, as conseqüências podem ser desalentadoras. Pode-se abandonar um projeto de assentar acampamento em um vale muito fértil, ou pode-se perder a oportunidade de travar contato com um outro grupo do outro lado. Uma seleção é simplesmente necessária. Não se pode atravessar e não atravessar o rio. Uma vez perdida a carga na travessia, não se pode pretender que isto não se tenha passado. Uma vez travado contato com outro grupo, isto não pode ser desfeito.
A experiência humana consiste, portanto, também em seleção de possibilidades. Tal seleção está sempre em face da contingência das próprias escolhas. Cada seleção implica riscos, possibilidades de ganhos ou frustrações. A contingência ainda pode ser aumentada em função da existência de um alter ego, cujo comportamento depende da própria seleção do ego, gerando, portanto, uma dupla contingência.
Encontrar um alter e tomá-lo como um outro ego significa a possibilidade de aquisição de um número muito maior de experiências, o que é valioso no sentido de que a seleção de possibilidades pode se dar com base não mais apenas nas experiências próprias, mas também nas experiências de um outro eu, o alter. Isto, entretanto, tem um "preço".
O preço disso está na potenciação do risco: na elevação da contingência simples do campo de percepção, ao nível da dupla contingência do mundo social. Reconhecer e absorver as perspectivas de um outro como minhas próprias só é possível se reconheço o outro como um outro eu. Essa é a garantia da propriedade da nossa experiência. Com isso, porém, tenho que conceder que o outro possui igualmente a liberdade de variar seu comportamento, da mesma forma que eu. Também para ele o mundo é complexo e contingente. Ele pode errar, enganar-se, enganar-me. Sua intenção pode significar minha decepção. O preço da absorção de perspectivas estranhas é, formulado em termos extremados, sua inconfiabilidade. (Luhmann, 1983: 47).
Desta forma, quando a experiência do alter é tomada em consideração para a seleção de possibilidades, toma-se o alter como um outro ego, donde características do ego passam a lhe ser imputadas. Se por um lado tem-se assim um acúmulo muito maior de experiências, tem-se, por outro que tais experiências não são tão confiáveis como as próprias. O mundo complexo do ego se torna duplamente complexo enquanto um mundo de vários egos. Assim, por experiência pessoal um indivíduo pode tratar a possibilidade de utilizar um determinado animal como alimento, digamos, um pássaro que existe em abundância na região, como uma possibilidade aberta. Entretanto, outro indivíduo pode lhe contar sobre uma experiência trágica que teve quando se alimentava daquele animal, digamos, sua esposa e filhos teriam falecido e ele próprio teria passado muito mal. Suponhamos que o primeiro indivíduo já havia, por várias vezes, se alimentado daquela ave sem maiores problemas. Sua experiência, entretanto, foi enriquecida com um relato que aponta no sentido de afastar uma possibilidade que ele tinha como aberta. Este enriquecimento da experiência, se por um lado pode lhe poupar uma doença decorrente de alimentar-se da ave, pode também, considerando a possível má-fé ou simples equívoco do alter lhe vedar uma possibilidade confortável e lhe render uma vida muito mais difícil.
Não se trata mais simplesmente da contingência do mundo natural, mas também a contingência do acesso mediato a uma experiência do mundo natural.A dupla contingência é mais difícil de ser contornada do que a contingência simples da experiência perante a natureza. O "dever ser", segundo o autor, é uma noção que responde a estas necessidades de estruturação, que decorre da experiência existencial dos indivíduos.
Temos, portanto, que os indivíduos humanos têm uma necessidade por limitação da contingência gerada pela seleção forçada pela complexidade da experiência. Tal necessidade tem, podemos dizer, um caráter psíquico.
Nesse campo de pesquisa, para cujo esclarecimento contribuíram cientistas das mais diferentes áreas – fenomenólogos e psicanalistas, psicólogos sociais e teóricos do aprendizado, sociólogos e teóricos da cibernética – devem ser descobertas as origens da singular necessidade de ordenamento que é satisfeita pelo direito. (Luhmann, 1983: 44)
Psicólogos, psicanalistas, fenomenólogos e sociólogos, colaboraram no sentido de desvendar a existência de uma necessidade de ordenamento, ou melhor, necessidade de regulação. O ordenamento, como já mencionado, consiste em uma regulação de possibilidades, limitando contingências. A resposta à necessidade de limitação de contingências são as estruturas de assimilação de possibilidades.
Sobre essa situação existencial desenvolvem-se estruturas correspondentes de assimilação da experiência, que absorvem e controlam o duplo problema da complexidade e da contingência. Certas premissas da experimentação e do comportamento, que possibilitam um bom resultado seletivo são enfeixadas constituindo sistemas, estabilizando-se relativamente frente a desapontamentos. (Luhmann, 1983: 46)
A situação existencial humana é tal que há um ganho na limitação de possibilidades. Quando um dado sistema de assimilação determina que a energia elétrica é perigosa, previne-se que cada indivíduo tenha de assumir riscos nas escolhas que faz quando está lidando com aparelhos elétricos. Um eletricista não precisa se questionar quanto aos equipamentos necessários, e as condições adequadas para a troca de uma fiação em uma casa. Há uma estrutura de assimilação de experiências que afasta a possibilidade de trocar-se a fiação sem desligar previamente a corrente e sem um equipamento determinado (luvas de borracha, botas de borracha, etc).
No entanto, ocorre, e este é um ponto fundamental, que as estruturas de assimilação de experiências não são do mesmo tipo independentemente da espécie de experiências que assimilam. Há duas espécies distintas de estruturas de assimilação de experiências.
Frente à contingência simples erigem-se estruturas estabilizadas de expectativas, mais ou menos imunes a desapontamentos – colocando as perspectivas de que à noite segue-se o dia, que amanhã a casa ainda estará de pé, que a colheita está garantida, que as crianças crescerão... Frente à dupla contingência necessita-se outras estruturas de expectativas, de construção muito mais complicada e condicionada: as expectativas. A vista da liberdade de comportamento dos outros homens são maiores os riscos e também a complexidade do âmbito das expectativas. Conseqüentemente, as estruturas de expectativas têm que ser construídas de forma mais complexa e variável. (Luhmann, 1983: 47)
As estruturas de assimilação de experiências, para que possam dar conta da dupla contingência, têm de assumir um caráter diverso das estruturas simples de assimilação de experiências. As estruturas de assimilação que garantem que após a noite segue-se o dia necessitam de reformulação sempre que sofrem frustrações. São estruturas pouco resistentes ao erro. Trata-se de estruturas elaboradas para lidar com a contingência simples do mundo natural. Tais estruturas selecionam possibilidades a partir daquilo que recorrentemente ocorre. Um contra-exemplo a uma assimilação de experiências nesta forma é suficiente para implicar em uma reformulação. Assim, o fato de encontrar um cavalo atravessando um rio é suficiente para desfazer a expectativa de que cavalos são incapazes de nadar.
Já as experiências que temos a partir do convívio com outros seres humanos são constantemente confrontadas com contra-exemplos. Um garoto calmo tem um acesso de raiva, uma mãe pratica incesto com seu filho, um marido é adúltero, meu vizinho furta meus objetos, etc. As experiências que envolvem dois ou mais sujeitos humanos não são, muitas vezes, passíveis de apreensão pela estrutura de assimilação de contingências que aplicamos para assimilar outras experiências. O problema da dupla contingência implica na destruição constante deste tipo de estrutura de assimilação, limitando em grande medida a possibilidade de que respondam satisfatoriamente às necessidades de estruturação neste campo da experiência.
Para uma análise do processo de interação e dos sistemas que o conduzem seria imprescindível uma dissecação precisa desses diversos planos das discrepâncias possíveis e das estratégias daí decorrentes no sentido da interpretação defensiva e do comportamento de conflito. Naturalmente, isso não pode ser realizado na vida cotidiana. Portanto, as simplificações, inevitáveis na busca de orientação, precisam estar, ao mesmo tempo, imunizadas contra o risco do erro. Elas precisam, em outras palavras, poder preencher sua função estruturalizante até mesmo quando interpretam erradamente a realidade ou as expectativas sobre a realidade. (Luhmann, 1983: 50)
São necessárias, portanto, estruturas de assimilação de sentido que não necessitem ser revistas, mesmo no caso de se revelarem equivocadas, ou seja, no caso de a experiência efetiva diferir daquilo que é expectável com base na estrutura de assimilação em questão. Isto é possível na medida em que aquilo que de se tem necessidade não é estabilização de comportamentos, mas estabilização de expectativas de comportamentos.
A função de tais sínteses regulativas do sentido não é captada plenamente se partirmos, e essa é a compreensão predominante, apenas da visão da expectativa comportamental, e em decorrência concentrarmo-nos na questão da garantia do comportamento conforme às expectativas. Essa função tem seu centro de gravidade no plano reflexivo da expectativa sobre expectativas, criando aqui segurança em termos de expectativas, à qual se segue, apenas secundariamente, a segurança sobre o comportamento próprio e a previsibilidade do comportamento alheio. É muito importante, para a compreensão do direito, ter uma visão clara dessa diferença. Isso porque a segurança na expectativa sobre expectativas, seja ela alcançada por meio de estratégias puramente psíquicas ou por normas sociais, é uma base imprescindível de todas as interações, e muito mais importante que a segurança na satisfação de expectativas. (Luhmann, 1983: 52)
A necessidade de segurança acerca do comportamento dos demais seres humanos pode ser satisfeita apenas de maneira secundária, por meio da estabilização das expectativas. Tal estabilização pode ser atendida mesmo contra diversos contra-exemplos. Espera-se que seres humanos não tomem a propriedade alheia. Um contra-exemplo desta expectativa não frustra a própria expectativa. O fato de que fui furtado em um dado momento da minha vida não autoriza a expectativa de que os seres humanos em geral podem ser considerados como uma ameaça à minha propriedade. O sistema de assimilação gerado em função da dupla contingência determina que eu espere que esperem de mim um determinado comportamento perante os indivíduos. Mesmo que eu não me comporte desta forma, estas mesmas expectativas permanecem. Da mesma forma espera-se que eu não espere que os demais indivíduos em geral serão autores de furtos, salvo em certas circunstâncias específicas.
