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Uma teoria pura da sociedade:

os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito

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16/07/2006 às 00:00
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VI-Uma Teoria Pura da Sociedade

6.1.Estrutura das críticas kelsenianas

Uma crítica a uma determinada teoria pode ter um caráter interno ou externo. As críticas acima apresentadas, formuladas por Hans Kelsen à sociologia do direito, não têm, o caráter de críticas internas. Por críticas internas entendo aqui aquela que revela uma incoerência na utilização de conceitos ou equívocos lógicos, demonstrando que das premissas apresentadas não se pode chegar às conclusões. Tratam-se, antes, de críticas externas. Por críticas externas entendo aquelas em que se compara a tese criticada com uma outra cuja validade é aceita. Rejeita-se a tese que diferir daquela já aceita.

Podemos identificar algumas críticas internas dentre aquelas que Kelsen dirige a Ehrlich. De fato, a este autor são dirigidas diversas críticas desta natureza. Segue um exemplo de uma crítica interna formulada por Kelsen:

O que se deve pensar, sem embargo, da distinção completa e fundamental na obra ehrlichiana entre enunciado jurídico e norma jurídica quando Ehrlich, após haver declarado nas páginas 22 e 29 que o enunciado jurídico - diferentemente da norma jurídica - é formulado verbalmente, afirma na página 135, referindo-se à diferença entre as normas jurídicas e as outras normas: "Por outra parte, a norma jurídica, diferentemente das outras normas, é sempre exprimível com palavras claras e determinadas. Dita norma jurídica dá estabilidade às coletividades que repousam sobre a norma jurídica... as normas da moral e das boas maneiras também se convertem em normas jurídicas tão pronto emergem de sua generalidade e são formuladas com palavras claras"? E o que se deve entender sob o termo ehrlichiano "enunciado jurídico" quando afirma na página 39 que este é uma "disposição jurídica" qualificada e em outra parte que o ordenamento jurídico vinculante se compõe, ao menos em parte, de tais "enunciados jurídicos", enquanto que na página 138 identifica o conceito de enunciado jurídico com o de lei formal, desmentindo-se, portanto, e alterando completamente a terminologia: "Na forma do enunciado jurídico, especialmente na forma da lei, podem ser incorporados os conteúdos mais diversos. Existem, portanto, enunciados jurídicos sem conteúdo normativo, sem conteúdo legal vinculante, leis no sentido formal". Aqui toda crítica se torna impossível! A maneira como Ehrlich dá saltos de um lado para o outro com estes conceitos fundamentais para seu sistema não tem uma relação individual (por oposição ao enunciado jurídico que esta vigente com caráter "geral" ou para "relações similares"); por outro lado define as "normas" na página seguinte como "mandatos e proibições abstratas" e sustenta - o que é já francamente inconcebível - que o referir-se à convivência humana é parte da essência da norma: de maneira que as regras lingüísticas, as regras do gosto ou da higiene não são normas! (Kelsen, 1992: 227-228)

Esta consideração aponta para inconsistências lógicas e utilização inadequada de conceitos definidos pelo próprio autor. Entretanto, a maioria das críticas que o autor formula, dentre as quais se encontra a maioria daquelas apresentadas anteriormente, não têm o caráter de críticas internas. Via de regra as críticas que o autor formula são críticas externas, como poderá ser constatado a seguir.

Seguem-se, de forma sucinta, as teses que Kelsen critica e as críticas formuladas:

Tese 1: Há um direito que decorre da natureza. O valor é imanente na natureza.

Tese 2: O direito que decorre da natureza prevalece sobre o direito positivo (dos juristas)

Tese 3: O direito positivo corresponde a um direito que decorre da natureza.

Crítica: O direito é um conjunto de normas. Normas são sentenças na forma "se A então deve ser B". A natureza é um conjunto de sentenças na forma "se A é, então B é". É impossível derivar de um conjunto de premissas na segunda forma qualquer conclusão na primeira forma.

Esta pode ser considerada uma crítica interna se considerarmos que os sociólogos concordam que o direito tenha a forma normativa e que a natureza tenha a forma causal. Na media em que tais premissas são rejeitadas, por exemplo, quando se afirma que o Direito não é normativo, mas tão somente um determinado conjunto de relações entre indivíduos humanos, esta crítica deixa de ser aplicável como uma crítica interna. A normatividade, de acordo com a tese 1, é inerente à natureza, seja inerente às relações sociais, ao processo comunicativo, decorrente da superioridade cognitiva do grupo sobre o indivíduo. Desta forma, devemos tomar esta crítica como uma crítica externa. A tese de que o direito decorre da natureza é rejeitada por Kelsen porque ela diverge da concepção kelseniana segundo a qual o "dever ser" é irredutível ao "ser".

As teses dois e três são rejeitadas por Kelsen por sua função ideológica. Ambas legitimam, segundo ele, o direito positivo. A tese 2 porque tem de assumir uma presunção de validade do direito até que se demonstre que ele está em contradição com o direito natural. A tese 3 porque o direito positivo assume uma autoridade pseudo-científica, na medida em que se torna uma espécie de descrição do direito tal qual dado na natureza. Estas críticas também estão vinculadas à mesma idéia de que o "dever ser" é irredutível ao "ser".

Vejamos, agora, as críticas daquilo que Kelsen chama teoria "dualista" do direito e do estado.

Tese 4: direito e estado são duas realidades distintas.

Tese 5: o direito corresponde a uma realidade normativa, enquanto que o estado corresponde a uma realidade sociológica.

Tese 6: o direito é válido na medida em que garantido pelo estado.

Crítica: O direito é uma ordem normativa da conduta humana, caracterizada pelo estabelecimento de sanções coercitivas para um determinado território e população. O estado é uma personificação desta ordem, um instrumento para facilitar a descrição. Não existe uma correspondência desta ordem normativa com nenhum fenômeno na natureza, em especial, com nenhuma unidade identificável de relações entre homens.

Disto resulta que a sociologia do direito e a sociologia do estado não são capazes de elaborar um conceito sociológico de direito ou de estado e, portanto, não são capazes de identificar seu próprio objeto de estudo. Tratam-se de conceitos, segundo Kelsen, tão somente jurídicos. A sociologia do direito depende, portanto, da jurisprudência.

Note-se que o problema das teses de 4 a 5 não é que sejam incompatíveis entre si ou que não tenham um sentido preciso ou sejam incoerentes com seu sentido. O problema destas teses é que são incompatíveis com as afirmações kelsenianas, e que de acordo com um recurso a um padrão de validação (não há qualquer unidade identificável na miríade de ações humanas, salvo a normativa) de certa forma empírico, deve-se preferir as afirmações kelsenianas.

A tese 6 é rejeitada como uma "superstição animista" (Kelsen, 2000b: 275) por Kelsen. O estado não passa de uma personificação da ordem jurídica. Tratá-lo como uma realidade distinta do direito, autônoma e mesmo determinante daquele implica na substancialização da personificação originalmente elaborada como um instrumento para facilitar a descrição da ordem normativa.

A multiplicidade de ações humanas não compõe qualquer unidade correspondente à unidade do estado. Caso se tome alguma unidade identificável sociologicamente e lhe atribua o nome de estado, mesmo tendo ciência de que não corresponde ao conceito jurídico já consagrado de estado, incorre-se, na opinião de Kelsen, em outro problema.

