A Lei n. 14.478/2022 e o Marco Legal das Criptomoedas: primeiras impressões.

23/12/2022 às 13:37
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Introdução.

Foi promulgada no último dia 22 de dezembro de 2022 a Lei n. 14.478/2022, já chamada de Marco Legal das Criptomoedas.

As moedas digitais os criptoativos especialmente a mais conhecida delas, o Bitcoin, já se tornaram uma realidade no mercado financeiro mundial em geral e no mercado financeiro brasileiro, em particular merecendo, por isso mesmo, uma regulação legal, que veio em boa hora.

A importância dessas criptomoedas e os altos valores que possuem justificam a preocupação do legislador em dispor de uma lei própria para tratar do assunto.

Analisar os ativos virtuais e o Marco Legal das Criptomoedas é a pretensão deste pequeno ensaio.

I. Criptoativos ou criptomoedas.

O termo criptoativos ou criptomoedas foi criado para se referir às moedas digitais, protegidas por criptografia[1].

Criptoativos são, basicamente, moedas digitais que se utilizam de tecnologia segura, possibilitando a negociação direta entre os investidores, sem que faça necessário um intermediário, como, por exemplo, uma instituição financeira, baseando-se em um sistema descentralizado de registrar de operações e de emissão de novas unidades, não havendo, pois, uma autoridade central de emissão ou regulação das criptomoedas.

Gerou-se, destarte, um sistema de pagamento digital peer to peer [ponto a ponto][2], possibilitando que qualquer pessoa possa enviar e receber pagamentos de qualquer lugar do planeta, e que não depende de instituições financeiras para verificar e confirmar tais operações financeiras.

A lógica da moeda digital é a mesma do dinheiro em espécie: possibilitar a troca de valores entre pessoas. Por isso, sua função é, basicamente, permitir transações de compra e venda de bens e serviços. Dessa forma, ao invés de usar a moeda de curso forçado, ou seja, o dinheiro físico que as pessoas levam consigo para troca no mundo real, as operações com criptomoedas existem apenas como registro de valores digitais em um banco de dados online que as documentam.

O termo criptoativo surgiu em razão do uso da criptografia, como mencionamos acima, para checar, verificar e proteger as operações, por meio de uma codificação avançada que envolve o armazenamento e a transmissão dos dados das criptomoedas entre as carteiras e os livros contábeis públicos. A criptografia visa, exatamente, garantir e ofertar segurança e proteção aos usuários do sistema.

A Instrução Normativa n. 1.888/2019 da Receita Federal, art. 5º, define o criptoativo como sendo

a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal.

A Lei n. 14.478/2022 refere-se à criptomoeda como ativo virtual. Pela definição do art. 3º, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, não incluídos

i. moeda nacional e moedas estrangeiras

ii. moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013; 

iii. instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade; e, 

iv. representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros.

Criado em 2009, o Bitcoin (BTC) foi a primeira criptomoeda a surgir, e até hoje é a mais conhecida do público. Mas há outras, tais como Bitcoin Cash (BCH), Ethereum (ETH), Litecoin (LC), Dogecoin (DOGE), Ripple (XRP), Tether (USDT), Cardano (ADA), Polkadot (DOT), Binance Coin (BNB) e Axie Infinity (AXS). 

Na transferência de fundos de criptomoeda, as operações são registradas em um livro contábil público distribuído chamado blockchain, que constitui uma espécie de protocolo de confiança, e que é a inovação tecnológica que dá suporte aos criptoativos. Tais operações são validadas por todos os usuários e registradas no blockchain. E, para garantir ainda mais a sua segurança, elas também são criptografadas. Desta forma, é como se cada usuário tivesse um recibo dessa operação armazenado no sistema eletrônico, vale dizer, quando se transfere fundos de criptoativos, a operação é registrada em um livro contábil público, como se fosse uma carteira digital, administrada a partir de um computador pessoal ou dispositivo móvel.

O blockchain, que faz o registro de todas as transações atualizadas e mantidas pelos detentores das criptomoedas, consiste em bases de registros e dados compartilhados, em cuja descentralização reside a principal medida de segurança. Ele cria um índice global para todas as transações dentro do mesmo mercado, constituindo uma espécie de livro-razão, totalmente público e compartilhado.

