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Uma teoria pura da sociedade:

os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito

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16/07/2006 às 00:00
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V_Críticas Kelsenianas à Sociologia do Direito

Hans Kelsen formulou diversas críticas a várias concepções sociológicas acerca do direito. Tais críticas são consideradas aqui como críticas a idéias, não a autores. Serão apresentadas as críticas formuladas ao autor e identificadas as teses às quais elas se dirigem e aqueles autores, dentre os apresentados aqui, que as sustentam.

Esta forma de exposição foi adotada em função de que nem todos os autores acima apresentados foram diretamente criticados por Kelsen, e de que as teses criticadas por Kelsen não podem ser consideradas peculiaridades destes autores, uma vez que são bastante freqüentes entre sociólogos do direito.

Deve-se esclarecer, ainda, que para Kelsen Estado e Direito são uma e mesma coisa. Daí que algumas críticas que Kelsen dirige a uma sociologia do Estado, ou teoria geral do Estado de cunho causal, sejam aqui tratadas, onde se discute as críticas dirigidas à sociologia do direito.

Por fim, ressalte-se que, naturalmente, as críticas formuladas não se dirigem a toda a sociologia do direito. De fato, não se pode afirmar realmente que exista apenas uma sociologia do direito. Não existe atualmente um consenso entre os sociólogos acerca dos principais pontos deste ramo da sociologia, em especial no que se refere a uma teoria sociológica acerca do direito. Desta forma, todas as críticas são dirigidas a teorias específicas ou a determinados agrupamentos de teorias. Neste trabalho, entretanto, não interessa identificar precisamente a quem Kelsen está criticando, salvo quando se tratar de um dos autores acima apresentados, mas sim a que tese critica e quais dos autores acima apresentados se identifica com ela. Desta forma, espera-se evitar incorrer em uma discussão sobre o debate que Kelsen travou com os vários autores.

As críticas que serão aqui trabalhadas são as seguintes: a) a sociologia do direito ao identificar um direito que decorre naturalmente das relações sociais e tomá-lo como dotado de uma validade superior à do direito positivo incorre em jusnaturalismo; b) a sociologia, ao tomar o estado como um ente capaz de ações e vontade incorre em uma equivocada personificação da ordem jurídica; c) a sociologia, em especial a sociologia compreensiva, é incapaz de elaborar uma definição sociológica de Direito.

Sustenta-se em seguida que todas estas críticas não têm o caráter de críticas internas, mas de críticas externas. Com isto quer-se dizer que não apontam para contradições internas, inconsistências lógicas ou incoerência na utilização de conceitos, etc. na obra dos autores criticados. Trata-se, antes, de uma exposição da obra destes autores e da constatação de que divergem de determinados parâmetros alheios à própria obra. Esta divergência não é divergência com determinados eventos constatados empiricamente, mas divergências com outras afirmações teóricas, afirmações do próprio autor. Neste sentido, buscar-se-á, ao longo da exposição das críticas, demonstrar que se tratam, em princípio, de críticas formuladas a partir de uma contraposição da Teoria Pura do Direito com as diversas sociologias do Direito.

5.1.Jusnaturalismo sociológico

Uma das principais preocupações de Hans Kelsen era demonstrar o equívoco da tese jusnaturalista, ou seja, da tese segundo a qual existe um direito que decorre de alguma forma da própria natureza. O positivismo jurídico tal como definido por Kelsen se caracteriza essencialmente pela negação da tese jusnaturalista. Para o positivismo jurídico todo direito é direito posto, isto é, direito criado por atos humanos.

Do ponto de vista kelseniano, o valor, o "dever ser", não é imanente à natureza. O valor de algo não é uma de suas qualidades ou características, mas a aplicação de uma norma.

O valor atribuído a um objeto não é dado com as propriedades desse objeto sem referência a uma norma pressuposta. O valor não é inerente ao objeto julgado como valioso, é a relação desse objeto com uma norma pressuposta. Não podemos encontrar o valor de uma coisa real ou de uma conduta efetiva analisando esses objetos. O valor não é imanente à realidade natural. Portanto, o valor não pode ser deduzido da realidade. Não se conclui, do fato de que alguma coisa é, que ela deva ser ou deva ser feita, ou que não deva ser ou não deva ser feita. O fato de que na realidade peixes grandes comem peixes pequenos não implica que a conduta do peixe seja boa, tampouco que seja má. Não existe nenhuma inferência lógica a partir do "é" para o "deve ser", da realidade natural para o valor moral ou jurídico. (Kelsen, 2001: 140)

Esta é uma asserção fundamental para o pensamento kelseniano. Existe uma distinção radical entre ser e dever ser, de modo que uma argumentação, por mais profunda e minuciosa que seja, jamais poderá concluir uma única norma a partir de premissas factuais.

A tese jusnaturalista diverge deste princípio. Esta tese implica a conjunção de pelo menos estas duas asserções: 1) há um direito que decorre da natureza das coisas, e 2) este direito é superior ao direito positivo.

A tese jusnaturalista não se limita a afirmar que há um direito natural, mas alcança também a asserção de que tal direito natural tem uma certa preeminência sobre o direito positivo. Desta forma, costuma-se sustentar que o direito positivo apenas pode ser considerado válido se estiver em conformidade com o direito natural. A sociologia do direito, na medida em que assuma ambas estas asserções, aceita a tese jusnaturalista, tal como entendida aqui.

Por certo que a grande maioria dos sociólogos não se identificaria como jusnaturalista, apesar de que Ehrlich afirma claramente sua simpatia por aquele pensamento, mas o que nos interessa aqui não é o rótulo, e sim a tese segundo a qual existe um direito identificável na própria natureza aliada à de que este direito prevalece sobre o direito positivo, ou seja, o direito dos legisladores e juízes.

A doutrina do direito natural é geralmente identificada com a idéia de que o direito pode ser deduzido da razão ou da natureza humana. Entretanto, não apenas esta tese implica a aceitação de que o direito decorra da natureza. É altamente atraente, segundo Kelsen, para o espírito humano a idéia de que as normas que obedece ou que prescreve têm uma fundamentação racional ou natural. Esta fundamentação é buscada seja na razão, seja nas relações sociais ou nas formas de comunicação.

A razão por que a doutrina do Direito natural, apesar de suas óbvias falácias, tem tido, e provavelmente sempre terá, grande influência no pensamento social é o fato de que ela satisfaz uma necessidade profundamente arraigada da mente humana, a necessidade da justificação. Para justificar os juízos de valor subjetivos que emergem do elemento emocional de sua consciência, o homem tenta apresentá-los como princípios objetivos transferindo para eles a dignidade de verdade, torná-los proposições da mesma ordem que os enunciados sobre a realidade. Portanto, pretende deduzi-los da realidade, o que implica ser o valor imanente à realidade. A realidade, porém, pode ser concebida não apenas como natureza, mas também como sociedade ou história, determinada por leis análogas às leis da natureza. (Kelsen, 2001 161)

Por certo não é geralmente aceito pela sociologia do direito que o direito apenas é válido na medida em que esteja de acordo com uma determinada idéia de justiça, ou determinado direito natural. Entretanto, é bastante claro na obra de Ehrlich que este autor entende que o direito positivo tem uma vigência limitada pelo direito vivo. É um equívoco, na opinião daquele autor, considerar como válidas normas de decisão que não correspondam a quaisquer normas do agir. Este equívoco seria, inclusive, muito corriqueiro entre juristas e é justamente por isso que se faz sentir a necessidade da sociologia do direito enquanto uma ciência que revela o direito vivo e não o direito dos juristas.

Os métodos sugeridos por Ehrlich para o estudo da sociologia do direito são principalmente o estudo de documentos e a observação direta da vida. Ora, se tais métodos podem levar à descrição de um "direito vivo", há um direito que decorre da natureza das coisas, no caso, das relações sociais. Podemos, por certo, evitar esta conclusão na obra de Ehrlich se abdicarmos de entender que o "direito vivo" tenha qualquer caráter normativo. Isto, no entanto, seria bastante difícil já que o próprio autor afirma estarem equivocados os juristas quando descrevem normas de decisão. Ora, o objetivo de tais juristas é descrever o que deve ser e, na medida em que a sociologia do direito demonstra que descrevem mal seu objeto porque ele não corresponde ao direito vivo, o faz porque o direito vivo é um dever ser.

Kelsen critica diretamente a Eugen Ehrlich por admitir que a partir da descrição daquilo que efetivamente sucede alcançará a sociologia do direito um determinado conjunto de normas do agir.

Porém Ehrlich estabelece a oposição entre a sua sociologia do direito e a jurisprudência contemporânea seguindo uma direção completamente distinta. Dita ciência do direito considera (betrachtet) o direito, erroneamente, como "uma regra para a atuação dos tribunais e de outras autoridades (estatais)", enquanto que a sociologia do direito concebe o direito "como uma regra geral da ação humana " (des allgemeinen menschlichen Handeln) (p.9), e, desta forma, o autêntica "conceito científico do direito" está na base de seu conhecimento (p.6). Dado o duplo significado da expressão "regra" - regra do ser ou do dever ser -, tudo o que se acaba de apontar depende do significado que Ehrlich dá a esta expressão. Em nossa opinião Ehrlich confunde completamente ambos significados ao pressupor que uma regra do agir é "obviamente uma regra segundo a qual não apenas se age, mas também segundo a qual se deve agir" (p.7). Este enunciado é evidentemente falso! Uma regra que tenha sido obtida a partir de um modo de consideração (Betrachtung) causal-explicativo não é mais que uma regra de ser, incapaz de dar uma indicação acerca do que deve ser. (Kelsen, 1992: 217) [09]

Kelsen rejeita a asserção ehrlichiana segundo a qual a sociologia do direito identifica as regras do direito vivo, que não são tão somente regras que os homens efetivamente observam, mas também regras que eles devem observar. A sociologia do direito, tal como elaborada por Eugen Ehrlich não apenas descreve o comportamento de indivíduos, mas identifica as normas que efetivamente são válidas. Com isto se deve entender que a descrição que os juristas elaboram acerca do dever está equivocada do ponto de vista desta sociologia do direito. Equivocada porque as normas tais como eles as descrevem ou servem apenas aos tribunais ou já foram abolidas na vida real. À sociologia do direito caberia descrever o direito vivo, o direito tal como efetivamente é, ou seja, o modo como os homens devem se comportar e de fato se comportam.

