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Por um direito humanístico e conciliador (e sua correspondente hermenêutica)

05/12/2022 às 10:40
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Acolher uma solução consensual e harmoniosa do Estado-Juiz é muito melhor do que a simplória imposição da decisão, particularmente sob o ponto de vista da sua respeitabilidade.

As principais virtudes da Ciência Jurídica são, muito provavelmente, o sublime e intrínseco respeito aos inúmeros (e, muitas vezes, diferentes, inclusive em sua origem e titularidade) direitos e, sobretudo, a sua especial capacidade de transformar, através dos processos hermenêuticos que lhe são inerentes, os eventuais antagonismos em (desejáveis) convergências conciliatórias.

Ainda, se é verdade que o direito é caracterizado pela produção de laços estáveis e estabilizadores e, por conseguinte, de segurança jurídica, identifica-se aí a existência de uma unanimidade doutrinária quanto ao reconhecimento de que os principais objetivos da justiça (como elemento axiológico do direito) e do Poder Judiciário (na qualidade de instrumento institucional da realização da justiça) são a paz e a harmonia sociais incluindo a necessária busca coletiva de uma existência humana plena e feliz, através de um processo que objetiva conciliar direitos, ainda que considerados em aparente oposição.

Dito isso, se o que se busca é a organização da vida em sociedade, harmonizando-se as relações entre os indivíduos, é cediço reconhecer, portanto, que resta simplesmente inadmissível que a presença do Estado-Juiz nas relações humanas possa, ao reverso de seu objetivo finalístico, produzir ou exacerbar conflitos, contaminando-os, inclusive, com conteúdo ideológico, religioso ou de qualquer outra natureza.

O Poder Judiciário se constitui, acima de tudo, em árbitro em processos de conflito e jamais em ator responsável por dar causa ao próprio conflito (...) (Min. GILMAR MENDES; O Estado de São Paulo, 16/12/2016)

Desta forma, se a grandeza do Poder Judiciário está em decidir onde não se conseguiria sem a sua intervenção, e se é permitido aos cidadãos invocar certas disposições nas suas relações com os outros, as mais complexas questões jurídicas necessitam ser analisadas sobre todos os seus ângulos, sempre com o intuito maior de buscar a conciliação (e jamais o confronto) entre os principais direitos associados. Deve-se respeitar todos os direitos envolvidos, sem estabelecer precondições ou mesmo prévias (e pouco refletidas) hierarquias entre eles; e se a noção de respeito parece, à primeira vista, revelar o campo dos valores e/ou da ética, é certo que também comporta uma dimensão jurídica, onde a referida análise de questões deve vir desprovida de todo e/ou qualquer tipo de preconceito, consoante preconiza a exposição de motivos da Constituição Federal de 1988:

«Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.» (Preâmbulo, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)

Afinal, não se poder conceber - exceto abstratamente - direitos individuais, sem considerarmos, necessariamente, o contexto coletivo em que os mais diversos (e diferentes) direitos em permanente interação dialética estão inseridos. E é exatamente por esta razão que imaginar, isoladamente, os direitos de alguém (os quais, evidentemente, têm que ser preservados), sem igualmente sopesar os direitos de outrem aos quais estão intrinsecamente ligados, representa, muito distante do objetivo de resolver conflitos, eternizar os mesmos, provocando, ao reverso da finalidade precípua da Ciência Jurídica, a desarmonização social, mormente porque a verdadeira paz (com justiça) jamais pode ser obtida quando apenas um dos direitos em análise é considerado e respeitado.

A lei, contudo, não precisa entrever tudo. E, sobretudo, a lei não deve se sobrepor à concepção moral dos indivíduos, mas servir como um indispensável (e insuperável) sinal de referência.

As leis não são perfeitas (...) Tampouco os seres que as criaram (...) E infelizmente é impossível que sejam (ou venham a ser) infalíveis (...) Porém, são incontestavelmente feitas a partir da vontade infindável de se fazer o bem (...) Esta é, portanto, a maior virtude de uma Justiça, que embora limitada, é (e necessita ser), sobretudo, humana. (REIS FRIEDE; Fragmentos da Palestra O Poder Judiciário do Século XXI e o Preceito Ético da Magistratura, proferida na Escola Superior da Magistratura do Amazonas ESMAM, 2017)

E é exatamente nesta direção que a Ciência Jurídica precisa trilhar, desenvolvendo uma análise profunda sobre as múltiplas temáticas humanas, abordando minuciosas discussões sobre os assuntos envolvidos sob a perspectiva histórica, sob a perspectiva do direito positivo brasileiro, sob a perspectiva do direito comparado, sob a perspectiva do direito natural; além de expor as mais diferentes questões em permanente discussão, para conceber alternativas conciliatórias que permitam, ao máximo e dentro do possível, a preservação dos mais variados direitos.

Vale lembrar que quando a jurisprudência, depois de anos de evolução, finalmente consagrou o instituto da guarda compartilhada - ainda que não se tenha encontrado uma utópica solução perfeita e ideal -, houve uma conciliação e uma harmonização, de forma muito mais legítima e singular, de três direitos diferentes titularizados por três pessoas distintas - os direitos inerentes à maternidade, à paternidade e à criança -, o que permitiu, em certa medida, uma solução muito mais justa e, portanto, muito mais aceitável para todas as partes envolvidas. Neste norte, cumpre asseverar que acolher uma solução consensual e harmoniosa do Estado-Juiz é muito melhor do que a simplória imposição da mesma, particularmente sob o ponto de vista da sua respeitabilidade. Neste particular aspecto, convém ressaltar que nenhuma lei, mesmo aquelas criminalizadoras de condutas, é capaz de alterar, de per si, o desejo humano; obtém-se, no máximo, a temporária e eventual exteriorização do mesmo, traduzido em comportamento.

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E o reconhecimento de tudo isso presume uma certa adequação relativa, mas nem por isso destituída de sentido - entre as pretensões de ordem normativa e as aspirações dos indivíduos que integram o grupo social alcançado por essa ordem. O dever ser não se impõe unilateralmente ao ser humano; a normatividade jurídica não subsistiria se não tivesse como alicerce um terreno axiológico favorável. Também não funcionaria, como sistema normativo, se não guardasse uma relação com a realidade social que pretende preservar ou modificar.

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Por um direito humanístico e conciliador (e sua correspondente hermenêutica). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7096, 5 dez. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101332. Acesso em: 31 out. 2024.

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