La "Sociología comprensiva" llega a conceder que cuando habla del "Estado" – un determinado acaecer efectivo – atribuye un sentido enteramente distinto del que le es propio al concepto jurídico del mismo, concepto que ella utiliza en virtud de su precisión y arraigo. Pero ¿por qué utiliza esta terminología, ilícita por equívoca? ¿Por qué llama "Estado" a algo, sabiendo que esta palabra designa en sentido "preciso y arraigado" un objeto enteramente distinto? Pues porque como Sociología, es decir, como conocimiento de lo social, no puede renunciar en serio a convertir en su objeto propio la estructura específicamente "social" Estado, y porque sólo el concepto jurídico, sólo la idea de un orden normativamente válido pone aquella síntesis específica con la cual esta estructura se constituye en unidad de una multitud de actos humanos. El concepto jurídico no es utilizado por la Sociología comprensiva sólo en virtud de su precisión arraigo (…), sino que este concepto es también para la sociología comprensiva el concepto fundamental y primario, sin el cual no podría ser habida esa unidad peculiar que constituye el "Estado". (Kelsen, 1934: 26)

Quando a sociologia trata daquilo que designa "estado", não está falando daquilo que em um sentido preciso e arraigado se entende por estado. Por que então utilizar o mesmo nome? Segundo Kelsen, isto se deve justamente à impossibilidade de delimitação sociológica dos objetos que a sociologia se propõe a estudar. Não é concebível uma ciência da sociedade que não tenha por objeto as estruturas que geralmente se entende como sociais. Ademais, a única unidade delimitável na miríade de condutas humanas é a unidade dada pela ordem normativa.

Desta forma, as críticas que Kelsen dirige à sociologia do direito e do estado não têm um caráter de críticas internas. Não se trata de mostrar que a sociologia é incoerente em suas definições ou comete erros lógicos. Trata-se de mostrar que as afirmações da sociologia divergem das afirmações kelsenianas e que, de acordo com um determinado critério de validação, deve-se preferir as afirmações kelsenianas àquelas da sociologia.

Resta claro, portanto, que as críticas mais importantes dirigidas por Kelsen à sociologia do direito têm o seguinte formato: a sociologia afirma X, eu afirmo Y. X é incompatível com Y.

6.1..1O fundamento das críticas kelsenianas à sociologia do direito

Considerando que as críticas que Kelsen formula à sociologia do direito não têm o caráter de críticas internas e que, para Kelsen, a aceitação de sua teoria implica na rejeição de teses elaboradas pela sociologia do direito, e inclusive da própria possibilidade da sociologia do direito como uma ciência autônoma com relação à jurisprudência, devemos reconsiderar a afirmação de Kelsen de que a sociologia do direito e a sua própria teoria têm objetos distintos.

Caso Kelsen não tratasse do mesmo objeto que a sociologia do direito, as teses formuladas por ambos não poderiam ser alternativas, ou seja, não deveria ser necessária a rejeição de uma para a aceitação da outra. De fato, a Teoria Pura do Direito, formulada por Kelsen, pode ter como objeto de estudo um determinado conjunto de normas, ou melhor conjuntos de normas que têm determinadas características. A sociologia tem por objeto o comportamento humano.

As críticas que Kelsen formula contra as diversas formas de sociologia do direito têm por base um conjunto de teses que compõem uma teoria da sociedade, que diverge das teorias adotadas pelos sociólogos criticados. Inúmeras afirmações de Kelsen não se restringem ao direito, mas elas formam um conjunto coerente de teses acerca da sociedade. Trata-se, agora, de identificar e apresentar tais teses, demonstrando que elas não se restringem a uma teoria do direito, abrangendo uma teoria mais geral, de toda e qualquer ordem normativa, ou, na terminologia do autor, toda a sociedade.

6.2.Distinção entre Natureza e Sociedade

Uma das distinções mais importantes do pensamento kelseniano é aquela entre Natureza e Sociedade. Esta distinção é erigida a partir da dicotomia entre ser e dever ser, e serve de base para a distinção entre ciência social normativa e ciência social causal. As definições de Sociedade e Natureza, apesar de não serem apontadas, geralmente, como parte da construção teórica kelseniana, figuram em praticamente todas as suas obras. O autor, entretanto, dedicou a este problema um de seus trabalhos mais extensos, apesar de pouco conhecido, traduzido para o espanhol como Naturaleza y Sociedad (1945).

Neste trabalho o autor desenvolve a distinção entre Natureza e Sociedade como duas construções de sentido distintas porque feitas de acordo com dois modos diferentes de vinculação de elementos. Afirma o autor:

La sociedad y la naturaleza, concebidas como dos diferentes sistemas de elementos, son los resultados de dos métodos diferentes de pensar y sólo en cuanto tales dos objetos diferentes. Los mismos elementos, puestos en conexión conforme al principio de causalidad, constituyen la naturaleza; conforme a otro, a saber, un principio normativo, constituyen la sociedad. (Kelsen, 1945: 2)

Estes "dois métodos diferentes de pensar" correspondem à distinção entre ser e dever ser. Kelsen toma esta distinção como uma forma de vinculação de elementos. O primeiro é descrito como o "princípio da causalidade", que consiste em vincular elementos na forma "se A, então B", onde A e B são dois fenômenos. Assim, de acordo com o princípio da causalidade, descreve-se algo na forma "se A é, então B é". É importante notar que esta fórmula abarca também relações probabilísticas e relações de pluricausalidade. Para Kelsen, o conjunto composto por elementos assim vinculados é chamado de "Natureza". O segundo método de pensar consiste em vincular elementos de acordo com o "princípio da imputação". Este princípio consiste em que os elementos se vinculam na forma "se A, então deve ser B". O conjunto de elementos interligados nesta forma constituem o que o autor chama de "Sociedade".

Note-se que, para o autor, os elementos que compõem a Sociedade são os mesmos que compõem a Natureza. O que caracteriza a Natureza é o vínculo causal, enquanto que o que caracteriza a Sociedade é o vínculo normativo. Tanto um animal, as estrelas e o comportamento recíproco dos seres humanos são parte de ambos, Natureza e Sociedade. Para Kelsen, a forma mais comum de os homens interligarem elementos entre si é a forma normativa, ou seja, de acordo com o princípio da imputação. Por estranho que hoje nos pareça animais e seres inanimados costumam ser tomados como sujeitos de direitos e deveres. Um animal de estimação não deve satisfazer suas necessidades fisiológicas em qualquer lugar, e mesmo um animal selvagem não deve matar. Kelsen apresenta inúmeros exemplos de aplicação do princípio da imputação a animais:

Aun en la Edad Media sucedía que magistrados concluyeran tratados preventivos con animales dañinos, con langostas, por ejemplo, y que abrieran procesos y que los animales fueran castigados por haber violado su parte del acuerdo. (Kelsen, 1945: 116)

Procesos judiciales entablados contra animales, y su castigo por tribunales del estado y la iglesia durante la Edad Media es el tema de un interesante estudio de Kart Von Amira, Thirerstrafen un Thierprocesse (1891). Amira escribe que (pp.1 ss): "Los animales han sido sujetos, por daños causados por ellos, a castigo público o al menos a un proceso que se parecía a la prosecución pública. Las autoridades estatales han ejecutado sobre animales el castigo de ahorcar, enterrar vivo, quemar, por el verdugo ordinario, y ello se hacía con observancia de las mismas ceremonias solemnes y complicadas establecidas para la ejecución del castigo capital sobre hombres. Las autoridades eclesiásticas han excomulgado animales. Este anatema se declaraba por una sentencia que tenía la misma forma que la que se pronunciaba contra miembros de la iglesia. (…) El procedimiento que llevaba a la maledictio o excommunicatio, de los animales se describe en la mayoría de los informes más detallados, por ejemplo también en documentos legales oficiales, como procesal. Su peculiaridad más notable consiste en que se trata a los animales como acusados. (…) Amira (p. 30) explica el castigo seglar de los animales por la influencia del Antiguo Testamento: "El Señor prometió a Noé y a sus descendientes vengar su sangre no sólo sobre los hombre, sino también sobre todos los animales. A esto correspondió la ley dada en el Monte Sinaí según la cual el buey que acornee a un hombre mortalmente será lapidado y su carne no será comida" (Gen. 9: 5; Exod. 21: 28-32) (Kelsen, 1945: 509-510)