Este sistema de assimilação de complexidades utilizado para limitar a dupla contingência pode assumir uma forma normativa.
Trata-se de uma hipótese saudável, presumir que aqui se encontram os riscos e as disfunções psíquicas peculiares à expectativa sobre expectativas, podendo-se também supor que a experimentação projetiva muitas vezes assuma a forma normativa. (Luhmann, 1983: 51)
A experimentação projetiva a que o autor se refere no trecho citado acima se refere às experiências que podemos utilizar apesar de terem sido vivenciados por um outro, ao tomarmos este outro como um "outro eu". Esta experimentação projetiva está na origem do problema da dupla contingência. A assimilação da dupla contingência em estruturas de assimilação, pode-se, segundo o autor, supor, pode se dar por uma forma normativa.
A forma normativa, a regra, como uma estrutura de assimilação tem determinadas vantagens sobre a forma simples de sintetizar experiências. Tais estruturas de assimilação, ou sínteses comportamentais, ou sínteses de experiências servem como uma espécie de simplificação do mundo, um instrumental que auxilia as tomadas de decisão e ações humanas no mundo. A forma normativa tem a vantagem de suportar os contra-exemplos imputando ao exemplo divergente, e não à fórmula simbólica, o erro.
Sínteses comportamentais anonimizadas evitam, normalmente, até mesmo a percepção do entrelaçamento de expectativas concretas. Elas funcionam como uma espécie de fórmula curta simbólica para a integração de expectativas concretas. A orientação a partir da regra dispensa a orientação a partir das expectativas. Ela absorve, além disso, o risco de erros da expectativa, ou pelo menos o reduz, isso porque, graças à regra, pode ser suposto que aquele que diverge age erradamente, que a discrepância se origina, portanto, não da expectativa (própria) errada, mas da ação (alheia) errada. Nessa medida a regra alivia a consciência no contexto da complexidade e da contingência. (Luhmann, 1983: 53)
Temos, em Luhmann, portanto, uma redução do "dever ser" ao "ser", já que o "dever ser" é tão somente uma forma simbólica da permanência da expectativa mesmo em face de um contra-exemplo. Entretanto, tal redução não impede que haja uma distinção entre as expectativas cognitivas e as expectativas normativas. Esta distinção, em Luhmann, entretanto, resume-se à sua função peculiar. As expectativas cognitivas são aquelas que estamos dispostos a deixar de lado em face de contra-exemplos, e as expectativas normativas são aquelas que não estamos dispostos a abandonar, ainda que diante de contra-exemplos.
Desta forma as expectativas cognitivas são caracterizadas por uma nem sempre consciente disposição de assimilação em termos de aprendizado, e as expectativas normativas, ao contrário, caracterizam-se pela determinação em não assimilar os desapontamentos. (Luhmann, 1983: 56)
Por certo que tais expectativas normativas não são imodificáveis. Sua não alteração em face de contra-exemplos não significa que elas não possam ser alteradas ou modificadas de qualquer forma. Segundo o autor, na medida em que é possível formar corretamente expectativas ou expectativas de expectativas, uma regra pode retornar ao nível de uma adequação concreta, sendo modificável pelo mútuo consentimento (Luhmann, 1983: 53). Esta possibilidade, no entanto, não está sempre aberta. Não é possível a todos ou a qualquer momento estabelecer tais acordos sobre expectativas ou expectativas de expectativas sobre bases concretas. É justamente a esta impossibilidade que Luhmann chama de "vigência" da norma.
A flexibilidade da estrutura normativa simples de pequenos sistemas sociais reside essencialmente nessa possibilidade de estabelecer concordâncias casuísticas e divergências em comum. A vigência de normas fundamenta-se na impossibilidade fática de realizar isso em todos os momentos e para todas as expectativas de todas as pessoas. Desta forma, a vigência de normas reside em última análise na complexidade e na contingência do campo da experimentação, onde as reduções exercem sua função. (Luhmann, 1983: 53)
Quando tomamos, portanto, uma regra por válida, podemos entender que não é possível, em uma dada ocasião, alterá-la por mútuo consentimento, ainda que as circunstâncias concretas contrariem a regra.
4.3.4.Expectativas normativas e cognitivas
As estruturas de assimilação não são criações fortuitas, casualmente geradas pelos indivíduos. Para Luhmann elas respondem a necessidades psíquicas do indivíduo. A construção de tais expectativas possibilita a ação do indivíduo em face de um mundo complexo e contingente.
A estrutura de seleção continua sendo seletiva, mesmo quando ela não é realizada conscientemente, quando é simplesmente vivenciada. Existem outras possibilidades, e elas se apresentam ao ocorrerem desapontamentos de expectativas. É nessa possibilidade do desapontamento e não na regularidade da satisfação que se evidencia a referência de uma expectativa à realidade. As estruturas sedimentam, como expectáveis, um recorte mais delimitado das possibilidades. Dessa forma elas são enganosas com respeito à real complexidade do mundo, permanecendo, em decorrência, expostas aos desapontamentos. Assim elas transformam a sobrecarga permanente da complexidade no problema da experimentação eventual do desapontamento, contra o qual pode ser feito algo concreto. Do ângulo do sistema psíquico, portanto, podemos também dizer: elas regulam o medo. (Luhmann, 1983: 55)
A estrutura de seleção cumpre assim um importante papel na vida psíquica. É com relação a esta função que cumpre que ela deve ser interpretada. Assim, o desenvolvimento e racionalização das estruturas devem ser vistos desde a perspectiva da função que ela desempenha. A racionalização de estruturas de assimilação envolve a busca pela mais adequada relação entre a estabilização de expectativas e um nível aceitável de frustração. Uma estrutura não se presta à função que deveria atender se é sempre e em todo momento frustrada.
Assim, afirma o autor:
A racionalização de estruturas, portanto, envolve a dosagem da relação entre uma complexidade sustentável e uma carga suportável de desapontamentos. A estabilização de estruturas contém não apenas o esboço coerente do seu perfil – o reconhecimento de leis naturais ou o estabelecimento de normas – mas também a disponibilidade de mecanismos para o encaminhamento de desapontamentos – tal como um serviço de manutenção e reparos da estrutura. (Luhmann, 1983: 55).
Este "serviço de manutenção" da estrutura, no caso das estruturas normativas, seria um procedimento por meio do qual novas normas podem ser criadas, ou seja, por meio do qual se alteram as expectativas sobre expectativas que assumem um formato simbólico normativo. Este serviço de manutenção é necessário na medida em que a estrutura se torna inoperante ou irrelevante quando passa a ser constantemente confrontada com contra-exemplos. Isto vale mesmo para a estrutura normativa, que é dotada de uma maior imunização neste sentido.
Estas estruturas, das quais vimos tratando, podem assumir formas diferentes. Há estruturas que, em face de contra-exemplos, admite-se sua substituição. Assim, as crenças relativas à resistência de um determinado material podem soçobrar diante da constatação de que os objetos feitos a partir daquele material têm uma resistência e durabilidade muito inferior, quebrando-se com muita facilidade. Entretanto, há estruturas das quais não se abre mão em face das diferenças que apresentam com a realidade. As crenças que sustentam que o hábito de praticar exercícios regularmente levam a uma vida mais saudável não são abaladas por casos em que indivíduos que praticam tais exercícios desenvolvem patologias vinculadas justamente aos exercícios. Assim também a expectativa de que os vizinhos não estacionarão seus carros diante dos portões alheios não são abandonadas quando os vizinhos agem assim.
Mesmo quando os desapontamentos se tornam visíveis e têm que ser inseridos na visão de realidade como objeto da experimentação, ainda existe a alternativa de modificação da expectativa desapontada, adaptando-a à realidade decepcionante, ou então sustentar a expectativa, e seguir a vida protestando contra a realidade decepcionante. Dependendo de qual dessas orientações predomina, podemos falar de expectativas cognitivas ou normativas. (Luhmann, 1983: 56)
Temos aqui uma distinção entre cognitivo e normativo muito pouco usual. Segundo o próprio autor, tal diferenciação diverge da tradicional distinção em termos semânticos. A distinção que Luhmann faz entre expectativas cognitivas e normativas é uma distinção em termos funcionais. Afirma o autor:
Nessa acepção (inconvencional), a diferenciação entre o cognitivo e o normativo não é definida em termos semânticos ou pragmáticos, nem referenciada aos sistemas afirmativos que as fundamentam ou à contradição entre afirmações informativas e diretivas – mas sim em termos funcionais, tendo em vista a solução de um determinado problema. (Luhmann, 1983: 56)
A distinção que se estabelece aqui, claramente divergente daquela que Kelsen adota, não é uma distinção lógica, nem implica qualquer abismo lógico entre ser e dever ser. Trata-se de uma distinção entre as funções a que se prestam as expectativas normativas e cognitivas.
Ao nível cognitivo são experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso de desapontamentos, são adaptadas à realidade. Nas expectativas normativas ocorre o contrário: elas não são abandonadas se alguém as transgride. (Luhmann, 1986: 56)
Por certo que em muitas ocasiões, senão todas, confundem-se as expectativas normativas e cognitivas. Segundo o autor, no caso em que é esperada uma secretária nova, por exemplo, pode-se esperar cognitivamente que ela tenha uma boa aparência física, seja loira e tenha uma voz doce; ao mesmo tempo, pode se esperar normativamente que tenha uma determinada capacidade de trabalho, saiba digitar rapidamente, redigir textos com uma margem pequena de erros de ortografia ou concordância e tenha um bom desempenho no atendimento ao público.
