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Soluções legais para a recuperação do presidiário no Brasil

a proposta e a realidade

Soluções legais para a recuperação do presidiário no Brasil: a proposta e a realidade

Publicado em . Elaborado em .

Pesquisa sobre a previsão legal de soluções disponíveis para a recuperação do presidiário e a redução da reincidência criminal – educação e trabalho -, e sua aplicação prática.

"A cadeia tem dia para terminar; a pena é para a vida toda."
Um ex-presidiário


RESUMO

Busca de dados sobre o Sistema Prisional Brasileiro e a reincidência criminal verificada no país. Pesquisa sobre a previsão legal de soluções disponíveis para a recuperação do presidiário e a redução da reincidência criminal – educação e trabalho -, e sua aplicação prática. Pesquisa sobre as características da educação, sob o ângulo de sua pluralidade formativa, e do trabalho, como valor inerente ao homem social. Estudo de caso sobre a adequação e limitações práticas/supervenientes relativas às ações destinadas à recuperação do presidiário no Brasil. Conclusão sobre a problemática social brasileira e sua influência nas soluções propostas para a valorização / preparação do apenado e sua reinserção social.

Palavras-chave: sistema prisional, reincidência criminal, previsão legal de soluções, educação e trabalho, estudo de caso, reinserção social, adequação e suficiência de soluções.


SUMÁRIO: INTRODUÇÃO, 1 O Sistema Prisional Brasileiro e a reincidência criminal;1.1-Histórico; 1.2- A prisão no Brasil de hoje; 1.3- O ataque aos sintomas: o receio de reconhecer as causas; 2 Propostas legais para a recuperação do apenado: a educação e o trabalho na Lei de Execução Penal e sua aplicação prática; 3 A educação e o trabalho: sua importância para a formação e existência do homem social; 3.1 A educação e sua pluralidade formativa; 3.2 O trabalho como valor inerente ao homem social; 4 A proposta da lei e suas limitações: estudo de caso vis a vis a realidade brasileira; CONCLUSÃO; NOTAS; REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

A presente monografia tem como objeto uma questão necessária e atual, ligada à imperiosa necessidade de se combater a reincidência criminal instalada no país, e os efeitos que dela advêm. O problema que se apresenta é a visível distância entre a proposta estatal, de propiciar a reintegração do apenado via educação e trabalho, e a robusta realidade da recidiva criminal verificada em nosso país – estatísticas apontam uma faixa de 75 a 85% do total de egressos[1] -, pelo que se deve verificar se as soluções legais, focadas em educação e trabalho/profissionalização, podem ser inseridas em uma das hipóteses abaixo, aqui listadas como os vetores prováveis para o tratamento da questão:

  • tais soluções são inadequadas em sua essência, indicativo da necessidade de sua substituição;
  • ou são adequadas e suficientes para a solução do problema, devendo apenas serem intensificadas em nível nacional;
  • ou então são adequadas e insuficientes frente a uma realidade maior, na qual outras variáveis vêm impedindo que tais "remédios legais" atinjam o resultado esperado, o que exigiria uma nova abordagem do tema.

Esse trabalho pretende se dedicar a essa análise, trazendo diversos dados disponíveis na literatura relacionada, bem como um estudo de caso, com o fito de oferecer, senão respostas práticas e de aplicabilidade imediata, pelo menos um indicativo do que ocorre por detrás dos sintomas do problema, além da tentativa de delinear caminhos a serem seguidos.

Em que pese a delimitação do tema, impossível tentar sua análise sem eventuais extrapolações ao mesmo, uma vez que a problemática da obrigação estatal de reinserir o apenado na vida produtiva - e as ferramentas disponibilizadas para tal - fazem parte de uma realidade extremamente complexa, na qual uma das primeiras percepções que se deve ter é a da inversão da principal relação causa-efeito do problema: não é o egresso reincidente que afeta o meio social, cometendo novos crimes que perturbam as pessoas de bem, causando injusta comoção que deve ser repelida com todas as forças, mas sim a própria sociedade, composta pelas mesmas pessoas de bem aqui mencionadas e aprisionada em seus defeitos, imperfeições e carências, que pode propiciar – e até estimular – a reincidência criminal.

Como pano de fundo da pesquisa, tem-se uma das mais preocupantes questões sócio-políticas brasileiras, que envolve e perpassa toda a sociedade em nosso país, atingindo todas as pessoas que a compõem, independentemente de nível social, representatividade e recursos econômicos: o sistema prisional brasileiro e sua relação com a sociedade, suas funções, seus desvios e, no foco principal, as reais possibilidades de que a pessoa enviada para a prisão venha a se reinserir em seu meio social, a partir das soluções – e condições - disponibilizadas pelo Estado brasileiro.

Para atingir um mínimo de densidade, torna-se defeso restringir esta análise à educação e ao trabalho/profissionalização previstos na Lei como ferramentas de ressocialização do apenado. Tais vetores representam apenas uma pequena parte do problema, não sendo adequado despender maiores esforços na sua apreciação em si, mas tão-somente como variáveis de um sistema maior e bem mais amplo, no qual se destacam os valores adquiridos/confirmados no período de detenção, as dificuldades sócio-econômicas da nação como um todo, os preconceitos sociais, a inação do Estado, a tendência humana a esconder seus problemas como forma de solução dos mesmos e, principalmente, a ausência de valores, de referências (relativas à cidadania e à família), que acomete grande parte da população do país.

Esse é o objetivo mínimo aqui proposto: oferecer uma visão isenta e contextualizada, ainda que limitada a um trabalho de graduação, do alcance e eficácia das propostas legais de recuperação do presidiário atualmente em vigência no país, vis a vis as demais variáveis do problema, quase todas mais relevantes e de mais difícil solução, porquanto extensivas à sociedade como um todo.

Justifica-se a preocupação com o tema – adequação e suficiência dessas soluções legais - em razão dos elevados índices de reincidência criminal verificados no Brasil, e seus efeitos na economia, na segurança pública e na própria sensação de impotência experimentada pelo cidadão comum, além, obviamente, dos efeitos nefastos que se manifestam na pessoa que comete um crime e é enviada para a prisão. Por decorrência, quaisquer trabalhos que se disponham a contribuir, com seriedade, para a divulgação do problema que se apresenta, certamente serão considerados pela sua relevância para a sociedade como um todo – visto que o assunto a ela se refere, de forma precípua e contundente – e pelo Direito, já que nele repousam as esperanças de propor soluções viáveis e sua forma de implementação.

A reincidência criminal brasileira, nos patamares atuais, deixa de ser problema localizado – restrito às áreas penal e penitenciária - e passa a merecer uma análise bem mais profunda, à medida em que o sistema prisional não consegue atender as duas funções básicas da execução penal: defender a sociedade daqueles que praticam crimes e propiciar a auto-reflexão do apenado, sua recuperação e sua reinserção, de forma produtiva, no convívio normal dos cidadãos.

Não atende a primeira função – defesa da sociedade – porque as unidades prisionais, bem como as dependências policiais para detenção provisória, estão superlotadas, constituindo-se em verdadeiros "depósitos de presos", o que propicia situações inaceitáveis, tais como a organização, planejamento e gestão de crimes cujo comando central encontra-se dentro da prisão, utilizando-se sistemas de comunicação e delegação de funções similares às organizações empresariais, sem que o Estado tome – por desídia ou por impossibilidade prática, ou pelos dois – providências que venham a coibir tais práticas. Em vez de servir de defesa à sociedade, portanto, a prisão serve de base organizacional para a prática de crimes contra essa mesma sociedade.

E não atende a segunda função – recuperação do apenado – não somente pelas falhas apresentadas no sistema em si, mas pela situação da sociedade como um todo, em que a preparação do preso para o retorno ao convívio social, patrocinada pelo Estado, parece não ser suficiente para sua reinserção, por motivos cuja pesquisa constitui o próprio objeto desta monografia.

Como conseqüência lógica da continuidade do crime dentro da prisão, de forma organizada e hierarquizada, e a aparente fragilidade das soluções da Lei para a recuperação do presidiário, instala-se a reincidência criminal, cujo combate está a merecer esforços concretos de todos os setores da sociedade, governamentais ou não.

Torna-se portanto privilégio de qualquer estudante de Ciências Jurídicas aprofundar-se nesse tema, que se caracteriza inclusive pelo seu caráter multi-disciplinar – como aliás o é o Direito – e adquire nuances de problema de segurança nacional, a partir dos níveis de incidência atualmente verificados e da inação estatal, que convive há décadas com a mesma situação, sempre adotando ferramentas extremamente válidas em sua essência – educação e trabalho -, porém aparentemente incapazes, quando adotadas de forma isolada num contexto específico – o penitenciário -, de impedir o recrudescimento da recidiva criminal no Brasil.

Esta monografia, além dos itens de abertura e fechamento inerentes a qualquer trabalho da espécie – introdução e conclusão -, encontra-se sistematizada em quatro capítulos, abaixo discriminados:

    • O Sistema Penitenciário Brasileiro e a reincidência criminal, onde será mostrada a realidade do cárcere brasileiro, desde sua criação até os dias de hoje, e sua relação com a sociedade;
    • As propostas legais para a reinserção do apenado: a educação e o trabalho na Lei de Execução Penal, capítulo que será dedicado aos remédios previstos em lei para viabilizar o retorno do presidiário ao meio social;
    • A educação e o trabalho: seu entendimento de forma ampla e sua importância para a formação e existência do homem como ser social, segmento onde será apresentada análise sobre a necessidade e influência da aplicação de tais ferramentas no ser humano e as possibilidades que se abrem a partir de sua utilização;
    • A proposta da lei e suas limitações: estudo de caso vis a vis a realidade brasileira, constituindo-se em relato de experiência prática de educação profissionalizante e oferta de trabalho para presidiárias de Brasília/DF, e os efeitos observados antes, durante e depois do treinamento tendo a realidade prisional como pano de fundo, com ênfase para a questão da reincidência criminal.

Na produção do quarto capítulo, verificou-se grande dificuldade para obtenção de dados estatísticos oficiais, apesar do empenho em acessá-los, representado por reiteradas solicitações à autoridade competente. Por esse motivo, foi o capítulo instruído com dados e informações obtidos em entrevista qualitativa com a empresária Suzana Rodrigues, autora da iniciativa que embasa essa parte da monografia.

A literatura sobre a educação e o trabalho, enquanto extensivas à sociedade como um todo, é bem abrangente, e foi considerada neste trabalho, com destaque para os posicionamentos de Paulo Freire e Neidson Rodrigues, professor doutor titular da Universidade Federal de Minas Gerais, cuja profunda visão sobre o papel da educação nos leva a diversas – e produtivas – reflexões sobre o tema. No que se refere à proposta educacional/profissionalizante do Estado, destinada ao sistema prisional brasileiro, revisita-se a Lei de Execução Penal, em busca das referências legais. E, como os trabalhos inerentes à praxis observada no meio prisional são escassos, optou-se pela demonstração da problemática via estudo de caso, no qual diversos dados foram coligidos e explicitam, de forma direta e por vezes surpreendente, a exata contraposição entre a proposta legal e a realidade que se nos apresenta em terras pátrias.

