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Um diálogo possível? Contribuições da psicanálise e da criminologia crítica para a compreensão da questão criminal

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A contribuição da economia política capitalista e da criminologia crítica nas análises acerca do crime permite compreender os discursos legitimantes das penas, dentre eles o da psicanálise.

Resumo: Na primeira seção, o texto discute conceitos da psicanálise de Freud e Lacan que se propõem a elucidar aspectos relativos à questão criminal. Na segunda parte, discute as contribuições de criminólogos marxistas acerca da relação entre capital, trabalho e pena. Argumenta pela possibilidade de articulação entre psicanálise e criminologia crítica, desde que observados os limites da teoria psicanalítica para informar políticas criminais.


Introdução

Apesar de a relação entre psicanálise e criminologia ser bastante frutífera e polêmica, nem Sigmund Freud nem Karl Marx – eleitos aqui como os principais teóricos da psicanálise e referencial para a criminologia crítica - desenvolveram teorias criminológicas, tendo ambos se proposto a analisar outros aspectos da vida social. Durante esta tarefa, no entanto, tanto um quanto outro acabaram por tocar em pontos relacionados à questão da criminalidade, que se tornaram contribuições importantíssimas aos que deram continuidade ao desenvolvimento de suas teorias.

Considerando haver uma contribuição da psicanálise à criminologia, mas também uma tensão entre as hipóteses explicativas oriundas dos dois campos, o presente trabalho visa a contribuir para uma reflexão acerca das contribuições, dos limites e implicações relativos à escolha por cada uma delas para pensar a produção de políticas criminais.


O crime e o sujeito criminoso na psicanálise

Em sua produção teórica, Sigmund Freud não desenvolveu especificamente uma teoria criminológica completa. No entanto, suas proposições abordaram as temáticas da agressividade – entendida como inerente ao sujeito em situação civilizada – e da relação do sujeito com a prática criminosa.

Em suas elaborações teóricas sobre a vida social, Freud (1924/2011) propõe que a criação e manutenção de uma sociedade só são possíveis a partir da renúncia pelos homens da satisfação de parte de seus desejos. Conforme se alcançam progressos na civilização, aumentavam também as exigências repressoras. A partir da aplicação da técnica e consequente construção teórica, Freud observa que, ainda que não exclusivamente, no geral são as pulsões de origem sexual que sucumbem à repressão imposta pela sociedade. Uma parte das pulsões é capaz de desviar-se dos objetivos imediatos, sendo redirecionadas a atividades socialmente úteis, ou seja, “sublimadas”, contribuindo para o desenvolvimento da própria sociedade. Já outra porção das pulsões tende a permanecer contida no inconsciente na forma de desejos não apenas insatisfeitos, mas que “anseiam por uma satisfação qualquer, mesmo que deformada” (FREUD, 1924/2011, p.248). O processo de repressão de pulsões libidinais que são direcionadas a conteúdos ou ações socialmente inaceitáveis – iniciado na travessia do Édipo de cada sujeito - é, ao mesmo tempo, condição para a existência da sociedade e também agente causador de sintomas neuróticos.

Além da importância do Complexo de Édipo para a compreensão da visão de sujeito freudiana, Freud (1924/2011) chama atenção para duas circunstâncias reveladas a partir desta, que seriam “a longa dependência infantil do ser humano e o modo singular como sua vida sexual atinge um primeiro ápice dos três aos cinco anos e, após um período de inibição, recomeça na puberdade” (p.249). Segundo ele, as repetições geradas pelos conflitos oriundos dos períodos infantis e pelos processos transferenciais são responsáveis pela criação das grandes instituições sociais (da religião, do direito, da ética e todas as formas de organização social), na tentativa de resolução que busca “guiar sua libido desde as vinculações infantis àquelas sociais, definitivamente desejadas” (p.249).

O que à primeira vista poderia parecer apenas uma luta entre lados diametralmente opostos (desejos individuais e exigências sociais), depois revela-se na forma de tendências complementares no pensamento freudiano. Em seu percurso rumo à satisfação individual, o homem percebe que a colaboração de seus pares constitui em relevante ajuda no alcance de seus objetivos. Seja visando à possibilidade de satisfação genital ou de outra ordem, o homem passa a valorizar a conservação de outros próximos a si, dando origem ao sentido de construção de família e de sociedades. Adotando a concepção de amor sensual e amor inibido em sua meta, Freud (1930/2010) afirma que por via deste último, então, as sociedades foram construídas.