A criptomoeda não existe no mundo físico, ou seja, ela não existe como algo material, palpável, mas apenas como uma chave que lhe permite mover um registro ou uma unidade de medida de uma pessoa para outra, sem que haja a necessidade de uma terceira pessoa confiável para essa intermediação. Aliás, é da ausência dessa intermediação de terceiros que se projeta a confiança na comunicação direta entre as partes da transação, tornando o sistema crível e, pois, eficaz.

Um problema recorrente nos dias de hoje é a segurança, pois são comuns os ataques de hackers que invadem computadores pessoais para furtar criptomoedas. Por isso que, ao adquiri-las, o usuário deve se precaver, armazenando-as com segurança. Para isso, a criptomoeda pode ser armazenada em criptocarteiras, dispositivos físicos ou software online usados para armazenar as chaves privadas de criptoativos com segurança. Há, também, algumas empresas que fornecem serviços de carteira, facilitando o armazenamento diretamente na plataforma.

I.1. Como adquirir criptoativos.

A operação para aquisição das criptomoedas, incluindo a emissão e repasse, é inteiramente digital. Não há um banco físico para guarda-las e retirá-las, e nenhum país as emite.

A aquisição de criptomoedas pode se dar por duas principais formas: por mineração e por compra.

I.1.1. Aquisição por mineração.

Mineração é o nome dado ao processo de validação e inclusão de novas transações de criptoativos no blockchain, a partir do qual novas criptomoedas são obtidas e colocadas no mercado.

Esse processo, a princípio, é simples: para receber criptomoedas, o minerador deve resolver um problema com cálculos matemáticos complexos em seu computador. A cada dez minutos um novo problema é adicionado ao blockchain, para que seja solucionado pelos mineradores. Quem conseguir obter a solução do problema, deve enviá-la ao blockchain e, se estiver correta, ele ganhará unidades de criptomoedas pelo trabalho. A solução do problema é a chave que criptografa os blocos, chamada de hash.

Na prática, o que ocorre é que, quando o usuário envia uma criptomoeda ou partes dela para outra pessoa, essa transferência fica registrada no blockchain, dentro de um bloco semelhante a um cofre. Tão logo esse bloco fique completo de operações de vários usuários, ele ser lacrado com um identificador, que funciona como uma chave [hash], e quem coloca essa chave no bloco são os mineradores, que usam seus computadores para ajudar a manter todo o sistema. Para encontrar a hash correta de um bloco, os mineradores devem resolver complexos problemas matemáticos, que demandam um grande investimento de capital em servidores e computadores que sejam potentes para desempenhar esse tipo de trabalho.

I.1.2. Aquisição por compra.

A maneira mais fácil de adquirir criptomoedas é por compra, trocando-as por moedas de curso forçado. A cotação, compra e venda acontece anonimamente pela internet. A criptomoeda é armazenada em uma carteira digital e administrada em um computador pessoal ou dispositivo móvel, sem a necessidade de um intermediário. Por meio da carteira digital é possível realizar várias operações com as moedas digitais. No Brasil, as principais formas de adquirir criptoativos são:

I.1.2.1. Compra direta.

É a aquisição de criptoativos diretamente de outra pessoa, ou seja, a operação se dá entre pessoas comuns, como se faz com qualquer outro ativo, sem a intermediação de uma corretora. Já há, no mercado, plataformas próprias para a compra direta das criptomoedas, o que facilita o negócio.

I.1.2.2. Compra por meio de corretoras [exchange].

As corretoras, também chamadas de <exchenge>, são pessoas jurídicas cuja atividade preponderante consiste na prestação de serviços de ativos virtuais. Elas atuam na intermediação, negociação ou custódia de operações realizadas com criptoativos, tal como uma corretora de valores mobiliários (ver item II, abaixo).

II. Prestação de serviços de ativos virtuais.

O objetivo principal da Lei n. 14.478/2022, estabelecido no art. 1º, é dispor sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais.

A prestação de serviços de ativos virtuais consiste, basicamente, em operações realizadas com criptoativos, incluindo-se, aí, a intermediação, a negociação ou a custódia, podendo aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos.