Como não poderia deixar de ser, o presente trabalho utiliza arcabouço teórico em quantidade, mas não com o fito de atingir outro posicionamento igualmente teórico, e sim o de verificar a aplicabilidade das hipóteses, teses, sínteses e experiências práticas coligidas sobre o problema aqui delimitado, com o objetivo de comparar a proposta legal brasileira para a recuperação do presidiário e a realidade prática de sua aplicação.

Não se pretende esgotar o assunto, nem ao menos apontar qualquer solução de vulto. O propósito desta monografia é o de verificar a eventual existência de um problema que, caso efetivamente constatado, é tão mais grave à medida em que é diminuta a importância a ele atribuída, qual seja a comprovação da ineficácia, de per si ou pela insuficiência de sua aplicação isolada, das ferramentas estatais utilizadas para impedir que parte da sociedade permaneça à margem da cidadania, induzida à reincidência pela falta de tratamento adequado para esse problema recorrente.

Objetiva-se criar a discussão - inerente e necessária à evolução de qualquer ramo do conhecimento - relacionada àquelas ferramentas do Estado, sabendo-se de antemão que alguma providência deve ser tomada. Devam as propostas atuais para ressocialização do presidiário serem modificadas pela sua inadequação em si, devam, se adequadas e suficientes, serem intensificadas, ou devam, se adequadas e insuficientes, serem acompanhadas de providências paralelas, o fato é que a reincidência criminal é um fato, e seu combate uma prioridade social.


1.O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A REINCIDÊNCIA CRIMINAL

Colocado na cela da delegacia [...] capacidade para 20 presos, mas com um efetivo real de 107. Doravante o nosso jovem está submetido às regras do cárcere. Como primeira medida interna ele apanha muito, ou melhor, é espancado incessantemente [...] Agora ele é violentado sexualmente, vários ao mesmo tempo [...] Pelo que se descobriu o coitado do rapaz realmente não tinha vínculo algum com a droga encontrada [...][2]

Dada a proposta de trabalho apresentada, a primeira providência parece ser a análise da situação dos cárceres brasileiros, ambiente-chave relacionado ao objeto do tema, embora deva-se ressaltar que a questão criminal e seus reflexos, inclusive aquele delimitado nesta monografia – soluções propostas para a recuperação do apenado - ultrapassa os muros dos estabelecimentos penais e alcança toda a sociedade, até porque suas causas estão intrinsecamente ligadas ao meio social, caracterizando-se a prisão, principalmente, como um sintoma, embora já tenha se transformado igualmente em causa, num processo vicioso de retro-alimentação.

A prisão brasileira, hoje, é um reflexo de toda uma política equivocada dirigida ao assunto, desde os primórdios do Brasil Colônia, e os princípios ligados às suas funções demonstram com clareza os sentimentos da sociedade em relação aos desvios daqueles que praticam crimes, e as causas admitidas pelo senso comum para sua ocorrência.

A expressão "depósito de presos", embora seja verdadeira, não é compreendida em toda a sua extensão. As pessoas a entendem como denúncia de superlotação, de presos mal acomodados e que vivem em situações por vezes sub-humanas, "encaixotados", quando seu sentido maior remete diretamente à necessidade de depositar o problema longe da percepção da sociedade "normal", transferindo para um meio físico, definido, apartado e oculto – a cadeia – aquelas pessoas que ferem, de forma incisiva, a percepção que a comunidade precisa manter sobre si mesma.

Decorre, então, que a questão prisional deve ser percebida em sua dimensão maior, cabendo ao pesquisador levar em conta todos os atores envolvidos – individualidades, formação humana, meio social, preconceitos, ação ou inação do Estado, interesses políticos, aspectos econômicos, etc - como condição necessária para a seriedade de seu trabalho e também para a existência de qualquer solução viável quanto ao problema apresentado.

1.1 Histórico

A história do sistema prisional no Brasil, conforme informações coligidas por Regina C. Pedroso[3], aqui reproduzidas, remonta aos tempos coloniais, sendo que o primeiro registro sobre a existência de prisão em território pátrio está no Livro V das Ordenações Filipinas do Reino[4], Código de leis portuguesas então em vigor no Brasil, e que atribuía à Colônia, entre outras funções, a de prisão de degredados. Os apenados, pelo texto legal, eram os alcoviteiros, culpados por ferimentos por armas de fogo, duelo, entrada violenta ou tentativa de entrada em casa alheia, resistência a ordens judiciais, falsificação de documentos e contrabando de pedras e metais preciosos.

A Carta Régia de 1769 mandou estabelecer a primeira prisão brasileira, a Casa de Correção do Rio de Janeiro, e somente a partir da Constituição de 1824[5] existiu uma previsão mais abrangente sobre o tema, com a estipulação de prisões adaptadas ao trabalho e separação dos réus. O Código Criminal de 1830 regularizou a pena de trabalho e da prisão simples, e o Ato Adicional de 12.08.1834 deu às Assembléias Legislativas provinciais o direito de legislar sobre a criação e funções dos presídios.

Independentemente das teorias aprovadas pelos legisladores de então, a realidade sub-humana das prisões brasileiras já se manifestava no início do século XIX. Exemplo maior é encontrado na tristemente famosa "Cadeia da Relação", no Rio de Janeiro, que comportava presos em número muito maior que sua capacidade instalada, sem qualquer separação por categoria de apenados, todos participando de um destino comum: a subnutrição e as doenças[6].

Com o advento da República, diversas foram as normas produzidas sobre a matéria, com especial destaque para o Código Penal de 1890, que previa modalidades de penas (prisão celular, banimento, reclusão, prisão com trabalho obrigatório e prisão disciplinar) e o regime progressivo para a execução penal, dispondo seus artigos 50 e 51 que "o condenado à prisão celular por tempo excedente a seis anos que houvesse cumprido metade da pena, mostrando bom comportamento, poderia ser transferido para alguma penitenciária agrícola, a fim de cumprir o restante da sentença". Implantou-se também a idéia de separação de presos por categoria (contraventores, loucos, menores, criminosos de média e alta periculosidade e mulheres), bem como o trabalho remunerado nas prisões (Decreto nº 8.233, de 22.12.1910[7]).

Ressalte-se igualmente o Código Penitenciário da República, de 1935, cujas penas detentivas propostas objetivavam a regeneração do condenado, idéia que se alinhou com aquelas já instaladas pela legislação de 1890, relativas à progressão de regime e separação de condenados.

De qualquer modo, e em que pesem os avanços da política prisional desde os idos do Brasil Colônia e do Império, a idéia básica permaneceu a mesma na primeira metade do século XX, qual seja a de que a cadeia deveria causar temor, amedrontando a sociedade frente ao poder do Estado policial, para que as pessoas evitassem a prática de crimes por receio das penalidades conseqüentes.

Talvez por isso, desde que se ouviu falar pela primeira vez na palavra "cadeia" no Brasil, nunca houve registro consistente da existência de uma prisão onde o respeito à condição humana fosse integralmente praticado, seja pela superlotação, seja pela simples omissão do Estado.

1.2 A prisão no Brasil de hoje

Atualmente, o sistema prisional do Brasil, segundo informação do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça[8], é composto de 1.006 estabelecimentos penais, conceituados como "todos aqueles utilizados pela Justiça com a finalidade de alojar pessoas presas, quer provisórios quer condenados, ou ainda aqueles que estejam submetidos a medida de segurança".

Referidos estabelecimentos se dividem em categorias, conforme abaixo:

  1. Estabelecimentos para Idosos: estabelecimentos penais próprios, ou seções ou módulos autônomos, incorporados ou anexos a módulos para adultos, destinados a abrigar pessoas presas que tenham no mínimo 60 anos de idade ao ingressarem ou os que completem essa idade durante o tempo de privação de liberdade;
  2. Cadeias Públicas: estabelecimentos penais destinados ao recolhimento de pessoas presas em caráter provisório, sempre de segurança máxima;
  3. Penitenciárias: estabelecimentos penais destinados ao recolhimento de pessoas presas com condenação a pena privativa de liberdade em regime fechado, divididas em penitenciárias de segurança máxima especial, dotadas exclusivamente de celas individuais, e de segurança média ou máxima, que contam como celas individuais e coletivas;
  4. Colônias Agrícolas, Industriais ou Similares: estabelecimentos penais destinados a abrigar pessoas presas que cumprem pena em regime semi-aberto;
  5. Casas do Albergado: estabelecimentos penais destinados a abrigar pessoas presas que cumprem pena privativa de liberdade em regime aberto, ou pena de limitação de fins de semana;
  6. Centros de Observação Criminológica: estabelecimentos penais de regime fechado e de segurança máxima onde devem ser realizados os exames gerais e criminológicos, cujos resultados serão encaminhados às Comissões Técnicas de Classificação, as quais indicarão o tipo de estabelecimento e o tratamento adequado para cada pessoa presa;
  7. Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico: estabelecimentos penais destinados a abrigar pessoas submetidas a medida de segurança.

Para atender a uma determinação da Lei nº 7.210, de 11.07.1984 (Lei de Execução Penal), prevê-se a criação do Sistema Penitenciário Federal, a ser materializado com a construção de unidades prisionais em Campo Grande(MS), Catanduvas(PR), Mossoró(RN) e Porto Velho(RO), com capacidade total para 800 presos de alta periculosidade, que possam comprometer a segurança do presídio ou serem alvos de atentado.

As estatísticas mais atualizadas, disponíveis nos órgãos oficiais[9], remontam a dezembro de 2004, mas se prestam ao objetivo de demonstrar a superlotação existente nas cadeias brasileiras, uma vez que existiam, à época, mais de 336 mil presos (96% homens e 4% mulheres) em todo o país, abrigados, de alguma maneira, em estabelecimentos penais com capacidade total para 200 mil pessoas. Ou seja, um excesso de 68% (sessenta e oito por cento), com inevitáveis reflexos negativos na qualidade do sistema.

Um dos exemplos mais marcantes dos efeitos que podem advir da inadequação das instalações prisionais frente ao número de detentos foi a Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como "Carandiru", que antes de ser desativada era o maior presídio da América Latina. Conforme citou Roberto da Silva[11], antes da desativação daquele complexo, "a Casa de Detenção foi projetada para abrigar 3.250 presos. Reestruturada, sua capacidade ... elevou-se para 6.300 presos..., mas a previsão é que na data de sua desativação... esteja com cerca de 8.200 presos. Esse gigantismo fez com que a Casa de Detenção se tornasse um centro de problemas variados...descobertos 32 túneis em seus subterrâneos, que mais ainda abalam suas estruturas, pois praticamente todo o material metálico empregado em sua construção, principalmente ferro e aço, já foi completamente removido pelos próprios presos para a confecção de armas."