Além da amorosa, a natureza humana comportava ainda outra tendência que a sociedade almejou controlar, a saber, a da agressividade. Relembrando seu trabalho anterior (FREUD, 1920/2011), no qual propõe a existência de um caráter conservador e de um destruidor da vida, que nos impulsiona para o retorno ao estado primordial inorgânico (a pulsão de vida e a pulsão de morte), Freud (1930/2010) abre a suspeita de que tais tendências nunca se presentificam de forma isolada, mas sempre lado a lado, naturalmente. A noção de que todo sujeito comporta uma dimensão de agressividade que lhe é constitutiva é uma afirmação central da teoria psicanalítica.

Visto isso, Freud (1930/2010) pondera que, apesar da importância da pulsão de morte para as conquistas culturais, sua forma mais devastadora representaria a dizimação da humanidade por ela mesma, incorrendo em grande perigo à civilização. Fica claro, então, que a pulsão de Eros ou pulsão de vida seria muito mais funcional aos propósitos sociais. Por conseguinte, os interesses sociais precisam de meios para operar o controle das pulsões agressivas. A proposição de Freud (1930/2010) sobre a correlação de forças do interesse social sobre o individual nos leva à noção de internalização de dois fatores: da própria agressividade e dos limites à satisfação pulsional. Vejamos:

A agressividade é introjetada, internalizada, mas é propriamente mandada de volta para o lugar de onde veio, ou seja, é dirigida contra o próprio Eu. Lá é acolhida por uma parte do Eu que se contrapõe ao resto como Supereu, e que, como consciência moral, dispõe-se a exercer contra o eu a mesma severa agressividade que o eu gostaria de satisfazer com outros indivíduos. À tensão entre o rigoroso Supereu e o Eu a ele submetido chamamos consciência de culpa; ela se manifesta como necessidade de punição.

(FREUD, 1930/2010, p. 98)

Vimos, assim, o meio pelo qual a civilização controla o prazer de agressão que o indivíduo sente, instaurando uma instância de vigilância dentro dele mesmo – o Supereu, da qual o sujeito nada pode esconder.

Deste modo, à ideia do senso comum de que o sentimento de culpa surgiria através da realização de ação socialmente repudiável e pelo medo que o sujeito teria de ser descoberto por um outro, contrapõe-se à de que o próprio sujeito passa a ser seu censor, na medida em que é constituído, entre outras, por uma instância que comporta preceitos repressores socialmente legitimados, que atua de forma muito mais eficaz do que o outro social. Portanto, o sentimento de culpa inconsciente não depende mais de uma ação, mas apenas da vida pulsional e do pensamento, os quais o sujeito não pode esconder de si mesmo e da instância supervisora superegóica: “O Supereu atormenta o Eu pecador com as mesmas sensações de angústia e fica à espreita de oportunidades para fazê-lo ser punido pelo mundo exterior” (FREUD, 1930/2010, p. 95).

Além dessa construção, no texto “Os criminosos por sentimento de culpa”, (FREUD, 1916) realiza uma reflexão sobre casos de pacientes que afirmaram ter cometido transgressões em épocas passadas da vida. O curso de suas análises demonstrou que tais ações foram realizadas justamente porque eram proibidas e que sua realização proporcionava uma espécie de alívio psíquico ao malfeitor. Assim, o sujeito sofria de um sentimento opressivo de culpa e, após realizar a transgressão, sentia alívio, invertendo, mais uma vez, a relação crime – sentimento de culpa, presente no senso comum, ou seja, foi o sentimento de culpa que impeliu o sujeito à delinquência, e não o contrário.

Para além de Freud, (LACAN, 1998), também se propõe a trazer contribuições para o entendimento da relação sujeito-crime, entre outros momentos, no texto “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”. Nele, o autor localiza a agressividade como intrínseca aos sujeitos, “como tensão correlata à estrutura narcísica do [seu] devir” (p. 119). Além disso, o saber da psicanálise acerca dos automatismos de repetição inconsciente seria útil para a compreensão dos casos de recidiva criminal (p.150).

