Quando falamos de processo civil, certamente temos em mente que uma ação somente finalizará com o seu trânsito em julgado - quando, em tese, não há mais o que se discutir, pois o mérito está resolvido.
Contudo, no Código de Processo Civil, temos algumas situações bem específicas que quebram esse pensamento, passando a autorizar a rediscussão do mérito.
É o caso das Ações Rescisórias que poderão ser protocoladas em ocasiões bem delimitadas dentro do prazo decadencial de 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo (art. 975 do CPC/15):
Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I - se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II - for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente;
III - resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV - ofender a coisa julgada;
V - violar manifestamente norma jurídica;
VI - for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória;
VII - obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII - for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.
Em um primeiro momento, pode até soar desarmônico e inseguro para o sistema processual defender a existência de Ações Rescisórias. Contudo, de nada seria positivo para o Ordenamento Jurídico a manutenção de uma decisão que se contrapõe aos princípios de ordem pública. Nesse sentido, a doutrina:
Assim, ao prever a ação rescisória, meio pelo qual se alcança a reabertura de um debate judicial já decidido, a primeira vista pode parecer contraditório em certa medida, pois ao mesmo tempo em que busca solucionar os conflitos de forma definitiva, abre espaço para que este seja reaberto eventualmente, preenchidas determinadas hipóteses.
Ocorre que contradição não há, pois, é igualmente objetivo do processo, além da pacificação do conflito e do encerramento dos debates judiciais, a busca pela solução mais justa possível, dentro dos limites legais e daquilo que permite e prevê o ordenamento. (PORTO, Guilherme Athayde et. al. Novo Código de Processo Civil Anotado, Porto Alegre: OAB/RS, 2015, p. 723 - Grifei).
Em razão do exposto, não restam dúvidas de que a Ação Rescisória pode sim ser ajuizada quando preenchidos pressupostos expressos na Lei Processual Civil, visando rescindir uma decisão já transitada em julgado.
Contudo, o foco deste artigo é debater: Caberia uma ação tão específica como a Rescisória em face de uma decisão transitada em julgado pelo rito do Juizado Especial?
Inicialmente, devemos ter em mente que o rito do Juizado Especial, Lei n. 9.099/1995, se pauta pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação (art. 2º da Lei n. 9.099/1995).
Além dos critérios citados, a própria Lei n. 9.099/1995 em seu art. 59 foi taxativa quanto à impossibilidade do manejo da Ação Rescisória nos Juizados Especiais, cita-se: Não se admitirá ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por esta Lei.
Em atenção ao art. 59, temos o seguinte comentário:
Ainda que a doutrina questione o real motivo para que o legislador tivesse afastado o manejo da ação rescisória, fato é que se trata de situação que possibilita imprimir maior celeridade ao resultado final já que é menor o risco de incursão numa das hipóteses do art. 966, CPC, quando o julgador dá maior efetividade ao processo autenticamente oral. (CUNHA, Maurício Ferreira, CORDEIRO, Luis Phillipe de Campos, BARROS, Jhonatta Braga. Manual Prático dos Juizados Especiais Cíveis e da Fazenda Pública Leis 9.099/1995 e 12.153/2009, Salvador: Editora JusPODIVM, 2018, pg. 248 - Grifei).
Não podemos deixar de lado a posição da Suprema Corte, que afirma que no sistema dos Juizados não há norma jurídica que autorize o protocolo de Ações Rescisórias:
Agravo regimental em mandado de injunção. Decisão em que se negou seguimento à impetração. Pretensão ao ajuizamento de ação rescisória no âmbito do sistema dos juizados especiais, ao arrepio da legislação de regência. Inexistência de direito constitucionalmente assegurado ao impetrante, cujo exercício estivesse obstado em razão de eventual vácuo normativo. Ausência, ademais, de matéria constitucional nessa controvérsia. Agravo regimental a que se nega provimento. 1.No sistema dos juizados especiais, inexiste norma legal a prever o ajuizamento de ações rescisórias. 2. Esse fato não equivale à falta de norma regulamentadora que inviabilize o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania a que se refere o dispositivo constitucional que instituiu o mandado de injunção entre nós. 3. Inexiste, ademais, violação do princípio da igualdade, sendo certo, ainda, que o STF já decidiu e sob a sistemática da repercussão geral que inexiste matéria constitucional nessa discussão" (AI nº 808.968-RG/RS-RG, Rel. Min. Gilmar Mendes). 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, MI 7337 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 21/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-027 DIVULG 11-02-2021 PUBLIC 12-02-2021 - Grifei).