A empresa que oferece esse tipo de serviço é chamada de <Exchange>, e tinha sua definição estampada na Instrução Normativa n. 1.888/2019 da Receita Federal, art. 5º, II:

Exchange de criptoativo: a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos.

Em pelo parágrafo único do mesmo artigo, incluem-se no conceito de intermediação de operações realizadas com criptoativos, a disponibilização de ambientes para a realização das operações de compra e venda de criptoativo realizadas entre os próprios usuários de seus serviços. São as chamadas plataformas de negociação de criptoativos.

Já a novel Lei n. 14.478/2022, traz a definição no art. 5º:

Art. 5º Considera-se prestadora de serviços de ativos virtuais a pessoa jurídica que executa, em nome de terceiros, pelo menos um dos serviços de ativos virtuais, entendidos como: 

- troca entre ativos virtuais e moeda nacional ou moeda estrangeira; 

II - troca entre um ou mais ativos virtuais; 

III - transferência de ativos virtuais; 

IV - custódia ou administração de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem controle sobre ativos virtuais; ou 

- participação em serviços financeiros e prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais. 

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II.1. Requisitos para funcionamento da exchenge.

Para uma exchenge poder funcionar no Brasil, ela deverá observar alguns requisitos:

i. Deverá ser uma pessoa jurídica (CC, art. 44), legalmente constituída sob a forma de sociedade empresária (CC, art. 985), por ter intenção econômica e lucrativa (art. 5º).

ii. Deverá ter prévia autorização de órgão ou entidade da Administração Pública federal (art. 2º).

O órgão ou entidade acima referido será indicado por ato do Poder Executivo (art. 6º[3]) e estabelecerá as hipóteses e os parâmetros em que a autorização de que trata o caput do art. 2º poderá ser concedida mediante procedimento simplificado (art. 2º, parágrafo único). Além disso, terá competência para:

i. autorizar funcionamento, transferência de controle, fusão, cisão e incorporação da prestadora de serviços de ativos virtuais (art. 7º, I);

ii. estabelecer condições para o exercício de cargos em órgãos estatutários e contratuais em prestadora de serviços de ativos virtuais e autorizar a posse e o exercício de pessoas para cargos de administração (art. 7º, II);

iii. supervisionar a prestadora de serviços de ativos virtuais e aplicar as disposições da Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017, em caso de descumprimento desta Lei ou de sua regulamentação (art. 7º, III); 

iv. cancelar, de ofício ou a pedido, as autorizações de que tratam os incisos I e II deste caput (art. 7º, IV), definindo, ainda, as hipóteses que poderão provocar o cancelamento ora previsto e o respectivo procedimento (art. 7º, parágrafo único); e 

v. dispor sobre as hipóteses em que as atividades ou operações de que trata o art. 5º desta Lei serão incluídas no mercado de câmbio ou em que deverão submeter-se à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no País (art. 7º, V). 

vi. autorizar a realização de outros serviços que estejam, direta ou indiretamente, relacionados à atividade da prestadora de serviços de ativos virtuais de que trata o caput do art. 5º (art. 5º, parágrafo único).

Como regra de transição, o art. 9º dispõe que o órgão regulador estabelecerá condições e prazos, não inferiores a 6 (seis) meses, para adequação das prestadoras de serviços de ativos virtuais que estiverem em atividade às disposições desta Lei e às normas por ele estabelecidas.

Por força do que dispõe o art. 8º, as instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil poderão prestar exclusivamente o serviço de ativos virtuais ou cumulá-lo com outras atividades, na forma da regulamentação a ser editada por órgão ou entidade da Administração Pública federal indicada em ato do Poder Executivo federal. 

II.2. Princípios e diretrizes que regem a exchenge.

A maior importância do Marco Legal das Criptomoedas decorre do fato de que a popularização dos ativos virtuais afetará diretamente a economia popular, fazendo-se necessário, pois, reforçar a sua proteção legal. Por essa razão, a Lei n. 14.478/2022 vai estabelecer os princípios e as diretrizes que regem a prestação de serviços oferecido pela exchenge

Assim, conforme definido no art. 4º, a prestação de serviço de ativos virtuais deve observar as seguintes diretrizes, segundo parâmetros a serem estabelecidos pelo órgão ou pela entidade da Administração Pública federal reguladora: 

i. livre iniciativa e livre concorrência

       São dois princípios da ordem econômica, estabelecidos na CF/1988, art. 170.