Em ambos autores, no entanto, nos deparamos com elaborações sobre um sujeito muito específico, verificável em um recorte sociocultural que não é destacado com a devida importância pelos mesmos. Ao tratar deste sujeito (da sociedade burguesa, com as peculiaridades e efeitos do capitalismo, patriarcado e racismo estrutural sobre os sujeitos de seu tempo), Freud trata de uma parcela histórica, mas parece considera-la como totalidade, ou seja, considera este sujeito da sociedade burguesa como sujeito universal. No caso de Lacan, ainda que o autor tenha proposto discussões acerca da relação entre o sujeito da psicanálise e o capital, a questão da limitação da psicanálise para a compreensão do sujeito de outros contextos históricos e culturais permanece pouco aprofundada. Tal fator não pode ser deixado de lado, por constituir um limite crucial de análise e ser justamente algo que escancara a insuficiência da teoria psicanalítica para o estudo de objetos sociológicos – como o é o crime - que só podem ser compreendidos em sua complexidade quando considerados de maneira histórica.

Também não é suficientemente explorado na teoria psicanalítica o marco temporal de suas proposições teóricas. Ao afirmar que o sujeito é determinado por questões inconscientes e por pulsões agressivas, por exemplo, se erige uma contradição entre esta concepção de sujeito freudiana e a marxiana, na qual o sujeito é determinado pelas relações de produção vigentes a seu tempo.

Para solucionar tal contradição, seria necessário ponderar sobre a limitação da teoria psicanalítica no marco da modernidade. Faz-se necessário considerar, portanto, que as investigações psicanalíticas se dão em um período histórico específico, tendo suas descobertas e aplicações se dado no contexto do capitalismo, que comporta relações de produção e de sociabilidade específicas, com consequências também específicas na vida social e psíquica dos sujeitos. Considerando a psicanálise enquanto uma teoria que obedecesse a esta especificidade, seria possível fazer uso de suas contribuições ao campo criminológico sem que isto implicasse em incompatibilidades com as explicações criminológicas-críticas de mundo.

Além disso, a psicanálise deixa intocada outra questão fundamental para a compreensão da relação sujeito-crime: os processos de criminalização. Assim, não se propõe a teorizar sobre os motivos pelos quais a criminalização dos sujeitos - tanto a nível de criminalização primária como secundária – ver (ZAFFARONI et al., 2011) - é tão permeada por desigualdades, tema tão importante para uma compreensão criminológica relevante. No contexto brasileiro atual, não são raras as notícias sobre relativização e opção por não aplicar punições a sujeitos responsáveis pela movimentação de grandes quantidades de substâncias ilícitas, enquanto se observa que a movimentação de pequenos volumes das mesmas substâncias por sujeitos no varejo do tráfico de drogas é usada como justificativa para o encarceramento em massa, ou mesmo para a criação de políticas de segurança pública de extermínio desta parcela pobre e periférica de nossa população.

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Na medida em que a psicanálise só se propõe a teorizar sobre a relação interna dos sujeitos com as leis (externas ou internalizadas), deixa escapar a crítica sobre o tratamento que os sujeitos que transgridem as leis sociais externas recebem, de acordo com sua posição na sociedade de classes. O questionamento sobre os objetivos que o sistema de justiça criminal cumpre na manutenção da vida social no capital também está fora do alcance de suas teorizações.

Ademais, enquanto não toma para si o debate acerca dos processos de criminalização, a psicanálise corre o risco de legitimar toda e qualquer política criminal, identificando que o “problema” estaria no sujeito, impulsionado para a criminalidade via sentimento de culpa produzido na esfera individual (ainda que em relação com outros sujeitos).

Sendo assim, embora a psicanálise seja a teoria mais avançada para a compreensão da vida psíquica dos sujeitos sob o marco da modernidade, para o campo criminológico, no entanto, suas contribuições são limitadas. Frise-se que isso não constitui uma falha, visto que não é objetivo da psicanálise constituir uma teoria criminológica. Pelo contrário, ao propor uma teoria acerca do inconsciente, a genialidade de Freud alcançou descobertas tão ricas que, mesmo não sendo seu objetivo, sua teoria forneceu contribuições importantes sobre a relação dos sujeitos com as leis por via do inconsciente.