Igualmente, temos a posição segura e majoritária consagrada nas decisões paulistas quanto à não possibilidade de ajuizamento da Ação Rescisória no Juizado, visto que há norma legal proibindo-a, não se conectando igualmente com os princípios inerentes ao Juizado Especial:
AÇÃO RESCISÓRIA Ação rescisória que encontra expressa vedação legal no art. 59, da lei nº 9.099/95 - Princípios informadores do rito sumaríssimo que não se coadunam com o instituto Processamento negado. (TJSP; Agravo de Instrumento 0000140-34.2022.8.26.9000; Relator (a): Maricy Maraldi; Órgão Julgador: 1ª Turma - Fazenda Pública; Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 2ª Vara do Juizado Especial da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 30/05/2022; Data de Registro: 30/05/2022 - Grifei).
Ação Rescisória Multa de trânsito - Vedação de conhecimento e de trâmite nas Turmas do Colégio Recursal, nos termos do artigo 59 da Lei de nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, combinado com os artigos 17, 20, 23, 25 e 27 da Lei de nº 12.153, de 22 de dezembro de 2009 - Indeferimento da petição inicial e extinção do processo sem resolução do mérito. (TJSP; Petição Cível 0100366-47.2022.8.26.9000; Relator (a): Domingos de Siqueira Frascino; Órgão Julgador: 5ª Turma - Fazenda Pública; Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 2ª Vara do Juizado Especial da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 09/04/2022; Data de Registro: 09/04/2022 -Grifei).
O mesmo entendimento pode ser localizado nas decisões do Estado do Paraná:
AÇÃO RESCISÓRIA. SERVIDORA DO MUNICÍPIO DE SÃO JOÃO DO IVAÍ. SENTENÇA PROFERIDA PELO JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA. VEDAÇÃO DE ADMISSÃO DA AÇÃO RESCISÓRIA NO SISTEMA DOS JUIZADOS ESPECIAIS. ARTIGO 59 DA LEI Nº 9.099/1995. EXTINÇÃO DO FEITO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. (TJPR - 5ª C.Cível - 0018518-85.2021.8.16.0000 - * Não definida - Rel.: DESEMBARGADOR CARLOS MANSUR ARIDA - J. 11.04.2022 - Grifei).
AGRAVO INTERNO AÇÃO RESCISÓRIA DECISÃO QUESTIONADA PROLATADA NO ÂMBITO DO JUIZADO ESPECIAL - PETIÇÃO INICIAL INDEFERIDA CABIMENTO EXPRESSAMENTE VEDADO NO ARTIGO 59 DA LEI 9.099/95 PRECEDENTES E ENUNCIADO FONAJEF DECISÃO MANTIDA RECURSO NÃO PROVIDO. (TJPR - 4ª Seção Cível - 0045857-87.2019.8.16.0000 - Curitiba - Rel.: DESEMBARGADOR DOMINGOS JOSÉ PERFETTO - J. 16.11.2020).
A mesma posição se lê no Manual Prático dos Juizados Especiais Cíveis e da Fazenda Pública - Leis 9.099/1995 e 12.153/2009, Salvador: Editora JusPODIVM, 2018.
Não restam dúvidas de que existe forte jurisprudência no sentido da impossibilidade do manejo da ação aqui estudada no rito dos Juizados Especiais Cíveis e também no da Fazenda Pública (aplicável o art. 59 da Lei n. 9.099/1995 por força do art. 27 da Lei n. 12.153/2009).