1.3.O ataque aos sintomas: o receio de reconhecer as causas

De forma análoga à grande prisão paulista, as centenas de estabelecimentos penais brasileiros servem a um propósito bem definido, que é o de "varrer" da sociedade aquilo que a incomoda, que representa um problema, que não se coaduna com o status quo pré-estabelecido. A exemplo dos leprosos das Idades Antiga e Média, ou dos loucos de todo gênero, o criminoso deve ser eliminado do convívio social, "guardado" longe dos olhos e, por decorrência, do coração da sociedade.

Talvez pela exclusão a que são submetidos os integrantes desse "lugar paralelo", cria-se uma estrutura própria de poder, com procedimentos específicos, em que se apresentam as figuras do "xerife", dos "assessores", dos "fiéis" e dos subjugados, material ou sexualmente. Os valores da cadeia são diferenciados, adquirindo valoração própria (muitos detentos já morreram por causa de um maço de cigarros), exigindo-se o cumprimento de padrões comportamentais por meio de rígidas normas de conduta, na qual se destaca a "lei do silêncio".

Inserem-se ainda no padrão carcerário diversas normas típicas da sociedade como um todo, porém de aplicação diferenciada (e isso merece uma séria reflexão) pela ausência de impunidade, pela seriedade com que o seu descumprimento é punido, via de regra com a morte do infrator. Leis comerciais rígidas, inadimplência próxima a zero, solidariedade, e até mesmo rígido respeito ao sono do companheiro, fazem parte do dia-a-dia prisional, moldando uma estrutura que conta com leis próprias, e que insere o apenado, em sua chegada, num mundo bastante diverso daquele em que vivia anteriormente.

A maior ambição do detento deve ser a de "pertencer à massa", contar com a confiança e simpatia dos companheiros de cárcere. Se isso não for obtido, sua vida pode correr risco, ocasião em que o detento excluído do grupo deve pedir o "seguro", que consiste na transferência para outra ala em que não possa conviver com os antigos desafetos.

De outra parte, a pena deve servir, em tese e, no Brasil, desde 1890, para demonstrar o poder punitivo/coercitivo do Estado e para propiciar a reflexão do apenado, que deverá cumpri-la em condições de preparar-se para o retorno ao convívio social. No sistema carcerário nacional, o primeiro objetivo é atingido em parte (vez que as organizações criminosas continuam operando de dentro da cadeia, o que derruba a teórica coerção estatal), e o segundo não existe, e provavelmente nunca existiu, pois o estigma de ser humano "impróprio" ao meio faz do presidiário um ser indesejado, e a vontade social de eliminar o "problema", e a concordância tácita de que tal eliminação efetivamente exista, afeta diretamente e de forma negativa a vontade política para mudar a situação e intensificar as políticas para a efetiva regeneração do criminoso apenado.

Prova inequívoca da pusilanimidade social instituída em relação ao assunto, bem como da aceitação majoritária quanto à propriedade de "eliminar-se" o problema, está na tristemente famosa declaração do deputado estadual fluminense Sivuca, policial que se elegeu com o bordão "bandido bom é bandido morto". Tal posicionamento se coaduna à perfeição com a maneira humana mais comum de resolver situações de conflito, qual seja eliminar a força oposta, em vez de tentar compreender suas causas intrínsecas, para modificá-las e assim resolver a pendência. Em outras palavras, é sempre menos trabalhoso apontar o sintoma – e destruí-lo ou pelo menos anulá-lo – do que descobrir a causa de qualquer situação de inconformidade.

Eis o sistema prisional brasileiro: um enorme sintoma gerado a partir de um enorme problema social, sobre o qual as autoridades constituídas não conseguem agir a contento, e que vem aumentando sua gravidade de forma paulatina e constante. A respeito da situação, aponta Alexandre Wunderlich[12], advogado e mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS:

"As instituições totais reproduzem a violência da própria sociedade, oficializando e estigmatizando as categorias sociais excluídas. Tudo fruto da evolução do poder punitivo, que inicia com o suplício do corpo pelo soberano e termina na atual política estatal punitiva-repressivista. A própria instituição total já carrega em si uma enorme carga de violência institucionalizante, tolerada e aceita pela sociedade moderna que acreditou ser uma forma desses segmentos excluídos do contexto mais amplo. A própria organização dessas instituições se fundamenta na exclusão, no isolamento, etc."

O comentário do professor Wunderlich aborda um ponto chave da problemática prisional brasileira e também deste trabalho: a ligação visceral entre prisão, exclusão social e reincidência, principais variáveis dentro de um círculo vicioso que se retroalimenta de forma permanente, somente sendo possível sua interrupção por meio de uma vontade política que reflita o que atualmente não existe, que é a disposição da sociedade em enfrentar o problema, em vez de eliminar os sintomas.

A primeira parte da análise de Wunderlich ("As instituições totais reproduzem a violência da própria sociedade, oficializando e estigmatizando as categorias sociais excluídas." – grifos nossos) demonstra que no sistema prisional pátrio – e em outros diversos países - temos o reflexo da principal causa de sua existência, qual seja a exclusão social hoje verificada – com tendência de crescimento - na sociedade brasileira. Essa exclusão gera um novo arcabouço moral e ético, com algumas regras próprias e diferenciadas daquelas aceitas pelo grupo social dominante, algumas até diametralmente opostas, como o sentimento do "direito" ao crime, já que a sociedade não oferece nenhuma outra oportunidade de sobrevivência com dignidade e ascensão social, ainda que mínimas.

A cadeia brasileira – habitada em sua imensa maioria pelas classes pobre e miserável - encerra em suas celas o gérmen de sua própria existência, qual seja uma exclusão social estratificada e semi-imutável, geradora de normas próprias e adaptadas à sua realidade, dentro de um pluralismo moral e comportamental que se choca com os poderes constituídos[13] e exige a criação de um sistema que coloque tais normas de lado e reduza sua importância o máximo possível – o próprio sistema prisional.

O problema maior (e isso se verifica na segunda parte da análise de Wunderlich, na expressão "tudo fruto da evolução do poder punitivo, que inicia com o suplício do corpo pelo soberano e termina na atual política estatal punitiva-repressivista") é que esse sistema prisional intensifica a exclusão social e corrobora as regras próprias daqueles que o habitam, à medida em que demonstra, de forma inequívoca e pela violência utilizada, que a reação social destinada aos excluídos é tão-somente puni-los e amedrontá-los, mantê-los excluídos e inofensivos ao máximo, inexistindo qualquer prática concreta para sua integração.

Dessa maneira, a exclusão social – e o regramento ético-moral diferenciado daí decorrente – são solidificados, e uma vez que em diversas pessoas o medo – e o inconformismo - de nunca alcançar nenhum objetivo em toda a vida, manter-se limitado ao quase nada por toda a existência, é maior que o medo de ser punido novamente, a cadeia brasileira, ao institucionalizar de forma definitiva a situação de exclusão, atua principalmente como força catalisadora da violência social.

E a constatação mais preocupante é que o criminoso passa a cometer atos ilícitos não apenas por que se encontra sem outras opções, mas por que se julga no "direito" de cometê-los, já que esse é o "caminho natural" oferecido pela sociedade para que ele atinja o poder e o sucesso material. Essa pessoa segue um regramento ético-moral diferenciado daquele praticado pelos "incluídos", e esse conjunto de valores se amplia na mesma proporção da sociedade marginal que lhe dá existência, chocando-se, cada vez mais, com o regramento estatal vigente.

Exemplos desse choque estão no comerciante carioca que se recusou a obedecer à ordem de um oficial da Polícia Militar para que abrisse sua loja, por que o traficante local mandou fechá-la em luto por outro traficante morto (e o comerciante sabia que a moral do traficante tinha maior amparo bélico que a moral do policial), e na rede de supermercados que foi obrigada a fechar sua loja (também no Rio de Janeiro) por que os habitantes do morro vizinho insistiam em levar os produtos sem pagamento (já que a rede era muito "rica", e tinha a "obrigação" de ajudar os mais pobres) e a força policial não pôde fazer frente a centenas de pessoas que praticavam o furto diariamente.

Esse pluralismo ético-moral atua como catalisador da criminalidade, e esta deve merecer a máxima atenção da sociedade, não apenas pelos custos inerentes ao aumento da massa carcerária, mas pela reincidência criminal que se verifica no Brasil, situando o crime como ameaça permanente e crescente. Vale salientar que a reincidência não é medida pelo número de pessoas que cometem novos crimes e retornam às prisões, mas pelo número total de pessoas que reincidem na atividade criminosa, compreendendo aquelas novamente presas e mais as que não são presas, além daquelas que sequer são identificadas. Esse é o tamanho real do problema, e nem a leniência natural do espírito humano, que opta por ocultar o sintoma, poderá fazer frente à realidade de que as verdadeiras causas do problema influenciam mais e mais o dia a dia da sociedade brasileira.


2. PROPOSTAS LEGAIS PARA A RECUPERAÇÃO DO APENADO: A EDUCAÇÂO E O TRABALHO NA LEI DE EXECUÇÃO PENAL E SUA APLICAÇÃO PRÁTICA

Se a sociedade optou por não destruir o homem que cometeu um crime, então tem a obrigação de recuperá-lo; não há outra opção.

A Lei nº 7.210, de 11.07.1984, conhecida como Lei de Execução Penal - LEP[14], trata das normas estatais relativas à execução penal, e tem por objetivo "efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado" (Art. 1º; grifou-se).

O texto normativo reflete a intenção do legislador em reconhecer o condenado como parte integrante da sociedade, à qual deverá retornar, o que pode ser percebido em seu Art. 10, que prevê que "a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade", determinando ainda, em seu Art. 11, que "a assistência será material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa".

A assistência educacional (de 1º grau e profissionalizante) constitui um dos dois pilares de preparação do apenado para o retorno ao meio social, dispondo a LEP em seus Arts. 17, 18 e 19:

"Art. 17. A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado.

Art. 18. O ensino de 1º grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da Unidade Federativa.

Art. 19. O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico."

A oferta de trabalho e sua remuneração, obrigação do Estado em relação ao presidiário, conforme prevê o Art. 31 da LEP ("o condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidades") e, conseqüentemente, direito do preso, consoante o Art. 41 da mesma lei ("constituem direitos do preso...II – atribuição de trabalho e sua remuneração"), destina-se a pelo menos quatro finalidades:

    • manutenção da dignidade humana pela atividade produtiva (LEP, Art. 28, caput);
    • oferta de remuneração ao preso, nunca inferior a ¾ do salário mínimo e não sujeita ao regime da CLT (LEP, Art. 28, § 2º, e Art. 29, caput);
    • atendimento de diversas necessidades, tais como indenização dos danos causados pelo crime, assistência à família, pequenas despesas pessoais, ressarcimento ao Estado pelas despesas com o condenado e formação de poupança para auxiliar no retorno à liberdade (LEP, Art. 29, §§ 1º e 2º);
    • remição proporcional da pena, à razão de um dia de pena por três de trabalho (LEP, Art. 126, caput, e § 1º).