A reação de Kelsen diante destas asserções é de um indisfarçável inconformismo. O autor critica Ehrlich simplesmente se perguntando se ele realmente tinha tais idéias, tomando-as como "evidentemente falsas".

Ou Ehrlich realmente crê que um processo natural (Seinsvorgang) qualquer, por exemplo, o caso de uma declaração de vontade acerca do que deve suceder com determinados objetos do declarante quando de seu falecimento, pode ser considerada com independência de que tal declaração deva ter um determinado efeito jurídico? Pensa Ehrlich seriamente que as qualidades "lícito" e "ilícito", obrigação e pretensão, se aderem aos processos naturais como as cores ou as temperaturas? (Kelsen, 1992: 224)

Uma resposta a estas perguntas apenas poderia ser formulada na afirmativa. Sim, Ehrlich realmente parece pensar que as qualidade de lícito e de ilícito se aderem aos processos naturais. Não se deve entender com isto que para aquele autor tais qualidades sejam simplesmente imutáveis, antes ao contrário, variam como varia a sociedade. Entretanto, decorrem das relações sociais tais como efetivamente se processam em cada momento.

É evidente que Ehrlich adere à primeira asserção que compõe o jusnaturalismo. Resta considerar em que medida se admite também a segunda asserção, ou seja, a de que o direito vivo, tal como o chama o autor, tem supremacia sobre o direito positivo.

As repreensões que Ehrlich dirige aos juristas parecem apontar neste sentido. Considerando que o autor entende que a descrição que estes oferecem do direito é falha por não referir ao direito vivo, e que este já está, em geral, "superado" quando passa a ser considerado pelos juristas, devemos admitir que também esta asserção é aceita pelo autor.

Em geral, porém, sociólogos do direito não afirmam que o "direito vivo" seja superior ao "direito positivo", mas que o "direito vivo" é o único "verdadeiro". A afirmação de que um determinado conjunto de normas é verdadeiro ou falso, ou que um determinado conjunto de normas é mais verdadeiro que outro é equivocada. Uma norma não pode ser verdadeira ou falsa, mas apenas válida ou inválida. Neste sentido, apenas podemos atribuir algum sentido inteligível a este tipo de asserção se entendermos que o direito tal como descrito pela sociologia do direito, ou seja, o direito vivo, por exemplo, é superior ao direito positivo. Neste sentido, entenderíamos que no caso de uma oposição entre estas duas normas teríamos uma rejeição do direito positivo em favor do direito vivo.

O direito dos juristas é, para Ehrlich, um direito falso. Têm eles a pretensão de descrever o direito, mas descrevem tão somente normas de decisão empregadas por tribunais. Kelsen critica esta abordagem por implicar em que o direito dos juristas descreve o comportamento dos tribunais enquanto que o direito tal como descrito pela sociologia do direito descreveria o comportamento da sociedade como um todo. Para Kelsen isto implica em tratar a jurisprudência como uma espécie de sociologia dos órgãos do estado.

Até agora se tentou determinar as regras com relação às quais age uma certa categoria de homens: os juízes e outros órgãos estatais. A sociologia do direito se ocupa, sem embargo, das regras com relação às quais agem todos os homens. Em ambos os casos Ehrlich identifica as regras do agir efetivo com as do agir devido (Handelnsollen). Dever-se-ia pensar então que até agora a jurisprudência havia sido também uma sociologia, se bem que não uma sociologia geral mas uma especial, uma sociologia dos órgãos do estado - no caso de que o estado seja identificado com seus órgãos - : uma sociologia do estado. (Kelsen, 1992: 219)

Criticar a jurisprudência por oferecer uma má descrição do comportamento efetivo dos homens em geral equivale a criticá-la por não fazer algo que ela não se propôs a fazer.

Temos, portanto, que a sociologia do direito, tal com apresentada por Ehrlich, incorre em um jusnaturalismo sociológico, ou seja, decorre normas da natureza das relações sociais e entende que tais normas são superiores às normas do direito positivo.

Podemos fazer uma consideração semelhante com relação à obra de Emile Durkheim. Na obra deste autor encontramos diversas afirmações que nos permitem afirmar que o direito decorra da sociedade. Em Da divisão do Trabalho Social ele afirma que "uma vez que o direito reproduz as formas principais da solidariedade social, só nos resta classificar as diferentes espécies de direito para descobrirmos, em seguida, quais são as diferentes espécies de solidariedade social que correspondem a elas." (Durkheim, 1999: 35). O direito, portanto, reproduz a solidariedade social, e esta é algo factual, não normativo.

León Duguit, influenciado pelo pensamento de Durkheim, afirmou que o direito corresponde à solidariedade social, e que, de fato, o direito positivo não é senão declaração do direito existente enquanto solidariedade social. Esta idéia é repudiada por Kelsen.

Na moderna teoria jurídica francesa, a doutrina do Volksgeist é substituída pela da "solidariedade social" (solidarité sociale). Segundo Léon Duguit e sua escola, o verdadeiro Direito, i.e., o Direito "objetivo" (droit objectif) é subentendido na solidariedade social. Conseqüentemente, qualquer ato ou fato cujo resultado seja Direito positivo – seja legislação ou costume – não é criação do Direito, mas um enunciado declaratório (constatation) ou mero indício da regra de Direito previamente criada pela solidariedade social. (Kelsen, 2000b: 185)

Para ele

Tanto a doutrina alemã do Volksgeist quanto a doutrina francesa da solidarité sociale são variantes típicas da doutrina do Direito natural, com o seu dualismo característico de um Direito "verdadeiro" por trás do Direito positivo. (Kelsen, 2000b: 185)

Sendo variantes da doutrina do Direito natural, a este pensamento se aplica todas as críticas dirigidas àquele, em especial a da falácia da transposição dos fatos a normas, considerando que o valor não é imanente na natureza.

Em Durkheim encontramos que:

Os fatos morais e jurídicos – diremos simplesmente, de modo abreviado, os fatos morais – consistem em regras de conduta sancionadas. (...) O problema da gênese e o problema do funcionamento competem portanto a uma ordem de pesquisa. Por isso os instrumentos do método empregado pela física dos costumes e do direito são de dois tipos: de um lado, há a história e a etnografia comparadas, que nos fazem assistir à gênese da regra, que nos mostram os elementos que a compõem dissociados e depois se sobrepondo gradualmente uns aos outros; em segundo lugar, há a estatística comparada, que permite medir o grau de autoridade relativa de que essa regra é investida junto às consciências individuais e descobrir as causas em função das quais essa autoridade varia. (Durkheim, 2002: 2)

Estas "regras de conduta sancionadas" não devem ser entendidas no mesmo sentido de "normas jurídicas" ou tão somente "normas", tal como empregado por Kelsen. Normas, neste sentido, não são fatos. Por "regras de conduta sancionadas" deve-se entender uma regularidade de conduta, a sanção incidindo quando ocorre um comportamento desviante. Em Durkheim também é apresentado como consciência coletiva concentrada, como visto acima. Seja enquanto regra de conduta sancionada, seja enquanto consciência coletiva concentrada, o direito se revela como um "fato social", ou seja, um fenômeno da ordem do ser.

O que faz com que os homens vivam juntos é o sentimento de solidariedade, uma simpatia humana decorrente seja da similaridade seja das diferenças que implicam em interdependência. É esta a causa determinante do direito e de sua evolução (cf. Durkheim, 2002: 293). O direito decorre da sociedade. De fato, ele é constituído por um conjunto de representações (consciência coletiva) elaborado por um órgão da sociedade especialmente para isto designado, o estado (consciência coletiva concentrada). É nítido, portanto, que há um direito que decorre da natureza, no caso, da natureza dos vínculos que unem o homem.

Não cabe discutir se este direito é ou não superior ao direito positivo, uma vez que ambos estão identificados em Durkheim. O autor percebe, por exemplo, uma discrepância entre o rumo evolutivo da solidariedade, e, portanto, do direito, e a situação contemporânea. Entretanto, não imputa um defeito ao ordenamento jurídico. Em verdade é a sociedade que está padecendo de um mal.

É preciso que haja regras que digam a cada um dos colaboradores seus direitos e seus deveres, e de maneira não apenas geral e vaga, mas precisa e detalhada, visando as principais circunstâncias que se produzem mais comumente. Todas essas relações não podem permanecer nesse estado de equilíbrio perpetuamente instável. Mas uma moral não se improvisa. Ela é obra do próprio grupo ao qual deve aplicar-se. Quando ela falta, é porque esse grupo não tem coesão suficiente, porque não existe suficientemente como grupo, e o estado rudimentar de sua moral não faz senão exprimir esse estado de desagregação (Durkheim, 2002: 17)

Desta forma, não há possível contradição entre o direito positivo e o direito enquanto consciência coletiva. Por certo pode ocorrer que o direito revele um estado patológico da consciência coletiva, mas isto não implica em que haja um direito superior a outro, mas tão somente que a sociedade ainda não foi capaz de desenvolver para si as normas de que necessita.

Este direito, apesar de que decorrente tão somente da sociedade, ainda tem um caráter normativo, juntamente com o factual. A normatividade é, em Durkheim, imanente à própria sociedade. A sociedade é constituída da união de indivíduos. Esta união, entretanto, tem para o autor uma natureza diversa daquela dos elementos que a compõe. A sociedade não apenas é distinta dos indivíduos, mas lhes é superior. É esta superioridade da sociedade sobre o individuo que garante às normas morais e jurídicas sua característica obrigatória.