De posse deste entendimento, torna-se evidente a necessidade de recorrer a outros referenciais para além da psicanálise para compor uma compreensão mais aprofundada sobre a complexa relação sujeito-crime-sociedade.


O crime, os criminosos e as punições na criminologia crítica

A criminologia crítica é uma corrente criminológica que nasce da aplicação do método materialista histórico-dialético de Marx ao estudo do crime e de suas determinações. Isto implica na noção de que, assim como qualquer outro fenômeno social, o crime ocorre na materialidade da vida social concreta, diante de um contexto histórico, formando e sendo formado por fatores contextuais. Antes de qualquer coisa, verifica-se em Marx uma visão de sujeito incompatível com a noção psicanalítica, ao menos em um primeiro momento. Isto porque, se em Marx os acontecimentos sociais são históricos, também o são os sujeitos, de modo que não é possível afirmar que eles possuem uma ou outra característica ontológica. O sujeito da psicanálise, que possui uma agressividade que lhe é constitutiva – lembrar da noção freudiana de pulsão de morte – é um sujeito universal, enquanto o sujeito marxiano é determinado historicamente.

Além disso, outra contribuição extraída da obra marxiana foi a noção de que é necessário adicionar uma dimensão crítica da economia nas análises criminológicas. Como Marx realizou a crítica da economia política burguesa de seu tempo, os criminólogos críticos defendem a realização de uma crítica da economia da punição, para se compreender com o devido rigor teórico as questões envolvendo a questão criminal em sua complexidade. Assim, desenha-se a relação entre economia política e crime e ganha relevo o entendimento de que a classificação de determinadas condutas como crime e a criação e aplicação de determinadas formas de punição em cada sociedade estão intimamente relacionadas ao sistema de produção ali adotados. Consequentemente, a relação sujeito-regime de trabalho-regime de pena aparece como objeto fundamental para a reflexão criminológica.

Nesse sentido, (PACHUKANIS, 1924/2017), importante criminólogo crítico (embora ainda não houvesse tal denominação), é autor de uma precisa análise acerca da relação entre trabalho, remuneração, pena e tempo. A tese do autor é de que, na sociedade capitalista, aqueles que não têm a posse dos meios de produção nem mercadorias comuns para vender, vendem a sua força de trabalho, a mercadoria sui generis no sistema do capital. O valor da remuneração pela força de trabalho vendida é calculado através da medida do tempo e é por isso que, no capitalismo, a pena principal é a pena de privação de liberdade por tempos predeterminados.

Conforme elucida (PACHUKANIS, 1924/2017), na forma capitalista o tempo é eleito como equivalente universal tanto nas relações de produção como nas relações jurídicas (aqui tendo por foco as jurídico-penais). É esta abstração que é responsável por tornar possível que a produção de uma determinada mercadoria sirva como meio de conseguir adquirir outra que não possui nenhuma relação de equivalência com a primeira. Por exemplo, se uma pessoa trabalha produzindo carros, pode, através da remuneração por seu tempo de trabalho despendido comprar pães, ou uma casa, ou um celular, etc., mesmo que a mercadoria que produziu não seja equivalente às mercadorias que pode comprar com seu salário. Esta dinâmica só é possível através da troca de tempo de trabalho por salário, num cálculo de proporção que é, necessariamente, abstrato, porque precisa calcular um valor fixo para um número de horas trabalhadas, independente de se o que o trabalhador está produzindo seja um pão ou um carro, por exemplo, ainda que haja algumas variações quanto ao nível de qualificação de algumas categorias de trabalhadores a outras.

Como consequência, assim como troca-se a força de trabalho pelo salário calculado em retribuição a uma quantidade de horas de trabalho, retribui-se também um crime por uma pena de prisão, que é a privação do tempo livre para trabalhar. É por isso que, se alguém rouba um carro, receberá uma pena calculada em tempo de privação de liberdade, ainda que o dano provocado pela usurpação do bem e a sua retribuição com o confinamento do sujeito por um período determinado de tempo não tenham nenhuma relação concreta de equivalência, sendo esta criada artificialmente através de um cálculo abstrato. Através deste esquema lógico, responde-se à questão: se privar alguém de liberdade durante um tempo “x” não trará o bem de volta a quem o perdeu, com base em que o cálculo de quanto tempo esta pessoa deve ficar presa seria feito? Como vimos, a relação entre tempo e trabalho é a chave para tal compreensão.