Antes de encerrar este artigo, devemos estudar igualmente a possibilidade ou não de se ajuizar uma Ação Rescisória no âmbito dos Juizados Especiais Federais. Inicialmente, devemos ter em mente que a própria Lei nº 10.259/2001 (Lei do Juizado Especial Federal), no seu art. 1º, diz que se aplica, no que não conflitar com essa lei, o disposto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. No mesmo sentido ensina a doutrina:
Os Juizados Especiais Federais estão regulados pela Lei nº 10.259/2001, aplicando-se de maneira complementar às regras encontradas na Lei nº 9.099/1995 (Juizados Especiais Estaduais) e o novo CPC. (PEIXOTO, Ulisses Vieira Moreira. Nova Previdência na Prática, 2ª Ed., Leme: Editora Mizuno, 2022, p. 503)
A grande questão repousa em decifrar se a impossibilidade da Ação Rescisória exposta no art. 59 da Lei n. 9.099/1995 está em consonância com as regras do Juizado Especial Federal.
Para melhor analisar a questão é prudente olharmos o teor do Enunciado n. 44 do FONAJEF:
Não cabe ação rescisória no JEF. O artigo 59 da Lei nº 9.099/95 está em consonância com os princípios do sistema processual dos Juizados Especiais, aplicando-se também aos Juizados Especiais Federais (Aprovado no II FONAJEF). (Enunciado n. 44 do FONAJEF - Grifei).
Logo, não há impropriedades quanto à aplicação do art. 59 da Lei nº 9.099/1995 nos processos que lá tramitam. O mesmo entendimento é possível ser encontrado na farta jurisprudência das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais em momentos recentes:
AÇÃO RESCISÓRIA. AGRAVO INTERNO. NÃO CABIMENTO DA AÇÃO RESCISÓRIA NOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS. INDEFERIDA MONOCRATICAMENTE A PETIÇÃO INICIAL PELO RELATOR. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. (TRF 3ª Região, 7ª Turma Recursal da Seção Judiciária de São Paulo, PetCiv - PETIÇÃO CÍVEL - 5000277-70.2022.4.03.9301, Rel. Juiz Federal JAIRO DA SILVA PINTO, julgado em 18/07/2022, DJEN DATA: 21/07/2022 - Grifei).
AÇÃO RESCISÓRIA. JULGADO DA TURMA RECURSAL DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO. IMPOSSIBILIDADE NO ÂMBITO DOS JUIZADOS ESPECIAIS. ARTIGO 59 DA LEI 9099/95. INDEFERIDA A PETIÇÃO INICIAL. (TRF 3ª Região, 8ª Turma Recursal da Seção Judiciária de São Paulo, PetCiv - PETIÇÃO CÍVEL - 5000787-83.2022.4.03.9301, Rel. Juiz Federal LUIZ RENATO PACHECO CHAVES DE OLIVEIRA, julgado em 15/07/2022, DJEN DATA: 20/07/2022 - Grifei).
AÇÃO RESCISÓRIA. DESCABIMENTO. A ação rescisória não é ação cabível em sede de Juizado Especial Federal. Ausência de adequação do instrumento processual utilizado. Indeferimento da petição inicial" (TRF 3ª Região, 13ª Turma Recursal da Seção Judiciária de São Paulo, PetCiv - PETIÇÃO CÍVEL - 5000160-79.2022.4.03.9301, Rel. Juiz Federal JOAO CARLOS CABRELON DE OLIVEIRA, julgado em 24/05/2022, DJEN DATA: 27/05/2022 - Grifei).
Diante do exposto, não restam dúvidas de ser incabível a Ação Rescisória no Juizado Especial Federal, haja vista o Enunciado nº 44 do FONAJEF.
O mesmo se aplica aos Juizados Especiais Cíveis e da Fazenda Pública, havendo consistentes argumentos para se evitar o seu ajuizamento.
Referências Doutrinárias.
CUNHA, Maurício Ferreira, CORDEIRO, Luis Phillipe de Campos, BARROS, Jhonatta Braga. Manual Prático dos Juizados Especiais Cíveis e da Fazenda Pública Leis 9.099/1995 e 12.153/2009, Salvador: Editora JusPODIVM, 2018.
PEIXOTO, Ulisses Vieira Moreira. Nova Previdência na Prática, 2ª Edição, Leme-SP: Editora Mizuno, 2022.
PORTO, Guilherme Athayde et. al. Novo Código de Processo Civil Anotado, Porto Alegre: OAB/RS, 2015.