Pode-se considerar esta como a principal tese do pensamento de Luhmann. Por certo que o autor desenvolve seu pensamento com o objetivo de esclarecer a positividade do direito em termos de relações funcionais. Entretanto, aquilo que em sua obra é mais ousado e original, a meu ver, é a redução do normativo ao factual por meio de necessidades psíquicas de indivíduos. Interessante notar que o indivíduo não tem grande participação na construção luhmaniana. Caso tivéssemos de enquadrar Luhmann em um esquema de individualismo ou holismo metodológico, seria mais razoável classificá-lo como holista. Entretanto, seu sistema é ancorado em características dos indivíduos particulares. Todo o sistema jurídico é redutível à necessidade existencial do indivíduo por limitação da complexidade e contingência do mundo que experimenta.
Temos como decorrência desta perspectiva um conceito de norma muito diverso daquele utilizado pelos juristas.
Sendo assim, as normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos. Seu sentido implica na incondicionabilidade de sua vigência na medida em que a vigência é experimentada, e portanto, também institucionalizada, independentemente da satisfação fática ou não da norma. O símbolo do "dever ser" expressa principalmente a expectativa dessa vigência contrafática, sem colocar em discussão essa própria qualidade – aí estão o sentido e a função do "dever ser". (Luhmann, 1983: 57)
Norma, segundo o autor, portanto, é expectativa estabilizada em termos contrafactuais. A norma não representa qualquer ruptura com a descrição factual. O "dever ser" é um símbolo que expressa uma realidade de ser. Trata-se de uma espécie de resumo da afirmativa segundo a qual algo é esperado e há uma disposição em continuar esperando aquilo mesmo no caso da frustração desta expectativa. Uma norma segundo a qual os homens de uma dada sociedade devem tomar por esposas apenas as filhas de irmãos de suas mães significa tão somente que existe uma expectativa de que os homens tomem por esposas apenas filhas de irmãos de suas mães, e que tal expectativa não está aberta a reformulação diante de uma decepção. No caso de uma decepção, a expectativa permanece "correta", enquanto que o comportamento decepcionante é que está "errado".
Luhmann não reluta em afirmar a indistinção entre o factual e o normativo. A bem conhecida asserção de que há um abismo lógico entre fato e valor deve, segundo Luhmann, ser abandonada.
Se bem que orientado em termos contrafáticos, o sentido do dever ser não é menos fático que o de ser. Toda expectativa é fática, seja na sua satisfação ou no seu desapontamento o fático abrange o normativo. A contraposição convencional do fático ao normativo deve, portanto, ser abandonada. Ela é uma construção conceitual errônea, como no caso de se querer contrapor ser humano e mulheres; uma manobra conceitual que nesse caso é prejudicial às mulheres, e naquele ao dever ser. O oposto adequado ao normativo não é o fático, mas sim o cognitivo. Só é possível optar-se coerentemente entre essas duas orientações com respeito ao tratamento de desapontamentos, e não entre o fático e o normativo. (Luhmann, 1983: 57)
O factual não se contrapõe ao normativo. O cognitivo sim, se contrapõe ao normativo. Mas tal contraposição se dá tão somente em termos funcionais. O cognitivo é uma forma determinada de assimilação de experiências. O normativo é uma outra forma de assimilação de experiências. A distinção entre ambos é tão somente a disposição existente em um caso e não no outro de abandonar-se a expectativa criada em função da decepção que a realidade oferece.
Mesmo o cognitivo e o normativo não se diferenciam essencialmente. No limite há uma unidade entre essas duas formas. A diferenciação rígida que podemos hoje encontrar é uma distinção historicamente construída e que não corresponde a qualquer diferenciação fundamental. Há situações em que as expectativas não podem ser claramente classificadas como cognitivas ou normativas. Destas situações o autor fornece diversos exemplos:
No nosso ambiente cultural, por exemplo, existe uma regra altamente auto-evidente de que não se deve cochilar na presença de outras pessoas, mas sim apresentar-se sempre ocupado, a não ser que determinadas situações o permitam (viagem de trem!). Em outras palavras, sempre tem que haver um tema, ou pelo menos dar-se a impressão disso. Apesar disso transgressões eventuais dessa regra não a trazem à consciência, mas apenas fazem com que o cochilo em público pareça um comportamento estranho, anômalo, inoportuno. A regra não é normatizada. Também não existe uma norma pela qual se tenha de manter o fluxo de uma conversação, que responder coerentemente – e não, por exemplo, respondendo a uma pergunta sobre as horas com a constatação de que "está chovendo". Transgressões desse tipo seriam registradas como esquisitices, mal-entendidos, como piadas e, no caso de repetições, como incapacidade. Elas não provocam normatizações, mas sim normalizações: a perturbação é descartada através de sua "explicação", ou então ela é tornada expectável. Nos casos de repetidas transgressões graves, opta-se tipicamente pela saída da declaração do ator desapontador como doente mental, excluindo-o assim da comunidade dos sujeitos humanos, suas experimentações, suas expectativas e suas visões de mundo. Isso demonstra que transgressões às expectativas nessa esfera freqüentemente são tratadas como transgressões à verdade, como incapacidade para reconhecer o mundo – um sintoma nítido de que não se diferencia os estilos cognitivo e normativo das expectativas. (Luhmann, 1983: 59-60)
Estes exemplos revelam, segundo o autor, situações em que não se tem claramente uma dicotomia entre expectativas cognitivas e expectativas normativas. Desta forma, não só o normativo e o factual não se distinguem de maneira essencial, sendo o normativo parte do factual, mas também as diferentes formas de expectativas que correspondem em parte à dicotomia usualmente defendida não são exatamente dicotômicas. As expectativas cognitivas e as expectativas normativas não podem ser distinguidas por uma linha divisória clara. Além disso, mesmo a distinção que se pode estabelecer não tem uma característica semântica, mas tão somente funcional.
A abordagem clássica do problema da diferenciação entre ser e dever ser, que incluiria a abordagem kelseniana, não apenas equivoca-se quando estabelece entre ambos um abismo lógico, mas também incorre em um simplismo na análise das normas. O dever ser é tido como um conceito fundamental, com um significado de certa forma auto-evidente, que não necessita ser analisado mais profundamente. A questão quanto ao fundamento de validade das normas, por exemplo, é, para Luhmann, tratada pela abordagem clássica de forma excessivamente simples.
As considerações até aqui desenvolvidas já revelam um campo bastante complexo de premissas da formação do direito, que evidenciam o caráter relativamente simples da concepção dogmática que fundamenta a vigência de normas através de normas superiores. No lugar de uma tal fundamentação por meio de uma hierarquia de fontes do direito vemo-nos diante da fundamentação através de processos reflexivos da expectativa de expectativas, que permitem uma diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas podendo, assim, por meio de diferentes constelações, fazer jus a exigências as mais diferenciadas. (Luhmann, 1983: 66)
Normas não vigem por sua referência a outras normas, mas em função da diferenciação de expectativas cognitivas e normativas. A vigência é a impossibilidade de alteração das expectativas em qualquer momento, não uma adequação a normas superiores. A abordagem sistêmica permite uma análise mais profunda que a abordagem tradicional. Tratar o dever ser como um conceito básico impede que se coloquem os problemas que estão além da mera relação entre normas, problemas de expectativas, de adequação de expectativas, de imunização de expectativas, entre outros. Temos, portanto, uma redução da vigência das normas a algo factual, o que é francamente contrário ao pensamento kelseniano, que denomina de "vigência", ou "validade" de uma norma justamente o seu caráter devido, entendido em um sentido lógico, não funcional.
4.3.5.O conceito de Direito
Daquilo que já foi exposto depreende-se que o direito pode ser descrito e explicado a partir de um ponto de vista sociológico, quer dizer, a partir de um estudo voltado para as inter-relações entre os seres humanos, e não apenas de um estudo voltado exclusivamente para normas, como costumam ser os estudos jurídicos. Será estudado agora o conceito de direito, tal como formulado por Luhmann.
O direito, na visão luhmaniana, é uma generalização congruente de expectativas comportamentais. Isto porque ele consiste em expressões de expectativas generalizadas de uma forma a não serem, em larga medida, conflitantes entre si. Tratam-se, também, de expectativas não muito concretas, de modo a evitar um intenso e constante conflito com a realidade. Tais expectativas, ainda, não se chocam constantemente com as expectativas cognitivas, ou ao menos são generalizadas de modo a serem o mais congruentes também com tais expectativas cognitivas.
As expectativas comportamentais generalizadas congruentemente, nesse sentido acima descrito, identificaremos como o direito de um sistema social. O direito produz congruência seletiva e constitui, assim, uma estrutura dos sistemas sociais. (Luhmann, 1983: 115)
Esta percepção do direito o identifica de um modo diverso daquele tradicional. Em geral, o direito é definido como um conjunto de normas que recebem sanção estatal ou estão de alguma forma ligadas ao estado, seja tão somente aos órgãos estatais aplicadores de direito, tribunais, seja por terem sido elaboradas e promulgadas por órgãos legisladores. Em geral, portanto, o direito é visto como um sistema de normas que têm caráter coercitivo. Por certo que inúmeros autores incorporam em suas definições de direito critérios de justiça ou outros critérios distintos sem, no entanto, deixar de tomar também como direito aquele conjunto de normas que emanam ou recebem sanção do estado e que têm caráter coercitivo.
A definição que Luhmann dá do direito deixa estes aspectos para um segundo plano. São, por certo, características descritivas do direito moderno e que podem ser, em alguma medida, encontradas em diversos outros sistemas jurídicos distintos daquele do Ocidente Moderno. Entretanto, não é com base em tais características que Luhmann define o direito. O direito é, antes, uma generalização congruente de expectativas. Ele é definido por sua função, não por determinadas características descritivas.
Definido nesses termos, o direito é concebido funcional e seletivamente – ou seja não através da constância de uma dada qualidade original do "dever ser", nem através de um determinado mecanismo fático, por exemplo a "sanção estatal". Esses elementos convencionais da definição do direito não são, com isso, excluídos ou tornados irrelevantes, mas são referidos como características que determinem a natureza do direito. O direito não é primariamente um ordenamento coativo, mas sim um alívio para as expectativas. (Luhmann, 1983: 115)
O direito não deve ser definido em termos de determinadas características que costumam estar presentes em sistemas jurídicos, mas em termos da função que desempenha no sistema social. O direito, enquanto generalização congruente de expectativas, cumpre um papel primordial no desenvolvimento social. Apenas na medida em que a generalização que o direito realiza seleciona, eliminando possibilidades incongruentes, pode a sociedade se desenvolver em termos mais complexos. Estão dadas, com o direito, determinadas condições de experiência, ou melhor, estão dadas certas expectativas que garantem a congruência de diversos outros sistemas de expectativas.
