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Uma teoria pura da sociedade:

os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito

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16/07/2006 às 00:00
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VII_Conclusão

A sociologia do direito ambiciona descrever e explicar o fenômeno social mais bem descrito ao longo da história. O estudo do direito é bastante desenvolvido em todo o ocidente e pode-se construir uma história do direito simplesmente a partir de estudos de juristas acerca do objeto de seu estudo. O conhecimento jurídico nos oferece hoje imensas descrições e sistematizações de praticamente todos os ordenamentos jurídicos do mundo, contemplando desde assuntos tão corriqueiros como a queda de um fruto no terreno vizinho até as complexas normas relativas ao pagamento e recebimento de tributos e ao registro de títulos e documentos.

As críticas que Kelsen dirige à sociologia do direito têm um ar de rivalidade profissional. Entretanto, elas não consistem simplesmente na afirmação de que a sociologia não é capaz de substituir ou de concorrer com a jurisprudência, mas também na afirmação de que a sociologia comete determinados equívocos não apenas quando lidando com o direito.

Quando tomamos a crítica dirigida à sociologia do direito weberiana, segundo a qual esta é incapaz de delimitar seu objeto de estudo, temos não apenas a afirmação de que a sociologia do direito depende da jurisprudência, mas também, e na mesma medida, a de que a sociologia da religião depende da teologia.

Não se trata somente de rivalidade profissional, mas de um corpo conceitual e teórico que oferece as bases para o conhecimento do direito tal como formulado por Kelsen e que está em divergência com as formas pelas quais a sociologia do direito vem lidando com seu objeto.

A afirmação de que Sociedade e Natureza se distinguem enquanto sistemas de elementos vinculados normativa ou causalmente, e de que não existem nexos entre estes dois conjuntos de elementos é a negação de uma sociologia que estabeleça vínculos entre o comportamento efetivo de indivíduos e corpos coletivos tais como o catolicismo ou o estado. Trata-se da negação de uma sociologia enquanto conhecimento voltado para um objeto distinto daquele da psicologia ou da história. Aquilo que é propriamente "social", como afirma Kelsen, seria colocado fora do alcance da sociologia enquanto uma ciência causal. À sociologia restaria a história e a psicologia.

Daí a relevância destas críticas para o pensamento sociológico contemporâneo. Em um momento em que a principal preocupação teórica consiste na superação de uma dicotomia surgida de forma espontânea no pensamento sociológico, aquela entre ação e estrutura, cuida-se aqui de apreciar críticas formuladas por um autor que assume uma defesa de tal dicotomia. Se o conceito de estrutura não é tão preciso, ao menos é nítido que as estruturas normativas nele se incluem. A crítica formulada por Kelsen à sociologia do direito tem por base um pensamento que afirma que ação humana e estruturas normativas são duas coisas distintas e independentes entre si; que afirma que não há nexo entre essas duas realidades e que a tentativa de superação desta dicotomia implica, necessariamente, em um erro lógico que consiste na passagem do ser para o dever ou vice-versa.

Quando Kelsen formula críticas externas à sociologia do direito, ele o faz por ela ser incompatível com seu pensamento. Não um pensamento dirigido à ordem jurídica apenas, mas um pensamento mais amplo, que compõe uma teoria da sociedade, cuja premissa fundamental é a separação entre Natureza e Sociedade. É em uma teoria pura da Sociedade, e não apenas na teoria pura do direito que Kelsen baseia suas críticas à sociologia. O método de descrição empírico-normativo rendeu descrições detalhadas e profundas, cuja utilidade é indiscutível, do direito. É razoável que a sociologia leve em consideração a possibilidade de que tal método também possa render frutos na descrição da religião, de empresas ou de outras ordens sociais.

Kelsen estabelece uma oposição entre a sociologia e o conhecimento que chama de ciência social normativa. Entretanto, a preocupação do sociólogo não é tanto a descrição do comportamento de uma forma empírico-causal, mas a descrição do comportamento humano em sociedade. Se um conhecimento empírico-normativo puder ser utilizado para uma descrição da sociedade, então ele por certo interessa ao sociólogo. Não se procurou responder aqui à questão quanto à viabilidade de uma tal descrição referente a outras ordens sociais além do direito, mas tão somente demonstrar que é esta a concepção que orienta as críticas à sociologia do direito. Consideramos, em princípio, que tal descrição é viável e demanda menos esforço que uma descrição empírico-causal. De qualquer forma, sustenta-se que uma "teoria pura da sociedade", ou seja, um corpo teórico conceitual que abrange a descrição não apenas do direito, mas de toda e qualquer ordem social, serve de fundamento para as críticas kelsenianas dirigidas à sociologia do direito.