Assim, desde (PACHUKANIS, 1924/2017) vemos como o direito não surge para qualquer sociedade de comércio, mas para a sociedade de comércio capitalista, visando a garantir que se possa comprar e vender toda variedade de coisas, cumprir contratos e universalizar a venda da mercadoria mais especial de todas: a força de trabalho. Neste marco temporal, nasce o sujeito de direito, aquele legitimado para vender ou comprar mercadorias e servir como parte de contratos.

Para além da análise mais geral do campo do direito no capitalismo elaborada por (PACHUKANIS, 2017) e inaugurando o ramo criminológico da penologia, (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939) demonstram como cada sistema de produção vigente em um período histórico forjou um sistema de punição mais adequado para a sua reprodução, sendo a pena de prisão a pena eleita como mais adequada ao sistema capitalista – e o cárcere, seu possibilitador, como o modelo punitivo por excelência.

Assim como afirma (MASCARO, 2013) acerca da relação Estado e forma política capitalista, ou seja, de que as duas são formações interdependentes, para (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939) cada período de desenvolvimento específico das forças produtivas permite a adoção de penalidades adequadas à sua reprodução e a rejeição de outras, menos adequadas ou ineficientes a seus propósitos peculiares.

Iniciando sua análise histórica pela Alta Idade Média, (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939) asseveram não haver muito espaço para um sistema punitivo estatal. Nesta época, uma tríade de valores centrados na tradição, em equilibrado sistema de dependência social e prevalência de uma ideologia religiosa eram suficientes para manter as relações em um estado de hierarquia e obediência satisfatórios, no qual cabia ao direito criminal o papel de manutenção da ordem pública entre iguais segundo o critério de posses e status social.

Diferente dos critérios que foram estabelecidos no direito criminal atual, no qual se atribui uma determinada quantidade de tempo de privação de liberdade de acordo com o tipo de crime cometido, neste período estabelecia-se um sistema de fianças, no qual a gradação do valor dos pagamentos devidos pelo infrator era calculada com base no status social dele e do ofendido. Este critério, que evidencia o caráter econômico como intrinsecamente relacionado à história das penas, apesar de parecer que afetava apenas o grau da fiança, foi fundamental para a transição para o próximo estágio das punições. Na medida em que os malfeitores das classes subalternas não tinham condições financeiras de pagar as fianças que lhe eram imputadas, estes eram obrigados a substituir a quitação em dinheiro pelo pagamento em penas corporais. Com Radbruch, (1934-35), (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939) demonstram como desde então o sistema penal, para além do mero pagamento de uma fiança vai, progressivamente, ficando restrito a uma minoria da população.

Mais adiante, na Idade Média do séc. XV, a condição social dos pobres em diversos países da Europa sofre graves pioras. Conforme se verifica o êxodo rural correspondente ao processo de expulsão violenta que se chamou de acumulação primitiva do capital – ver a discussão pormenorizada deste processo em (MARX, 1867/2013) - a população urbana nestes países aumenta rapidamente, gerando uma massa de desempregados e despossuídos que se expandia de forma constante nestes locais. Na medida em que o aumento da população urbana que ocorria no ocidente gerou a demanda de importação de grãos mais baratos, o cultivo da terra passou a ser um negócio lucrativo, e a terra passou a ser, para estes países europeus interessados na exportação dos produtos demandados, um bem valioso e, portanto, reapropriado pelos proprietários que expulsavam cada vez mais os camponeses de suas terras antes arrendadas ou exploravam cada vez mais os que permaneciam trabalhando na dependência delas (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939).