       A livre iniciativa é o princípio que viabiliza e estimula a atividade econômica (produção e circulação de bens e serviços), por meio da atividade empresarial, próprio do liberalismo econômico. A ordem econômica tem uma finalidade precípua que é a de assegurar aos cidadãos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, ou seja, buscando garantir o bem comum e o bem-estar social, com a valorização do trabalho e da livre iniciativa. A liberdade de ação é essencial num regime capitalista, como propugnado pela Carta Constitucional.

No plano infraconstitucional, a Lei nª 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), estabelece, como princípio, a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas (art. 2º, I), e como direito de qualquer pessoa, natural ou jurídica, o de desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica (art. 3º, I).

       Já a concorrência, na economia de mercado, corresponde à disputa, pelos fornecedores de produtos ou serviços, daqueles consumidores que se disponham a adquiri-los, objetivando maior lucratividade, maior volume de vendas ou apenas maior parcela do mercado.

A livre concorrência, como princípio da ordem econômica, é uma manifestação direta da liberdade de iniciativa, garantindo aos atores econômicos a liberdade explorar e mercado, e nele permanecer, tal como os demais concorrentes, tendo por função precípua coibir o abuso do poder econômico que destrói o mercado, eliminando os concorrentes, o que é prejudicial para toda a economia.

       A concorrência assume especial importância no mercado de consumo, pois possibilita aos consumidores obter o melhor produto pelo menor preço. Quando há disputa pelo mercado, os fornecedores se esmeram para oferecer produtos ou serviços de qualidade ao menor preço possível na tentativa de conquistar o consumidor. Ao contrário, quando não há concorrência, o fornecedor não tem tal preocupação e o consumidor fica seu refém.

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       O Estado assume o protagonismo de controle e regulação do mercado, exatamente para combater os abusos que possam ocorrer, como se vê da CF/1988, art. 173, § 4º, que dispõe que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise a dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. No plano infraconstitucional, a Lei nº 12.529/2011 foi promulgada com o objetivo de dar efetividade e de regulamentar o comando constitucional acima citado, criando o chamado direito antitruste, estruturando o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência SBDC, dispondo sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.

ii. boas práticas de governança, transparência nas operações e abordagem baseada em riscos

Um grande problema que envolve as criptomoedas, como de resto ocorre com qualquer operação virtual, são as fraudes, facilitadas que são pelo uso da tecnologia. Por essa razão, as empresas prestadoras de serviços de ativos virtuais deverão adotar medidas com vistas a evitar a ocorrência de fraudes, através da adoção de práticas de governança.

Como explicamos em obra anterior[4], governança corporativa pode ser conceituada como o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. Essa definição é do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa IBGC, que explica, ainda, que as boas práticas de Governança Corporativa convertem princípios básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum. A governança, destarte, consiste num conjunto de boas práticas administrativas que tende a elevar a confiança dos stakeholders, tais como sócios, acionistas, investidores, empregados, colaboradores, fornecedores, concorrentes, etc., perante a empresa, ou ainda, como um conjunto de princípios, propósitos, processos e práticas que rege o sistema de poder e os mecanismos de gestão das corporações, buscando a maximização da riqueza dos proprietários e o atendimento dos interesses das outras partes interessadas, minimizando oportunismos conflitantes com esse fim. Ela tem como principais valores:

a) fairness senso de justiça, equidade no tratamento dos acionistas, respeitando os direitos dos minoritários;

b) disclosure transparência nas informações relevantes

c) accountability prestação de contas responsável e fundamentada.

d) compliance conformidade no cumprimento de normas reguladoras, expressas nos estatutos sociais e no regramento legal aplicável.