E, com efeito, o homem só é homem porque vive em sociedade. Retire-se dele tudo o que é de origem social e não restará mais do que um animal análogo aos outros animais. Foi a sociedade que o elevou tão acima da natureza física, e ela alcançou esse resultado porque a associação, agrupando as forças psíquicas individuais, intensifica-as, leva-as a um grau de energia e de produtividade infinitamente superior ao que poderiam atingir se continuassem isoladas umas das outras. Surge assim uma vida psíquica de novo tipo, infinitamente mais rica, mais variada do que aquela de que o indivíduo solitário poderia ser o palco, e a vida que assim se produz, penetrando o indivíduo que dela participa, transforma-o. No entanto, por outro lado, ao mesmo tempo que a sociedade assim alimenta e enriquece a natureza individual, ela tende inevitavelmente a submetê-la, e isso pela mesma razão. Exatamente porque o grupo é uma força moral tão superior à das partes, o primeiro tende necessariamente a subjugar as segundas. (Durkheim, 2002: 84)

Tem-se, portanto, que a sociedade sobrepuja o indivíduo, tendo uma vida e uma consciência infinitamente mais elevada que a dele. Daí que as representações coletivas se imponham sobre o indivíduo com uma força normativa. As representações coletivas assumem o caráter de moral e de direito, ou seja, constituem o fato moral, na medida em que tenham ambas as características, a coerção e a desejabilidade. Deve-se acatar as representações coletivas a um só tempo em função de seu caráter coercitivo e em função de sua superioridade moral.

Temos, portanto, uma tese jusnaturalista em Durkheim. Trata-se de um jusnaturalismo sociológico, que não se confunde com as teses jusnaturalistas clássicas. O termo "jusnaturalismo sociológico" se aplica em função de que o direito, aí, decorre de alguma forma da sociedade e apenas este direito é válido (não há qualquer outro). O direito não é obra de indivíduos, mas da sociedade.

A tese jusnaturalista representa, na opinião de Kelsen, não apenas um erro lógico, mas também um instrumento político. A idéia de que o direito pode ser deduzido da natureza serviu aos mais variados propósitos. Em geral, ainda segundo o autor, o direito natural se presta à legitimação do direito positivo. Segundo o autor:

Quase todos os seguidores da doutrina do direito natural admitem, expressa ou tacitamente, que existe uma presunção favorável à conformidade do Direito positivo ao Direito natural. A função histórica da doutrina do Direito natural foi preservar a autoridade do Direito positivo. (Kelsen, 2001: 294)

Assim, na obra de Ehrlich encontramos que o direito tal como entendido pelos juristas é uma formulação que tem por base o direito vivo, ainda que de certa forma desatualizada. Entretanto para que se possa rejeitar a validade do direito dos juristas seria necessário que se levasse a cabo uma pesquisa sociológica a fim de constatar a derrogação deste pelo direito vivo. O direito positivo surge então como uma declaração do direito vivo que goza, como dizem os juristas, de presunção juris tantum de validade, ou seja, deve ser considerado válido até que se demonstre o contrário.

Por paradoxal que pareça é um fato, não obstante, que a doutrina que nega que os legisladores positivos são o que pretendem ser – criadores do Direito – tem o efeito, se não o propósito, de fortalecer sua autoridade. (Kelsen, 2001: 295)

A sociologia do direito, na medida em que afirme que o direito tem um caráter normativo e que ele decorre da natureza, atribui ao direito positivo uma autoridade da qual este não gozava, a autoridade da ciência. A sociologia do direito, enquanto estudo científico, ou pseudocientífico do comportamento humano, se for capaz de identificar o direito que corresponde a uma determinada sociedade, livra o legislador do encargo de defender com suas opiniões e interesses pessoais as leis que busca elaborar.

5.2.Dualismo entre Direito e Estado e Hipostatização

A sociologia do direito incorre em um outro erro, na opinião de Kelsen, quando trata o direito como um produto do estado, reconhecendo a este último características próprias de indivíduos humanos. O Estado é apresentado como dotado de uma vontade, de uma consciência ou de interesses, atributos estes que não se pode facilmente identificar no fenômeno que chamamos Estado.

Não é apenas a sociologia do direito que admite o dualismo entre direito e estado. De fato, como o admite o próprio Kelsen, não há muita controvérsia acerca da distinção destes dois objetos.

(…) todas las teorías actuales de alguna importancia hállanse de acuerdo en la cuestión substancial, que puede formularse de modo semejante a éste: el Estado, considerado como una asociación de hombres, cae bajo la categoría de la Sociedad; y en tanto que a la Sociedad se la considera como una conexión de causas y efectos, al estilo de la Naturaleza, o como una sección de la Naturaleza, se atribuye al Estado una realidad psíquica y aun física, en el sentido de la realidad que se dice poseen las cosas del reino naturalista; mientras que del Derecho, en cuanto conjunto de normas, es decir, de proposiciones que expresan un deber ser, se predica tan sólo una cierta idealidad que, en el caso del Derecho positivo, no es más que relativa. (Kelsen, 1934: 7)

Dentre os autores aqui mencionados todos admitem tal dicotomia. Tanto em Ehrlich quanto em Durkheim o Estado aparece como um órgão da sociedade que tem como um de seus atributos revelar o direito, no caso de Ehrlich, e formular o direito, em Durkheim. Em Luhmann o Estado também aparece como distinto do direito. De fato, constitui um processo histórico razoavelmente lento o da positivação do direito, passando a existir a possibilidade de alteração do direito pelo Estado.

Na opinião de Kelsen, diferentemente, o Estado e o Direito são uma e mesma realidade. O Estado tal como o entendemos é o próprio ordenamento jurídico. Quando se afirma que o Estado tem determinada obrigação, pretende-se dizer que existe uma norma de uma ordem jurídica que determina que um determinado órgão da comunidade jurídica constituída por esta mesma ordem, está obrigado a realizar determinados atos. Quando se afirma que um Estado declarou sua vontade assinando um tratado de paz com um outro Estado, pretende-se dizer que um determinado indivíduo, indicado pelo ordenamento jurídico, realizou um ato para o qual estava autorizado e que deve ser interpretado como obrigando o Estado (indivíduos enquanto órgãos da comunidade jurídica) a determinadas condutas (aquelas estabelecidas pelo tratado).

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Leve-se em conta aqui a definição de pessoa jurídica acima apresentada. O Estado seria a personificação da ordem jurídica, na opinião de Kelsen. O Estado é a pessoa jurídica cuja ordem normativa é o Direito.

Kelsen considera a tentativa de explicar o Estado como um ente dotado de uma dupla natureza, uma jurídica e uma sociológica, onde o direito corresponderia à natureza normativa do estado, como a doutrina dominante.

Esta "teoría de las dos naturalezas" del Estado debe ser considerada como la doctrina dominante en la actualidad. Pero es impotente para salvar una objeción suscitada por la Teoría del conocimiento; a saber: que la identidad del objeto del conocimiento no está garantizada más que por la identidad del proceso cognoscitivo, es decir, por la identidad de la dirección, de los caminos del conocimiento (Kelsen, 1934: 8)

Criou-se, segundo Kelsen, um ramo do conhecimento destinado a compreender ambas as naturezas do Estado. Uma espécie de aliança entre um conhecimento normativo e um conhecimento causal no intuito de alcançar uma adequada descrição deste objeto de estudo. Tal tentativa, entretanto, revelou que apenas a parte normativa alcançava desenvolvimento significativo.

A una consideración detenida no puede pasar tampoco inadvertido el hecho de que dentro de esa ciencia (tan discutible desde el punto de vista metodológico): la Teoría General del Estado, constituida por la unión de la Teoría del Derecho político con la Sociología del Estado, y tan contradictoria que destruye su objeto y acaba por destruirse a sí misma al postular conscientemente la dualidad de sus métodos, la diversidad fundamental de finalidades y planteamientos de las cuestiones; dentro de esta ciencia, decimos, la parte más importante, la más rica de contenido es precisamente la Teoría jurídica. (Kelsen, 1934:8)

O Estado enquanto um ente distinto do direito, superior aos indivíduos, criador e suporte do direito, e dotado de uma realidade "natural" (no sentido de pertencente à ordem do ser), não se presta a estudo aprofundado. Muito pouco se pôde dizer do Estado tratado desta forma.

Um sistema de normas, segundo essa visão, possui a unidade e a individualidade, que o faz merecer o nome de ordem jurídica nacional, exatamente porque está, de um modo ou de outro, relacionado a um Estado como fato social concreto, porque é criado "por" um Estado ou válido "para" um Estado. Considera-se que o Direito francês se baseia na existência de um Estado francês como uma entidade social, não-jurídica. considera-se a relação entre o Direito e o Estado como sendo análoga à que existe entre o Direito e o indivíduo. Pressupõe-se que o Direito – apesar de criado pelo Estado – regula a conduta do Estado, concebido como um tipo de homem ou supra-homem, exatamente como o Direito regula a conduta dos homens.(Kelsen, 2000b: 262)

O Estado, enquanto algo distinto do direito ainda tem de conservar determinadas características típicas de uma ordem jurídica. O fato de que o ordenamento jurídico regula a conduta dos indivíduos é traduzido pela supremacia da vontade do Estado sobre a vontade individual, o fato de que o ordenamento jurídico seja aplicável a um determinado território e a uma determinada população é traduzido pelo fato de que o Estado tem um "povo" e de que ele ocupa um determinado lugar no espaço.

Esta concepção do Estado como distinto do direito e constituindo uma unidade sociológica implica na personificação da ordem jurídica ou na definição de um conceito completamente distinto do conceito jurídico de Estado. Teríamos, então um Estado brasileiro em sentido sociológico que não coincidiria com o Estado brasileiro em sentido jurídico. Possivelmente tal Estado teria um território e um povo diferentes. Tal construção, entretanto, jamais foi levada a cabo.

De acordo com Kelsen, os diversos ordenamentos jurídicos podem ser descritos e distinguidos uns dos outros sem que seja necessária qualquer referência aos diferentes Estados. O contrário, porém, não é verdadeiro. Não se pode distinguir o Paraguai do Brasil sem qualquer referência aos ordenamentos jurídicos. Não se pode caracterizar o território brasileiro como aquele em que está o Estado brasileiro. Não se pode caracterizar o povo brasileiro como aquele pertencente ao Estado brasileiro. O território brasileiro é aquele definido pelo direito internacional particular composto pelos tratados assinados por indivíduos determinados e autorizados para tanto pelo ordenamento jurídico brasileiro. O povo brasileiro é composto pelos indivíduos qualificados como brasileiros no ordenamento jurídico brasileiro, mais precisamente, no art. 12 da Constituição Federal de 1988.