Esta exploração permitiu a acumulação de grandes fortunas por determinadas famílias à época, enquanto para aqueles que foram expulsos do campo e permaneciam vagando sem trabalho, uma das únicas alternativas era unir-se a bandos de mercenários que surgiam e de cujo trabalho barato príncipes e outras autoridades se aproveitaram para ampliar seu poder por meio da força sobre a população. Esse estado de coisas formava o ambiente propício para a transição a uma nova forma de produção, a do capitalismo, que se ergue neste momento no qual um excedente de mão de obra no campo e nas cidades gera uma condição de miséria extrema diante da qual a resposta dos senhores, ao invés de ter sido no sentido de promoção de alguma política social para reverter tal situação foi, na verdade, de beneficiar-se dela tanto quanto possível para a maximização de seus lucros através da exploração cada vez maior de seus serviçais.

Nesta fase, a aplicação mais severa de penas era feita aos despossuídos, com base no entendimento de que os mesmos cometeriam os crimes por serem moralmente inferiores. Portanto, a necessidade de castigo era maior quanto mais pobre e, automaticamente, mais degenerado o malfeitor fosse (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939). Note-se que aqui já há o esboço de uma racionalidade administrativa, na qual o sistema de punições é planejado a priori, e não aplicado por cada senhor diante de cada infração de um de seus dependentes.

Junto a isso, o crescimento dos bandos de vagabundos, mendigos e ladrões que se intensificava se tornou um problema vultuoso, diante do qual sua erradicação passou a ser uma demanda social de urgência. “Quanto mais pobres ficavam as massas, mais duros eram os castigos, para fins de dissuadi-las do crime. O castigo físico começou a crescer [...] até que finalmente tornou-se não apenas suplementar, mas a forma regular de punição” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939, p. 36).

Assim como a pena de morte passa a ganhar um novo significado social, ou seja, deixa de ser uma medida rara e extrema para se tornar o principal meio de eliminação de indivíduos indesejados, a lógica por trás das penas de mutilação era a de deixar uma marca visível nos criminosos punidos, para que pudessem ser facilmente identificáveis nas relações cotidianas. Isto quando a mutilação sofrida não acabava por, acidentalmente, gerar a própria morte do apenado, ocasião em que o registro da morte trazia a classificação de “causa natural” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939, p.38).

Assim, fica evidenciado que o sistema penal da Baixa Idade Média serviu como um grande meio de gestão do crescimento populacional. Na medida em que não se verificava escassez de mão de obra e a política salarial era, consequentemente, péssima, a luta pela sobrevivência gerou uma desvalorização extrema da vida humana que justificava o uso do sistema penal para fins de eliminação do excedente populacional que sobrava aos montes em relação a demanda de trabalho. A relação entre sistema produtivo e sistema punitivo fica bastante evidente até aqui: a crueldade das punições que se estabelecem como principais neste período não ocorre devido à brutalidade ou “crueldade primitiva de uma época” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939, p. 42), mas sim como fruto das relações econômicas e sociais que se desenvolveram naquele período.

A partir do final do século XVI, ocorrem mudanças na proporção trabalhadores-trabalho disponível geradas pelo mercantilismo, o que acarreta a percepção de que os apenados poderiam constituir uma farta fonte de mão-de-obra gratuita a ser explorada. As penas de fiança, corporais e de morte passam então a ser substituídas pela escravidão nas galés, penas de deportação e servidão por trabalhos forçados em campos de trabalho ou colônias. Conforme destacam (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939, p. 43), “essas mudanças não resultaram de considerações humanitárias, mas de um certo desenvolvimento econômico que revelava o valor potencial de uma massa de material humano completamente à disposição das autoridades”.

Tal desenvolvimento econômico diz respeito ao que ocorre após aqueles já comentados primeiros períodos de êxodo, em que grandes massas vão se estabelecer nas cidades. Neste segundo momento, surgirá nestas cidades uma demanda crescente por bens de consumo, transformando as relações produtivas vigentes até então. Assim, uma demanda estável por produtos é criada, o que, em conjunto com a expansão dos sistemas financeiros produz uma extensão constante dos mercados. Neste ponto, a mão de obra que, até onde vimos, sobrava, agora começa a escassear, o que representou um duro choque para as classes proprietárias acostumadas com a realidade do período anterior: agora que a mão de obra não era mais abundante, os trabalhadores não precisavam mais assujeitar-se a condições de trabalho precárias, podendo exigir melhores salários. Se, por um lado, o processo de acumulação de capital que foi iniciado na fase anterior precisava se intensificar para garantir a expansão do comércio e da industrialização, a exigência de melhores condições de remuneração pelos trabalhadores era um entrave, o que fez com que os grandes proprietários precisassem apelar para a mediação do Estado na questão.