Apenas após assegurar-se a congruência das expectativas através do direito do sistema social é que podem se desenvolver formas mais elevadas da generalização específica a cada dimensão, assim como congruências ao plano reflexivo das expectativas sobre expectativas. Nesse sentido o direito é uma das bases imprescindíveis da evolução social. (Luhmann, 1983: 115)
Assim, o direito é um elemento fundamental da evolução social porque permite a diferenciação de diversos sistemas sociais de uma forma congruente. O direito, enquanto generalização congruente de expectativas, garante uma base a partir da qual sistemas de expectativas mais específicos ou complexos podem se desenvolver. O próprio direito, porém, apenas pode surgir após um certo estágio da evolução social.
Por outro lado, torna-se igualmente nítido que o direito, com essas características específicas, é uma conquista da evolução, a qual se constitui em dependência da estrutura social em seu caminho em direção à diferenciação de expectativas especificamente jurídicas. Visto do ângulo da função da generalização congruente, o direito existe em qualquer sociedade; mas o grau de diferenciação estrutural do direito modifica-se ao longo do desenvolvimento social, e isso na medida em que a complexidade da sociedade aumenta e melhor se caracteriza a necessidade de expectativas comportamentais normativas, congruentemente generalizadas. O direito não pode ser apropriadamente entendido apenas sob o aspecto de ordem e proibição, repressão de tendências naturais ou coação exterior; nessa ótica não seria possível compreender o amplo campo das formas jurídicas disponíveis. O direito serve principalmente à possibilitação de uma ação mais complicada, mais rica em condicionantes, e ele realiza isso através da generalização congruente entre as premissas contingenciais de tal ação. (Luhmann, 1983: 119)
A construção de um sistema de generalização congruente de expectativas, do direito, é, assim, uma etapa que se torna necessária em um processo de complexificação do sistema social. É necessária porque a maior complexificação do sistema social apenas é possível sobre as bases de um conjunto de expectativas que permitem a congruência dos mais diversos campos da experiência humana.
A definição do direito a partir da função que desempenha no sistema social, em termos de generalização congruente de expectativas diverge da definição tradicional do direito como um complexo de normas cogentes. O pensamento kelseniano trata o direito como um sistema de normas que não pode ser confundido com o comportamento dos indivíduos que se orientam por tal sistema de uma forma ou de outra. As duas definições são de tal forma diversas que Kelsen poderia indagar por que razão tal sociologia ainda chama de "direito" aquilo que estuda, se este termo tradicionalmente é empregado para denotar algo essencialmente diverso. Esta crítica foi explicitada pelo autor com relação ao termo "Estado", tal como definido por certos sociólogos. [06]
A função do direito é a generalização congruente de expectativas, e é com base em tal função que o direito pode ser adequadamente definido. Toda a construção elaborada pelo autor desemboca em uma análise da evolução do direito rumo à positividade, a forma do direito mais bem adaptada para a generalização congruente em sistemas altamente complexos. A positividade do direito permite a alteração regular da ordem e a estruturação clara dos sistemas sociais. Esta análise da evolução do direito não é essencial para a análise que se pretende elaborar neste trabalho, apesar de ser elemento essencial do pensamento do autor sobre o direito.
Resumamos, portanto, as principais teses do pensamento de Luhmann sobre o direito. Em primeiro lugar cumpre esclarecer que a noção de "dever ser" não deve, segundo o autor, ser tratada como um conceito básico e fundamental. A análise dessa noção em termos funcionais leva a uma redução do normativo ao factual, restando a clássica dicotomia sendo tão somente uma distinção relativa, e não absoluta, entre o cognitivo e o normativo. Em segundo lugar, o direito enquanto um sistema social responde a necessidades que são, em primeiro lugar, necessidades existenciais dos indivíduos por uma regulação, uma limitação da contingência da experiência. Em terceiro lugar, também o direito deve ser definido por sua função, antes que por determinadas características. O direito responde à função de estruturação da sociedade limitando a contingência e oferecendo as possibilidades de maiores desenvolvimentos dos sistemas sociais no sentido de uma maior complexidade.
4.4.Max Weber
Segundo Kelsen, Weber foi o autor da tentativa de elaboração de uma sociologia do direito mais bem sucedida até então. A sociologia weberiana, de orientação metodológico individualista, não substancializa corpos coletivos e está atenta à distinção entre ser e dever ser, escapando com isto de importantes censuras que Kelsen dirige a outros sociólogos do direito.
A sociologia do direito weberiana será apresentada aqui de forma bastante sucinta, dado que já é bastante conhecida. A exposição se destina a deixar claro com quais idéias se pretende lidar. Importante notar também que como as críticas kelsenianas, que são o objeto do presente estudo, não se dirigem às teses mais históricas dos autores estudados, não será abordado o processo de racionalização do direito em Weber, assim como não foi suficientemente apresentada a discussão de Luhmann sobre a positivação do Direito. Trataremos antes da parte mais teórica da sociologia do direito weberiana.
4.4.1.Uma sociologia compreensiva
A noção que Weber tem de sociologia é bem diversa daquelas dos demais autores apresentados aqui. A sociologia weberiana não encontra seu objeto de estudo em um fato social sui generis, ou em sistemas sociais dotados de qualquer autonomia. O objeto de estudo da sociologia weberiana são as ações de seres humanos individuas, na medida em que possam ser consideradas ações sociais. A sociologia weberiana também é marcada por rejeitar expressamente a intenção de elaboração de um corpo teórico inspirado no modelo de ciências naturais. Enfim, o termo "sociologia" não tem em Weber o sentido de uma ciência do social semelhante às demais ciências, mas sim o de um conhecimento peculiar por seu caráter compreensivo.
§1. Concepto de la sociología y del "significado" en la acción social. Debe entenderse por sociología (en el sentido aquí aceptado de esta palabra, empleada con tan diversos significados): una ciencia que pretende entender, interpretándola, la acción social para de esa manera explicarla causalmente en su desarrollo y efectos. Por "acción" debe entenderse una conducta humana (bien consista en un hacer externo o interno, ya en un omitir o permitir) siempre que el sujeto o los sujetos de la acción enlacen a ella un sentido subjetivo. La "acción social", por tanto, es una acción en donde el sentido mentado por su sujeto o sujetos está referido a la conducta de otros, orientándose por ésta en su desarrollo. (Weber, 1997:5)
A sociologia, desta forma, não se dedica a formular explicações causal-nomológicas de fatos sociais, mas sim a interpretar ações em seu desenvolvimento e conseqüências. Temos, portanto, um conhecimento histórico acerca de ações de indivíduos e do sentido que se atribui a tais ações. Por "interpretação" deve-se entender o estabelecimento de "conexões de sentido" que levam à uma dada ação. Assim, compreende-se o comportamento de um jogador de futebol que se abaixa e faz o sinal da cruz ao entrar em campo quando se leva em conta o significado daquele sinal, seja ele o de uma invocação a Deus para que venha em seu auxílio ou o de um gesto mágico capaz de protegê-lo de incidentes e lhe aumentar as habilidades. A sociologia, portanto, em Weber, estabelece este tipo de conexão de sentido, ou seja, encontra o sentido que determina, usando esta palavra aqui em um sentido bastante amplo, o curso de uma ação individual.
Uma ação não é qualquer comportamento de um ser humano. Chama-se ação apenas àquele comportamento ao qual é vinculado um sentido. Ao sentido efetivamente atribuído pelos indivíduos a suas ações se chama "sentido subjetivo".
Nem toda ação é uma ação social. Chamamos de ação social àquela ação cujo sentido subjetivo está orientado para a conduta de outros indivíduos.
O objeto de estudo da sociologia compreensiva é a ação social. A ação social é sempre ação de indivíduos. Apesar de que as ações são reciprocamente orientadas, não existe um corpo supra-individual que possa ser substancializado e tomado como objeto de estudo. O que pode ser estudado é a ação individual, socialmente orientada.
9. "Acción" como orientación significativamente comprensible de la propia conducta, sólo existe para nosotros como conducta de una o varias personas individuales.(…)
Para otros fines de conocimiento (p. ej., jurídicos) o por finalidades prácticas puede ser conveniente y hasta sencillamente inevitable tratar a determinadas formaciones sociales (estado, cooperativas, compañía anónima, fundación) como si fueran individuos (por ejemplo, como sujetos de derechos y deberes, o de determinadas acciones de alcance jurídico). Para la interpretación comprensiva de la sociología, por el contrario, esas formaciones no son otra cosa que desarrollos y entrelazamientos de acciones específicas de personas individuales, ya que tan sólo éstas pueden ser sujetos de una acción orientada por su sentido. (Weber, 1997: 12)
Para a sociologia compreensiva, portanto, toda ação significativamente compreensível é ação de indivíduos. Ainda quando imputamos determinadas decisões a estados, determinadas ações a empresas ou determinadas crenças a famílias, sempre tais decisões, ações e crenças são de indivíduos, não de quaisquer corpos coletivos. A admissibilidade da descrição que se vale de corpos coletivos tem razões práticas e não impede que se tenha claro que apenas indivíduos estão agindo.
Weber é bastante claro quando afirma que para a sociologia compreensiva tais corpos coletivos não são nada senão "entrelazamientos de acciones específicas de personas individuales". Dentre os exemplos mencionados pelo autor figuram aqueles corpos coletivos que mais freqüentemente são personificados e tomados como dotados de uma existência própria, independente de alguma forma da existência individual, ao menos no sentido de uma autonomia de vontade e de ação, capaz, inclusive, de se impor aos indivíduos. Dentre estes exemplos o mais significativo é o estado.