Não apenas animais figuram em conexões normativas, mas também seres inanimados. Kelsen apresenta inúmeros exemplos de subordinação de homens a ferramentas e instrumentos, tratando-os de forma respeitosa e imaginando haver sanções para o comportamento diverso. Assim como para os animais, houveram, segundo o autor, tribunais para julgar instrumentos que houvessem prejudicado homens. Isto não serve apenas para o pensamento primitivo. Kelsen identifica esta forma de pensamento também na Grécia antiga. Ele cita um trecho de Anaximandro como segue:

"El sol no traspasará sus medidas [esto es, el camino que le ha sido prescrito]; si lo hace, las Erinnias, las asistentas de la Justicia [Dike] lo atraparán". Las Erinnias son los conocidos demonios de la venganza de la religión griega. (Kelsen, 1945: 366)

Desta forma, o princípio da imputação, ou seja, a conexão normativa que se estabelece entre os elementos, não tem uma afinidade maior com o comportamento humano do que com seres inanimados ou animais. Não é por ser referente ao comportamento humano que a construção é feita de acordo com um "método de pensar" normativo. Também o comportamento humano pode ser descrito de acordo com o "método de pensar" causal, como são exemplos a história e a sociologia contemporâneas.

Para Kelsen os homens pensam naturalmente na forma normativa. A construção que se vale do princípio da imputação é mais freqüente do que a construção que se vale do princípio causal. O autor considera "um fato fundamental" o de que os seres humanos constroem sistemas cognitivos valendo-se do princípio da imputação.

Constitui um fato fundamental o de que, quando os homens vivem em comum num grupo, surge na sua consciência a idéia de que uma determinada conduta é justa ou boa e uma outra é injusta ou má, ou seja, de que os membros do grupo, sob determinadas condições, se devem conduzir por determinada maneira e, isto num sentido objetivo, por tal forma que um indivíduo singular que num caso concreto deseje uma conduta oposta e de fato se conduza de acordo com o seu desejo tem consciência de se não ter conduzido como se deve conduzir. Isto significa que, na consciência dos homens que vivem em sociedade, existe a representação de normas que regulam a conduta entre eles e vinculam os indivíduos. (Kelsen, 2000a: 85)

A partir do momento que se toma este fato como, ao menos, plausível, se torna possível a descrição destas crenças humanas. Os homens acreditam que determinadas condutas sejam justas, boas, más ou injustas independentemente da apreciação subjetiva de qualquer indivíduo. A construção cognitiva que se tem aí é uma vinculação de elementos que se vale do princípio da imputação. O princípio da imputação vincula diversos elementos na forma "se A, então deve ser B". Esta construção, assim como a construção que tem como base o princípio da causalidade, não é feita dependente de qualquer vontade individual ou subjetiva. A construção normativa tem, também, um caráter objetivo neste sentido.

O princípio da imputação se distingue do da causalidade pela forma do elo estabelecido. Esta distinção implica em que as construções feitas com base no princípio normativo não estão sujeitas a contestação por contra-exemplos. No princípio da causalidade temos uma orientação de adequação diferente daquela do princípio da imputação. De acordo com o princípio da causalidade, deve-se adequar o sistema por ele construído de acordo com o mundo. De acordo com o princípio da imputação, o mundo deve se adequar ao sistema construído normativamente. Esta não é, entretanto, a única distinção, como parece supor Luhmann. Segundo Kelsen,

Uma outra distinção entre causalidade e imputação consiste em que toda a causa concreta pressupõe, como efeito, uma outra causa, e todo o efeito concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito, por tal forma que a cadeia de causa e efeito - de harmonia com a essência da causalidade - é interminável nos dois sentidos. (...) A situação é completamente diferente no caso da imputação. O pressuposto a que é imputada a conseqüência numa lei moral ou jurídica, como, por exemplo, a morte pela pátria, o ato generoso, o pecado, o crime, a que são imputados, respectivamente, a veneração da memória do morto, o reconhecimento, a penitência e a pena, todos esses pressupostos não são necessariamente conseqüências que têm de ser atribuídas a outros pressupostos. E as conseqüências, como, por exemplo a veneração da memória, o reconhecimento, a penitência, a pena, que são imputadas, respectivamente, à morte pela pátria, ao ato generoso, ao pecado e ao crime, não têm necessariamente de ser também pressupostos a que sejam de atribuir novas conseqüências. O número dos elos de uma série imputativa não é, como o número dos elos de uma série causal, ilimitado, mas limitado. Existe um ponto terminal da imputação. (Kelsen, 2000a: 101)

Diferentemente da Natureza (o conjunto de elementos vinculados causalmente), a Sociedade (o conjunto de elementos vinculados normativamente) não é infinita, ou seja, a série de vínculos estabelecidos entre os elementos não é interminável. Este caráter finito da construção normativa permite que haja diferentes construções normativas, ao passo que existe apenas uma natureza. A cadeia causal de elementos que compõe a natureza é, de acordo com o princípio da imputação que supõe que toda causa é uma conseqüência de outra causa, uma cadeia única e interminável. As cadeias normativas (ou "sociais", na terminologia kelseniana) de elementos são finitas e em número indeterminado. Um mesmo elemento pode fazer parte de inúmeras cadeias sociais.

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Cada uma destas cadeias "sociais" de elementos interligados normativamente é chamada por Kelsen de "ordem social". Posteriormente será discutido este conceito e apresentadas suas características.

Deve-se notar que esta distinção entre Natureza e Sociedade extrapola uma Teoria Pura do Direito. Não é parte da descrição e explicação de um determinado conjunto de normas, mas uma tese muito mais ampla. Ademais, esta tese se contrapõe a certas teses da sociologia do direito que, como o pensamento de Ehrlich, entendem que as "regras do agir", ou seja, o "direito vivo" constituem não apenas aquilo que os homens fazem, mas também o que devem fazer. Esta confusão entre ser e dever ser é inaceitável diante da admissão da dicotomia entre "Natureza" e "Sociedade" adotada por Kelsen. Isto porque não há correspondência necessária entre os vínculos normativos e os vínculos causais, que constituem duas formas diferentes e independentes de pensar. Se são duas formas diferentes de pensar, as construções feitas a partir delas não têm correspondência necessária e, portanto, não se pode encontrar regras que sejam, a um só tempo, regras que descrevem o comportamento efetivo e regras que determinam como deve ser o comportamento.

Por certo que a admissão de que os homens devem agir como de fato têm agido parece apontar no sentido desta confusão entre normas e descrições factuais. Entretanto, o comportamento efetivo dos homens muitas vezes diverge do comportamento costumeiro. Esta regra estabelece como devendo ser o comportamento costumeiro, não qualquer comportamento.

A dicotomia entre "Sociedade e Natureza" implica, na concepção kelseniana, na dicotomia entre ciências sociais normativas e ciências causais.