Ao lado disso, as operações promovidas pelas exchenges devem se pautar pela transparência, de sorte que o usuário dos serviços saiba exatamente o que está sendo feito com seus investimentos, bem como pelas corretas informações acerca dos riscos envolvidos nas operações.

iii. segurança da informação e proteção de dados pessoais:

       Dados pessoais, em sentido amplo, são todos os dados que identificam uma pessoa. Esses dados possuem, atualmente, um valor inestimável e quem tem acesso aos dados das pessoas, possui um capital astronômico, eis que, economicamente falando, importa saber quem são essas pessoas, como elas vivem, do que elas gostam ou não gostam, quais são suas preferências em vários seguimentos da vida, qual a sua renda, quanto gasta por mês, o que compra, sua escolaridade, onde mora, etc. O acesso a esses dados vai interessar tanto a pessoas com legítimos interesses, como as empresas que querem divulgar seus produtos e serviços, até criminosos inescrupulosos com interesses escusos.

Por conta dessa importância, a Emenda Constitucional 115 acrescentou o inciso LXXIX, ao art. 5º, da Constituição Federal, para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos fundamentais do cidadão. Em obra anterior, antes dessa Emenda, já defendíamos a tese de que os dados pessoais haviam sido elevados ao status de direito da personalidade: os dados pessoais de uma pessoa natural a ela pertencem, e nada poderá alterar essa situação. Pode-se afirmar que, hoje, os dados pessoais ascenderam à categoria de direitos da personalidade e, na forma do que prevê o art. 11 do Código Civil, eles são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. Assim, nos termos do art. 17, toda pessoa natural tem assegurada a titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade[5].

Os dados pessoais têm, hoje, a sua proteção calcada em duas principais lei: a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2014) e o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2018), o que, por si só, já demonstra a preocupação do legislador com o assunto.

A Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 (LGPD), foi promulgada para regulamentar a proteção de dados pessoais. Posteriormente, a Lei 13.853, de 08 de julho de 2019 (que derivou da conversão da Medida Provisória 869/2018), alterou diversos artigos daquela lei, inclusive a ementa, que passou a ter a seguinte redação: Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Destarte, a proteção de dados pessoais é, hoje, disciplinada pela Lei 13.709/2018 com a redação dada pela Lei 13.853/2019. Esse é o regramento legal atual que se dá à matéria, que doravante iremos chamar apenas de LGPD.

A LGPD tem como função precípua dispor sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural (art. 1º).

A LGPD impõe aos agentes de tratamento ou qualquer outra pessoa que intervenha em uma das fases do tratamento a obrigação de garantir a segurança da informação nela prevista em relação aos dados pessoais, mesmo após o seu término

       Ocorrendo qualquer incidente de segurança que possa implicar nas situações retratadas acima, ou em outras semelhantes ou análogas, e que possa acarretar risco ou dano aos titulares dos dados, o controlador deverá comunicar imediatamente à ANPD, bem como aos próprios titulares, na forma do disposto no art. 48.

No que se refere à atuação das exchenges, exatamente por lidar com dados pessoais de seus usuários, está subordinada às regras de proteção da LGPD.

iv. proteção e defesa de consumidores e usuários:

       A defesa do consumidor vai constituir outro princípio de enorme importância na ordem econômica pátria, sendo essencial para garantir o equilíbrio do mercado de consumo. Por isso mesmo a livre iniciativa sobre a qual se funda a ordem econômica está condicionada à defesa do consumidor, até mesmo como forma de auto sobrevivência.

       A proteção do consumidor se dá por ele ser o hipossuficiente na relação de consumo, mas também para proteger a própria relação de consumo.

A defesa do consumidor apareceu para nós, definitivamente, na Constituição Federal de 1988, onde, pela primeira vez no Brasil se reconhece o consumidor e a necessidade de sua proteção, alçando-a ao nível de garantia constitucional, expressamente prevista no artigo 5º, inciso XXXII da Constituição Federal, que ao tratar dos direitos e garantias individuais dos cidadãos, impôs ao Estado o dever de promover a defesa do consumidor. Bem assim, nessa mesma esteira, ao dispor sobre a ordem econômica e financeira no artigo 170, a Constituição Federal de 1988 coloca expressamente como um de seus princípios básicos, entre outros lá relacionados, a defesa do consumidor (inciso V).

       Complementando a proteção constitucional do consumidor, o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinou ao Congresso Nacional a edificação do respectivo código. Deste modo, o Código de Defesa do Consumidor foi promulgado em 11 de setembro de 1990, passando o Brasil a contar efetivamente com um sistema infraconstitucional de defesa do consumidor.