A intenção legislativa é clara e louvável: não apenas pretende que o condenado mantenha-se próximo a uma vida produtiva intra-muros, como forma de ligação com o mundo exterior, provendo, ainda que minimamente, suas necessidades e as de sua família por meio do trabalho, como procura facilitar a reinserção social do preso, buscando prepará-lo para as exigências básicas da competição social: formação e profissionalização.

Esse objetivo se materializou numa legislação avançada, alinhada à Constituição do país, quando se abandonou completamente a idéia – vigente desde os primórdios do Brasil colonial - de que a prisão se presta a dois únicos objetivos: punir o transgressor e amedrontar a sociedade. Pela nova legislação, o preso é tão cidadão quanto aquele que nunca cometeu um crime, apesar da perda provisória de alguns direitos, devendo apenas pagar pelo erro cometido, e ser preparado para ter melhores condições de não mais cometê-los.

Para essa preparação, a escolha óbvia foi utilizar as mesmas ferramentas usadas na formação do cidadão comum, quais sejam educação e profissionalização, até mesmo por que, em tese, a falta desses elementos teria contribuído para a ocorrência da atitude criminosa. Considerou-se – e não deixa de ser uma postura bastante razoável – que o presidiário deveria deixar a prisão em melhores condições do que quando entrou, inclusive no que concerne à preparação intelectual e profissional, para viabilizar seu retorno à sociedade.

Deve-se destacar inicialmente, por se tratar de aspecto essencial à análise proposta nessa monografia, que a educação prevista na LEP é caracteristicamente utilitária, a teor de seus artigos 18 e 19, que prevêem a obrigatoriedade do ensino de 1º grau e a oferta de ensino profissional. Tais ferramentas são parte do todo maior educacional, e não esgotam, absolutamente, as necessidades educacionais do presidiário, principalmente no que diz respeito à sua carência formativa.

Além disso, a proposta estatal se defronta com a realidade social brasileira, conforme relatado pela ONG Human Rights Watch (HRW), em seu relatório "O Brasil atrás das grades", de 1998, seção "O trabalho e outras atividades"[15], em que se relata a difícil realidade do presidiário brasileiro, não só em relação à observância do seu direito à educação e ao trabalho, como também quanto aos demais aspectos inerentes à sua condição humana.

Em que pese ter sido o trabalho realizado há oito anos, permanece desafortunadamente atual, a teor de outros relatórios da mesma organização, de junho de 2005, que retratam os abusos cometidos contra internos no Rio de Janeiro[16], o que não se distancia do cotidiano das demais capitais brasileiras.

Conforme relatado pela HRW, as conclusões do relatório baseiam-se no exame dos estabelecimentos penais nos estados do Amazonas, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, São Paulo e em Brasília. Além das prisões para os definitivamente condenados, também foram visitadas várias cadeias e delegacias, particularmente porque, dada a superlotação dos presídios, os presos normalmente passam anos em tais estabelecimentos.

No total, entre setembro de 1997 e abril de 1998, os pesquisadores daquela organização não-governamental visitaram cerca de quarenta presídios, cadeias e delegacias de polícia, entrevistando centenas de presos e também reunindo-se com autoridades, agentes penitenciários, membros da Pastoral Carcerária, juizes, advogados, promotores, deputados, estudiosos e representantes de organizações não-governamentais. Entre outros, reuniram-se com as autoridades máximas do sistema penitenciário em vários estados (na maioria das vezes, o secretário de Justiça), o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, o autor do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembléia Legislativa do estado de São Paulo sobre o sistema penitenciário, o coordenador nacional da Pastoral Carcerária, o Ouvidor da polícia do estado de São Paulo e o presidente do sindicato dos agentes penitenciários de São Paulo.

As conclusões não são animadoras, e demonstram a distância existente entre a teoria legislativa e a realidade prática, conforme se pode verificar nos excertos do relatório HRW, abaixo reproduzidos:

"Apesar das determinações legais, os estabelecimentos penais do país não oferecem oportunidades de trabalho suficientes para todos os presos. [...] Para citar alguns exemplos representativos entre os estabelecimentos visitados pela Human Rights Watch: cerca de 15% da população carcerária na Penitenciária Raimundo Vidal Pessoa, em Manaus, estavam empregados; cerca de 50 a 60% da população carcerária na Penitenciária Estadual de São Paulo estavam empregados; nenhum preso no Presídio de Segurança Máxima de João Pessoa estava empregado; cerca de 30 a 40 % da população carcerária do Penitenciária Regional de Campina Grande tinham emprego; cerca de 15% da população carcerária do Presídio Central de Natal estavam empregados, e cerca de 20% da população carcerária do Presídio Central de Porto Alegre tinham emprego."

"A situação é pior ainda nas delegacias policiais. A única oportunidade de trabalho que elas oferecem é serviço de faxina. Apenas poucos detentos em cada carceragem trabalham nesse serviço, geralmente de dois a seis detentos, dependendo do tamanho da delegacia. Todos os outros detentos, condenados ou não, ficam ociosos."

" Deve-se ressaltar que o reduzido número de detentos empregados é resultado da escassez de oportunidades de trabalho, e não de falta de interesse da parte dos detentos. Para começar, de acordo com a LEP o trabalho deveria ser obrigatório, e não opcional. Mas ainda mais convincente, na prática, é o incentivo criado pela própria lei para a redução de sentenças. De acordo com esse dispositivo legal, para cada três dias de trabalho, um dia deve ser debitado da sentença do detento. Ansiosos para sair da prisão o mais rápido possível, quase todos os detentos estão dispostos a trabalhar, mesmo sem receber. Na verdade, os detentos reclamaram muitas vezes da falta de oportunidades de trabalho. A escassez de trabalho nas carceragens das delegacias é uma das muitas razões pelas quais os detentos se revoltam para serem transferidos para as prisões."

"O salário dos detentos varia consideravelmente de prisão para prisão. A LEP determina que os detentos recebam três quartos do salário mínimo. De acordo com os índices em vigor, essa quantia seria de R$ 97,50 por mês."

"A Human Rights Watch encontrou poucas prisões que pagavam aos detentos uma quantia semelhante ou aproximada. Na verdade, algumas prisões não pagavam nada, violando assim as normas internacionais que regulam o trabalho prisional."

"Em diversos estabelecimentos penais, incluindo a Casa de Detenção e a Penitenciária Estadual de São Paulo, os detentos trabalham por peça e são pagos de acordo com sua produção. Os detentos que fazem cartões na Casa de Detenção, por exemplo, disseram-nos que recebem entre R$20 e R$25 por mês se trabalharem fazendo hora extra, e cerca de R$15 por mês se cumprirem o horário regular."

"O nível educacional geralmente baixo das pessoas que entram no sistema carcerário reduz seus atrativos para o mercado de trabalho. Isso sugere que programas educacionais podem ser um caminho importante para preparar os detentos para um retorno bem-sucedido à sociedade. Reconhecendo essa possibilidade, a LEP determina que os detentos recebam oportunidades de estudo, garantindo-lhes, em especial, educação escolar primária. A lei também promete aos detentos treinamento vocacional e profissional."

"Quanto mais superlotada, barulhenta e perigosa a prisão, é óbvio que menos estímulo à educação ela oferece. Algumas prisões de péssima reputação, tais como o Presídio do Róger, em João Pessoa, não oferecem aos detentos qualquer oportunidade educacional. Em outras prisões apenas uma fração da população carcerária pode estudar. Na Penitenciária Estadual de São Paulo, por exemplo, disseram-nos que por volta de 10 por cento dos detentos - cerca de 200 pessoas - estavam estudando em nível primário, enquanto que cerca de 5 por cento dos detentos da Casa de Detenção de São Paulo estariam estudando em nível primário ou secundário, assim como 8 por cento dos detentos da Penitenciária Raimundo Vidal Pessoa de Manaus. De maneira semelhante ao que acontece com a ausência de oportunidades de emprego, as delegacias policiais não oferecem aos detentos qualquer oportunidade de estudo."

"Embora alguns professores sejam trazidos para a prisão especialmente para ensinar, a maioria das aulas é dada pelos próprios detentos, normalmente aqueles que têm maior nível educacional ou apresentam habilidades especiais. Na Penitenciária Raimundo Vidal Pessoa de Manaus, por exemplo, encontramos um detento colombiano que dava aulas de espanhol."

"Durante nossas visitas, vimos diversas salas de aula vazias, mas poucas aulas de fato. Na Casa de Detenção, vimos uma aula de datilografia no pavilhão 6; o professor, um detento, disse-nos que cerca de setenta presos recebem aulas de datilografia de uma hora por dia durante seis meses."

Outro fator digno de atenção reside nas oportunidades de trabalho extra-muros, para os presos em regime semi-aberto. Como a LEP dispõe que o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (Art. 28, § 2º), e a remuneração pode ser inferior a um salário mínimo (3/4 deste), a força de trabalho prisional é interessante para o empresariado nacional, pois, além da remuneração reduzida, não são devidos quaisquer encargos previdenciários, férias, décimo-terceiro salário, aviso prévio, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, horas-extras, etc.

Ainda assim, as oportunidades de trabalho surgem, quase que invariavelmente, em órgãos públicos ou pára-públicos. O relatório anual de 2005 da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso do DF (FUNAP)[17] registra que, dos 719 condenados em regime semi-aberto que trabalham no Distrito Federal, extra-muros, apenas 28 o fazem em empresas privadas, estando todos os outros 691 detentos localizados em órgãos públicos, tais como administrações regionais do DF, ministérios, secretarias e a própria FUNAP.

Se as dificuldades para obter emprego para detentos resta comprovada, apesar das vantagens financeiras para o empresariado, a situação se torna ainda mais precária para os egressos: passando a concorrer em igualdade de condições com todos as pessoas, no que se refere ao salário e encargos devidos pelo empregador, o egresso é preterido em relação àquela pessoa que não cometeu crimes, e cai no desemprego.

A partir dos fatos acima relatados, pode-se inferir que a preparação do presidiário, intelectual e profissional, e a condição diferenciada de sua remuneração, sem encargos sociais, não são suficientes para atrair o empresariado brasileiro, ou que não existe um esforço eficiente da autoridade governamental no sentido de aproximar o detento e a empresa, destacando as vantagens práticas de se contratar um apenado em regime semi-aberto.

De todo modo, a análise da distância que se verifica entre a intenção do Estado, consubstanciada na Lei de Execução Penal, e a prática verificada dentro e fora das prisões brasileiras, é o problema que dá existência a esta monografia, cujas razões – e caminhos que possam levar a soluções – pretende-se demonstrar até o final do trabalho.


3. A EDUCAÇÃO E O TRABALHO: SUA IMPORTÂNCIA PARA A FORMAÇÃO E EXISTÊNCIA DO HOMEM SOCIAL

O homem é a única criatura que precisa ser educada (Kant)[18]

Para que se possa buscar o entendimento correto dos motivos que levaram o legislador a inserir a educação e o trabalho como ferramentas de recuperação e reinserção do presidiário no Brasil, a serem obrigatoriamente desenvolvidas no ambiente prisional, deve-se fazer uma análise, ainda que breve, do significado mais amplo de tais termos e dos seus efeitos no homem enquanto ser em contínua formação e destinado a viver em comunidade.