O teórico da sociedade, como teórico da moral ou do direito, não é uma autoridade social. A sua tarefa não é regulamentar a sociedade humana, mas conhecer, compreender a sociedade humana. A sociedade, como objeto de uma ciência social normativa, é uma ordem normativa da conduta dos homens uns em face dos outros. (...) Quando dizemos que uma sociedade determinada é constituída através de uma ordem normativa que regula a conduta recíproca de uma pluralidade de indivíduos, devemos ter consciência de que ordem e sociedade não são coisas diferentes uma da outra, mas uma e mesma coisa e de que a sociedade não consiste senão nesta ordem e de que, quando a sociedade é designada como comunidade, a ordem que regula a conduta recíproca dos indivíduos é, no essencial, o que há de comum entre estes indivíduos. (Kelsen, 2000a: 96)

6.3.Ciência Social Normativa e Ciência Causal

Como exposto anteriormente, para Hans Kelsen a Sociedade é definida como um conjunto de elementos vinculados normativamente. De fato, é o elo normativo que, para ele, caracteriza a Sociedade. Em contraposição, a Natureza é vista como um conjunto de elementos vinculados causalmente. Natureza e Sociedade são, para ele, portanto, resultados de duas formas diferentes de pensar, ou seja, construções realizadas por dois métodos distintos.

A natureza é a construção da ciência natural. A ciência, na medida em que vincula diferentes elementos com elos causais, constrói a "Natureza" no sentido kelseniano. Para o autor, qualquer ciência que empreenda a vinculação de elementos por um elo causal (ou natural, que para ele são sinônimos) pode ser chamada de ciência natural. Neste sentido, por certo, a sociologia é uma "Ciência Natural".

Entretanto, como a Sociologia e demais ciências que tratam causalmente do comportamento humano recíproco são chamadas ciências "sociais", Kelsen distingue estas das ciências "sociais" (no sentido próprio de Kelsen) que descrevem a "Sociedade" enquanto conjunto de elementos vinculados normativamente. Assim, a Sociologia, Economia, Ciência Política e demais ciências correlatas são chamadas "Ciências Sociais Causais", ao passo que a Jurisprudência (enquanto descrição do direito), a Teologia (enquanto descrição da religião), a Ética (enquanto descrição da moral), Etiqueta (enquanto descrição da etiqueta), e demais descrições de sistemas de normas, são chamadas de "Ciências Sociais Normativas".

Segundo o autor, não existe uma distinção essencial entre as "Ciências Naturais" e as "Ciências Sociais Causais", mas apenas entre ambas e as "Ciências Sociais Normativas":

Se há uma ciência social que é diferente da ciência natural, ela deve descrever o seu objeto segundo um princípio diferente do da causalidade. Como objeto de uma tal ciência a sociedade é uma ordem normativa da conduta humana. Mas não há uma razão suficiente para não conceber a conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da causalidade, ou seja, para a não explicar, como os fatos da natureza, como causa e efeito. Não pode duvidar-se de que uma tal explicação - pelo menos em certo grau - é possível e efetivamente resulta. Na medida em que uma ciência que descreve e explica por esta forma a conduta humana seja, por ter como objeto a conduta dos homens uns em face dos outros, qualificada de ciência social, a ciência social não pode ser essencialmente distinta das ciências naturais. (Kelsen, 2000a: 85)

Assim, como a Sociologia se ocupa do comportamento humano procurando estabelecer laços de causa e efeito (mesmo a sociologia compreensiva tem esta preocupação), não é considerada pelo autor como uma construção distinta das ciências naturais. O que a Sociologia descreve é o comportamento humano enquanto parte da "Natureza" de acordo com o conceito kelseniano.

A Psicologia, a Etnologia, a História, a Sociologia são ciências que tem por objeto a conduta humana na medida em que ela é determinada através de leis causais, isto é, na medida em que se processa no domínio da natureza ou da realidade natural. (Kelsen, 2000a: 95)

Apesar de que o autor mencione acima "leis causais", não se deve tomar por isso que ele interprete a sociologia como sendo necessariamente uma ciência causal-nomológica, tanto assim que Kelsen considera a sociologia weberiana, que não se pretende causal-nomológica, como a mais bem sucedida sociologia do direito e do estado. A distinção que ele procura traçar é suficientemente estabelecida se entendermos a sociologia como uma ciência simplesmente causal, e por causal deve-se entender tão somente aquele formato significativo que repetidamente tem sido apresentado: "se A, então B". As ciências mencionadas na última citação são todas ciências causais neste sentido, e abordam o comportamento humano, o principal elemento que figura contemporaneamente nas construções normativas. Entretanto, estas ciências não são as únicas possíveis do comportamento humano. É possível, segundo o autor, descrever o comportamento humano enquanto elemento de vínculos normativos, e não apenas causais. Esta é, aliás, a forma tradicional de descrição do comportamento humano.

Uma distinção essencial existe apenas entre as ciências naturais e aquelas ciências sociais que interpretam a conduta recíproca dos homens, não segundo o princípio da causalidade e, mas segundo o princípio da imputação; ciências que não descrevem como se processa a conduta humana determinada por leis causais, no domínio da realidade natural, mas como, determinada por normas positivas, isto é, por normas postas através de atos humanos, se deve processar. (Kelsen, 2000a: 96)

Esta descrição, feita pelas "ciências sociais normativas", é essencialmente distinta da descrição das ciências naturais. Elas vinculam os elementos de acordo com um princípio distinto daquele da causalidade. Seu objeto de estudo, portanto, não é a Natureza. Não tem como preocupação descrever o comportamento enquanto parte da natureza, enquanto um fenômeno natural, mas descrevê-lo como um fenômeno "social" (no sentido kelseniano), ou seja, como parte da "Sociedade".

Somente quando a sociedade é entendida como uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é que ela pode ser concebida como um objeto diferente da ordem causal da natureza, só então é que a ciência social pode ser contraposta à ciência natural. Somente na medida em que o Direito for uma ordem normativa da conduta dos homens entre si pode ele, como fenômeno social, ser distinguido da Natureza, e pode a ciência jurídica, como ciência social, ser separada da ciência da natureza. (Kelsen, 200a: 86)

A distinção entre ciências sociais normativas e ciências naturais (incluindo as sociais causais) justifica-se na medida em que as aquelas não têm por objeto algo que esteja na ordem da natureza. a sociedade, seu objeto de estudo, é tomada como um conjunto de elementos vinculados normativamente. A descrição que se constrói com base neste objeto não corresponde ao comportamento recíproco dos homens definido pela Sociologia como sociedade. Daí que a ciência jurídica seja distinguida das ciências naturais, incluindo a Sociologia enquanto uma ciência social causal.

É importante frisar que em nenhum momento Kelsen apresenta a Ciência Jurídica como a única ciência social normativa. Anteriormente já se mencionou exemplos de tais ciências, além do que os exemplos que o autor emprega em suas obras freqüentemente se referem a outras ordens sociais que não o direito.

Exemplos de aplicações do princípio da imputação no domínio das ciências sociais normativas são: quando alguém que fez algum bem, deves mostrar-te agradecido; quando alguém sacrifica a sua vida pela pátria, a sua memória deve ser honrada; quando alguém pecou, deve fazer penitência. (Kelsen, 2000a: 100)

Nenhum dos exemplos acima citado figuraria em uma descrição do direito enquanto uma ordem normativa, mas em descrições de etiqueta, moral patriótica e religião. É evidente, nas obras de Kelsen que o autor admite a descrição de outras ordens sociais de acordo com o modelo que ele constrói para a descrição do Direito. A normatividade que seu pensamento procura desvendar não é exclusivamente aquela do direito e do estado, mas do social de modo geral.

Na individuação desta normatividade específica, do social de modo geral e do Estado ou do Direito em particular, a Escola de Viena reconhece uma das suas principais realizações, uma vez que todos os seus resultados parciais só são alcançados como conseqüência lógica, deduzida da normatividade específica da área do Estado e do direito. (Kelsen, 2003: 9)

O pensamento da "Escola de Viena" não chegou a desenvolver uma teoria da sociedade em geral, mas isto não estava, de forma alguma, fora de cogitação.