A empresas que prestam serviços de ativos virtuais são fornecedores nos termos do art. 3º do CDC, ao passo que seus usuários são consumidores, pela definição do art. 2º do mesmo código, encerando, pois, uma relação de consumo, razão pela qual estão subordinadas as regras do Código de Defesa do Consumidor.

Para que não surja nenhuma dúvida a respeito, o art. 13 dispõe expressamente que aplicam-se às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais, no que couber, as disposições da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).

v. proteção à poupança popular:

A poupança popular é atribuição exclusiva das entidades bancárias, e é uma aplicação de renda fixa simples e acessível. A rentabilidade da poupança, que é isenta do imposto de renda para pessoas físicas, será a mesma em qualquer instituição bancária, de sorte que a escolha do banco se dará apenas por critérios puramente pessoais. A poupança tem liquidez diária, razão pela qual os resgates podem ser realizados a qualquer momento, sem maiores complicações.

A captação antecipada da poupança popular pode ocorrer somente nas hipóteses previstas na Lei n. 5.768/1971, mediante autorização expressa (art. 1º, §§ 1º e 1º-A). A Portaria SEAE/ME nº 7.660, de 18 de outubro de 2022, regulamentando o processo de autorização para captação antecipada de poupança popular, estabelece, no art. 31, que nenhuma pessoa natural ou jurídica poderá realizar operações de captação antecipada de poupança popular fora dos casos e das condições previstos na Lei nº 5.768, de 1971, no Decreto nº 70.951, de 1972, nesta Portaria e em demais atos normativos que, a critério do órgão autorizador, a complementem.

Por essa razão as empresas prestadoras de serviços de ativos virtuais devem ter o cuidado de não desvirtuar suas atividades na forma de captação de poupança popular, para não incorrer nas penalidades cabíveis na forma do art. 24 daquela Portaria.

vi. solidez e eficiência das operações

Pela importância que ocupa no mercado e pelos valores envolvidos nas operações de criptomoedas, a atividade de prestação de serviços de ativos virtuais deve pautar-se pela seriedade e pelo profissionalismo, não se admitindo aventureiros e amadores. Os usuários e investidores devem ter a segurança necessária para que possa aplicar seus recursos em empresas que apresentam solidez e eficiência nas operações, o que deve ser fiscalizado pelo órgão regulador.

vii. prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, em alinhamento com os padrões internacionais

Lavagem de dinheiro é um conjunto de operações comerciais ou financeiras, cujo objetivo é a incorporação, na economia, de bens, direitos ou valores originados direta ou indiretamente de qualquer infração penal. É por meio da lavagem que o dinheiro sujo (dinheiro com origem em atividades ilícitas) é transformado em dinheiro limpo (dinheiro com aparência lícita).

O crime de lavagem de dinheiro está tipificado na Lei n. 9.613/1998, art. 1º: ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Por definição, é a prática utilizada para encobrir a origem de dinheiro ilegal, provenientes de corrupção, roubo, tráfico de drogas, entre outros, e o dinheiro obtido por meio desse tipo de atividade não pode ser utilizado normalmente, pois a Receita Federal facilmente identificaria irregularidades. Pelo processo da lavagem os criminosos criam uma origem falsa para o dinheiro. Esse tipo de atividade pode surgir tanto por meio de atividades criminosas quanto por movimentos financeiros ilegais não declarados. Para mascarar suas origens ilegais, o processo da lavagem envolve a emissão de declarações falsas para o dinheiro recebido, como se fosse proveniente de uma atividade legal.

O terrorismo foi tipificado na Lei n. 13.260/2016, art. 2º: o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. Pelo § 1º, constituem atos de terrorismo:

a. usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;

b. sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;

c. atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa.

O financiamento do terrorismo consiste na destinação de recursos a terroristas, organizações terroristas ou atos terroristas. Os recursos podem ser originados de forma lícita ou ilícita. o financiamento do terrorismo consiste no apoio financeiro propriamente dito, por qualquer meio, ao terrorismo ou àqueles que incentivam, planejam ou cometem atos de terrorismo.