O Direito francês pode ser distinguido do Direito suíço ou do mexicano sem a necessidade de recorrer à hipótese de que um Estado francês, suíço ou mexicano existam como realidades sociais de modo independente. O Estado como comunidade em sua relação com o Direito não é uma realidade natural, ou uma realidade social análoga a uma natural, tal como o homem é em relação ao Direito. Se existe uma relação social relacionada ao fenômeno que chamamos de "Estado" e, portanto, um conceito sociológico distinto do conceito jurídico de Estado, então a prioridade pertence a este, não àquele. O conceito sociológico – cujo direito ao termo "Estado" será ulteriormente examinado – pressupõe o conceito jurídico, não vice-versa. (Kelsen, 2000b :263-264)

Assim, o conceito sociológico de estado depende do conceito jurídico de estado, mas o conceito jurídico de estado é independente de qualquer consideração sociológica. Kelsen entende que o conceito sociológico de estado não passa de uma personificação do conceito jurídico de estado. Trata-se, segundo ele, de um erro comum, não apenas na sociologia do direito, ao qual o autor denomina hipostatização. [10]

El dualismo de Estado y Derecho es el resultado de un error del pensamiento que es típico en la historia del espíritu y muy corriente en todos los dominios del conocimiento. Para argumentar más fácilmente, se personifica la unidad del sistema y se hipostatiza la personificación, de tal manera, que lo que en principio no era sino un medio auxiliar del pensamiento, la mera expresión de la unidad de un objeto o sistema, acaba por convertirse en sistema u objeto autónomo. (Kelsen, 2000b: 100)

O pensamento jurídico personifica a ordem jurídica para tratá-la como sujeito de direitos e deveres. A descrição do ordenamento jurídico é muito mais simples quando se vale de tais personificações. Assim, quando se afirma que o Estado (enquanto uma personificação jurídica, uma pessoa jurídica) tem o direito de perseguir criminosos, temos uma descrição simples e clara do fenômeno jurídico seguinte: há uma norma que determina que certos indivíduos, atuando enquanto órgãos da comunidade jurídica (o que significa que as ações destes indivíduos deverão ser imputadas à comunidade jurídica como um todo) estão autorizados a requerer que determinados outros indivíduos (agindo enquanto órgãos da mesma comunidade), instaurem um processo determinado com o objetivo de que um outro indivíduo (órgão da comunidade, no caso, o juiz) ordene a outros indivíduos (órgãos da comunidade) que prendam um determinado indivíduo que é tido como um criminoso.

Por "órgão da comunidade jurídica" deve-se entender um determinado indivíduo que, de acordo com a ordem jurídica, deve agir de uma determinada forma, sendo que quaisquer conseqüências jurídicas de suas ações devem ser imputadas a outros indivíduos, determinados pela mesma ordem jurídica.

A simplificação promovida pela personificação é por certo útil. Entretanto, a tese segundo a qual Direito e Estado são duas realidades distintas, atribuindo a este último uma realidade sociológica, hipostatiza a personificação. Aquela construção do intelecto que servia como uma ferramenta para facilitar a descrição é tomada como uma entidade concreta. Esta entidade é, ela mesma, entendida como causa do ordenamento jurídico.

Kelsen compara este tipo de pensamento com a idéia de que existe um deus da chuva que faz chover, ou um ser mitológico qualquer que faz com que o sol nasça. Por trás da realidade que se pode perceber, imagina-se um ser que cria tal realidade. Por trás do direito, há o Estado.

Enfim, para Kelsen, o dualismo entre Direito e Estado não é sustentável. O Estado só pode ser definido por uma referência ao Direito, mas este pode se definido e estudado sem que se pressuponha a existência de qualquer Estado enquanto ente distinto do ordenamento jurídico. Para Kelsen, Direito e Estado são uma só e mesma realidade.

Contudo, esse dualismo é teoricamente indefensável. O Estado como comunidade jurídica não é algo separado de sua ordem jurídica, não mais do que a corporação é distinta de sua ordem constitutiva. Uma quantidade de indivíduos forma uma comunidade apenas porque uma ordem normativa regula sua conduta recíproca. (Kelsen, 2000b 263)

Este dualismo, entretanto, para o autor, tem um forte apelo político, razão pela qual é difícil sua superação.

Tomar essa figura de linguagem literalmente, hipostatizar a personificação e então falar do Estado como uma coisa diferente de "sua" ordem jurídica, imaginar o Estado como a autoridade, comunidade ou poder por trás do Direito – exatamente como Hélio era imaginado por trás do sol, Selene por trás da lua – e tornar o Estado o Deus do Direito: esta é a relíquia do animismo na jurisprudência e na teoria política, a qual a Teoria Pura do Direito tenta eliminar porque conduz a problemas falsos e tautologias vazias. Parece um esforço infrutífero. Pois o interesse político de fazer as pessoas acreditarem em um deus do Direito é mais forte que o interesse por uma análise científica e uma descrição correta dos fenômenos envolvidos.(Kelsen, 2001: 291)

As sociologias do direito, feitas algumas ressalvas no que concerne às sociologias do direito weberiana e luhmaniana, incorrem em uma hipostatização na medida em que tomam o Estado ou a Sociedade como entes criadores de direito, que têm necessidades, vontades e interesses. As normas jurídicas, na medida em que são aplicadas, constituiriam uma realidade distinta do próprio direito, o Estado. Seria esta realidade que "sustentaria" o direito, estaria por trás da realidade jurídica da mesma forma como Hélio era tido como estando por trás do sol.

5.3.Confusão entre ser e dever ser

De acordo com Kelsen a sociologia do direito incorre em erro quando confunde "ser" e "dever ser". Kelsen identifica este tipo de confusão em Eugen Ehrlich, que trata o direito tanto como um conjunto de normas quanto como um conjunto de comportamentos. Assim, quando Ehrlich critica os juristas por estarem atentos tão somente às regras que determinam o comportamento dos órgãos do estado, afirmando que a sociologia do direito abarca tanto estas como as regras do agir das pessoas em geral, não se pode distinguir com precisão se tais regras têm um significado normativo ou se se tratam de regularidades de conduta.

É como se Ehrlich identificasse a oposição entre a regra para a ação dos órgãos estatais e a regra para a ação de todos os homens com a oposição entre teórico (científico) e prático, quer dizer, com a oposição entre causal e normativo, entre ser e dever ser! Se fosse correto afirmar que a jurisprudência dominante se ocupa das regras com relação às quais atuam os órgãos do Estado (e, em conseqüência, com relação às quais devem atuar, no sentido de Ehrlich), então seria igualmente correto afirmar que uma disciplina teórica e científica como a sociologia do direito de Ehrlich, determina as regras com relação às quais atuam não apenas os tribunais, mas também todos os homens, sobretudo se se considera que estas "regras da ação humana geral" são não só regras de ser mas também e ao mesmo tempo regras de dever ser, quer dizer, normas.(Kelsen, 1992: 219).

Se a jurisprudência é entendida como a descrição da regularidade do comportamento de juízes e outros órgãos do estado, as regras que descreve são regularidades da conduta. Tais regularidades da conduta, no entanto, não são, como Ehrlich afirma do direito, tão somente objetos ideais, que existem nas mentes dos indivíduos. Tampouco o são as regras do agir das pessoas em geral, se forem entendidas como regularidades de conduta.

A sociologia do direito, quando trata de identificar o direito como algo da ordem do ser e, portanto, como um objeto de estudo de uma ciência causal, incorre necessária e alternativamente em uma destas asserções: a) o direito não tem uma natureza normativa ou b) a sociologia supera a dicotomia entre ser e dever ser.

Em geral a superação desta dicotomia é feita sem muita consciência. Em Durkheim, por exemplo, o fato de que a sociedade seja superior ao indivíduo em riqueza e complexidade, ou seja, de que a consciência e as representações de uma coletividade de indivíduos seja maior quantitativamente e mais bem elaborada, talvez, qualitativamente, implica em que a sociedade tenha uma força moral sobre o indivíduo. Esta última afirmação, como, em geral, a afirmação de que o fato social é coercitivo, pode significar que a sociedade determina a conduta individual em um sentido causal, ou que o indivíduo deva, em um sentido normativo, acatar as representações coletivas. Em Durkheim ambos os sentidos parecem estar presentes simultaneamente.

Nicklas Luhmann procura conscientemente superar a dicotomia entre ser e dever ser. Como vimos, este autor entende que a sociologia do direito esteve limitada à idéia de que a noção de dever ser é uma noção básica, fundamental, que não pode ser reduzida a outro elemento. Tal idéia foi prejudicial à sociologia na medida em que lhe vedou as portas inúmeras questões. Para Luhmann o dever ser não é oposto ao factual, mas o normativo é oposto ao cognitivo, e isto apenas relativamente. O normativo é uma parte do factual.

Luhmann argumenta que o dever ser e o ser não devem ser distinguidos semanticamente, mas funcionalmente. Esta afirmativa está em oposição à idéia que Kelsen faz do dever ser. Kelsen afirma:

Ser y debe ser son determinaciones generales del pensar mediante las cuales podemos percibir todos los objetos. Simmel comenta acertadamente: "El debe ser es una categoría, que al sumarse al significado objetivo de la representación, le asigna una función determinada para la praxis, tal como ésta obtiene una función tal para la representación concomitante del ser, del no ser, del ser deseado, etcétera".(…) Tal como el ser, el debe ser es una categoría originaria y, de la misma manera como no puede describirse qué es el ser o el pensar, tampoco hay una definición del debe ser. (in: Coreea, 1989: 286)

Para Kelsen a distinção entre ser e dever ser não é uma distinção entre dois fatos diferentes. A distinção entre sentenças normativas e sentenças descritivas é para ele uma distinção lógico-formal. O formato da construção normativa é distinto do formato da construção descritiva. Aquela se apresenta na forma "Se A, então deve ser B", diferentemente da forma "Se A, então B" da construção descritiva. O dever ser, que aparece como parte da construção normativa traduz um conteúdo específico de sentido, que não se refere a um determinado fato na realidade, mas a algo devido. Ao contrário de Luhmann, Kelsen trata o dever ser, assim como o ser, como conceitos fundamentais, que não podem ser mais explicados senão descritos em sua utilização. Ser e dever ser são, em Kelsen, essencialmente distintos e qualquer redução de um ao outro é para ele impossível.