Para além da concepção mais comum do que seja educação e trabalho, muitas vezes percebidos apenas pela sua utilidade imediata no dia a dia, deve-se buscar a compreensão do papel maior de tais instituições, aqui não mais circunscritas à realidade do cárcere, mas entendidas como ferramentas basilares para o ser humano que convive em sociedade, desde seu nascimento até sua maturação como ente produtivo e responsável, e durante todo o processo que se verifica a partir da assunção desses papéis.

Pode-se até mesmo inferir que essa foi a dimensão que norteou o legislador, ao buscar reproduzir na prisão, ainda que de forma limitada, tais elementos vitais à convivência humana. Por esse motivo, uma discussão teórica desses temas, vinculada às suas possibilidades totais na sociedade global, reservando-se o debate relativo à praxis observada no sistema prisional para um momento posterior, se faz oportuna e necessária para a compreensão do distanciamento entre teoria e prática, no que concerne às soluções legais para a recuperação do apenado.

3.1 A educação e sua pluralidade formativa

A educação representa um processo integral de formação humana, não devendo se limitar ao conceito menor de que educar é transmitir conhecimentos a serem armazenados no intelecto, para futura aplicação em uma atividade produtiva de bens e serviços. É também uma atividade plural, com a efetiva participação de diversos atores, voluntários ou não, que transmitem ou influenciam na transmissão de informações e valores para outros atores, que os recebem por diversos canais, e que por sua vez também podem assumir o papel de educadores.

É, portanto, atividade plural no que se refere à matéria, aos envolvidos, às formas de transmissão e de recepção, e até mesmo quanto ao posicionamento assumido pelos participantes.

Na prática do dia a dia, educação e educadores estão quase sempre ligados à visão pragmática e utilitária do conceito, pela qual conhecimentos e habilidades são transmitidos de geração em geração, acrescidos dos progressos tecnológicos alcançados, para propiciar a reprodução das condições humanas e a busca de novas possibilidades no campo do conhecimento. Ou seja, trabalho e pesquisa.

Tais aspectos, decerto, fazem parte do processo educacional, mas estão longe de representar a totalidade do processo, sequer a parte mais importante. A palavra educação encerra um significado bem mais amplo, por se tratar de um processo infinitamente mais complexo, envolvendo não apenas a questão dos conhecimentos e habilidades, mas a própria essência humana e sua transformação. Pela aquisição de valores e conhecimentos, o homem busca atingir a indispensável capacitação do ser humano à vida em sociedade, com especial ênfase para a questão da cidadania (e essa palavra é merecedora de uma análise bem mais acurada, por representar um dos pilares da própria existência de qualquer nação).

O professor Neidson Rodrigues[19] definiu de forma precisa o processo educacional, em sua visão ampla, inclusive sua íntima ligação com o sujeito-cidadão:

" Na esteira do que foi reafirmado sobre os fins da educação, podemos reconhecer que a ação educativa é um processo regular desenvolvido em todas as sociedades humanas, que tem por objetivos preparar os indivíduos em crescimento (crianças e adolescentes) para assumirem papéis sociais relacionados à vida coletiva, à reprodução das condições de existência (trabalho), ao comportamento justo na vida pública e ao uso adequado e responsável de conhecimentos e habilidades disponíveis no tempo e nos espaços onde a vida dos indivíduos se realiza. Ao redor desses aspectos se desdobra o conjunto das ações educativas a serem desempenhadas pelos sujeitos educadores, entre eles a escola." (grifos nossos)

" Ao redor dessas relações acredita-se que a Educação é o caminho necessário para a formação do sujeito-cidadão."

Segundo Kant[20], "a Educação é um ato intencional imposto de fora sobre uma criatura que deve ser formada como ser humano". Essa visão holística do filósofo, no que se refere à formação do homem, é o cerne do que hoje se entende por educação, qual seja aquela atividade que se destina a fornecer todas as informações e valores necessários ao homem para que este possa existir junto aos demais como um ser igual e completo. É um processo plural, que abrange diversas dimensões, além da intelectiva: a moral, a emocional, a valorativa, a cidadã, etc.

O último livro do educador Paulo Freire, "A Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa", citado por Caetano V. Serpa e Maria de Lourdes B.Serpa[21], contextualiza a educação como um processo global inerente à sociedade e ao homem individual, e manifesta otimismo quanto às suas possibilidades, principalmente no que se refere à formação positiva das pessoas:

" A Pedagogia da Autonomia é um livro pequeno em tamanho, mas gigante em esperança e otimismo, que condena as mentalidades fatalistas que se conformam com a ideologia imobilizante de que "a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?" Para estes basta o treino técnico indispensável `a sobrevivência. Em Paulo Freire, educar é construir, é libertar o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que a História é um tempo de possibilidades. É um "ensinar a pensar certo" como quem "fala com a força do testemunho". É um "ato comunicante, co-participado", de modo algum produto de uma mente "burocratizada". No entanto, toda a curiosidade de saber exige uma reflexão crítica e prática, de modo que o próprio discurso teórico terá de ser aliado à sua aplicação prática."

Deve-se entender a educação, por conseguinte, como um processo que interage com todas as dimensões do homem social, e não apenas com a intelectiva-ferramental-utilitária, embora esta represente a faceta mais visível em função de sua aplicabilidade pragmática e imediata. Cabe destacar, ainda, que o conceito de cidadania somente existe – e subsiste – mediante um efetivo processo educacional, uma vez que se trata de conhecimento eminentemente externo ao ser humano, e que contraria até mesmo sua própria natureza, caso se leve ao pé da letra o posicionamento hobbesiano[22] do estado de natureza dos homens.

Educa-se o homem com informações e valores, sendo que esta última faceta – valores – é de vital importância para a existência positiva do homem social. E aqui se percebe uma diferenciação maiúscula entre a educação que transmite valores e aquela que leva informações utilitárias ao intelecto humano, pois esta admite a figura do professor-tutor-educador, que pode atuar em locais e horários determinados, além de se submeter a medições e avaliações na escola e no desempenho profissional, enquanto aquela emana diuturnamente de todas as situações e grupos sociais percebidos pelo homem, com especial destaque para a entidade familiar.

Essa capacidade de perceber fatos e dados de forma axiológica, que é desenvolvida de forma independente da vontade humana, bastando para tal a

ocorrência da vida em grupo, representa nada menos que o conjunto de parâmetros que determinarão os comportamentos sociais, formando aquilo que se compreende como caráter do homem, responsável pela prática de atitudes louváveis ou merecedoras de reprovação.

A educação valorativa, ligada ao ser-cidadão, depende de inúmeros e complexos fatores para sua consecução de forma positiva, não bastando para

praticá-la, infelizmente, a aquisição e transmissão de conhecimentos técnicos ou pragmáticos. O cabedal de circunstâncias envolvidas nesse processo educacional leva à reflexão de que a sociedade nele se envolve como um todo, pelo que se deve priorizar a construção de um modelo educativo que destaque a parte positiva/construtiva dos conceitos e valores morais/sociais, objetivando sua transmissão contínua ("a parte boa") e o conseqüente incremento da cidadania, o que representará, ao final, a criação de um processo contínuo de retro-alimentação positiva entre educandos (seres-cidadãos) e educadores (a própria sociedade).

Esse modelo educacional valorativo-positivo, felizmente, não depende de todos os setores da sociedade para sua implementação, o que o torna possível, embora não sem grandes dificuldades. Caso dependesse de todos os setores sociais, o próprio pluralismo moral-valorativo impediria sua implantação, face à ausência de um modelo comum a todos e até mesmo à presença de valores frontalmente contrários, produzidos justamente pela falta de um modelo axiológico preponderante e efetivo.

Logo, existe uma possibilidade de se avançar no modelo educacional naquilo que se refere à formação valorativa do homem, inclusive dentro das prisões brasileiras, onde hoje a educação se limita à transmissão – e assim mesmo precária – de informações técnico/utilitárias. É por meio da disseminação de valores positivos que se poderá combater inúmeros conceitos niilistas ou negativos advindos dos mais diversos segmentos sociais, buscando-se de uma certa unidade valorativa (nunca a unanimidade, altamente prejudicial) que minimize a pluralidade moral hoje existente no Brasil, circunstância típica de países com forte exclusão social.

3.2 O trabalho como valor inerente ao homem social

A atividade laborativa pode provocar inúmeros efeitos na pessoa que a pratica, entre eles a auto-realização, o orgulho de produzir e receber riqueza, o incremento da competitividade, o desejo de evolução profissional, a satisfação de saber-se útil para o sustento familiar, bem como a revolta por julgar-se explorado, a sensação de impotência, o desejo de abandonar a atividade, a luta por sobressair-se no meio profissional mediante atitudes lícitas – ou não -, e, em muitos casos, a certeza e aceitação passiva do imaginado destino de trabalhar até morrer, como decorrência natural das necessidades da vida.

Independentemente do posicionamento da pessoa frente ao trabalho, este deve ser reconhecido como um valor intrinsecamente social, ou seja, advém da sociedade e a ela se destina, como meio de produção, criação, dominação, sobrevivência, reprodução das condições humanas e – aqui se tem o aspecto mais diretamente ligado a esta monografia – inserção do ser humano no grupo, por meio do reconhecimento de seu papel profissional (o degrau que conseguiu atingir), de sua capacidade de influenciar pessoas e fatos e sua habilidade em gerar riqueza para si e sua família.

No aspecto individual, o homem utiliza o trabalho, entre outras funções, para aferir sua capacidade de gerar riqueza (para si e para os seus) e de exercer a atividade com a qual mais se identifica, e é o resultado dessa medição que o leva aos mais variados estados de espírito, desde a auto-realização plena até o sentimento de absoluta impotência frente à realidade profissional.

No aspecto grupal, as pessoas exercitam um processo contínuo de avaliação das habilidades e capacidades do trabalhador, com especial destaque para sua adequação ao processo produtivo, sua capacidade de gerar riqueza e sua importância para o atingimento dos resultados almejados.

Qualquer que seja o enfoque utilizado – percepção individual ou social -, o trabalho se caracteriza pela sua essência eminentemente retributiva, na qual ambos os lados envolvidos se julgam com direito – e efetivamente o têm – de receber algo em troca de seus esforços, que se caracterizam, de forma costumeira, pela dedicação ao trabalho – do lado do profissional – e pelo pagamento de verbas salariais ou assemelhadas – do lado da entidade patronal. É uma troca, onde o homem oferece sua força para auferir algo para si, desde pagamento em dinheiro até a satisfação pessoal, e a sociedade igualmente oferta valores relevantes para o ser individual, desde sobrevivência (salário) até o reconhecimento social.

A percepção individual do que se pode – e se deve – esperar do trabalho, mantido o sentimento comum de que é algo necessário à sobrevivência e gerador de retribuição, se caracteriza por sua variabilidade e amplitude. Dita percepção – e sua profundidade – está ligada basicamente a fatores educacionais e sociais, posto que ao homem só é possível perceber as coisas à medida em que se lhe é dado o conhecimento de sua existência.