Este autor desenvolve uma tipologia das ações individuais, que, para uma sociologia tome toda ação como ação individual, constitui um importante elemento na construção de quaisquer considerações futuras
§2. La acción, como toda acción, puede ser: 1) racional con arreglo a fines: determinada por expectativas en el comportamiento tanto de objetos del mundo exterior como de otros hombres, y utilizando esas expectativas como "condiciones" o "medios" para el logro de fines propios racionalmente sopesados y perseguidos 2) racional con arreglo a valores: determinada por la creencia consciente en el valor – ético, estético, religioso o de cualquiera otra forma como se le interprete – propio y absoluto de una determinada conducta, sin relación alguna con el resultado, o sea puramente en méritos de ese valor. 3) afectiva, especialmente emotiva, determinada por afectos y estados sentimentales actuales, y 4) tradicional: determinada por una costumbre arraigada. (Weber, 1997: 20)
Esta tipologia aparentemente exaustiva das formas de ação individual interessa à sociologia na medida em que a vida social se constitui no entrelaçamento de ações individuais. Existe, em larga medida, uma correspondência entre as formas de ação e as formas de dominação. A dominação carismática é afeita à ação afetiva, a dominação tradicional à ação tradicional, a dominação racional legal à ação racional com relação a fins. Da mesma forma o direito natural é apresentado de forma a corresponder à ação racional com relação a valores e o direito moderno à ação racional com relação a fins.
Importa-nos aqui compreender como se dá a passagem da ação à instituição, ao corpo coletivo. Para que possamos chegar à definição weberiana de direito precisamos realizar esta passagem. O direito apenas pode ser tido como objeto da sociologia compreensiva na medida em que possa ser reduzido a ações individuais dotadas de sentido, ou seja, se o direito for redutível à ação social.
4.4.2.Da ação individual ao corpo coletivo
Chamo aqui de ação individual toda e qualquer ação de indivíduos, orientada ou não a outros indivíduos. Por corpo coletivo entendo qualquer forma de organização, associação, instituição ou qualquer corpo que abranja as ações de mais de um indivíduo. Procuraremos identificar como a sociologia compreensiva, que admite como seu objeto de estudo ações individuais (sociais porque orientadas a outros, mas ainda ações de indivíduos), pode alcançar a análise e descrição de corpos coletivos que em muito ultrapassam a ação individual.
Em resumo, esta passagem se dá da seguinte forma. O comportamento humano individual, quando dotado de sentido é uma ação. Esta, quando tem seu sentido orientado à conduta de outros é uma ação social. Pode haver ações sociais cujo sentido seja reciprocamente orientado, caso no qual falamos de uma relação social. A relação social pode se repetir no tempo com uma dada freqüência, caso em que falamos de uma relação social permanente. Em larga medida podemos distinguir as relações sociais permanentes em costume e ordem social. O costume seria aquela relação social que não tem por base a representação de qualquer legitimidade, enquanto que a ordem tem por base a representação de uma ordem (enquanto conteúdo de sentido) legítima. O direito é uma ordem social neste sentido, caracterizada pela possibilidade de coação física.
Temos acima a passagem da ação individual ao direito. Como o direito é, desta forma, redutível a um determinado conjunto de ações humanas individuais, ele é objeto de estudo da sociologia.
Apreciemos mais detidamente esta transição, que considero o aspecto mais importante, para as preocupações deste trabalho, da obra weberiana.
Dado que a ação social é o objeto de estudo da sociologia compreensiva, que ela é definida como um comportamento humano dotado de sentido subjetivo, para tomarmos a relação social também como constituindo objeto de tal conhecimento, cumpre reduzir esta última à ação social.
Por "relación" social debe entenderse una conducta plural – de varios – que, por el sentido que encierra, se presenta como recíprocamente referida, orientándose por esa reciprocidad. La relación social consiste, pues, plena y exclusivamente, en la probabilidad de que se actuará socialmente en una forma (con sentido) indicable; siendo indiferente, por ahora, aquello en que la probabilidad descansa. (Weber, 1997: 21)
A relação social é constituída por uma "conducta plural", ou melhor, por várias condutas individuais. Tais condutas individuais são reciprocamente orientadas. Por reciprocamente orientadas deve-se entender que tais condutas individuais têm sentidos subjetivos que se referem reciprocamente. Tratam-se, portanto, de ações sociais com sentidos reciprocamente orientados. Poderíamos perguntar se esta referência recíproca gera alguma realidade nova, distinta daquela das ações propriamente individuais. Responde-se essa pergunta pela negativa. A segunda frase desta transcrição é bastante clara a este respeito, demonstrando que Weber, mesmo construindo a idéia de relação social, ainda tem a preocupação de deixar claro que aquilo que é diretamente perceptível, e que constitui seu objeto de estudo é a ação individual.
A relação social existe, para este autor, tão somente na medida em que exista a probabilidade de que haverá ações sociais recíprocas. A relação social não consiste em alguma força supra-individual que provoca de uma ou outra forma as ações sociais que a constituem, ou mesmo que provoca sua reprodução. Relações sociais não são nada além de ações sociais. São ações sociais qualificadas pela orientação recíproca, mas ainda são ações sociais. A existência de uma relação social é, portanto, a probabilidade da ocorrência de determinadas ações sociais.
Esta consideração acerca da probabilidade de ocorrência é mais relevante quando se trata de alguma relação social permanente. Uma relação social pode ser permanente ou transitória e, neste segundo caso, é difícil tratá-la como uma probabilidade de ocorrência, mas tão somente como a efetiva ocorrência de ações sociais recíprocas por seu sentido. Vejamos como o autor trabalha a distinção entre relações sociais permanentes e relações sociais transitórias.
4. Una relación social puede tener un carácter enteramente transitorio o bien implicar permanencia, es decir, que exista en este caso la probabilidad de la repetición continuada de una conducta con el sentido de que se trate (es decir, la tenida como tal y, en consecuencia, esperada). La existencia de relaciones sociales consiste tan sólo en la presencia de esta "chance" – la mayor o menor probabilidad de que tenga lugar una acción de un sentido determinado y nada más –, lo que debe tenerse siempre en cuenta para evitar ideas falsas. Que una "amistad" o un "estado" existiera o exista, significa pura y exclusivamente: nosotros (observadores) juzgamos que existió o existe una probabilidad de que, sobre la base de una cierta actitud de hombres determinados, se actúe de cierta manera con arreglo a un sentido determinado en su término medio, y nada más que esto cabe decir (cf. n 2. a E). La alternativa inevitable en la consideración jurídica de que un determinado precepto jurídico tenga o no validez (en sentido jurídico), de que se dé o no una determinada relación jurídica, no rige en la consideración. (Weber, 1997: 22)
Uma relação social é permanente quando existe a probabilidade de repetição continuada de uma pluralidade de condutas com sentidos reciprocamente orientadas. É importante notar aquilo que Weber apresenta com uma clareza mais que suficiente. Quando afirmamos que existe um estado ou uma amizade, estamos afirmando tão somente que percebemos a existência de uma dada probabilidade de que determinados homens agirão de uma determinada maneira, com relação a um sentido reciprocamente orientado. Assim, se afirmo que entre Maria e Antônia existe uma relação amistosa, refiro-me à probabilidade de que estes dois indivíduos se comportarão orientados por um determinado sentido, que inclui um respeito, um carinho, um querer bem. Quando afirmo que existe um estado brasileiro, estou me referindo à probabilidade de que determinados indivíduos se comportem uns perante os outros com relação a um determinado sentido que envolve a aceitação de uma dominação legítima por parte de certos indivíduos e seu quadro de funcionários.
Uma relação social transitória é uma relação social que não se repete continuadamente ao longo do tempo. As relações que alguém trava com um transeunte que juntamente com ele contemplou um fenômeno estranho, digamos, um acidente automobilístico ou um luar excepcionalmente belo, que podem consistir meramente na troca de impressões, constituem relações sociais transitórias. Este caso, no entanto, nos interessa aqui muito pouco.
As ações sociais que constituem relações sociais permanentes podem ter por sentido subjetivo a representação de uma ordem legítima. Com base na existência ou não deste tipo de representação, classificamos as ordens sociais em costume ou ordem. A regularidade que determina o costume é dada tão somente por uma regularidade de fato. Os sentidos das ações sociais, neste caso, são homogêneos, mas não fazem referência a uma ordem cuja legitimidade seja aceita. Podemos classificar, como faz o autor, os diversos tipos de costume, mas tal não seria conveniente aqui. Por outro lado, quando existe a referência a uma ordem legítima, chamamos a relação social permanente de "ordem". Podemos classificar as ordens em:
Un orden debe llamarse:
a) Convención: cuando su validez está garantizada externamente por la probabilidad de que, dentro de un determinado círculo de hombres, una conducta discordante habrá de tropezar con una (relativa) reprobación general y prácticamente sensible.
b) Derecho: cuando está garantizado externamente por la probabilidad de la coacción (física o psíquica) ejercida por un cuadro de individuos instituidos con la misión de obligar a la observancia de ese orden o de castigar su trasgresión. (Weber, 1997: 27).
Uma ordem social, portanto, pode ser uma convenção ou um direito. Ela será direito quando houver a probabilidade de coação exercida por um quadro de funcionários para isto instituído. Ela será uma convenção quando houver uma reprovação generalizada e sensível, mas não exercida por um grupo de indivíduos para isto investidos. As regras de etiqueta constituem assim conteúdo de sentido de uma convenção. Se ao sentar-se à mesa para o jantar algum indivíduo levar constantemente a faca à boca, lidando com ela como um garfo, ou se falar constantemente com a boca cheia, ou mesmo se falar de determinados assuntos capazes de provocar náuseas em seus comensais, estará sujeito, provavelmente, a uma reprovação generalizada. Por outro lado, se um indivíduo formula artifícios para deixar de pagar certos impostos, estará sujeito à coação exercida por um quadro de funcionários, ainda que não haja a reprovação que costuma haver no caso de uma convenção.
Dizemos que uma ordem legítima, uma convenção ou um direito, é válida quando há uma dada probabilidade de que o comportamento dos indivíduos seja conforme àquela ordem efetivamente representada subjetivamente.