Entretanto, como até agora ela se propunha desenvolver apenas uma teroria do Estado e do direito, mas não uma teoria geral da sociedade e menos ainda uma filosofia da cultura (do espírito), para ela bastava colocar o problema de determinar o âmbito geral, ao mesmo tempo diferente da natureza, no qual se desenvolve o social e, em particular, o direito, e individuar a lei específica que governa o Estado e o direito como fenômenos sociais especiais. A primeira pergunta é respondida energicamente pela Escola de Viena, determinando como espaço existencial do social, de modo geral, e do Estado, em particular, não a natureza, mas o espírito, definindo assim a teoria do Estado como ciência do espírito. A segunda responde, ao invés, reconhecendo como a lei essencial - talvez da esfera social de modo geral - mas certamente do Estado e do direito em particular, a legalidade da norma ou do valor, porque entende o Estado e o Direito como sistemas de norma ou de valor. (Kelsen, 2003: 9)

O Estado e o Direito são objeto da particular atenção de Kelsen. A formulação de uma teoria da Sociedade não era sua preocupação principal. Kelsen e seus companheiros eram juristas. Por mais que o pensamento kelseniano apontasse na direção de uma teoria geral da sociedade, a principal preocupação do autor era o direito.

Por certo que a teoria da sociedade que os autores entrevêem, e cuja existência se afirma aqui, não é substitutiva da Sociologia enquanto uma ciência social causal. Entretanto, o pensamento oposto, o da irrelevância da descrição normativa em face da descrição causal, é também equivocado.

A possibilidade e a necessidade de uma tal disciplina, endereçada ao direito como teor de sentido normativo, são demonstradas pelo fato secular da ciência do direito que, como jurisprudência dogmática, e enquanto houver direito, servirá às necessidades intelectuais dos que deste se ocupam. Não há qualquer razão para deixar insatisfeitas estas necessidades inteiramente legítimas e para renunciar a tal ciência do direito. Substituí-la pela sociologia do direito é impossível, pois esta ocupa-se de um problema inteiramente diferente daquele. Assim como, enquanto houver uma religião, terá de haver uma teologia dogmática que não pode ser substituída por qualquer psicologia ou sociologia da religião, também haverá sempre - enquanto houver um direito - uma teoria jurídica normativa. A sua posição no sistema global das ciências é uma outra questão, uma questão subalterna. O que importa não é fazer desaparecer esta ciência juntamente com a categoria do dever-ser ou da norma, mas limitá-la ao seu objeto e clarificar criticamente o método. (Kelsen, 2000a: 117)

Enquanto houver uma interpretação "social", ou melhor, enquanto os homens construírem sistemas de elementos vinculados normativamente entre si, não será irrelevante a descrição destes sistemas. O direito enquanto um sistema de normas tidas como válidas não pode ser descrito de outra forma senão como um sistema de normas tidas como válidas. Não há qualquer razão para se supor que tal descrição possa ser substituída por uma história ou sociologia do direito. A necessidade que advogados, cidadãos e juízes têm de uma descrição sistemáticas das normas jurídicas não é justificadamente deixada de lado pela afirmação de que a ciência causal é única "verdadeira" ou a única possível.

Da mesma forma, como afirma o autor, enquanto houver religião, haverá teologia, e, extrapolando, enquanto houver etiqueta, haverá um conhecimento normativo que hoje chamamos também etiqueta, enquanto houver moral, haverá um conhecimento normativo acerca dela, uma "ética", enquanto houver família, esportes, estado, jogos, romances, enfim, enquanto houver valores e idéias normativas, será possível a descrição destes valores e destas normas segundo um princípio de imputação.

Podemos dizer, portanto, que de acordo com a concepção kelseniana existem dois métodos distintos para as ciências sociais, métodos essencialmente distintos, compondo, de fato duas formas distintas de ciências sociais. Portanto, seu pensamento diverge da afirmação de certos sociólogos que abordaram o direito, como Ehrlich, que entendia que a sociologia do direito era a única ciência possível acerca do fenômeno jurídico. Para Kelsen é possível uma sociologia do direito, mas esta dependerá, sempre, de conceitos formulados por uma ciência normativa acerca do fenômeno jurídico, já que seu objeto é o comportamento humano na medida em que relacionado de alguma forma às normas descritas pela jurisprudência normativa.

6.3.1.Ceticismo com Relação à Possibilidade da sociologia causal

Apesar de que podemos encontrar diversas referências de Kelsen à possibilidade lógica de uma ciência causal acerca do fenômeno jurídico, desde que em uma permanente dependência da jurisprudência normativa, encontramos também um ceticismo quanto à viabilidade do conhecimento sociológico nas condições contemporâneas da ciência. Este ceticismo se revela, por exemplo, nas afirmações do autor de que não se elaborou ainda qualquer descrição sociológica de qualquer ordem jurídica e de que não existem hoje os meios adequados para tal empreendimento.

Kelsen demonstra uma certa simpatia tão somente pela sociologia de cunho individualista metodológico, em especial pela sociologia compreensiva. O que esta sociologia tem de atraente é justamente o fato de não tratar o comportamento recíproco dos indivíduos como algo "sui generis", na expressão de Durkheim, ou melhor, de negar que a sociologia se debruce sobre um objeto distinto da ação individual. Entretanto, a sociologia compreensiva é censurada por Kelsen por não ser capaz de elaborar os conceitos com os quais tem de trabalhar, tais como Estado, Direito e Igreja.

Para Kelsen estes conceitos se referem a ordens normativas, e não existe qualquer unidade na miríade de comportamento humanos individuais que possa ser identificada como, por exemplo, "Brasil" ou "Catolicismo", de modo que a sociologia compreensiva necessita tomar estes conceitos de empréstimo de outro ramo do conhecimento. Dado que tais conceitos têm um caráter normativo, não causal, não podem ser utilizados pela sociologia para o estabelecimento de relações causais, mas apenas para a identificação das ações individuais que são seu objeto de estudo quando se debruça sobre uma determinada ordem. A sociologia consistiria, nesta medida, na descrição do comportamento dos indivíduos, delimitados estes por ordens normativas.

Por certo isto é muito menos do que aquilo que a Sociologia ambiciona. Contemporaneamente tem-se feito um esforço no sentido de superar a dicotomia entre "Sociedade" e "Indivíduo" ou entre "Ação" e "Estrutura". Se, entretanto, considerarmos as estruturas normativas, teremos em Kelsen uma reafirmação desta dicotomia, deixando à Sociologia tão somente o estudo da "ação" e tratando a "estrutura" como objeto de uma ciência social normativa.

6.2.Ordens Normativas

Cumpre considerar agora certas teses kelsenianas relativas às ordens sociais, que nos indicam claramente que seu pensamento não é restrito, tão somente, ao estudo do direito. Anteriormente já foi apresentada uma definição de ordem normativa e o que lhe confere unidade. Uma ordem normativa é entendida aqui como um conjunto de normas vinculadas entre si por se referirem ao mesmo fundamento de validade. Quando uma ordem normativa tem por objeto a conduta humana, é chamada "ordem social".

6.2.1.Tipos de ordens sociais

Kelsen elabora classificações destas ordens sociais.

As ordens sociais podem ser classificadas em ordens sociais dinâmicas ou ordens sociais estáticas, em função de seu fundamento de validade.

Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer a conduta dos indivíduos por elas determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: por que a sua validade pode ser reconduzida a uma norma para cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. (Kelsen: 2000a: 217)

Aqueles sistemas de normas, ou seja, aquelas ordens sociais, nas quais as normas inferiores decorrem das normas superiores de acordo com um princípio dinâmico, ou seja, apenas sua razão de validade, e não o seu conteúdo, depende da norma superior, são designados como sistemas dinâmicos ou ordens dinâmicas. Em uma ordem dinâmica, a própria estrutura da ordem implica em uma divisão de funções, uma vez que a ordem, por definição, confere a determinados indivíduos ou processos, um "poder" criador de normas, ou melhor a ordem determina que quando por determinada forma (que pode ser um procedimento ou uma mera declaração de vontade de um indivíduo) for produzido um ato cujo sentido seja uma norma, esta norma deve ser obedecida. Inúmeros exemplos podem ser mencionados aqui. A Igreja Católica Apostólica Romana, a Igreja Universal do Reino de Deus, o Banco do Brasil, o estado brasileiro, são todos exemplos de ordens sociais dinâmicas assim conceituadas.

As ordens sociais em que as normas inferiores decorrem tanto seu conteúdo como seu fundamento de validade da norma fundamental são chamadas ordens estáticas. As ordens sociais estáticas têm um grau maior de descentralização. A aplicabilidade ou não de uma determinada norma não é conferida a um órgão (indivíduo ou indivíduos) de qualquer forma determinado, mas deixada aos próprios indivíduos que têm de observar as normas. Não há procedimentos por meio dos quais seja possível criar novas normas a partir da norma fundamental senão por meio da dedução do geral para o particular. A moral é geralmente o exemplo apresentado. A moral cristã, por exemplo, decorre inúmeras normas da norma segundo a qual é devido o amor mesmo aos inimigos. Se tomarmos esta norma como uma norma fundamental, teremos uma ordem social (moral) estática. Um outro exemplo seria a etiqueta. A partir da norma segundo a qual deve-se ser agradável deduzem-se inúmeras outras normas.

Esta classificação, afirma o autor, não é tão rígida, já que todas as ordens sociais se valem de ambos os princípios estático e dinâmico. A classificação é mantida na medida em que predomine em uma determinada ordem um ou outro destes princípios.

Uma outra classificação é feita pelo autor a partir das sanções estipuladas pela ordem.

As sanções estabelecidas numa ordem social têm ora um caráter transcendente, ora um caráter socialmente imanente. Sanções transcendentes são aquelas que, segundo a crença das pessoas submetidas ao ordenamento, provêm de uma instância supra-humana. (Kelsen, 2000a: 30)

As ordens sociais podem ser classificadas também em função das sanções que estabelecem. As ordens sociais podem estabelecer sanções a serem levadas a cabo por seres humanos ou por outros seres quaisquer. Quando as sanções são efetivadas por seres não-humanos como deuses, anjos, animais ou outros quaisquer, são consideradas sanções transcendentais. Assim, tanto a norma segundo a qual a criança não deve mentir ou alguma mágica fará seu nariz crescer, ou o Papai Noel não lhe trará presentes, como a norma segundo a qual se deve professar uma determinada fé ou se incorrerá na punição da privação da vida eterna ou de uma vida após a morte repleta de dores e tormentos, são normas dotadas de sanções transcendentes.

Em contraposição às sanções transcendentes, temos as sanções socialmente imanentes.

Completamente distintas das sanções transcendentes são aquelas que não só se realizam no aquém, dentro da sociedade, mas também são executadas por homens, membros da sociedade, e que, por isso, podem ser designadas como sanções socialmente imanentes. As sanções podem consistir na simples aprovação ou desaprovação, expressa de qualquer maneira, por parte dos nossos semelhantes, ou em atos específicos, determinados mais rigorosamente pelo ordenamento social, o qual também designa os indivíduos por quem esses atos são realizados ou postos num processo pelo mesmo ordenamento regulado. Nesta última hipótese podemos falar de sanções socialmente organizadas. (Kelsen, 2000a:31)

Uma norma pode estabelecer como sanção a vingança de sangue, por exemplo. Neste caso, quando um homem matar outro, o irmão da vítima, por exemplo, deve matar o assassino. Esta sanção é realizada por um homem determinado pela própria ordem, não individualmente, é claro, mas suficientemente determinado por uma relação com a vítima. As sanções imanentes subdividem-se por sua vez em sanções socialmente organizadas e sanções que não têm este caráter. Uma norma que determine que não se deve comer com a boca cheia ou sem talheres, e que estabeleça como sanção a reprovação ou a qualificação como "mal-educado" não determina qualquer indivíduo como responsável pelo cumprimento da sanção. Esta sanção, tampouco é transcendente. Trata-se, apenas, de uma sanção imanente mas completamente descentralizada. No exemplo da vingança de sangue temos uma norma que estabelece mais claramente o indivíduo que deve efetivar a sanção. No caso da norma do direito brasileiro que proíbe o furto, por exemplo, temos determinados diversos indivíduos que devem participar de inúmeros atos para a aplicação da sanção. Temos, então uma sanção socialmente imanente e socialmente organizada.

Uma mesma ordem pode ser dotada de normas que estabeleçam sanções imanentes e transcendentes, socialmente organizadas e não-organizadas. Assim, o Catolicismo envolve sanções socialmente organizadas tais como a excomunhão e a penitência, que devem ser aplicadas por órgãos específicos, bem como a absolvição (a sanção é a conseqüência devida, seja punição ou recompensa), mas também de sanções transcendentes, tal como a vida de penúria ou gozo no além.

Note-se que tais classificações de ordens sociais não têm como escopo simplesmente tratar do direito, mas de todas as ordens sociais. Ademais consistem em classificações realizadas a partir de determinados elementos da norma, não de qualquer espécie de comportamento efetivo ou característica de fato encontrada em um determinado grupo de indivíduos. Uma ordem é organizada se suas normas estabelecem órgãos, não se é empiricamente verificável uma "divisão do trabalho social". A divisão funcional de papéis não consiste em uma constatação empírica de que homens trabalham fora e mulheres cuidam da casa. Há profissões que são tradicionalmente femininas, como arrumadeira, governanta, enfermeira, assistente social, entre inúmeras outras. Mesmo uma família tradicionalmente patriarcal não teria muitos problemas em aceitar que uma enfermeira despendesse seu tempo trabalhando em um hospital. Esta divisão de papéis consiste em que os homens devem sustentar economicamente suas mulheres. Este dever ser não corresponde necessariamente ao comportamento efetivo dos indivíduos. Trata-se de uma norma, não de um fato.

Também a distinção entre ordens transcendentes não tem qualquer relação com algum sentimento místico, experiência sobrenatural ou carisma extraordinário. Trata-se, novamente, de uma característica da própria norma. Não se estabelece um indivíduo como o responsável por efetivar as sanções, mas um ser não-humano. As sanções transcendentes não implicam o um sentimento de superioridade de outros seres ou da natureza sobre o homem, mas apenas que outros seres são responsáveis pela aplicação de certas sanções. Podem-se citar inúmeros exemplos de homens que se vingam de deuses ou de outros seres sobrenaturais.

Que un hombre ejerza retribución sobre sus dioses no sólo recompensándolos por beneficios recibidos o por recibir, sino también castigándolos por no concederle tales beneficios, ocurre parejamente entre pueblos con religiones más avanzadas. En Herodoto, vii, p. 35 leemos: "De modo que cuando Jerjes supo de ello [que el puente había sido destruído] se llenó de ira, y de inmediato dio orden de que el Helesponto recibiera trescientos azotes y de que se le arrojara un par de grilletes" (…)

Augusto castigó a Neptuno por la pérdida de su flota ordenando que en los juegos circenses la imagen de éste no fuera portada junto con las de los otros dioses. Enfurecidos por la muerte de Germánico, los romanos lapidaron los templos de los dioses, destruyeron sus altares, y removieron sus imágenes. Hechos similares ocurrieron después de la muerte de Calígula a fin de castigar a los dioses por haber admitido a tal monstruo al trono. (Kelsen, 1945: 498)

Desta forma, não é um sentimento de inferioridade perante os deuses ou perante a natureza que caracteriza uma ordem transcendente, no sentido kelseniano, mas tão somente a característica de um dos elementos da norma, a sanção, de não estar destinada a ser efetivada pelas ações de qualquer indivíduo humano.