A distinção luhmaniana aponta para uma característica bastante conhecida do significado normativo. Quando afirmamos que algo deve ser, não consideramos esta afirmação refutada pela afirmação de o que deve ser de fato não é. Assim, quando afirmamos que os seres humanos não devem roubar, não abandonamos tal afirmação pela constatação de que os seres humanos de fato roubam. Para Luhmann é esta a nota diferencial entre ser e dever ser. A forma normativa com a qual se expressa a idéia de que não se espera que uma determinada expectativa seja abandonada em função de ter sido frustrada não diverge tanto em seu significado, mas em sua função, da forma cognitiva.

Assim a distinção entre o normativo e o cognitivo estaria em que o normativo se presta a representar expectativas mais maleáveis e mais resistentes a frustrações, enquanto que o cognitivo representa expectativas menos maleáveis, susceptíveis a serem abandonadas quando confrontadas com contra-exemplos.

Luhmann, de fato, aborda esta questão de um modo completamente distinto daquele abordado por Kelsen. Entretanto, Luhmann, ao afastar a distinção essencial em termos lógico-lingüísticos entre o normativo e o factual, por certo não os trata como determinados conteúdos de sentido, ou melhor como estruturas formais de significado. O normativo e o cognitivo são tomados como determinados fatos psicológicos, quais sejam, como expectativas. Quando Luhmann deixa de tratar o normativo e cognitivo como significados formais, deixa de tratar do mesmo objeto que tratam Kelsen e tantos outros. Do ponto de vista kelseniano diríamos que Luhmann deixa de lado o normativo para tratar de um determinado fenômeno psíquico, que daria origem a representações normativas.

Assim, Luhmann não analisa a norma segundo a qual não se deve matar, mas a expectativa nutrida por determinados indivíduos de que os homens não matarão outros homens. Entretanto, em termos de significado, tratam-se de duas coisas distintas. Ainda que Luhmann pudesse demonstrar que representações normativas nascem a partir de expectativas de comportamento, o que demandaria uma extensa verificação empírica, isto não afastaria a distinção em termos de significado que há entre o normativo e o cognitivo. Cristãos em guerra podem considerar a guerra de que participam injusta, podem acreditar que não se deve matar em qualquer situação, podem estar profundamente deprimidos com o fato de estarem lutando e, ainda assim, nutrir expectativas de que os homens com os quais convivem matarão outros homens e, até mesmo, de que eles próprios matarão os inimigos quando lhes for dada uma oportunidade.

De fato o cognitivo e o normativo enquanto diferentes formas de expectativas de indivíduos, são ambos factuais. Apesar de que o normativo seja distinto do cognitivo, em Kelsen e em toda a tradição neo-kantiana, a representação psicológica do normativo é por certo um fenômeno que pode ser descrito na forma cognitiva, ou seja, a representação psicológica do normativo é factual. Esta, entretanto, não é uma inovação suficientemente significativa para justificar a rejeição desta tradicional dicotomia.

Note-se ainda que a asserção segundo a qual: ‘as representações psíquicas que assumem um formato normativo são expectativas maleáveis (no sentido de que se adaptam a diferentes situações) que não podem ser alteradas, em virtude de uma necessidade social ou individual, quando confrontadas com qualquer contra-exemplo’ é uma asserção que requer uma verificação empírica que não foi, contudo, apresentada.

Para Luhmann, em face da grande complexidade e contingência do mundo, os seres humanos têm uma necessidade existencial de estruturas de redução da complexidade. Tais estruturas podem ser adquiridas mediatamente, e não apenas em função de uma construção a partir da própria experiência. Assim, compartilham-se tais estruturas de redução da complexidade entre ego e alter ego. A admissão de que haja um alter ego semelhante ao ego traz ao mundo uma dupla contingência, já que se admite a mesma liberdade que o ego goza em face ao mundo também ao alter ego. Em situações de dupla-contingência as expectativas soem ser frustradas com uma freqüência muito maior que em situações de simples contingência. Daí que as relações entre os homens em geral engendrem estruturas de redução de complexidade com um caráter normativo, que, como Luhmann o entende, é caracterizado pela maior flexibilidade e por não serem facilmente alteradas em face de contra-exemplos.

Desta forma, tem-se que em situações de dupla-contingência, as expectativas de expectativas assumem uma forma normativa porque tal forma possibilita expressar a baixa disposição a alterar as expectativas em face de contra-exemplos.

As normas que decorrem do costume parecem de fato estar ligadas a expectativas de comportamento, de forma que no que toca a normas que têm essa origem a afirmação de Luhmann soa plausível. Entretanto, nem toda norma é decorrente do costume. As afirmações de Luhmann bem podem corresponder às normas geradas a partir do costume. Assim, espera-se que os indivíduos se sentem à mesa em um jantar e que comam com a boca fechada. Talvez seja possível tomar as regras de etiqueta que afirmam que se deve comer de boca fechada como expectativas acerca do comportamento efetivo dos homens. Entretanto existem inúmeros exemplos de normas que não tem este caráter, que não decorrem do costume.

Tomemos um exemplo. Em um jogo de pique-pega tem-se uma criança, chamada de "pego". Esta criança persegue um grupo de crianças. Caso o "pego" toque qualquer delas, esta passa a ser o "pego" e o ex "pego" fica livre para fugir do novo "pego". Há também um "pique", um lugar em que as crianças podem ficar sem que o "pego" esteja autorizado a tocá-las. Caso alguém seja tocado ali, isto não será considerado válido. Em um determinado jogo as crianças ficaram aborrecidas porque todos os livres ficaram permanentemente parados no "pique", de modo que a perseguição cessou por completo. Foi acordada, então, a seguinte regra: "ninguém pode ficar no pique por mais de 15 segundos".

Não se pode realmente aceitar que as crianças participantes realmente esperassem que ninguém ficasse mais do que 15 segundos no pique e que estavam dispostas a continuar esperando isto mesmo que fosse freqüentemente contraditado pela experiência. Tanto não é assim que pode ser criada, posteriormente, a regra segundo a qual quem permanecer por mais de 15 segundos no "pique" será considerado "pego". Neste caso, a regra expressa, talvez, justamente a expectativa oposta. Espera-se que as crianças ficarão no pique pelo máximo de tempo possível, e ficarão por mais de 15 segundos sempre que conseguirem evitar a sanção ou mesmo quando não o conseguirem.

Segundo Kelsen o ordenamento jurídico é uma técnica social, ou melhor, uma técnica de controlar o comportamento dos seres humanos. O estabelecimento de sanções para determinadas condutas tem por objetivo evitar tais condutas. Assim, o direito tem como pressuposto que a conduta contrária àquela pretendida ocorrerá.

Para Kelsen podem-se dividir as formas de produção de normas em produção "consciente" e produção "inconsciente" de normas. A produção do direito costumeiro tem um caráter inconsciente, já que os indivíduos cujos atos contribuem para o surgimento da norma não estão conscientes de que suas ações são atos criadores de normas. Por outro lado, os legisladores que votam um projeto de lei têm consciência de que seus atos são atos produtores de normas, assim como as pessoas que assinam um contrato. As normas que decorrem de uma produção consciente, em geral, são postas em face de uma expectativa do comportamento oposto. Quando se aprova uma lei estabelecendo que a "gambiarra" para desviar energia elétrica constitui crime de furto, isto é feito porque há uma expectativa de que indivíduos furtem energia.

Como se pode admitir que a norma seja expectativa de comportamento quando os indivíduos colocam cercas elétricas sobre seus muros para prevenir furtos? Acaso não se pode admitir que a norma que proíbe o furto seja válida e que, ainda assim, os indivíduos esperam que outros tentarão praticar o furto? Segundo Luhmann, a validade da norma corresponde à impossibilidade de alteração constante das expectativas. Ora, tem de admitir-se, então, uma "expectativa válida", a de que os indivíduos não furtarão, e uma "expectativa inválida", a de que os indivíduos de fato furtarão.

A oposição que Luhmann estabelece entre expectativas cognitivas e normativas pode ser útil para a distinção de formas de expectativas, mas não corresponde à distinção semântica entre ser e dever ser. Quando Luhmann afirma que a distinção entre o normativo e o cognitivo, entre o ser e o dever ser, não é semântica, podemos entender apenas que ele não está tratando de "ser" e "dever ser" no sentido tradicional, já que estes são geralmente entendidos como duas estruturas semânticas distintas. Se "ser" e "dever ser" não se distinguem por seu significado, mas pela função que desempenham em um determinado sistema social, "ser" e "dever ser" não são conteúdos de sentido, mas eventos psíquicos ou sociais. Conteúdos de sentido não têm "funções" [11] em sistemas sociais, o fato psicológico da representação de tais conteúdos de sentido pode ter tais funções.

Desta forma, a construção de Luhmann não pode afastar a tradicional oposição entre "ser" e "dever ser", mas apenas construir novos conceitos de "ser" e "dever ser", referentes a expectativas de expectativas.

Kelsen afirma que:

La oposición de ser y debe ser es lógico-formal y mientras que uno se mantenga dentro del límite de las consideraciones lógico-formales, no habrá camino que conduzca del uno al otro; los dos mundos se encuentran separados por un abismo insalvable. La pregunta por un por qué de un debe ser concreto, puede llevar en la lógica solamente hacia un debe ser, tal como la pregunta por el por qué de un ser obtiene siempre únicamente una respuesta del ser. (in Correa, 1989: 286)

Luhmann pretende refutar uma oposição lógico-formal por uma constatação de que determinadas representações psíquicas correspondem a determinadas funções e outras representações psíquicas correspondem a outras. Entretanto, a norma enquanto um conteúdo de sentido é algo diverso da representação psíquica deste mesmo conteúdo de sentido. A norma "não adulterarás" não é o mesmo que o fato: "Antônio (ou um grupo de pessoas) pensa: não adulterarás". Estudar o fato de que indivíduos têm idéias liberais não é o mesmo que estudar as idéias liberais.