Por definição, esse tipo de financiamento tem como objetivo fornecer fundos para atividades terroristas. Essa arrecadação de fundos pode acontecer de várias formas, entre elas por meio de atividades lícitas, tais como doações pessoais e lucros de empresas e organizações de caridade, bem como a partir de fontes criminosas, como o tráfico de drogas, o contrabando de armas, entre outros.

A Lei n. 13.260/2016 estabelece como crime, no art. 3º: promover, constituir, integrar ou prestar auxílio, pessoalmente ou por interposta pessoa, a organização terrorista; e no art. 6º: receber, prover, oferecer, obter, guardar, manter em depósito, solicitar, investir, de qualquer modo, direta ou indiretamente, recursos, ativos, bens, direitos, valores ou serviços de qualquer natureza, para o planejamento, a preparação ou a execução dos crimes previstos nesta Lei.

Enquanto na ​lavagem de dinheiro​ a origem dos recursos é sempre ilícita, pois é decorrente de uma atividade criminosa, a origem dos recursos no financiamento do terrorismo​ pode ser lícita ou ilícita. Com relação a destinação dos recursos, na ​lavagem de dinheiro​ pode ser lícita ou ilícita e no financiamento do terrorismo​ a destinação dos recursos será sempre ilícita, pois os recursos servem para realizar atos criminosos.

Conclusão.

As criptomoedas já são uma realidade na vida de muitas pessoas. Mas era um mercado desregulamentado, contando, até então, com apenas uma instrução Normativa da Receita Federal para disciplinar a atividade que as envolviam.

Por essa razão, em boa hora veio a lume a Lei n. 14.478/2022, que dispõe sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais.

Tem-se, assim, um aspecto de legalidade que rege o setor, passando a contar com um controle maior e mais efetivo por parte dos órgãos públicos. Isso dará, espera-se, maior segurança aos usuários e investidores de criptoativos.

Bibliografia.

Sales, Fernando Augusto De Vita Borges. Manual da LGPD. Leme: Mizuno, 2021.

Sales, Fernando Augusto De Vita Borges. Manual de direito do consumidor. Leme: Mizuno, 2021.

Sales, Fernando Augusto De Vita Borges. Direito digital e as relações privadas na internet. Leme: Mizuno, 2022.



[1] A criptografia refere-se ao estudo e à prática de princípios e técnicas para se estabelecer uma forma de comunicação segura, mediante a construção e análise de protocolos que impedem que terceiros, ou o público em geral, tenham acesso a mensagens privadas. 

[2] Peer to peer (ponto-a-ponto ou P2P), é um sistema para compartilhamento de arquivos, documentos e informações sem a necessidade de um servidor central, em que os computadores dos usuários, que são os "pontos", conectam-se entre si formando uma rede descentralizada (SALES, Direito Digital e as relações jurídicas privadas na internet, p. 240).

[3] Art. 6º. Ato do Poder Executivo atribuirá a um ou mais órgãos ou entidades da Administração Pública federal a disciplina do funcionamento e a supervisão da prestadora de serviços de ativos virtuais.

[4] SALES, Manual da LGPD, p. 85.

[5] SALES, Manual da LGPD, p. 67.

Sobre o autor
Fernando Augusto Sales

Advogado em São Paulo. Mestre em Direito. Professor da Universidade Paulista - UNIP, da Faculdade São Bernardo - FASB e do Complexo de Ensino Andreucci Proordem. Autor dos livros: Direito do Trabalho de A a Z, pela Editora Saraiva; Súmulas do TST comentadas, pela Editora LTr; Manual de Processo do trabalho; Novo CPC Comentado; Manual de Direito Processual Civil; Estudo comparativo do CPC de 1973 com o CPC de 2015; Comentários à Lei do Mandado de Segurança e Ética para concursos e OAB, pela Editora Rideel; Direito Ambiental Empresarial; Direito Empresarial Contemporâneo e Súmulas do STJ em Matéria Processual Civil Comentadas em Face do Novo CPC, pela editora Rumo Legal; Manual de Direito do Consumidor, Direito Digital e as relações privadas na internet, Manual da LGPD, Manual de Prática Processual Civil; Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Limitada nas Relações de Consumo, Juizados Especiais Cíveis: comentários à legislação; Manual de Prática Processual Trabalhista e Nova Lei de Falência e Recuperação, pela editora JH Mizuno.

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