§5. La acción, en especial la social y también singularmente la relación social, pueden orientarse, por el lado de sus partícipes, en la representación de la existencia de un orden legítimo. La probabilidad de que esto ocurra de hecho se llama "validez" del orden en cuestión. (Weber, 1997: 25)
A validade aqui tem um sentido muito diferente daquele que tem para os juristas, e, em especial, daquele que é utilizado neste mesmo trabalho quando lidando com a obra de Hans Kelsen. Validade, aqui, se remete à probabilidade de efetivação da ordem tida por legítima por determinados indivíduos. Este conceito de validade é mais próximo do conceito kelseniano de eficácia do que de seu conceito de validade. Entretanto, isto não nos deve levar a pensar que é válido tudo aquilo que é efetivo.
1. "Validez" de un orden significa para nosotros algo más que una regularidad en el desarrollo de la acción social simplemente determinada por la costumbre o por una situación de intereses. (Weber, 1997: 25)
Para Weber, portanto, a validade não consiste apenas na regularidade do comportamento. Isto porque apenas ordens podem ser válidas, não costumes. A validade supõe a eficácia de uma ordem considerada legítima por aqueles que a ela se submetem. Validade, portanto, remete à efetiva ocorrência daquele comportamento que os atores em questão consideram legítimo que ocorra.
Interessante notar que a palavra "ordem" é utilizada por Weber tanto para representar um tipo específico de relação social permanente, como para representar o conteúdo de sentido a que as ações sociais deste tipo específico de relação social se referem. Uma ordem, portanto, é tanto a relação social permanente que faz referência a um sentido considerado legítimo, como este próprio sentido considerado legítimo.
2. Al "contenido de sentido" de una relación social le llamamos: a) "orden" cuando la acción se orienta (por término medio o aproximadamente) por "máximas" que pueden ser señaladas. Y sólo hablaremos, b) de una "validez" de este orden cuando la orientación de hecho por aquellas máximas tiene lugar porque en algún grado significativo (es decir, en un grado que pese prácticamente) aparecen válidas para la acción, es decir, como obligatorias o como modelos de conducta. (Weber, 1997: 25)
Assim, temos que uma ordem, uma convenção ou um direito, é dotado de máximas identificáveis, e que a validade desta convenção ou deste direito é dada pela efetiva ocorrência do comportamento conforme a tais máximas, quando este se dá em função delas.
Passamos, portanto, da ação individual ao direito sem qualquer solução de continuidade. A ação com sentido é uma ação social. Duas ações sociais com sentidos reciprocamente orientados constituem uma relação social que, se for permanente e fizer referência a uma ordem considerada legítima, constitui uma ordem social. Esta pode ser direito ou convenção. As características próprias da ordem jurídica, do direito são as que seguem:
Para nosotros el "derecho" es un "orden" con ciertas garantías específicas respecto a la probabilidad de su validez empírica. Y se ha de entender por "derecho objetivo garantizado" el caso en que las garantías consistan en la existencia de un "aparato coactivo" según el sentido que ya definimos; es decir, que se compone de una o muchas personas dispuestas de modo permanente a imponer el orden por medio de medidas coactivas, especialmente previstas para ello (coacción jurídica). (Weber, 1997: 252)
Tais traços marcantes, o recurso à coação física ou psíquica, levada a cabo por um "aparelho coativo" distinguem o direito da convenção. Desta forma, uma sociologia que toma por objeto a ação de indivíduos foi capaz de construir conceitos de corpos coletivos, distinguindo estes entre si e identificando suas principais características.
4.4.3.Problemas de Sociologia do Direito
Por certo que o principal tema da sociologia do direito weberiana é o surgimento do direito moderno, seu processo de racionalização. Entretanto, nos interessa aqui analisar problemas mais teóricos e menos históricos. Isto porque as críticas de Kelsen não se dirigem a qualquer forma de explicação histórica elaborada pela sociologia do direito, mas tão somente às construções teóricas e conceituais.
A sociologia do direito weberiana não se restringe a formular um conceito de direito e analisar seu desenvolvimento histórico. Ela trata de diversos temas recorrentes na jurisprudência, oferecendo conceitos diversos daqueles formulados pelos juristas e modos diversos de estudar os mesmos temas sobre os quais eles se debruçam.
4.4.3.1.Por que uma ordem jurídica é válida?
A questão acerca da validade da ordem jurídica é abordada por Weber por meio da construção de uma tipologia das formas de atribuição de validade. Tal tipologia corresponde, em larga medida à tipologia das formas de ação social e à tipologia das formas de dominação. Afirma o autor:
§7. Los que actúan socialmente pueden atribuir validez legítima a un orden determinado.
a)en méritos de la tradición: validez de lo que siempre existió;
b)en virtud de una creencia afectiva (emotiva especialmente): validez de lo nuevo revelado o de lo ejemplar;
c)en virtud de una creencia racional con arreglo a valores: vigencia de lo que se tiene como absolutamente valioso;
d)en méritos de lo estatuido positivamente, en cuya legalidad se cree.
Esta vigencia puede valer como legítima
- en virtud de un pacto de los interesados
- en virtud del "otorgamiento" - Oktroyierung - por una autoridad considerada como legítima y del sometimiento correspondiente (Weber, 1997: 29)
Esta é uma tipologia das razões que um indivíduo tem para obedecer. É uma tipologia da obediência. O autor não apresenta tal tipologia como exaustiva, mas, como também não afirma o contrário, tem-se impressão de que se trata de uma listagem completa das possíveis razões para obediência.
Quando o autor fala em "atribuir validez legítima" devemos entender simplesmente que tais são razões pelas quais uma ordem pode ser considerada como legítima. Isto porque a validade ("validez") se refere, na definição acima apresentada pelo próprio autor, não apenas à consideração de uma ordem como legítima, mas a sua observância de fato em função de tal consideração. Os indivíduos não podem atribuir observância de fato a uma ordem, podem apenas observá-la. Desta forma, a tipologia apresentada pode ser considerada como uma tipologia das razões que justificam a obediência.
Esta abordagem em muito ultrapassa aquela do pensamento kelseniano. Por certo que inúmeros juristas tentaram responder à pergunta acerca das razões pelas quais o direito deve ser tido como válido (legítimo) e muitos encontraram respostas semelhantes às que Weber apresenta. Entretanto, há uma diferença de perspectiva essencial. Weber não se pergunta por que o direito deve ser considerado legítimo, mas por que as pessoas de fato consideram o direito legítimo. Esta tipologia é uma tipologia das formas pelas quais as pessoas consideram legítimas as ordens, não de razões pelas quais devemos considerá-las legítimas.
4.4.3.2.O direito subjetivo
O direito subjetivo é tema de estudo de inúmeros juristas e sociólogos do direito. Tanto uns como outros por vezes afirmam ser o direito subjetivo uma possível fonte de onde surge o direito enquanto tal. Não é este tipo de abordagem que pretendo tratar aqui. Por direito subjetivo, de uma forma simplista mas suficiente, deve-se entender aquilo a que nos referimos quando dizemos "eu tenho direito a isto ou àquilo". O direito objetivo são as normas gerais, enquanto que direitos subjetivos são os direitos que indivíduos têm a se comportar ou deixar de se comportar de uma dada maneira.
Weber apresenta o direito subjetivo como sendo a existência da probabilidade de que um dado indivíduo encontre apoio em mecanismo coativo para fazer valer suas pretensões.
El hecho de que alguien, gracias a un orden jurídico estatal, tiene un "derecho" (subjetivo) significa, por tanto, en el caso normal – el que nosotros tenemos en cuenta por ahora –, para la consideración sociológica: que posee una probabilidad, garantizada efectivamente mediante el sentido consensual válido de una norma, de pedir la ayuda de un "mecanismo coactivo" preparado a tal fin a favor de determinados intereses (ideales o materiales). (Weber, 1997: 254)
Este sentido de direito subjetivo diverge, portanto, daquele "direito subjetivo em sentido estrito" apresentado por Kelsen [07]. O direito subjetivo não é aqui um dever do órgão estatal responsável por acatar a reclamação e proceder a aplicação de uma norma, mas sim uma probabilidade de que o quadro coativo de fato acatará a reclamação e de fato agirá de forma a fazer valer aquela pretensão, conforme autorizado pela norma considerada legítima.
Temos, portanto, que um conceito corriqueiro entre juristas pode ser traduzido da linguagem do dever ser para a linguagem do ser. Um direito subjetivo não é mais um dever ser, não se trata de uma obrigação de quem quer que seja, mas de uma probabilidade de um determinado comportamento.
4.4.3.4.A relação jurídica
Um conceito especialmente importante para a jurisprudência que é reformulado em termos sociológicos pelo pensamento weberiano é o conceito de relação jurídica. O conceito kelseniano acima apresentado (como relação entre determinados conjuntos de normas) não é o dominante na jurisprudência. Uma relação jurídica pode ser caracterizada como qualquer relação sobre a qual incida uma norma jurídica, ou seja, qualquer relação em que algum dos participantes tenha algum dever e outro algum direito.
Tanto o conceito kelseniano como o tradicional de relação jurídica são conceitos que envolvem um "dever ser". O conceito weberiano não é assim. Afirma o autor:
Llamamos existencia de una "relación jurídica" entre las personas correspondientes a la situación en que las "relaciones", es decir, la acción actual o potencial de personas concretas o que se puedan determinar concretamente, constituye el contenido de derechos subjetivos. Su contenido en derechos subjetivos puede cambiar según la acción que esté teniendo lugar. En este sentido, también un "estado" concreto puede designarse como "relación jurídica", incluso cuando (en el caso límite teórico) sólo el señor posee derechos subjetivos – a mandar – y las probabilidades de todos los demás individuos existen sólo como reflejos de sus "reglamentaciones". (Weber, 1997: 258)
Existe uma "relação jurídica" quando as ações efetivas ou potenciais de indivíduos humanos concretos forem conteúdo de direitos subjetivos. Entretanto, direitos subjetivos consistem na probabilidade de que uma determinada reclamação de um indivíduo será acatada e sua pretensão levada a cabo por um determinado aparelho coativo. Por certo que não podemos afirmar que ações efetivas ou potenciais de indivíduos sejam conteúdos de probabilidades. Podemos, portanto, supor que Weber trabalhe aqui com o conceito de direito subjetivo dos juristas ou que há apenas uma inadequação de linguagem. Neste segundo caso, uma relação jurídica existe quando existirem direitos subjetivos em uma dada relação social, ou seja, quando existir a probabilidade de que um aparelho coativo acate a reclamação de um indivíduo e leve a efeito sua pretensão.