A definição de direito a que Luhmann alcança a partir desta desconstrução da noção de "dever ser" é diversa da definição de direito dos juristas. O direito, para Luhmann corresponde a uma determinada estrutura de redução da complexidade, um sistema de expectativas que não podem ser alteradas com facilidade e em cada situação particular.

Retomemos a definição de direito apresentada anteriormente pelo autor. Segundo ele, direito são "expectativas comportamentais generalizadas congruentemente. (...) O direito não é primariamente um ordenamento coativo, mas sim um alívio para as expectativas" (Luhmann, 115). A vigência do direito é definida como a "impossibilidade fática" de rever as expectativas a cada momento. Esta definição não corresponde à definição de direito dos juristas. A norma da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que afasta a vigência da própria CLT no que toca às relações de trabalho doméstico (art. 7º, alínea "a") é considerada como parte do Direito pelos juristas, inclusive com a conseqüência de que não haja no direito brasileiro regulamentação referente à jornada de trabalho doméstico. Entretanto, é no mínimo discutível se existe a expectativa congruentemente generalizada e que não pode ser alterada a cada instante, de que as empregadas domésticas não têm direito à limitação da jornada de trabalho. Desta forma não é verdade, ao menos não para todos os casos, que as normas jurídicas são expectativas que não podem ser facilmente revistas.

Por outro lado, é bastante comum que as donas de casa dêem férias de 30 dias a suas empregadas domésticas, apesar de que legalmente elas têm direito apenas a vinte dias úteis. É comum que as pessoas esperem que uma empregada doméstica trabalhe aproximadamente oito horas diárias, ou seja, que receba algo a mais quando tiver de trabalhar à noite ou em feriados. Isto não implica que o direito assim o determina.

Caso a sociologia do direito de Luhmann seja coerente, deverá tratar como direito apenas as expectativas congruentemente generalizadas, tal como definido pelo autor. Neste caso, inúmeras normas jurídicas não serão tidas como direito, e outras inúmeras expectativas poderão ser tidas como direito. Teremos, então, um direito em sentido sociológico e um direito em sentido jurídico. A sociologia do direito se debruça sobre o direito em sentido sociológico, não em sentido jurídico.

Ao rejeitar a distinção entre ser e dever ser, e, portanto, rejeitar a definição jurídica de direito, que envolve um ordenamento normativo, Luhmann se vê na necessidade de definir um conceito sociológico do direito. Ao elaborar tal conceito, diverge daquilo que normalmente se entende por direito. Assim, ou a sociologia do direito toma para si a definição jurídica de direito ou se debruça sobre um fenômeno diverso daquele que chamamos de direito. Neste último caso não há qualquer razão para esta sociologia se chamar sociologia do "direito". Não há uma razão para que se atribua o mesmo nome para fenômenos completamente distintos. A sociologia do direito de Luhmann, se levar a sério suas próprias definições, será uma sociologia das expectativas congruentemente generalizadas, não do direito.

Um conceito sociológico de direito é, portanto, tanto melhor quanto mais se aproxime da definição jurídica de direito. Kelsen tem, assim, razão quando afirma que a sociologia do direito apenas pode encontrar seu objeto de estudo com auxílio das noções desenvolvidas pela jurisprudência. Em suas palavras:

A sociologia do Direito não pode traçar uma linha entre seu objeto – o Direito – e os outros fenômenos sociais; não pode definir seu objeto – o Direito – e os outros fenômenos sociais; não pode definir seu objeto específico como distinto do objeto da sociologia geral – a sociedade – sem pressupor, ao fazê-lo, o conceito de lei como definido pela jurisprudência normativa. A questão de qual conduta humana, como lei, pode ser o objeto da sociologia, de como a conduta efetiva dos homens a ser caracterizada como lei é distinguível de outra conduta, provavelmente só pode ser respondida da seguinte maneira: a "lei" no sentido sociológico é a conduta efetiva estipulada como condição ou conseqüência em uma norma jurídica, no sentido da jurisprudência analítica. (...) A função da norma jurídica, para a sociologia do Direito, é designar seu objeto particular e destacá-lo da totalidade dos fatos sociais. Nessa medida, a jurisprudência sociológica pressupõe a jurisprudência normativa. É um complemento da jurisprudência normativa. (Kelsen, 2001: 265)

5.4.Impossibilidade de definição sociológica de Direito e Estado

Anteriormente tratou-se de deixar clara a posição de Kelsen segundo a qual Direito e Estado não são senão uma mesma realidade. Entretanto, preocupava-nos mostrar ali a crítica que Kelsen dirige à tese segundo a qual há um Estado independente do Direito, enquanto um ente coletivo ou, de uma maneira geral, dotado de uma realidade sociológica. Há, entretanto, correntes de pensamento sociológico que não incorrem neste tipo de pensamento. A sociologia compreensiva, e a sociologia que adota o individualismo metodológico como um todo, não toma o Estado como um ente concreto, dotado de uma realidade distinta daquela dos indivíduos. Aqui, apesar de o Estado diferir do Direito, ele não passa de um determinado conjunto de relações humanas. Também o Direito é definido por esta sociologia desta mesma forma. O Direito não é idêntico ao estado, mas é, antes, um determinado conjunto de ações humanas individuais.

É ainda mais importante analisar esta forma de pensamento sociológico, presente em Weber, porque ela escapa das críticas anteriormente formuladas por Kelsen. Desta forma Weber aceita a distinção entre ser e dever ser, não toma o Estado como um ente superior aos indivíduos e que lhes outorga o direito e nem constrói o direito como um conjunto de normas derivadas de considerações acerca do comportamento efetivo dos indivíduos.

Em Weber o Estado é um conjunto de ações humanas individuais recíprocas por seu sentido e que se repetem no tempo. O direito também é um determinado conjunto de ações humanas individuais orientadas por um determinado sentido, qual seja, a representação da legitimidade de uma determinada ordem. Direito, portanto, não é tratado aqui como um conjunto de normas, mas como um conjunto de ações ou um conjunto de representações.

As críticas que Kelsen dirige a esta forma de sociologia são, a um só tempo, mais sutis e mais importantes. Para Kelsen a sociologia compreensiva de Weber constitui a tentativa mais bem sucedida de elaboração de uma sociologia do direito:

Até agora, a tentativa mais bem-sucedida de definir o objeto de uma sociologia do direito foi feita por Max Weber. Ele escreve: "Quando nos ocupamos com '' direito'' e, '' ordem jurídica'', ''regra de direito'', devemos observar estritamente a distinção entre um ponto de vista jurídico e um sociológico. A jurisprudência pede as normas jurídicas idealmente válidas. Ou seja... qual significado normativo deverá ser vinculado a uma sentença que aparenta representar uma norma jurídica. A sociologia investiga o que efetivamente está acontecendo na sociedade por que existe certa possibilidade de que os seus membros acreditem na validade de uma ordem e adaptem a sua conduta a essa ordem". Daí, segundo essa definição, o objeto de uma sociologia do direito é a conduta humana que o indivíduo adaptou a uma ordem porque considera essa ordem como sendo "Válida"; e isso significa que o indivíduo cuja conduta constitui o objeto da sociologia do direito considera a ordem da mesma maneira que a jurisprudência considera o direito. Para ser objeto de uma sociologia do direito a conduta humana deve ser determinada pela idéia de uma ordem válida. (Kelsen, 2000b: 254)

Esta delimitação do objeto de estudo da sociologia do direito não trata o direito como algo diretamente experimentável, nem como um determinado sistema de condutas humanas ou de expectativas humanas. O objeto da sociologia do direito é o comportamento humano quando adaptado por uma determinada idéia de direito. Assim, segundo Kelsen, a sociologia compreensiva do direito precisa, para definir seu objeto de estudo, fazer referência a um determinado conteúdo de sentido que esteja efetivamente presente nas mentes dos indivíduos.

Esta delimitação, no entanto, não é suficiente. É necessário que se identifique a que ordem em especial têm os indivíduos de orientar sua conduta para que ela seja considerada como um objeto da sociologia do direito.

O objeto da jurisprudência sociológica não são normas válidas - as quais constituem o objeto da jurisprudência normativa - mas a conduta humana. Que conduta humana? Apenas a conduta humana tal que, de um modo ou de outro, está relacionada ao "Direito". O que distingue sociologicamente tal conduta da conduta que está fora do campo da sociologia do direito? Um exemplo pode servir para esclarecer o problema. Alguém recebe um aviso das autoridades fiscais, solicitando o pagamento de $10.000 de imposto de renda, ameaçando com uma sanção a omissão do pagamento. No mesmo dia, a mesma pessoa recebe um aviso do chefe de uma famigerada quadrilha exigindo que ela deposite $10.000 em determinado lugar, ameaçando matá-la caso ela não cumpra exigência, e uma terceira carta, na qual um amigo pede uma grande contribuição para o seu sustento. Em que aspecto a notificação do imposto difere, sociologicamente, da carta de chantagem; em que aspecto ambas diferem da carta do amigo? É óbvio que existem três diferentes fenômenos, não apenas a partir de um ponto de vista jurídico, mas também a partir de um ponto de vista sociológico, e que a carta do amigo, pelo menos, com o seu efeito sobre a conduta do destinatário não é um fenômeno que esteja dentro do campo da sociologia do direito. (Kelsen, 2000b: 253)

Neste exemplo temos três situações em que as ações exteriores dos indivíduos podem ser idênticas. Entretanto, o pagamento feito a um amigo, segundo Kelsen, não é um objeto da sociologia do Direito. O pagamento feito ao criminoso seria objeto da sociologia do direito, ou melhor, da chamada criminologia, e o pagamento feito às autoridades fiscais também seria um objeto da sociologia do direito. No entanto, como se podem diferenciar sociologicamente tais comportamentos? A referência ao conteúdo de sentido subjetivamente real não basta. As dificuldades são inúmeras. Como se pode verificar tal conteúdo de sentido? Este sentido tem de ser comum a todos os indivíduos? À maioria deles?