Exemplificando, a educadora da USP Maria Carla Corrochano demonstrou, tendo por objeto os jovens operários de São Bernardo do Campo[23], que "ganhar dinheiro suficiente para ajudar no sustento da família, não ser confundido com marginais e custear suas próprias despesas" são os motivos que levam tais pessoas a trabalhar, sendo a realização profissional relegada a um segundo – e distante – plano. Relata ainda a professora:

" Com baixos salários e ocupando cargos que exigem pouca qualificação e muita exigência física, mais de 50% dos entrevistados acham que ter um emprego é quase privilégio. Para reforçar essa idéia, todos possuem amigos desempregados, ou já estiveram nesta condição. Cerca de 80% também ocupou postos de trabalho informal e precário.

O resultado desta situação, segundo os dados, é que apesar dos jovens continuarem sonhando com a possibilidade de uma vida melhor, seus planos são, quase sempre, remotos, e o trabalho de hoje não possui relação com o sonho de amanhã.

O emprego é central na vida desses jovens e concretizar seus planos de futuro envolve um certo risco de desemprego. É difícil apostar numa possibilidade de mudança sem que haja políticas de formação e geração de postos de trabalho e renda".

A postura adotada, intelectual e emocionalmente, por esses trabalhadores, indica a evidente conexão entre as perspectivas profissionais das pessoas e seu grau de inclusão/exclusão social. Esta é mais uma evidência de que o trabalho só existe em função da sociedade, de onde emana e para onde se destina, e que as possibilidades oferecidas pela atividade laboral, tanto sob o ponto de vista individual como sob o aspecto social, estão intimamente ligadas à formação possível da pessoa humana, antes mesmo da formação do trabalhador.

Assim, o trabalho adquire uma dimensão cidadã, à medida em que trabalhar depende diretamente da formação das pessoas, não apenas quanto aos aspectos técnicos – que tornam o homem meramente capaz de reproduzir coisas – mas também em relação aos aspectos sociais, formadores, que trazem ao ser humano uma capacitação crítica em relação ao todo que o cerca, incluindo o trabalho.

É por meio desse senso crítico que o homem se habilita a entender seu trabalho, pensá-lo, planejá-lo, ao invés de tomar diariamente o caminho da fábrica – ou do escritório – simplesmente porque é assim que deve ser feito, por que todas as pessoas o fazem. É a capacidade axiológica do homem – e deve-se reconhecer que seu desenvolvimento esbarra em diversos interesses opostos à sua existência – que poderá transformar o trabalho e ampliar seus efeitos, a partir do melhor entendimento de suas possibilidades, retribuições justas e sua real importância para o mundo social, antes do mundo produtivo.

No Brasil, um entendimento mais amplo do que seja o trabalho está restrito a poucos profissionais, geralmente nos boards das grandes corporações e principalmente nas academias. O pulverização dessa consciência para um maior número de trabalhadores somente será possível por meio do processo educacional, considerado em sua visão ampla (formativa), aliado à imprescindível evolução das possibilidades e postos de emprego, vale dizer do processo econômico como um todo (de nada adianta formar pessoas para a plena consciência do papel do trabalho se este continuar escasso, gerando deformações e um mercado informal com normas e valores próprios).

Enquanto tais evoluções não se concretizam, a maior parte das pessoas que trabalham continuará buscando o emprego apenas como meio de sobrevivência (e isso inclui milhares de profissionais de nível superior que não obtêm colocação em suas áreas). Palavras como realização profissional, satisfação no emprego e planejamento de carreira permanecerão incomuns à grande maioria da população brasileira, incluindo os presidiários objeto desta monografia, para os quais se torna impossível almejar algo além do que o emprego-subsistência mal remunerado, em vista da igual realidade observada fora dos muros da prisão.

4. A PROPOSTA DA LEI E SUAS LIMITAÇÕES: ESTUDO DE CASO VIS A VIS A REALIDADE BRASILEIRA

O mundo real é um cemitério de intenções puras, que a ele se lançaram sem as necessárias armas para enfrentá-lo...

O estudo de caso aqui apresentado tem por objeto uma experiência pioneira levada a cabo em Brasília/DF desde 14.05.2002, quando a empresária Suzana Rodrigues entrou pela primeira vez na Penitenciária Feminina do Distrito Federal (localizada no Gama, cidade satélite de Brasília), conhecida como "Colméia", e enfrentou os olhares desconfiados de um grupo de presidiárias, ao convidá-las a aprender o ofício de artesãs, no ramo de bijuterias.

Dessa reunião até os dias de hoje, a experiência adquiriu conformação empresarial, sendo que atualmente a grande maioria da força produtiva empregada na atividade é constituída por internas daquele presídio (cerca de vinte), contratadas na forma da Lei de Execução Penal, que trabalham na fábrica de bijuterias e biojóias (definição para adereços fabricados com sementes naturais) mantida dentro da penitenciária.

As observações oferecidas pela empresária, fruto de sua convivência de quase quatro anos com a realidade prisional feminina de Brasília, as expectativas das detentas quanto ao futuro, a reincidência criminal, a mudança comportamental e a reação frente às oportunidades de trabalho dentro e fora da cadeia, corroboram de forma inequívoca as teses até então apresentadas nesta monografia, principalmente no que se refere aos efeitos da exclusão social e ao pluralismo ético-moral-comportamental daí decorrente.

Os dados colhidos representam a comprovação factual, em menor escala, da realidade verificada no sistema prisional brasileiro, e suas relações com a sociedade como um todo, num contínuo – e vicioso - processo de retro-alimentação.

Pode-se condensar os principais dados sobre o caso nas informações abaixo:

  • Descrição: treinamento e organização de presidiárias de Brasília para a produção diária de bijuterias e biojóias, objetivando sua comercialização em loja convencional e quiosques mantidos na região, além de exportação para diversos países, tais como França, Inglaterra, Espanha e Suíça;
  • Objetivo pessoal: transmitir conhecimento visando à formação profissional de pessoas pertencentes à classe mais desfavorecida da sociedade, e em temporária privação de liberdade, com todos os efeitos negativos daí decorrentes, buscando-se uma futura reinserção social;
  • Objetivo profissional: preparar e sustentar estrutura empresarial, baseada na força de trabalho de detentas, que permita a existência perene de negócio de adornos e biojóias em todas as suas fases (produção, suporte, comercialização, lucro e reinvestimento) com todos os efeitos sociais relacionados: emprego, remuneração digna, profissionalização e oferta de emprego após o cumprimento da pena;
  • Período temporal: de 14.05.2002 até hoje;
  • Localização: Penitenciária Feminina do Distrito Federal, localizada na cidade-satélite do Gama, nas cercanias de Brasília;
  • Abrangência: cerca de 300 presidiárias já participaram do projeto (por variados períodos de tempo) durante todo o período;
  • Método: fornecimento de toda a infra-estrutura necessária para a produção de bijuterias e biojóias (maquinário, matéria-prima, treinamento, etc) dentro da prisão, produção em quase todos os dias úteis (ressalvado o dia da visita semanal), remuneração variada por quantidade produzida/grau de dificuldade (variando de R$ 70,00 a R$ 450,00 mensais), oferta de emprego após o cumprimento da pena.

Dado o objeto desta monografia, as informações mais relevantes obtidas em relação ao caso são as seguintes:

- das cerca de 300 detentas que trabalham, ou já trabalharam, na fábrica de bijuterias e biojóias, aproximadamente 60% são reincidentes. Esse índice é semelhante ao grau de reincidência verificado na prisão como um todo;

- das cerca de 60 mulheres que cumpriram a pena e deixaram a prisão, apenas 7 procuraram emprego junto à empresária, sendo que 5 não trabalharam mais que um dia, uma trabalhou por quatro meses e uma por dois anos, sendo que essa última, tida como o único caso de reinserção social bem sucedida, deixou o emprego sob suspeita de falsificação de assinatura em cheque.

As demais informações fornecidas pela empresária, fruto de sua vivência junto ao sistema prisional, dão conta de diversas características comuns, ou pelo menos modais, a todas ou a quase todas as presidiárias, algumas surpreendentes, mas todas relacionadas à exclusão social e seus efeitos. Senão, vejamos:

  • todas as presidiárias da PFDF (cerca de 200), sem exceção, provêm da classe pobre ou miserável, sendo que este fato, além de gerar revolta nas detentas contra o Estado e a classe média, é encarado como motivo para a busca imediata, sem problemas de consciência, de soluções "alternativas" de vida (crime), como única possibilidade oferecida pela sociedade (que "merece" sofrer tais efeitos, como responsável pela discriminação sofrida pela classe menos favorecida);
  • a quase totalidade das presas foi levada a cometer delitos (quase que invariavelmente o tráfico de drogas) pelos maridos, namorados ou companheiros;
  • mais de 90% das egressas busca o tráfico de drogas como "atividade profissional" assim que deixam a prisão, sem procurar antes qualquer outra ocupação, face à significativa remuneração daquela atividade, que possibilita o atingimento rápido do maior objetivo de todas: comprar uma casa. O retorno ao tráfico é a primeira causa de reincidência criminal;
  • a segunda causa de reincidência criminal é o delito cometido com o único objetivo de propiciar o retorno rápido à prisão, onde a egressa deixou a "namorada". Cerca de 70% das internas da PFDF são homossexuais, sendo que a maioria adquiriu tal comportamento após ingressarem na prisão;
  • diversas detentas gostam de viver na penitenciária, pela existência de "casa, comida e roupa lavada". A prisão é conhecida como "hotel do tio Roriz" (ex-governador do Distrito Federal);
  • muitas internas têm prazer em praticar o tráfico de entorpecentes, e de portar armas de grosso calibre, por se sentirem "poderosas" com tal atitude;
  • a quase totalidade das detentas recebem tão-somente a visita da mãe, após alguns meses de prisão, sendo essa a única referência familiar disponível. O homem - marido-pai-irmão-namorado-companheiro - não faz parte do ideário apresentados pelas internas, que sentem falta apenas dos filhos, quando existentes;
  • como só é permitida a participação de 20 detentas na fabricação das peças, existe uma fila para participar da atividade, dada a ausência de opções suficientes de trabalho na prisão. Em 2003, essa fila chegou a 80 pessoas.

É de todo interessante proceder a uma análise mais detalhada de alguns fatos acima mencionados, não apenas por que se prestam ao entendimento da situação sócio-familiar-emocional das detentas, mas principalmente por sua contribuição para a correta visualização dos efeitos da sociedade naquelas pessoas, muito antes dos efeitos destas na sociedade.

De início, não existe ao menos uma única detenta que não pertença à classe pobre ou miserável. Como é sabido que não são apenas as pessoas dessas classes que cometem crimes (embora se possa inferir que são as que mais os cometem, em números relativos, fruto da exclusão social), é compreensível que esse fato atue como gerador de revolta, seguida do entendimento de que é "normal e até necessário" que se busque a via do crime para o atingimento de diversos objetivos de vida – dinheiro, poder, conforto – já que essa é a única maneira ofertada pela mesma sociedade que as limita.