Desta forma teríamos que uma relação jurídica não envolve qualquer "dever ser", mas tão somente probabilidades de ações conformes a determinados conteúdos de sentido, tidos como legítimos pelos indivíduos em questão.
4.4.3.5.Relações sociais abertas e fechadas e propriedade
Apesar de que fora do contexto do estudo da sociologia do direito, Weber, na parte referente aos conceitos sociológicos fundamentais, trata de diversos conceitos tradicionalmente estudados pelos juristas. Quando o autor trabalha a distinção entre relações sociais abertas e relações sociais fechadas, por exemplo, surgem inúmeros conceitos tradicionalmente jurídicos que são definidos em termos sociológicos.
§10. Una relación social (lo mismo si es de "comunidad" como de "sociedad") se llama "abierta" al exterior cuando y en la medida en que la participación en la acción social recíproca que, según su sentido, la constituye, no se encuentra negada por los ordenamientos que rigen esa relación a nadie que lo pretenda y esté en situación real de poder tomar parte en ella. Por el contrario, llámase "cerrada" al exterior cuando y en la medida en que aquella participación resulte excluida, limitada o sometida a condiciones por el sentido de la acción o por los ordenamientos que la rigen. (Weber, 1997: 34)
Por relação social aberta entende-se aquela em que o ingresso de novos indivíduos na relação não se encontra vedado pelos ordenamentos que regem dita relação. Por "ordenamento que rege a relação" devemos entender, em Weber, o ordenamento que é tido por legítimo pelos indivíduos em questão e que em função disto é eficaz, conforme o conceito de validade da ordem legítima. Isto porque a expressão "ordenamento que rege" deve ser entendida como "ordenamento válido". De outro modo teríamos que adotar uma perspectiva normativa, tomando a expressão "ordenamento que rege" como "conjunto das normas que devem ser aplicadas". Assim, uma relação social é aberta, em Weber, quando há a probabilidade de que os indivíduos efetivamente se comportem conforme um determinado conteúdo de sentido que não veda o ingresso, na sociedade ou comunidade, de novos membros, e de que o façam em função do reconhecimento da legitimidade de uma ordem.
Por relação social fechada entende-se aquela em que existe a probabilidade de que indivíduos se comportem de acordo com um conteúdo de sentido que veda o ingresso, na comunidade ou sociedade, de novos indivíduos, e que o façam em função do reconhecimento da legitimidade desta mesma ordem.
Uma relação social fechada, neste sentido, garante a seus membros certos "direitos". Dentre tais direitos constam diversos bem conhecidos dos juristas, tais como os direitos de herança e de propriedade privada.
Una relación social "cerrada" puede garantizar a sus partícipes el disfrute de las probabilidades monopolizadas: a) libremente, b) en forma racionada o regulada en cuanto al modo y la medida, o c) mediante su aprobación permanente por individuos o grupos y plena o relativamente inalienable (cerrada en su interior). Las probabilidades apropriadas se llaman "derechos". Según el orden que rija la relación social la apropiación puede corresponder 1) a todos los miembros de determinadas comunidades y sociedades – así por ejemplo, en una comunidad doméstica –, o 2) a individuos, y en este caso a) de un modo puramente personal, o b) de manera que, en caso de muerte, se apropien esas probabilidades uno o varios individuos, unidos al que hasta ese momento fue el titular por una relación social o por nacimiento (parentesco), o designados por él (aprobación hereditária). Por último, puede ocurrir 3) que el titular esté facultado para ceder a otros más o menos libremente sus derechos mediante pacto; siendo los cesionarios a) determinados, o b) discrecionales (apropiación enajenable). Los partícipes en una relación social cerrada se consideran como iguales o compañeros y en el caso de una regulación de esa participación que les asegure la apropiación de ciertas probabilidades se consideran como compañeros jurídicamente protegidos. Se llama propiedad al conjunto de probabilidades hereditariamente apropiadas por un individuo o una comunidad o sociedad; siendo propiedad libre en el caso en que ésta sea enajenable. (Weber, 1997: 34)
A relação social dispõe de certas "probabilidades monopolizadas", chamadas "direitos". Tais "probabilidades monopolizadas" podem ser desfrutadas de diversas formas pelos membros da relação social. Afirmar que são desfrutadas livremente deve significar que tais probabilidades monopolizadas podem ser desfrutadas pelos indivíduos sem que precisem cumprir quaisquer requisitos ou pedir qualquer indenização. Este "podem" deve ser entendido como a existência da probabilidade de que os demais membros da relação social ajam em conformidade com uma ordem que não impõe qualquer requisito ao desfrute desta probabilidade, e que o façam em função da legitimidade que admitem ter esta ordem. Por outro lado tal desfrute pode se dar mediante autorização de determinados indivíduos. Tal "autorização" deve significar que determinada probabilidade monopolizada apenas pode ser desfrutada quando determinados indivíduos expressamente permitirem. Isto quer dizer que o desfrute de tal probabilidade monopolizada sem tal autorização está sujeito à probabilidade de que determinadas conseqüências sejam levadas a cabo contra o indivíduo transgressor, e que isto é feito de acordo com uma determinada ordem que os indivíduos consideram legítima, e que é feito em função disto.
Esta probabilidade monopolizada pode ser atribuída a todos os membros da relação social ou apenas a alguns. Neste caso, tal probabilidade pode ser restrita ao membro individual ou pode transmitir-se a seus descendentes. Neste último caso teríamos uma apropriação hereditária. Uma apropriação hereditária é, portanto, o desfrute de uma probabilidade monopolizada em virtude do falecimento de um indivíduo ao qual se estava ligado. Podemos prosseguir demonstrando que a transmissão consiste em uma probabilidade de determinados comportamentos, assim como o monopólio, etc. Descrito de uma forma mais simples, substituindo a descrição pelos conceitos do autor, tem-se que o direito de herança consiste no gozo de um direito em função do falecimento de um indivíduo ao qual se estava ligado de uma forma determinada. Esta definição, assim expressa, é bastante próxima de uma definição jurídica. Entretanto, ao revelarmos o significado dos conceitos de direito vê-se que há uma diferença essencial.
A propriedade é definida pelo autor como o conjunto de probabilidades hereditariamente adquiridas, ou, considerando que tais probabilidades são chamadas "direitos", como o conjunto de direitos hereditariamente adquiridos. Os conceitos utilizados nesta definição não correspondem aos conceitos jurídicos. Um direito não é o que um jurista entende por um "direito", hereditário não é o que o jurista entende por "hereditário". Estes conceitos não têm aqui um caráter normativo, mas sim um caráter probabilístico.
4..4.3.6.Solidariedade e Representação
Tomemos ainda mais estes últimos exemplos do modo como a sociologia weberiana apresenta conceitos paralelos àqueles da jurisprudência. Vejamos como Weber trabalha os conceitos de solidariedade e de representação.
§11. Una relación social puede tener para sus partícipes, de acuerdo con su orden tradicional o estatuido, las consecuencias seguintes: a) el que toda acción de cada uno de los partícipes se impute a todos los demás (solidariedad); b) el que la acción de un partícipe determinado se impute a los demás (representación). O sea que tanto las probabilidades como las consecuencias, para bien o para mal, recaigan sobre todos. El poder representativo (plenos poderes) puede, según el orden vigente, 1) estar apropiado en todos sus grados y cualidades (plenos poderes por derecho propio); o 2) ser atribuido al poseedor de determinadas características, ya temporal, ya permanentemente; o 3) ser otorgado por determinados actos de los partícipes o de terceros, ya temporal, ya permanentemente (plenos poderes otorgados). Respecto de las condiciones por las cuales las relaciones sociales aparecen como relaciones de solidariedad o como relaciones de representación, sólo puede decirse en términos generales que es en ello decisivo el grado en que su conducta tenga como fin, bien a) una lucha violenta, bien b) un cambio pacífico; fuera de esto se trata siempre de circunstancias particulares que sólo se pueden fijar en el análisis del caso concreto. Donde menos, naturalmente, suelen presentarse estas consecuencias es en aquellas relaciones que por medios pacíficos persiguen bienes puramente ideales. Con el grado de hermetismo hacia fuera marcha paralelo, aunque no siempre, el fenómeno de la solidaridad o de la representación. (Weber, 1997: 37-38)
Uma relação social, conforme o autor, pode ter, de acordo com sua ordem tradicional ou estatuída, a conseqüência de que as ações de cada um sejam imputadas a todos os membros, ou de que as ações de um sejam imputadas a todos. No primeiro caso se fala em solidariedade e no segundo em representação. Entre os juristas existem estes dois conceitos, com definições paralelas à apresentada por Weber.
Por solidariedade se entende entre juristas o dever ou direito que duas ou mais pessoas têm em comum. Assim, quando se fala em solidariedade entende-se que duas ou mais pessoas têm um mesmo direito ou uma mesma obrigação. Desta forma, se uma delas paga a dívida, considera-se paga a dívida toda e se uma exerce o direito, considera-se como tendo sido exercido todo o direito. Assim, as ações de cada um devem ser imputadas a todos. Há, inclusive, uma definição legal, encontrada no art. 264 do Código Civil brasileiro.
Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigação, à dívida toda.