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NOTAS

01 O termo jurisprudência não tem um significado unívoco. Refere-se, pelo menos, tanto às decisões de juízes acerca de questões que lhes são apresentadas nas cortes e tribunais quanto ao estudo do direito. Neste caso e ao longo de todo este trabalho, "jurisprudência" remete, salvo expressa menção em contrário, ao estudo do direito.

02 Um "tipo penal" é uma descrição de uma conduta humana. Assim, a descrição "matar alguém" figura no Código Penal Brasileiro. Não se trata de um "tipo ideal" no sentido weberiano em que se pode falar em aproximações e gradações. Uma conduta é "típica" se, e somente se, é adequadamente descrita pelo "tipo penal".

03 O autor, de fato, busca reduzir estes outros conceitos à norma, e sempre à idéia de "dever" no sentido estrito de "ter a obrigação de fazer". A norma é a unidade básica de toda estrutura normativa. Quando Kelsen busca reduzir a "autorização" a uma norma, trata, também, de reduzi-la a um "dever" no sentido mais estrito. É relevante, entretanto, a observação de que "dever" em Kelsen engloba não apenas o "dever", mas também o "direito", a "autorização", etc., para que se compreenda o alcance que pretende ter sua explicação da estrutura da norma sem termos, necessariamente, de adentrar na questão acerca da redução de tais conceitos ao "dever" no sentido estrito.

04 Atente-se para que os conceitos jurídicos apresentados neste trabalho são todos, salvo expressa menção em contrário, definidos segundo a concepção kelseniana.

05 Podem-se encontrar passagens nos escritos de Durkheim que parecem indicar que o homem é um ser distinto (e melhor) que "os animais", no entanto, se assim parece, tal característica seria justamente o ser membro de uma sociedade. A sociedade, como veremos, eleva o indivíduo acima de si. O homem, enquanto ser social, é radicalmente distinto dos animais. Segue um exemplo de tais passagens: "É que o homem, com efeito, não é apenas o animal com algumas qualidades a mais: é outra coisa. A natureza humana deveu-se a uma espécie de remodelagem da natureza animal, e, ao longo das operações complexas de que resultou essa remodelagem, ocorreram perdas e ganhos ao mesmo tempo". Mas logo em seguida ele arremata: "Ora, a sociedade, para poder manter-se, requer com freqüência que vejamos as coisas sob um certo ângulo, que as sintamos de um certo modo; conseqüentemente, modifica as idéias que seríamos levados a ter dessas coisas, os sentimentos a que estaríamos inclinados se obedecêssemos apenas à nossa natureza animal; ela os altera ao ponto mesmo de substituí-los por sentimentos contrários (...) Portanto, é enganoso buscar inferir a constituição mental do primitivo tomando como base a dos animais superiores" (Durkheim, 2000: 55) Assim, há uma diferença radical entre homens e animais: a sociedade.

06 Cf. p.176

07 Cf acima pp. 43ss

08 A definição kelseniana de representação é bastante diversa desta, no entanto, esta definição simplista serve aos fins necessários aqui.

09 A citação se refere a um artigo publicado na revista Doxa, em espanhol. A tradução é própria.

10 Kelsen, em Naturaleza y Sociedad (1945) pretende mostrar que a hipostatização é uma tendência do pensamento humano que se manifesta nas mais diversas culturas e momentos históricos.

11 Deve-se observar aqui que o termo "função" é ambíguo. No sentido empregado por Luhmann "função" corresponde a algo independente da vontade de indivíduos. A "função" então se refere a um papel desempenhado dentro do sistema social, não a um objetivo de indivíduos. Para Kelsen o Direito é uma "técnica social" que, obviamente, cumpre uma "função". Em Kelsen, porém, a palavra "função" não tem um sentido técnico, próprio do funcionalismo, mas antes se refere ao objetivo visado pelos indivíduos que se valem do direito para a obtenção de seus fins. Assim, Kelsen afirma que o direito é uma técnica que visa obter um determinado comportamento com recurso à aplicação de uma sanção coercitiva ao comportamento contrário, isto significa que os indivíduos que criam o direito pretendem obter um determinado comportamento daquela forma. Quando Luhmann, entretanto, afirma que a função do direito é reduzir a complexidade da experiência, não pretende afirmar que este é o objetivo dos indivíduos que elaboram o direito. O direito no sentido kelseniano, ou seja, enquanto um determinado conjunto de normas, não pode ter qualquer função no sentido Luhmaniano. Normas podem ser utilizadas por indivíduos na medida em que procuram aplicá-las ou observá-las, mas normas enquanto conteúdos de sentido não têm, por si só, um impacto causal sobre o mundo.

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Sobre o autor
Nelson do Vale Oliveira

sociólogo, mestrando em sociologia pela Universidade de Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nelson Vale. Uma teoria pura da sociedade:: os fundamentos da crítica kelseniana à sociologia do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1110, 16 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8626. Acesso em: 20 nov. 2024.

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