Diversas medidas foram tomadas no sentido de restrição da liberdade individual dos sujeitos, tais como a proibição da emigração, o estímulo da natalidade e a proibição da liberdade de associação – claras tentativas de resolver o problema da escassez de mão de obra ou suas consequências trabalhistas. O Estado cria a padronização dos salários e passa a adotar a perspectiva que foi difundida pela economia da época, segundo a qual “um país não poderia tornar-se rico se não dispusesse de uma grande quantidade de habitantes empobrecidos forçados a trabalhar para sair da pobreza” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939, p.55). No campo da educação, o objetivo principal passa a ser o treinamento das crianças para o trabalho industrial.

A esta época passa-se a resgatar as casas de correção - instituições surgidas no século XV para o envio de vagabundos e mendigos - como aposta para a produção de uma ordem necessária. Os desviantes que para lá eram mandados trabalhavam para empregadores privados, ao mesmo tempo em que este trabalho era um treinamento para as necessidades da industrialização.

É apenas com o advento do iluminismo que a racionalidade do sistema penal começa a ser questionada, após a identificação de diversas evidências de que este era apenas um mecanismo para lidar com todo tipo de indesejados sociais. Assim, junto à uma crítica ao caráter incerto e arbitrário das punições, ganha espaço uma racionalidade na qual o encarceramento é aceito como pena normal e padrão para qualquer tipo de delito (ou delinquente).

Além disso, para a racionalidade burguesa que ganhava força, não era algo funcional continuar promovendo execuções e torturas públicas, pois isso gerava comoção social e poderia provocar revoltas. Como bem resumem os autores, “a sociedade burguesa estava mais interessada na plenitude, rapidez e reabilitação da justiça penal do que em sua severidade. Tal funcionamento racional, em consonância com as teorias econômicas da época, trabalhava com a ideia de que os investimentos com as penitenciárias – embriões do cárcere, constituíam espaços nos quais se mantinha a população que aguardava a aplicação de seus castigos e penas - deveria ser o menor possível, de maneira que as condições nele estivessem sempre mais precárias que as condições de vida dos trabalhadores com os menores salários. Isto obrigaria os indivíduos a fazer o seguinte cálculo: “minha miséria é maior aqui fora ou dentro do ambiente da penitenciária?”. Conforme chegassem à conclusão de que as condições na prisão eram sempre piores, por mais que sua vida estivesse precária, miserável, eles seriam dissuadidos da estratégia de delinquir. Este estado de coisas constituiu a base de transição para a etapa de industrialização, vinda em seguida, em que a possibilidade de ser enviado a uma penitenciária servia como estímulo subjetivo para que os sujeitos se submetessem a qualquer regime de trabalho disponível.

As necessidades trazidas pela Revolução Industrial exigiram mudanças na forma de exercer o poder estatal. Na medida em que surge a necessidade de disciplinamento de grandes contingentes humanos para o trabalho nas fábricas, o uso dos castigos corporais como pena principal deixa de ter sentido (ANITUA, 2008).

Neste período ganha corpo a filosofia utilitarista, que deixou grandes marcas na racionalidade punitiva. O raciocínio criminológico utilitarista de Bentham era permeado pela teoria da escolha racional, ou seja, os indivíduos agiriam racionalmente, de acordo com o cálculo da felicidade. A lógica de funcionamento do ser humano se daria pelo princípio prazer versus dor, que explicaria que o comportamento dos indivíduos seria direcionado para maximizar o prazer e evitar a dor. Os que cometiam crimes o faziam, portanto, para obter o prazer na forma de coisas socialmente valorizadas, e o objetivo das leis e penas seria o de fazer com que a dor por eles infligida fosse superior ao prazer ou vantagem obtida criminalmente.