A definição sociológica, apresentada por Weber, é sensivelmente distinta, apesar de paralela. Distinta porque por ela não se devem considerar as ações de um como ações de todos, mas sim são consideradas como tais, ou melhor, existe uma probabilidade de que as ações de cada um sejam consideradas como ações de todos. A distinção, novamente, reside em que na definição jurídica de solidariedade, as ações (exercício do direito ou cumprimento da obrigação) de cada um devem ser consideradas como ações de todos, enquanto que na definição weberiana as ações de cada um são consideradas como ações de todos.
A mesma situação ocorre com o conceito de representação. A representação, juridicamente, consiste em que as ações (o exercício de direitos e cumprimento de deveres) do representante devem ser consideradas como ações do representado. [08] Em Weber, a representação implica em que as ações do representante são, ou o são com determinada probabilidade, consideradas como ações dos representados. A representação pode se dar de diferentes formas, como coloca Weber. O representante pode o ser em função de sua própria pessoa, em caráter vitalício e independente de qualquer circunstância, seja termo ou condição. Pode também ter um caráter meramente temporário ou estar vinculada a determinadas características, como, por exemplo, ao ser o mais velho indivíduo do sexo masculino de uma certa linhagem. A representação pode ainda estar ligada a determinadas ações dos representados, como uma eleição, por exemplo, e isto temporária ou permanentemente.
O fato de que em uma relação social exista representação ou solidariedade depende, pelo menos em grande medida, segundo o autor, do grau em que as ações desta relação social tenham por fim a luta violenta ou a mudança pacífica da ordem. Apesar de não estar muito claro como e em que sentido isto afeta a possibilidade de a relação social se apresentar como representação ou solidariedade, está claro que tanto uma quanto outra decorrem de fenômenos da ordem do ser, dentre os quais figura o grau em que os indivíduos estejam dispostos a recorrer à violência para a mudança da ordem.
É importante que fique claro que os conceitos apresentados aqui não são idênticos aos conceitos jurídicos, nem pretendem substituir aqueles no uso dos juristas. Entretanto, têm um nítido paralelo com conceitos jurídicos, com a distinção importante de que aqueles são conceitos normativos, que envolvem asserções de "dever ser", enquanto que estes são conceitos cognitivos que envolvem tão somente asserções de "ser".
A distinção entre o "ser" e o "dever ser" era uma preocupação constante no pensamento weberiano e este autor está ciente da importância que ela tem para a distinção entre jurisprudência e sociologia do direito.
4.4.4Dogmática Jurídica e Sociologia do Direito
Weber conhece bem a distinção entre sociologia do direito e "ciência jurídica" no sentido de dogmática jurídica. A dogmática jurídica não tem como preocupação descrever ou explicar o comportamento efetivo dos indivíduos na medida em que relacionado com o direito. Sua preocupação é oferecer uma descrição clara e logicamente consistente do ordenamento jurídico. Esta, por sua vez, não é a preocupação do sociólogo do direito. Este pretende descrever e interpretar o comportamento efetivo de seres humanos concretos. Não lhe interessa primeiramente a construção de uma estrutura de sentido logicamente coerente que possa ser apresentada como direito, mas um conjunto de relações sociais compreensíveis.
La tarea de la ciencia jurídica (de un modo más preciso, la jurídico-dogmática) consiste en investigar el recto sentido de los preceptos cuyo contenido se presenta como un orden determinante de la conducta de un círculo de hombres, demarcado de alguna manera; es decir, en investigar las situaciones de hecho subsumidas en esos preceptos y el modo de su subsunción empírica trata de determinar el sentido lógico de los preceptos singulares de todas clases, para ordenarlos en un sistema lógico sin contradicción. Este sistema constituye el "orden jurídico" en el sentido jurídico de la palabra. Por el contrario, la ciencia económico-social considera aquellas acciones humanas que están condicionadas por la necesidad de orientarse en la realidad económica, en sus conexiones efectivas. Llamamos "orden económico" a la distribución del poder de disposición efectivo sobre bienes y servicios económicos que se produce consensualmente – consensos – según el modo de equilibrio de los intereses, y a la manera como esos bienes y servicios se emplean según el sentido de ese poder fáctico de disposición que descansa sobre el consenso. (Weber, 1997: 251)
Desta forma, o modo como a dogmática jurídica, jurisprudência, olha para a realidade do direito é radicalmente distinto do modo como a sociologia jurídica a trata. Para o jurista cumpre entender o real sentido dos preceitos jurídicos, relacioná-los entre si de forma coerente e compreender suas possibilidades de aplicações aos casos concretos. Por outro lado, o sociólogo busca as relações efetivas, os condicionamentos destas relações e seu desenvolvimento concreto.
Não se trata tão somente de duas maneiras distintas de olhar uma mesma realidade, mas de duas maneiras distintas de olhar duas realidades distintas. O sociólogo não se debruça sobre o mesmo objeto de estudo que o jurista. Os conceitos de direito, ordem jurídica, preceito jurídico, relações jurídicas, direitos subjetivos, obrigações, enfim, tudo aquilo que o jurista toma como seus objetos de estudo, o sociólogo compreende de forma diversa. Para o sociólogo "direito" não é o mesmo que o jurista chama de "direito", e isto acontece com todos os demais conceitos. Daí que não resta sequer uma identidade no objeto de estudo.
Cuando se habla de "derecho", "orden jurídico", "preceptos jurídicos", debe tenerse en cuenta de un modo particularmente riguroso la distinción entre la consideración jurídica y la sociológica. La primera se pregunta lo que idealmente vale como derecho. Esto es: qué significación o, lo que es lo mismo, qué sentido normativo lógicamente correcto debe corresponder a una formación verbal que se presenta como norma jurídica. Por el contrario, la última se pregunta lo que de hecho ocurre en una comunidad en razón de que existe la probabilidad de que los hombres que participan en la actividad comunitaria, sobre todo aquellos que pueden influir considerablemente en esa actividad, consideren subjetivamente como válido un determinado orden y orienten por él su conducta práctica. Conforme a eso se define también la relación de principio entre el derecho y la economía. (Weber, 1997: 251)
O jurista se pergunta acerca daquilo que, considerando válida (em sentido jurídico) uma ordem, deve ser feito. O sociólogo se pergunta acerca daquilo que os indivíduos efetivamente fazem em situações em que consideram (se é que o fazem) válida uma dada ordem (não exatamente idêntica àquela que o jurista descreve).
Há, portanto, uma dupla definição do conceito de ordem jurídica, bem como de todos os conceitos jurídicos, na medida em que também são abordados pela sociologia do direito.
Es evidente que ambos modos de considerar los fenómenos plantean problemas totalmente heterogéneos y que sus "objetos" no pueden entrar en contacto de un modo inmediato; el "orden jurídico" ideal de la teoría jurídica nada tiene que ver directamente con el cosmos del actuar económico real, porque ambas cosas yacen en planos distintos: una en la esfera ideal del deber ser; la otra en la de los acontecimientos reales. (Weber, 1997: 251)
Na visão de Weber os problemas da sociologia do direito e aqueles da jurisprudência, ou dogmática jurídica, são totalmente distintos, e também não há identidade entre os conceitos que ambas as formas de conhecimento utilizam. O autor ressalta que tal se dá porque a sociologia do direito e a jurisprudência estão em "planos distintos", a primeira no plano do "ser" e a segunda no plano do "dever ser".
Apesar disto, a ordem jurídica e a ordem econômica estão intimamente relacionadas, mas isto apenas porque se toma por "ordem jurídica" o conceito formulado pela sociologia e não aquele formulado pela jurisprudência.
Ahora bien: si, a pesar de esto, el orden económico y el jurídico se encuentran mutuamente en la más íntima relación, ello significa que este último no se entiende en sentido jurídico sino sociológico: como validez empírica. En este caso el sentido de la expresión "orden jurídico" cambia totalmente. Entonces no significa un cosmos lógico de normas "correctamente" inferidas, sino un complejo de motivaciones efectivas del actuar humano real. (Weber, 1997: 252)
Desta forma, não são as normas jurídicas que estão em uma íntima relação com a vida econômica, ao menos não as normas jurídicas tais como as entendem os juristas. É o agir humano real e suas motivações que são influenciados pela ordem econômica.
A ordem jurídica não é, quando estudada em suas relações com os demais âmbitos da vida humana, tomada como um conjunto sistematicamente coerente de normas, mas como um conjunto de ações sociais que tem um determinado conteúdo de sentido. Entretanto, o conceito sociológico de ordem jurídica não implica em que todos os indivíduos envolvidos de fato tenham em mente alguma motivação que corresponda à ordem jurídica. Na verdade não implica sequer que a maioria deles tenha tal concepção, ou qualquer concepção clara do que seja o direito e as normas jurídicas. Isto, como afirma Weber, jamais ocorre.
El hecho de que algunos hombres se conduzcan de un determinado modo porque consideran que así está prescrito por normas jurídicas, constituye, sin duda, una componente esencial para el nacimiento empírico, real, de un "orden jurídico" y también para su perduración. Pero – como resulta de lo dicho anteriormente sobre el sentido de la "existencia" de los órdenes sociales – no significa esto, en modo alguno, que todos y ni siquiera la mayoría de los participantes en aquella conducta obren en virtud de tal motivo. Esto no ocurre nunca. (Weber, 1997: 252)
O conceito de ordem jurídica em sentido sociológico implica tão somente que haja uma probabilidade de que o comportamento efetivo dos indivíduos seja influenciado pela ordem. Antes ainda, que haja uma probabilidade de que o comportamento dos indivíduos que figuram como órgãos ou aparelho coativo do direito seja tal que imponha uma coação sobre os indivíduos cujo comportamento se destoe da norma.
Por pequeña que pueda ser objetivamente la probabilidad de que el mecanismo coactivo fuerce en un caso dado al cumplimiento de aquellas normas, para nosotros han de seguir valiendo como "derecho". (Weber, 1997: 252)
A probabilidade de que aqueles indivíduos apliquem sanções, ou melhor, coajam outros indivíduos ao cumprimento da norma não necessita ser uma probabilidade alta. "Por pequeña que pueda ser" esta probabilidade, o sociólogo já pode falar em direito. Por pequena que seja esta probabilidade, já não se está falando de um sentido normativo, mas de um sentido causal, probabilístico.