6.2.3.Organização

Uma ordem social, enquanto um determinado conjunto de normas, pode estabelecer órgãos, caso em que falamos de comunidades organizadas. Afirmar que uma ordem estabelece um órgão significa que uma determinada função, ou seja, um conjunto de atos estabelecido como devido pela ordem, deve ser desempenhada por um determinado indivíduo.

Quando uma função regulada por uma ordem normativa não pode, segundo essa ordem, ser desempenhada por qualquer indivíduo à mesma ordem sujeito mas apenas por certos indivíduos qualificados, estamos perante uma divisão funcional do trabalho. (...) As comunidades que têm "Órgãos" chamam-se comunidades "Organizadas"; e por comunidades "Organizadas" entendem-se aquelas que têm órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho. (Kelsen, 2000a: 171)

Quando se fala, portanto, em órgãos e funções de uma dada comunidade, não se refere à coletividade como um ente que tem "necessidades" que têm de ser satisfeitas. Os conceitos de órgão e função não têm aqui uma conotação biológica. Uma função é uma tarefa, algo que se deve realizar, um determinado conjunto de atos estabelecido como devido, não um conjunto de atos que cumpram uma função no sentido de contribuir para o atendimento de certas necessidades. O órgão é o indivíduo ou conjunto de indivíduos que uma ordem estabelece como sendo como objeto da obrigação de realizar uma determinada função, no sentido apontado acima.

Ocorre freqüentemente a personificação da ordem que regula a conduta dos indivíduos. Esta personificação pode ser bastante útil para tornar mais breve a descrição de uma situação.

Como já acima foi acentuado, toda ordem normativa que regula a conduta de uma pluralidade de indivíduos pode ser personificada; a conduta por ela determinada e os deveres a cumprir ou os direitos a fazer valer através desta conduta podem ser referidos à unidade daquela ordem, podem ser atribuídos à pessoa jurídica assim construída. (Kelsen, 2000: 212)

Dizemos que uma determinada empresa, digamos, um supermercado determinado, vende produtos baratos mas maltrata seus clientes. Por certo quem vende produtos baratos e que maltrata clientes são indivíduos, não supermercados. Quando uma conduta determinada pode ser atribuída ao supermercado? Quando o indivíduo que realizou tal conduta a realizou enquanto um funcionário do supermercado no exercício de suas funções, ou seja, quando este indivíduo agiu em cumprimento de um determinado conjunto de normas (exercendo suas obrigações enquanto funcionário) estabelecidas no estatuto (não necessariamente escrito, mas de uma forma ou de outra um conjunto de normas) que compõe o supermercado.

Há aí uma ficção, pois não é a comunidade, mas um indivíduo humano, quem exerce a função. A comunidade consiste na ordem normativa que regula a conduta de uma pluralidade de indivíduos. Diz-se, na verdade, que a ordem constitui a comunidade. Mas orden e comunidade não são dois objetos distintos. Uma comunidade de indivíduos, quer dizer, aquilo que a estes indivíduos é comum, consiste apenas nesta ordem que regula sua conduta.(...) Atribuir à comunidade um ato de conduta humana não significa absolutamente nada mais que referir esse ato à ordem que constitui a comunidade, concebê-lo como um ato que a ordem normativa autoriza (no sentido mais amplo da palavra). (...) Um indivíduo é órgão de uma comunidade porque e na medida em que realiza uma conduta atribuível à comunidade quando está determinada na ordem normativa constitutiva da comunidade como pressuposto ou conseqüência. (Kelsen, 2000a: 168)

Este ponto é de especial importância na medida em que um pensamento acerca da sociedade trata justamente de explicar o comportamento dos homens em coletividade, de modo que os homens surgem constantemente como órgãos de determinadas comunidades. Palavras como empregado, patrão, presidente, pai e mãe referem-se a órgãos de determinadas comunidades, não a tipos ou padrões de conduta efetiva de indivíduos, nem tampouco a um conjunto de ações que têm de ser desempenhadas em função de uma necessidade da comunidade.

Quando falamos de um pai, referimo-nos a um indivíduo que tem a obrigação de cuidar de um filho, a obrigação de dar-lhe instrução, de responder pelos atos daquele, que tem ainda o direito de dar-lhe ordens e puni-lo quando tais ordens não forem obedecidas. Este direito a punir é, no entanto, limitado. Não pode castigá-lo imoderadamente, feri-lo, etc.

Uma comunidade não é constituída por um conjunto de ações recíprocas de indivíduos, nem tampouco por uma espécie paralelismo de crenças ou ações. Se dois indivíduos saem em uma viagem ao mesmo tempo, dirigindo-se a um mesmo lugar, com um mesmo objetivo, digamos, fazer comércio, isto não faz com que tal comportamento seja considerado uma empreitada comum. Apenas quando ambos subordinam seu comportamento a um determinado conjunto de normas, eles passam a compor uma comunidade. Assim, se ambos os indivíduos estiverem sob a norma segundo a qual eles deverão dividir os lucros resultantes das vendas, ou sob a norma de que um deles deverá empreender as negociações enquanto o outro verifica a qualidade dos produtos, consideraremos tal comportamento como uma empreitada e os indivíduos como membros de uma sociedade comercial.

Da mesma forma, de dois ou muitos mais indivíduos compartilham uma determinada crença acerca do poder de determinado ser sobrenatural, ou acerca dos poderes sobrenaturais de um determinado animal, por exemplo, não consideramos tais indivíduos como pertencentes a uma mesma comunidade religiosa a não ser que estejam subordinados a uma regra segundo a qual devem sustentar tais crenças, ou a qualquer outra norma que constitua essa comunidade. Não se trata de coincidência de crenças subjetivas, mas de co-subordinação a uma determinada ordem social.

Quando dois ou mais indivíduos querem perseguir em comum, por qualquer motivo, certos fins econômicos, políticos, religiosos, humanitários ou outros, dentro do domínio de validade de uma ordem jurídica estadual, formam uma comunidade na medida em que subordinam a sua conduta cooperante endereçada à realização desses fins, em conformidade com a ordem estadual, a uma ordem normativa particular que regula esta conduta, e, assim, constitui a comunidade. (Kelsen, 2000a: 196)

Desta forma, não pode um conhecimento dirigido à descrição de fatos chegar à constatação da unidade de uma comunidade. Associações humanas têm um caráter normativo, donde uma descrição destas associações não pode prescindir daquilo que Kelsen chama de ciência social normativa.

A sociologia, enquanto ciência social causal, é capaz tão somente de descrever um paralelismo no comportamento de indivíduos, o que não necessariamente corresponde a uma associação. O conjunto das pessoas que efetivamente crêem que Jesus Cristo é Deus feito homem, que se devem observar seus mandamentos e que tais mandamentos estão inscritos na Bíblia e na tradição, e que o Papa é o guardião desta tradição e que está investido do poder de estabelecer dogmas sobre fé e moral, garantidos pela autoridade divina, não necessariamente coincide com o conjunto dos indivíduos que compõem a comunidade dos católicos. São católicos aqueles que foram batizados, segundo as diferentes formas de batismo, e não aqueles que têm determinadas crenças. Da mesma forma, são brasileiros aqueles determinados pelo ordenamento jurídico como nacionais do Brasil, e não aqueles que falam português ou que têm um determinado sentimento de afeto com relação ao Brasil.