É o "direito" ao crime, representativo de um pluralismo jurídico já mencionado neste trabalho, que se torna mais e mais preocupante à medida em que sua existência decorre da incapacidade da sociedade em atender as mínimas necessidades de uma parcela de si mesma, aliada ao fato de que esta parcela é crescente em números absolutos, como demonstrado pela realidade carcerária brasileira.

O tráfico de drogas é a grande "opção profissional" das detentas e também das egressas (fator primeiro da reincidência), pela remuneração que propicia, o que leva a pelo menos duas conclusões: primeiro, que o pluralismo jurídico-profissional é uma realidade cada vez mais consistente nas classes desfavorecidas, por representar o único caminho para o atingimento de objetivos; e segundo, que essa opção é alimentada por um novo ente coletivo igualmente crescente, o do usuário de drogas, igualmente preocupante mas que não é objeto desta monografia.

Por fim, e este é um aspecto relevante, tem-se a informação de que, após alguns meses, apenas as mães das detentas as visitam na prisão, sendo essa a única referência familiar disponível. Esse fato demonstra a inexistência da entidade familiar integral como substrato básico daquelas pessoas, por vezes (mal) substituída pelo marido-companheiro-namorado, responsáveis por levarem a quase totalidade das internas a cometerem crimes. E, dado que família é sinônimo de formação, e que formação é um dos pilares do processo educacional, deduz-se que existe uma íntima ligação entre a carência educacional-formativa-familiar e a prática delituosa, embora não se deva afirmar, pela ausência de um estudo mais aprofundado, que esta seja a causa principal.

De qualquer modo, o presente estudo de caso remete a um mundo "diferente", não por ser habitado por pessoas que podem – ou não – ter recebido valores diferenciados antes de ingressar na cadeia (considerando-se inclusive a carência de valores como um valor diferenciado), mas por que tais valores diferenciados são a elas impostos diariamente na realidade prisional, e de forma caracteristicamente violenta. A falta de liberdade, a superlotação, a exclusão absoluta, a constante vigilância, o ingresso num ambiente onde vigoram regras específicas – e muitas vezes radicais -, a obrigatória constatação da derrota sofrida para o Estado, que aplica sua força, e até mesmo a carência afetiva (o homossexualismo na PFDF gira no patamar de 70%, sendo que muitas detentas adquirem esse comportamento após o ingresso na penitenciária) são parte de um conjunto valorativo que necessariamente passa a integrar o caráter daquelas prisioneiras.

Essa convivência diária com os "valores prisionais" se torna uma peça-chave para que se possa aferir a eficácia do binômio educação-trabalho (como previsto na LEP) na recuperação das presidiárias, à medida em que sua existência é parte integrante do processo educacional das detentas, ao qual obrigatoriamente se incorpora. Uma vez que educação é um todo integrado – e integrante – entre pessoas, composto de insumos perceptíveis ou subliminares, aqueles valores adquirem relevância – até mesmo pela violência impositiva que os caracteriza – e influenciam de forma definitiva a formação das que a eles se submetem.


CONCLUSÃO

Durante todo o período de produção desta monografia, a preocupação central – em que pesem todas as dilações de tema levadas a efeito, por necessárias a uma abordagem mais completa do assunto escolhido – foi a de pesquisar e analisar, da forma mais sistematizada possível, os motivos que levam à existência do seguinte problema: a visível – e cada vez maior – distância entre a proposta estatal, de propiciar a recuperação da maior parte dos apenados via educação e trabalho, e a crescente reincidência criminal verificada em nosso país, hoje em níveis próximos a 80% do total de egressos, conforme estatísticas aceitas pelas autoridades que tratam do tema.

Para subsidiar as linhas de condução do trabalho, foram formuladas três hipóteses relativas à eficácia das mencionadas ferramentas estatais de recuperação de presidiários – educação e trabalho -, que não esgotam as possibilidades relativas ao assunto, mas que podem representar os vetores mais prováveis para o tratamento da questão:

  • tais soluções são inadequadas em sua essência, indicativo da necessidade de sua substituição;
  • ou são adequadas e suficientes para a solução do problema, devendo apenas serem intensificadas em nível nacional;
  • ou então são adequadas e insuficientes frente a uma realidade maior, na qual outras variáveis vêm impedindo que tais "remédios legais" atinjam o resultado esperado, o que exigiria uma nova abordagem do tema.

Como premissa inicial, adotou-se o posicionamento de que não se deveria cingir a análise às ferramentas em si, vale dizer à previsão legal de educar e oferecer o direito/dever do trabalho ao apenado. Ao contrário, dever-se-ia proceder a um estudo que abrangesse a complexa realidade brasileira, com foco no fato social mais diretamente ligado às questões aqui abordadas: a exclusão social, que vem a ser justamente a contrapartida do sistema prisional, à medida em que este representa o momento de maior intensidade daquela: a exclusão absoluta, "garantida" por muros e grades, a "resolução" do problema que aflige a comunidade das "pessoas de bem".

Por conseguinte, a aplicabilidade e eficácia dos remédios estatais – educação e trabalho – são analisadas num contexto maior, buscando-se dissociar seu valor intrínseco – quando são vistos apenas de per si – de sua aplicação na vida real, qual seja na presença de todos os valores e contradições da sociedade brasileira. Em outras palavras, estudou-se o problema admitindo-se a possibilidade – e não poderia ser de outra maneira – de que intenções, valores e leis podem ser bons em si, indiscutivelmente, mas que nem sempre são úteis, ou suficientes, dentro de uma realidade global, motivo pelo qual o enfoque utilizado buscou a abrangência como premissa fundamental.

Para responder à questão aqui colocada – que se resume na simples pergunta "por que as ferramentas estatais para a recuperação do presidiário não funcionam?" -, estruturou-se este trabalho em quatro capítulos, que buscam oferecer uma visão global do problema ao reinseri-lo em sua própria fonte: a sociedade.

No primeiro, apresenta-se o sistema prisional brasileiro, desde seu viés histórico até a brutal realidade dos dias de hoje, destacando-se a arguta análise do professor Wunderlich, consubstanciada na expressão "as instituições totais reproduzem a violência da própria sociedade, oficializando e estigmatizando as categorias sociais excluídas". Ao oficializar essa exclusão, o sistema prisional brasileiro, além de reafirmar a violência que já existe fora do cárcere, corrobora definitivamente o pluralismo ético-moral que se verifica, de forma eloqüente, nas categorias sociais mais desfavorecidas: ao mesmo tempo em que convivem com os padrões comportamentais da sociedade "oficial", essas pessoas admitem e experimentam seu "direito ao crime", até mesmo como única forma de vida indicada pela própria comunidade que as excluiu, que não lhes oferece qualquer outro meio de sobrevivência e busca de seus objetivos.

Procura-se demonstrar que, ao ingressar no sistema prisional, o condenado percebe de imediato que aquela instituição solidifica, até mesmo pela violência, pelas regras próprias, pela ausência de condições dignas etc, sua condição de excluído da sociedade. Ou seja, a cadeia reproduz, de forma bem mais incisiva, o próprio conjunto de fatores que levaram o apenado a nela ser inserido, e reafirma, por via de conseqüência, a necessidade de uma alternativa ético-moral que propicie, por vias "não-oficiais", a busca dos objetivos básicos inerentes a qualquer ser humano: conforto material e poder.

Em simples palavras, conclui-se que a prisão brasileira dos dias de hoje, já que não cumpre nem mesmo sua função primária, a de conter a prática criminosa de seus internados, se presta tão-somente a confirmar o que eles já aprenderam: que devem buscar caminhos "diferenciados" para suas vidas, por ser esta a alternativa viável para sua condição de excluídos.

No segundo capítulo, aborda-se a legislação pertinente ao tema, qual seja a Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) e sua previsão de educação e trabalho como direito e dever dos presidiários. Destaca-se, no capítulo, o relatório da organização Human Rights Watch, sobre o não cumprimento da lei, à vista da realidade observada nas prisões brasileiras.

O terceiro capítulo se dedica à análise da importância da educação e do trabalho, enquanto valores considerados apenas "em si", para o homem social. Em que pesem os diversos aspectos fundamentais desse capítulo, destaque maior deve ser dado à visão de Neidson Rodrigues, para quem a "ação educativa é um processo regular desenvolvido em todas as sociedades humanas, que tem por objetivos preparar os indivíduos em crescimento para assumirem papéis sociais relacionados à vida coletiva, a reprodução das condições de existência (trabalho), ao comportamento justo na vida pública [...]". O enfoque do professor Neidson coloca o próprio trabalho como uma das atividades humanas a serem ensinadas, bem como a amplitude de como pode ser percebido, e demonstra – sendo essa uma das pedras fundamentais para as conclusões deste trabalho – que educação é um processo global, amplo, que envolve todas as informações que chegam ao ser humano, e que deste passam a fazer parte, formando uma escala de valores.

De modo resumido, este capítulo procura demonstrar que educação deve ser entendida, de forma mais completa, como formação. E que a formação, para além de significar a recepção de inúmeras informações, refere-se sempre à criação de uma escala valorativa, formada a partir de todos os dados que chegam ao ser humano desde seu nascimento, de forma implícita ou explícita, consciente ou subliminar. É pela educação-formação que o homem aprende a valorar as coisas, e é por meio dos valores que se faz a vida em sociedade, pelo que se pode perceber a vital necessidade de arquétipos valorativos positivos, oriundos do Estado, independentes de casos ou grupos pontuais, como condição básica para a continuidade do sistema ético-moral estabelecido (e aqui se tem outro ponto fundamental para a resposta à questão colocada nesta monografia).

O último capítulo traz a realidade de uma experiência envolvendo os três temas anteriores (sistema prisional, ferramentais legais de reinserção, educação e trabalho na cadeia). Pela iniciativa da empresária Susana Rodrigues com internas da Penitenciária Feminina do Distrito Federal, criando uma lucrativa fábrica de bijuterias e biojóias dentro da prisão, bem como pelas características e comportamento observados nas "operárias", pode-se contrapor – com resultados marcantes - a proposta estatal de recuperação das presidiárias com seus valores pessoais, fruto da educação a elas proporcionada antes e durante sua estada na cadeia (e não se deve entender educação na cadeia apenas como as aulas de 1º grau eventualmente oferecidas).

Em última análise, esse capítulo remete ao confronto entre os sistemas éticos-morais "oficial" e "dos excluídos", que evidencia o abismo entre a proposta estatal para reinserção dos apenados e a realidade maior que se observa, esta oriunda da formação de uma vida inteira, estando portanto a exigir providências bem mais profundas e abrangentes que a obrigação de ministrar educação de 1º grau e oferecer trabalho manual para os presidiários.

Assim, com base em todos os dados coligidos ao longo deste trabalho, e destacando-se o enfoque abrangente escolhido, com ênfase para o aspecto global da educação e a ausência do Estado, pode-se concluir que para a recuperação dos presidiários no Brasil, educação e trabalho, na forma como previstos na legislação relacionada, são ferramentas adequadas apenas quando vistas em si, por seus valores intrínsecos, porém completamente insuficientes frente à realidade social brasileira, tipificada por uma forte exclusão social e por um processo educacional-formativo que leva a uma realidade ético-moral pluralista.