Caso esta definição sociológica do objeto da sociologia do direito seja tomada a sério, ou seja, a sociologia do direito se ocupe daquelas ações que têm por conteúdo subjetivo de sentido uma determinado corpo de normas, teríamos que inúmeras ações normalmente abarcadas pelo direito seriam deixadas de lado.

Segundo Kelsen:

A definição de Max Weber do objeto da jurisprudência sociológica: a conduta humana adaptada pelo indivíduo atuante a uma ordem que ele considera válida, não é inteiramente insatisfatória. De acordo com a sua definição, um delito que foi cometido sem que o delinqüente tivesse qualquer consciência da ordem jurídica não seria considerado um fenômeno relevante. Nesse aspecto, a sua definição do objeto da sociologia é obviamente muito restrita. Uma sociologia do direito que investiga as causas da criminalidade também levará em consideração delitos que foram cometidos sem que o delinqüente adaptasse a sua conduta à ordem jurídica. (Kelsen, 2000b: 257)

De fato, é realmente difícil conceber uma criminologia que não considere como crimes as condutas de indivíduos que não tomam por crimes aqueles atos assim definidos pelo direito. Tomemos o seguinte exemplo. Um sociólogo do direito contratado para fazer uma investigação acerca dos crimes contra a infância em um determinado estado brasileiro descobre que, em uma certa cidade, é comum os padrastos abusarem sexualmente das crianças. Descobre ainda que naquele município nenhum dos atores envolvidos, seja a própria criança, seja a mãe e mesmo os policiais, considere tal prática como criminosa. Ora, neste caso, a levar a sério a definição sociológica não estaríamos diante de algo relevante para a sociologia do direito. Dificilmente, no entanto, este fato ficaria fora do escopo de um tal estudo. Todo e qualquer fato que seja juridicamente considerado como relevante para o direito, é considerado relevante para a sociologia do direito.

A definição weberiana de direito, tal como apresentada em Economia e Sociedade, quando o autor apresenta o caminho que se pode traçar da ação individual à relação social que compõe o direito, também é bastante problemática. Ali o direito é apresentado como relações sociais recíprocas por seu sentido, onde este é uma ordem considerada legítima pelos atores envolvidos. Para Kelsen, uma tal definição está em aberta contradição com os fatos. Assim, afirma o autor, comentando a definição de estado da sociologia de cunho individualista:

Para probar que el Estado es una realidad natural, se acude a la explicación de la unidad de los elementos en la cual consiste el Estado como un caso de acción recíproca, como una interacción psíquica. Una multitud de hombres llega a constituir una unidad si estos hombres mantienen relaciones espirituales recíprocas, es decir, si el alma de uno ejerce un determinado efecto sobre la de otro, siendo a su vez influenciada por ésta (Simmel). Es claro que no sólo los hombres entre sí, sino que todo – si se prescinde de específicamente psíquico – está en conexión mutua, porque este princípio de la acción recíproca es el principio sintético con arreglo al cual puede ser comprendido el mundo como una unidad, desde el punto de vista de la ciencia de la naturaleza. Luego si el Estado ha de poseer alguna característica especial que lo distinga de los restantes objetos constituidos en unidad por la interacción psíquica, es preciso que se añada alguna nota a la de acción recíproca. En esta nueva nota si piensa cuando se lanza esta afirmación: hay grados diversos de interacción psíquica y, en correspondencia, grupos sociales humanos más o menos sólidos. El Estado es aquella especie de la interacción psíquica cuyos elementos mantienen entre sí relaciones espirituales mutuas más intensas; el Estado constituye, pues, el grado más potente de la acción recíproca. Dejemos a un lado lo que haya de entenderse propiamente por "grados" de la acción recíproca. Demos por establecido únicamente que semejante determinación psicológica (o si se prefiere, psicológico-social) del Estado está en abierta contradicción con los hechos. Los hombres que forman y pertenecen al mismo Estado no necesitan en modo alguno hallarse perpetuamente entre sí en la relación de acción recíproca intensa, es decir, no tienen por qué mantener entre sí un intercambio de sus energías espirituales más intenso que con cualesquiera individuos no pertenecientes al mismo Estado. (Kelsen, 1934: 10)

E ainda, com relação à sociologia compreensiva em Weber:

La "Sociología compresiva" designa, pues, con la palabra Estado tanto el orden jurídico normativo (que, en cuanto contenido de ciertas representaciones, posee validez ideal), como el hecho real de las representaciones de este contenido, motivadoras de una conducta adecuada; y de este modo cree haber distinguido la existencia meramente "juridica" de la existencia "sociologica" del Estado. Esta última consistiría tan sólo en la "probabilidad" mayor o menor de que se realice de hecho un determinado obrar, cuyo "sentido" radicaría justamente en su orientación al orden jurídico estatal, atendiendo a su validez normativa. (…) En lo esencial, tratase aquí de una variante del ensayo de comprender el "Estado" como la eficacia de las representaciones psíquicas de las normas, según ya vimos, con la modificación de que aquí es comprendido también como "Estado" el orden jurídico normativamente válido. En lugar de la contraposición corriente de Derecho y Estado, se ofrece aquí la distinción entre un Estado jurídico y un Estado sociológico. (Kelsen, 1934: 26)

Não é verdade que os homens que compõe um determinado estado mantenham entre si relações sociais mais intensas do que as que mantêm com outros homens. Basta considerar cidades fronteiriças, as relações travadas via Internet e relações travadas por acadêmicos com outros profissionais da área. Tampouco é verdade que os homens que compõem um estado mantenham relações sociais recíprocas por seu sentido. Quais são as relações que mantêm entre si o funcionário de um cartório de um tribunal com um assessor da Câmara dos Deputados? E que relações eles mantêm com um fazendeiro de Rondônia?

Tampouco o direito pode ser definido, como o faz Weber, como relações sociais recíprocas por seu sentido, ou como o sentido de determinadas relações sociais recíprocas. Geralmente as pessoas que assinam contratos não têm em mente o direito. Em geral aquelas pessoas que roubam e fogem da polícia, ao contrário do que Weber afirma, não têm em mente uma norma jurídica que as proíbe de roubar, mas sim os maus-tratos dos policiais, a vergonha para a família, a humilhação que se sofre no presídio. Nada disso é jurídico.

Weber se livra deste problema afirmando que não se trata de que tal conteúdo de sentido esteja realmente presente nas mentes dos indivíduos, mas sim que haja a possibilidade, por remota que seja, (Weber, 1997: 252) de que o mecanismo coativo force o cumprimento das normas. Neste segundo caso, toda e qualquer ação pode ser interpretada como objeto da sociologia do direito, já que toda e qualquer ação cairá dentro do âmbito do direito. Sempre há uma probabilidade muito remota de que tribunais condenem indivíduos por condutas que fizeram ou não. Quando um indivíduo discute com outro, sempre há a remota probabilidade de que sua fala seja interpretada como um insulto e seja instaurado um processo contra ele por danos morais. Da mesma forma um elogio dirigido a uma dama distinta pode (ao menos remotamente) ensejar um processo por assédio sexual.

A sociologia do direito não pode definir seu objeto por uma probabilidade "por pequeña que pueda ser". Esta definição de direito é demasiado estranha e pouco útil para que possa ser aceita pela sociologia do direito.

Retornando à definição em termos da unidade do conteúdo de sentido a que fazem referência os indivíduos em questão, Kelsen afirma que, neste caso, a sociologia pressupõe que os indivíduos tenham efetivamente em suas mentes o conceito de direito que têm os juristas.

A sociologia do Direito, tal como definida por Max Weber, é possível apenas referindo a conduta humana que é o seu objeto ao Direito tal como existe nas mentes dos homens como conteúdo das suas idéias. Na verdade, o Direito existe nas mentes dos homens como um corpo de normas válidas, como um sistema normativo. Apenas referindo a conduta humana ao Direito como um sistema de normas válidas, ao Direito tal como definido pela jurisprudência normativa, é que a jurisprudência sociológica é capaz de delimitar o seu objeto específico daquela da sociologia geral; apenas por meio dessa referência é possível distinguir sociologicamente o fenômeno da conduta jurídica do fenômeno da conduta antijurídica, o Estado de uma quadrilha de chantagistas. (Kelsen 2000b: 256)

A sociologia do direito encontra nas mentes dos indivíduos concretos a idéia de direito tal como formulada pelos juristas. A sociologia do direito dificilmente afirmaria haver uma norma jurídica que não correspondesse à norma jurídica tal como descrita pelos juristas. Esta ordem, entretanto, não está efetivamente nas mentes dos indivíduos. A sociologia remete então à probabilidade de que tal ordem venha a ser forçada, ainda que a probabilidade seja remota.

A sociologia do direito chega, assim, a um conceito "sociológico" de direito que equivale ao conceito jurídico de direito. A ordem jurídica, quando for eficaz, ou quando houver probabilidade de que o seja, é o objeto da sociologia do direito.

A conduta humana pertence ao domínio da sociologia do Direito não por ser "orientada" à ordem jurídica, mas por ser determinada por uma norma jurídica como condição ou conseqüência. Apenas por ser determinada pela ordem jurídica que pressupomos como válida é que a conduta humana constitui um fenômeno jurídico. A conduta humana assim qualificada é um objeto da jurisprudência normativa; mas é também um objeto da sociologia do direito na medida em que efetivamente ocorre ou provavelmente ocorrerá. Esta parece ser a única maneira satisfatória de traçar um limite entre a sociologia do direito e a sociologia geral. Essa definição, assim como a formulação de Max Weber, demonstram claramente que a jurisprudência sociológica pressupõe o conceito jurídico de direito, o conceito de direito definido pela jurisprudência normativa. (Kelsen, 2000b: 257):

5.4.1.Conceitos jurídicos definidos sociológicamente

A sociologia weberiana chegou mesmo a definir sociologicamente diversos conceitos tradicionalmente definidos no âmbito do direito. Assim os conceitos de propriedade e de representação.