A natureza normativa das ordens sociais implica, portanto, em uma divergência entre o pensamento kelseniano e o pensamento sociológico. Para o pensamento kelseniano uma ordem social apenas pode ser adequadamente descrita enquanto um sistema de normas, enquanto que para a sociologia o comportamento recíproco dos indivíduos constitui, de alguma forma, diversas unidades, tais como família e igreja, que são identificáveis e podem ser descritas em suas inter-relações com diversos outros elementos.

A crítica que Kelsen dirige à sociologia do direito, afirmando não ser esta capaz de delimitar seu objeto de estudo, devendo, portanto, recorrer à definição elaborada pela jurisprudência, tem por base justamente esta dicotomia entre ser e dever ser que, no pensamento kelseniano, implica em uma distinção entre o comportamento de seres humanos e as ordens sociais. Enquanto que o comportamento é parte da natureza, a ordem social é parte da sociedade, ou seja, o comportamento consiste em um determinado complexo de elementos interligados causalmente, mas a ordem social (a associação, a religião, o direito, etc.) consiste em um conjunto de elementos interligados por um elo normativo.

6.2.4.Relações entre Ordens

O pensamento kelseniano afirma que as construções sociais são limitadas e independentes entre si. Como uma ordem social é um conjunto de normas vinculadas entre si por derivarem sua validade de uma mesma norma fundamental, normas que não têm sua validade derivada a partir de uma mesma norma fundamental não têm qualquer relação entre si no pensamento kelseniano. Assim, aquilo que é proscrito por uma determinada ordem pode ser devido segundo uma outra.

Um homem que mata a esposa adúltera ou o seu amante é, segundo a maioria das ordens jurídicas vigentes, um criminoso, mas o seu feito pode por muitos não ser de forma alguma reprovado, sim, pode mesmo ser aprovado como exercício de um direito natural a proteger a sua honra. O duelo, contra o qual é cominada uma pena, é considerado por uma determinada camada social, não apenas como não imoral, mas como dever moral, e a pena de prisão que lhe corresponde não é tida como desonrosa. (Kelsen, 2000a: 125)

Não há nesta situação qualquer contradição ou conflito entre normas. Uma determinada ordem pune o comportamento que segundo outra ordem deve ser feito. Se admitirmos que subjetivamente um mesmo indivíduo considera válidas ambas as ordens, teremos um conflito teleológico. Isto, porém, não pode ser deduzido da descrição das ordens normativas.

Diferentes ordens normativas válidas apenas podem ser, no pensamento kelseniano, superiores, inferiores ou coordenadas entre si. Em todos estes casos, as diferentes ordens normativas compõe uma só ordem mais ampla. Desta forma, do ponto de vista de um conhecimento normativo, na visão de Kelsen, é impossível qualquer relação entre ordens normativas desconexas entre si.

Duas ordens sociais apenas podem ser descritas como estando em conflito entre si de um ponto de vista distinto do normativo. Assim, quando tomamos o ponto de vista de um determinado indivíduo, podemos ter de aceitar tanto a proibição quanto a prescrição de um duelo, por exemplo. Entretanto, mesmo neste caso teremos não uma relação entre ordens sociais, mas um determinado evento psicológico, qual seja, um "conflito teleológico".

Portanto, quando a sociologia busca compreender as relações entre direito e estado ou entre direito e igreja, o pensamento de Kelsen apenas pode responder que tais relações não são relações entre direito e estado, mas entre o indivíduo A e o indivíduo B.

Por fim, deve-se salientar que ao longo de toda a obra de Kelsen o direito é tratado como um exemplo em particular de uma ordem social. Quando o autor delimita conceitos como ordem dinâmica e estática, norma fundamental e mesmo constituição, não o faz citando simplesmente o direito. Os exemplos apresentados ao longo de sua exposição soem ser exemplos retirados de outras ordens que não a ordem jurídica. Assim, quando o autor pretende explicar que uma norma apenas pode decorrer de uma outra norma afirma:

em todo caso, no silogismo cuja premissa maior é a proposição de dever ser que enuncia norma superior: devemos obedecer aos mandamentos de deus (ou aos mandamentos de seu filho), e cuja conclusão é a proposição de dever ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos dez mandamentos (ou que nos ordena que amemos os inimigos), a proposição que verifica (afirma) um fato da ordem do ser: deus estabeleceu os dez mandamentos (ou o filho de deus ordenou que amássemos os inimigos), constitui, como premissa menor, um elo essencial. Premissa maior e premissa menor, ambas são pressupostos da conclusão. Porém apenas a premissa maior, que é uma proposição de dever ser, é conditio per quam relativamente à conclusão, que também é uma proposição de dever ser. Quer dizer, a norma afirmada na premissa maior é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. A proposição de ser que funciona como premissa menor é apenas conditio sine qua non relativamente à conclusão. Quer dizer: o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor não é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. (Kelsen, 2000a: 216)

Não se trata aqui do direito, mas da religião. O pensamento de Kelsen não se restringe a uma explicação do direito. Trata-se de uma explicação de uma ordem social em particular, o direito, destacada de um complexo de ordens sociais, a Sociedade, que se distingue essencialmente da Natureza.

6.3.Uma teoria da Sociedade

Hans Kelsen, quando afirma que a Teoria Pura do Direito tem um objeto distinto do objeto de estudo da sociologia do direito, e posteriormente elabora críticas externas a esta sociologia, o faz porque seu pensamento não é restrito ao objeto da Teoria Pura do Direito. Esta teoria é uma formulação que tem por objeto descrever e explicar o direito, entretanto, tal formulação é erigida sobre as bases de uma concepção acerca do que é a sociedade como um todo. Seguem-se as teses que compõem este pensamento acerca da sociedade que servem de fundamento para as críticas trabalhadas aqui.

Tese 1: ser e dever ser distinguem-se fundamentalmente.

Tese 2: um conjunto de elementos interligados na forma "se A é, então B é" compõe a Natureza, e um conjunto de elementos interligados na forma "se A, então deve ser B" compõe a sociedade. Tais conjuntos distinguem-se fundamentalmente.

Tese 3: a descrição da Natureza distingue-se da descrição da Sociedade.

Tese 4: não há nexo causal entre ser e dever ser, não há nexo causal entre Sociedade e Natureza.

Tese 5: a representação subjetiva de um dever ser é um fenômeno da Natureza, não da Sociedade.

Tese 6: uma ordem social é um conjunto de normas vinculadas por decorrerem sua validade de uma mesma norma fundamental. Não há qualquer conjunto de representações subjetivas que corresponda a uma ordem social.

Tese 7: Associações de homens, tais como geralmente são entendidas, como a Igreja Católica, o Estado Brasileiro, o Clube de Regatas Flamengo, são ordens sociais.

Tese 8: É possível a descrição da estrutura das normas e da estrutura das ordens enquanto uma teoria geral das normas (do social).

Tese 9: É possível uma descrição "empírico-normativa" de uma ordem social, isenta de juízos valorativos.

Temos, portanto, um pensamento acerca da sociedade que, em primeiro lugar, distingue o comportamento dos indivíduos da sociedade, reafirmando a dicotomia entre ação e estrutura, entendida por estrutura apenas a estrutura normativa, e uma construção acerca do que é e da forma adequada de compreensão desta estrutura normativa. É a este conjunto de teses que aqui se designa por "teoria pura da sociedade", porque separa a o estudo das ordens sociais tanto de juízos de valor como da descrição do comportamento efetivo dos homens, da mesma forma como Kelsen pretende separar o estudo do direito da moral e da sociologia. Esta teoria pura da sociedade constitui a base sobre a qual Kelsen formula suas críticas à sociologia do direito.

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Sobre o autor
Nelson do Vale Oliveira

sociólogo, mestrando em sociologia pela Universidade de Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nelson Vale. Uma teoria pura da sociedade:: os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1110, 16 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8626. Acesso em: 20 nov. 2024.

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