Dois são os fatores que levam a essa conclusão (embora ambos sejam faces da mesma moeda), referindo-se à própria educação (aqui vista sob o aspecto abrangente de formação da capacidade valorativa) oferecida às pessoas mais desfavorecidas, e ao relacionamento do Estado com essas pessoas

O primeiro se refere ao processo formativo de caráter (educação em sua forma mais abrangente) das pessoas excluídas socialmente, que representam a quase totalidade dos presidiários no Brasil. Desde seu nascimento, expressões como pobreza, ignorância, desemprego, impunidade, esfacelamento familiar, ausência de referenciais positivos, existência abreviada, falta de assistência e de dignidade, corrupção, insalubridade e outras fazem parte de seu cotidiano. Esse é o verdadeiro processo educativo-formativo por que passam essas pessoas, gerador de deformações sociais, e que se verificam pelo menos em três níveis, caso elas venham a ser condenadas por algum crime cometido:

- no nível inicial, a falta de oportunidades leva ao crime, geralmente o tráfico de drogas, como única maneira oferecida pela sociedade para atingir conforto material e poder; já se instala, nessa fase, certo pluralismo moral consubstanciado pelo "direito ao crime", como maneira de exercer o direito de sobreviver em melhores condições;

- caso atingida pelo Estado pela única maneira com que este se apresenta, qual seja a pena de restrição de liberdade, a pessoa excluída vê reafirmada, de forma induvidosa, sua condição de ser humano indesejado, que deve ter suas forças reduzidas ao máximo, para não causar problemas à comunidade oficial; independentemente do discurso oficial, prossegue assim o processo educacional oferecido pelo Estado, que "ensina" ao apenado que ele não é apropriado enquanto membro da sociedade, e talvez fosse melhor que nem existisse, o que corrobora a necessidade de obtenção de meios alternativos de sobrevivência;

- ao deixar a prisão, o egresso tem duas opções: tentar uma colocação profissional de baixa renda, assim mesmo tendo que enfrentar o preconceito contra ex-presidiários, ou voltar para sua atividade anterior, bem mais lucrativa. Não é uma opção difícil no Brasil.

Desse modo, a deformação inicial, típica do processo educacional-formativo dos excluídos, é aperfeiçoada e corroborada pelo Estado, vez que tal deformação ocorre por força da violência social reproduzida no ambiente carcerário, e pelo preconceito verificado após o cumprimento da pena. É a reafirmação do "direito ao crime", novo arcabouço ético-moral que evidencia um pluralismo decorrente das necessidades criadas pela exclusão das pessoas.

De forma irônica em função do tema de que se trata – e isso merece um momento de reflexão – pode-se constatar que a cadeia educa, sim, mas não com os ensinamentos previstos pelo legislador, e sim com a violência oriunda da própria sociedade, que a prisão apenas reproduz de forma mais perceptível.

O sistema prisional ensina, de forma competente, uma única lição ao preso: a de que deve aceitar sua volta ao meio degradado onde se encontrava, após cumprir a pena, e lá permanecer sem incomodar a sociedade, ou retornar à prática criminosa como alternativa de evolução material e "social". Na verdade, trata-se tão-somente de instrumento para aperfeiçoar as deformações já verificadas quando do ingresso do preso, que sempre buscou novos meios de sobreviver numa comunidade que não deseja sua existência.

O segundo fator é a ausência do Estado que, ao não oferecer condições mínimas de existência para uma parcela da população, impede o estabelecimento de um padrão básico de comportamento moral, uma vez que essa parcela populacional é impelida à criação de novos padrões, que possam atender às suas necessidades básicas, sem qualquer viabilidade de atendimento pelos meios oficiais.

Esses dois fatores – educação deformadora em vários graus e ausência do Estado frente a uma parcela significativa da população – representam o substrato de novas regras, criadas por excluídos para atender aos excluídos, gerando um novo regramento ético-moral que se reflete até mesmo na flexibilização de regras oficiais (por exemplo, no Rio de Janeiro é lícito desrespeitar os semáforos a partir das 20 horas, num reconhecimento explícito da incapacidade estatal de evitar os assaltos nesses locais).

Contra essa realidade social, as soluções da Lei de Execução Penal para a recuperação de criminosos muito pouco ou nada representam, por que se torna inútil oferecer educação profissionalizante se não se oferece cidadania aos apenados, cidadania esta que, na imensa maioria dos casos, já é negada desde o nascimento dessas pessoas.

As soluções para esse problema crescente – ineficácia dos meios de reinserção e conseqüente incremento da recidiva criminal – têm que ser tão amplas quanto o problema. Não cabe analisá-las a fundo no âmbito desta monografia de graduação, até mesmo por que não foi esse o objetivo proposto, mas parece evidente que as providências devem ser tomadas principalmente sob o aspecto social, porquanto este é a causa maior do aspecto penal.

Entretanto, e até mesmo por parecer obrigatória – embora não o seja – uma sugestão mais particularizada, inerente à realidade prisional verificada no país, um passo inicial e gigantesco a ser dado consiste na melhoria das condições das prisões no Brasil, que devem passar a representar locais de repressão e correção, em que o preso é visto como um problema a ser corrigido, e não uma anomalia a ser eliminada. Deve-se ter sempre presente que a amplitude do problema, qual seja a correlação entre a exclusão social e a criminalidade no país, não pode servir de justificativa para a não-adoção de providências singulares e menos abrangentes, como por exemplo a revisão física e institucional das cadeias brasileiras. A inércia em relação ao tema, comumente justificada por sua própria complexidade, não impede que ele continue a existir, e tampouco elide seus efeitos, que se apresentam de forma crescente na realidade brasileira.

Nesse diapasão, se a sociedade começar a perceber que a cadeia é local para corrigir cidadãos-criminosos, parte de si mesma, e não para esconder pessoas anormais, e dotar as prisões de meios para tal, talvez o problema passe a ser enfrentado. Enquanto isso, como qualquer problema de segurança cuja existência é negada, a reincidência criminal continuará a propiciar, ao homem comum, o medo mal assumido, as grades na rua, os custos de blindagem e a incômoda sensação da eterna impotência.


NOTAS

  1. BRASIL, MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Departamento Penitenciário Nacional. Sistema Prisional. Disponível em . Acesso em 24.03.2006.
  2. QUADRO, Rodrigo Kurth. SOS Cárcere: uma pequena história da atividade policial militar. Jus Navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/1014 . Acesso em 24.03.2006.
  3. PEDROSO, Regina Célia. Utopias penitenciárias. Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. Jus Navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/5300 . Acesso em 23.03.2006.
  4. BRASIL.Ordenações Filipinas. Livro V, títulos XXXII, XXXV, XLII, XLV, XLIX, LII, LVI. Rio de Janeiro, Typographia do Instituto Philomathico, 14ª edição, 1870, p. 91 e segs, apud PEDROSO, Regina Célia. Utopias penitenciárias. Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. op. cit.
  5. BRASIL.Constituição do Império do Brasil. título VIII, artigo 179, número XX. Rio de Janeiro, Alves & Cia, s.d. 1 volume, apud PEDROSO, Regina Célia. Utopias penitenciárias. Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. op. cit..
  6. Informação de FAZENDA, José Vieira, apud PEDROSO, Regina Célia, Utopias penitenciárias. Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. op. cit.
  7. BRASIL. Decreto nº 8233 de 22 de dezembro de 1910. Coleção de Leis do Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1915, p. 550, apud PEDROSO, Regina Célia, Utopias penitenciárias. Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. op. cit.
  8. .
  9. BRASIL. Ministério da Justiça. Conceituação e Classificação de Estabelecimentos Penais. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em . Acesso em:22.03.2006.
  10. BRASIL. Ministério da Justiça. Estabelecimentos Penitenciários Estaduais. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em . Acesso em:22.03.2006.
  11. SILVA, Roberto da, O Fim do Inferno. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em . Acesso em 22.03.2006.
  12. WUNDERLICH, Alexandre. Os casos de Pierre Rivière e Febrônio Índio do Brasil como exemplos de uma violência institucionalizada. Jus Navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/1013 . Acesso em 23.03.2006.
  13. No filme Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles, um jovem traficante, ao ser perguntado se já tinha assassinado algum policial, nas disputas diárias travadas nos morros cariocas, respondeu, entre ansioso e frustrado: "ainda não tive essa oportunidade".
  14. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11.07.1984. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 jul. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7210.htm>. Acesso em 29.3.2006.
  15. HUMAN RIGHTS WATCH. O Brasil atrás das grades. O trabalho e outras atividades. Human Rights Watch. Disponível em . Acesso em 29.03.2006.
  16. HUMAN RIGHTS WATCH. Abusos ocultos contra jovens internos no Rio. Human Rights Watch. Disponível em . Acesso em 29.03.2006.
  17. GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. Portal Oficial do Governo do Distrito Federal. Link FUNAP/DF. Disponível em . Acesso em 29.03.2006.
  18. KANT, apud RODRIGUES, Neidson. Educação: da formação humana à construção do sujeito ético. Scielo Brasil. Disponível em . Acesso em 03.04.2006.
  19. RODRIGUES, Neidson. Educação: da formação humana à construção do sujeito ético. p.3. Scielo Brasil. Disponível em . Acesso em 03.04.2006.
  20. KANT, apud RODRIGUES, Neidson. op.cit.
  21. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia - Saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Brasil: Paz e Terra (Colecção Leitura), 1997. Edição de bolso, 165 páginas, apud SERPA, Caetano Valadão, Ph.D. e SERPA, Maria de Lourdes B. Lesley.edu. Disponível em . Acesso em 04.04.2006.
  22. Segundo Thomas Hobbes, filósofo político do século XVII, os homens viviam inicialmente no "estado de natureza", no qual todos os indivíduos tinham plena liberdade para praticar todos os atos que quisessem, de acordo com seus instintos, sem qualquer controle ou sanção institucional, enfrentando em contrapartida a ameaça de todos os outros homens, que detinham o mesmo direito.
  23. CORROCHANO, Maria Carla, apud SOUZA, Raquel. Coluna Só Nosso. Folha de São Paulo. Disponível em . Acesso em 07.04.2006

REFERÊNCIAS

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WEFFORT, Francisco C. (Coord.). Os Clássicos da Política. 3. ed. São Paulo: Ática, 1991.

WUNDERLICH, Alexandre. Os casos de Pierre Rivière e Febrônio Índio do Brasil como exemplos de uma violência institucionalizada. Jus Navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/1013


Autor


Informações sobre o texto

Monografia de conclusão do curso de Direito no Centro Universitário do Distrito Federal (UniDF), aprovada com nota máxima.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Osmar Aarão Gonçalves de. Soluções legais para a recuperação do presidiário no Brasil: a proposta e a realidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1216, 30 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9101. Acesso em: 7 maio 2024.