Grosso modo a propriedade, em sentido jurídico, se refere a um direito oponível erga omines, ou seja, à existência de uma obrigação geral, de todos os demais, de tolerar, ou seja, abster-se de interferir, no uso, gozo, fruição e disposição de uma determinada coisa pelo indivíduo proprietário. Trata-se, portanto, de um dever ser. Em Weber, a propriedade é um conjunto de probabilidades monopolizadas (Weber, 1997: 35). Não está muito claro nos textos pesquisados o que Weber entende por probabilidades monopolizadas, mas tal conceito parece apontar para a propriedade como uma situação fática em que, aparentemente, não há, ou há pouca, probabilidade de que outros indivíduos interfiram.

Por certo que um conceito de propriedade que envolva a baixa probabilidade de interferência por terceiro é, no mínimo, estranho. João, suponhamos, mora de favor na casa de seu cunhado. Ali, utiliza um quarto e os móveis que guarnecem aquele cômodo, sendo que, juridicamente, tal cômodo e seu mobiliário pertencem a seu cunhado. Sociologicamente, quem detém a probabilidade monopolizada? Há pouca probabilidade de que o cunhado de João interfira no uso do mobiliário daquele quarto, mas há uma alta probabilidade de que a namorada dele o faça. A sociologia toma, então, por propriedade aquilo que juridicamente é definido como posse, e mesmo o que não tem relevância jurídica (o uso por parte da namorada)?

Quando o economista fala de propriedade parece referir-se ao conceito jurídico antes que ao sociológico. Qualquer economista conhece as diversas formas de propriedade, tais como definidas juridicamente. Conhece a propriedade imóvel e suas formas de registro, a propriedade de bens móveis e as formas de propriedade por títulos, juridicamente considerados como bens móveis. Dificilmente um economista, ou um sociólogo, consideraria uma alienação como uma transferência de um monopólio de probabilidades, mas como uma transferência de um direito.

O conceito de representação é apresentado por Weber como uma conseqüência de uma relação social. Tal conseqüência consiste em que as ações de um indivíduo sejam consideradas como ações de todos os indivíduos. Esta definição diverge da definição jurídica, segundo a qual o exercício de direitos e o cumprimento de deveres do representado podem ser feitos pelo representante, ou seja, este está autorizado a agir juridicamente em nome daquele. Por esta definição sociológica efetivamente se considera, ou existe uma determinada probabilidade de que se considere, como atos do representado os atos do representante. Pela definição jurídica determinados atos do representante devem ser considerados como atos do representado.

5.4.2.As sociologias do direito e do estado pressupõem a jurisprudência

A sociologia do direito e a sociologia do estado, na medida em que definem seus objetos de estudo como a conduta dos indivíduos orientada a uma determinada ordem, a um determinado sentido, pressupõem a construção elaborada pela jurisprudência normativa.

A que sentido a sociologia se refere quando afirma que o comportamento recíproco dos indivíduos orientado por um determinado sentido constitui o estado ou o direito? Refere-se a uma determinada ordem que não está presente inteira na mente de qualquer dos indivíduos e que, por vezes, sequer é pensada por eles? Segundo Kelsen o estado não se identifica com qualquer das ações que são objeto da sociologia do direito. Ações recíprocas não implicam em algo diferente de duas ou mais ações. Quando a sociologia faz dependente seu conceito de estado de uma ordem que supostamente, com alguma probabilidade ou com uma possibilidade por pequena que seja, está presente na mente dos indivíduos, faz seu conceito de estado dependente da ordem construída pelos juristas.

Essas ações [que compõem o Estado] são, na terminologia de Weber, "orientadas" para certa idéia, ou seja, adaptadas a certa idéia; tal idéia é uma ordem normativa, a ordem jurídica. A ordem jurídica fornece esse esquema de acordo com o qual os próprios indivíduos, atuando como sujeitos e órgãos do Estado, interpretam sua conduta e de acordo com o qual, portanto, a sociologia, que pretende compreender o "Estado", tem de interpretar seu objeto. É um tanto quanto enganoso dizer que esse objeto é o Estado, o Estado "sociológico". O Estado não se identifica com nenhuma das ações que formam o objeto da sociologia, nem com a soma de todas elas. O Estado não é uma ação ou uma quantidade de ações, não mais do que é um ser humano ou uma quantidade de seres humanos. O Estado é aquela ordem da conduta humana que chamamos de ordem jurídica, a ordem à qual se ajustam as ações humanas, a idéia à qual os indivíduos adaptam sua conduta. Se a conduta humana adaptada a essa ordem forma o objeto da sociologia, então o seu objeto não é o Estado. Não existe nenhum conceito sociológico de Estado ao lado do conceito jurídico. Tal conceito duplo de Estado é impossível logicamente, senão por outro motivo, pelo menos pelo fato de não poder existir mais de um conceito do mesmo objeto. Existe apenas um conceito jurídico de Estado: o Estado como ordem jurídica centralizada. O conceito sociológico de um padrão efetivo de conduta, orientado para a ordem jurídica, não é um conceito de Estado, ele pressupõe o conceito de Estado, que é um conceito jurídico. (Kelsen, 2000b 272)

A definição sociológica do estado como um complexo de ações que tem por unidade uma determinada ordem, ou seja, um complexo de ações cuja única coisa em comum é a referência a algo que é definido em outros termos que não sociológicos, não é uma verdadeira definição de estado. A ordem à qual as ações que são objeto do estudo dos sociólogos fazem referência é o estado, tal como definido juridicamente. As ações que se orientam por essa ordem recebem da sociologia o mesmo nome que a própria ordem tradicionalmente recebe do direito.

Entretanto, tais ações não precisam efetivamente, para a sociologia, fazer referência a esta ordem, mas basta que exista uma probabilidade, por mais remota que seja, de que a ordem se faça obedecer por meios coercitivos. Ora, para que uma determinada ordem seja considerada como válida para a jurisprudência, ela precisa ser minimamente eficaz, ou seja, uma determinada ordem que não tem qualquer eficácia é considerada como revogada. Desta forma, o conceito sociológico de estado liga-se ao conceito jurídico de estado. Com efeito, o estado seria um conjunto de ações que tem alguma probabilidade de serem interpretados como correspondendo a uma determinada ordem, definida pela jurisprudência.

Para Kelsen, o conceito sociológico de estado, apesar de construído de forma a assemelhar-se o mais possível ao conceito jurídico de estado, sendo uma espécie de tentativa de tradução em termos de "ser" de um conceito formulado no "dever ser", não é o conceito que os sociólogos aplicam de fato. O autor afirma que:

É o conceito jurídico de Estado que os sociólogos aplicam quando descrevem as relações de dominação dentro do Estado. As propriedades que atribuem ao Estado são concebíveis apenas como propriedades de uma ordem normativa ou de uma comunidade constituída por tal ordem. Os sociólogos também consideram uma qualidade essencial do Estado a de ser uma autoridade superior aos indivíduos, obrigando os indivíduos. Apenas como ordem normativa o Estado pode ser uma autoridade com poder de obrigar, especialmente se essa autoridade for soberana. A soberania é concebível (...) apenas dentro do domínio do normativo. (Kelsen, 2000b: 273)

Quando o sociólogo se pergunta acerca de quais são os governantes de um determinado estado, não procurará saber quem é o indivíduo que de fato obtém obediência a suas ordens em uma determinada comunidade ou em um determinado território, mas procurará saber, juridicamente, que indivíduo deve ser considerado como a autoridade governante. Seria possível que uma análise sociológica viesse a demonstrar que um outro indivíduo que não Luís Inácio Lula da Silva efetivamente preside o Brasil. Isto, entretanto, não implica em que o presidente do Brasil seja outro que não Lula, nem que os parlamentares sejam outros que não os que foram eleitos.

Uma análise sociológica poderia revelar que em um determinado território próximo ou distante daquele que juridicamente é o território brasileiro, fala-se o português e se crê estar sob a autoridade das pessoas investidas no governo do Brasil. Entretanto, isto não levaria a sociologia a considerar tal território como território brasileiro. O território hoje conhecido como o estado do Acre não passou a ser parte do território brasileiro quando a maioria de sua população passou a falar português ou mesmo a considerar que ele era parte do Brasil, mas sim, precisamente, em 17 de novembro de 1903, quando foi assinado o tratado de Petrópolis, entre Brasil e Bolívia. O território brasileiro é definido jurídica e não sociologicamente.

Assim, o conceito de estado que os sociólogos, historiadores e antropólogos utilizam é o conceito jurídico de estado. E este é o único possível. A unidade jurídica conhecida como estado não corresponde a qualquer unidade sociológica ou histórica. O conceito jurídico de estado, no entanto, não é diferente do conceito jurídico de direito nacional, ou seja, uma ordem jurídica relativamente centralizada. Daí que tanto sociológica quanto juridicamente estado e direito se confundam.

A identificação de Estado e ordem jurídica é óbvia a partir do fato de que mesmo os sociólogos caracterizam o Estado como uma sociedade "politicamente" organizada. Já que a sociedade – como unidade – é constituída por organização, é mais correto definir o Estado como "organização política". Uma organização é uma ordem. Mas em que reside o caráter político dessa ordem? No fato de ser uma ordem coercitiva. O Estado é uma organização política por ser uma ordem que regula o uso da força, porque ela monopoliza o uso da força. Porém, como já vimos, esse é um dos caracteres essenciais do Direito. O Estado é uma sociedade politicamente organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordem coercitiva, e essa ordem coercitiva é o Direito. (Kelsen, 2000b: 273)

Assim, a sociologia do direito não apenas não pode delimitar seu objeto de estudo senão recorrendo a um conceito extra-sociológico, mas também tal objeto se confunde com o objeto de uma sociologia do estado, que também apela para o mesmo conceito extra-sociológico.

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Sobre o autor
Nelson do Vale Oliveira

sociólogo, mestrando em sociologia pela Universidade de Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nelson Vale. Uma teoria pura da sociedade:: os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1110, 16 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8626. Acesso em: 19 nov. 2024.

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