Na busca pelo desenvolvimento desse sistema de penas mais racional e utilitário, planejado sob critérios científicos que pudessem garantir uma função penal de aplicação universal e sem falhas, Bentham desenvolve um modelo institucional que serve de base arquitetônica para a criação não só de prisões, mas de diversas instituições disciplinares à época: o Panóptico. Conforme expõe (ANITUA, 2008), tratava-se de um modelo de máquina de disciplinar que serviria para guardar os presos com maior segurança – impedir sua fuga ou sua morte - e economia, ao mesmo tempo em que promovia a transformação moral necessária ao disciplinamento dos mesmos e à garantia de sua subsistência quando postos em liberdade – ou seja, o treinamento para o trabalho na indústria.

É desse momento de transição ao capitalismo industrial que se estabelece a relação necessária entre fábrica e cárcere. Em uma época em que a racionalidade científica está voltada para o desenvolvimento das máquinas e que a própria vida social, portanto, passa a ser compreendida através de uma lógica de produção fabril, o cárcere também ganha um lugar de máquina: uma máquina de criar máquinas para que trabalhem com outras máquinas” (ANITUA, 2008, p. 211).

Prosseguindo, (ANITUA, 2008) descreve dois modelos penitenciários estadunidenses, que servirão de base para muitos países que os imitaram. O primeiro deles foi o solitary confinement, oriundo da Filadélfia. Neste modelo os presos eram mantidos em confinamento solitário e proibidos de trabalhar, devendo ser responsáveis por seu próprio asseio, bem como o de sua cela. Recebiam educação religiosa e deveriam manter silêncio absoluto, de modo a evitar qualquer contato com o exterior da instituição, bem como com os demais presos ou os guardas que ali se encontravam. Este modelo passou a ser criticado pela alta taxa de suicídios e adoecimento psíquico que provocava, mas sobretudo pelos custos elevados para sua construção e manutenção. Assim, a demanda econômica gerou a reintrodução do trabalho produtivo no interior das prisões.

Outro modelo penal presente nessa transição foi o modelo holandês das casas de trabalho (note-se aqui a associação entre pena e trabalho), que impunha aos condenados um regime intenso de trabalho na raspagem de madeira vinda da América do Sul, transformando-a em pó que era aplicado no tingimento de tecidos.

Na análise de (MELOSSI; PAVARINI, 2006), por mais que existissem meios mais modernos para realizar o processo de raspagem da madeira, a insistência no modelo mais rude e cansativo aplicado nas casas de trabalho era uma maneira de obter os mesmos lucros sem necessidade de investir em equipamentos mais sofisticados, ou mesmo de pagar salários a trabalhadores de fora da prisão. Além disso, a submissão dos condenados a esse tipo de trabalho cumpria também a função de os treinar para o regime de trabalho nas fábricas, considerando que o público-alvo das casas de trabalho eram os artesãos e os ex-camponeses expropriados das terras em que trabalhavam, público esse que tinha muita dificuldade em se acostumar como o novo regime fabril que era agora implantado no início da economia capitalista. Com Pavarini, então, compreende-se a transição do papel da prisão enquanto uma unidade de produção de valor para uma unidade de produção de sujeitos adaptados ao regime capitalista de trabalho assalariado.

Ao chegar a esta etapa da racionalidade punitiva que une modelos de exploração de trabalho dos condenados a discursos de moralização e recuperação dos sujeitos através do trabalho, a burguesia nos direciona novamente para a questão central vista até aqui. Através deste resgate histórico das contribuições de alguns dos principais criminólogos críticos, que considera a dimensão da economia política inerente aos sistemas penais adotados em cada período, fica evidenciado que o que era considerado crime e sua respectiva pena mudou ao longo da história, o que revela que não há uma conduta que, em si, por natureza, seja criminosa. Se assim o fosse, não teria variado historicamente. Por consequência, não há um sujeito criminoso, como qualidade verificável a nível do sujeito, porque as condutas criminalizadas também variam ao longo da história.

Assim, a história do pensamento punitivo não foi forjada prioritariamente por ideais de justiça ou lei em termos de interdições com papel simbólico na subjetividade – como seria a consequência desejável caso os sujeitos delinquissem por sentimento de culpa inconsciente - mas sim pelas necessidades econômicas de reprodução de modos de sociabilidade no interior de cada sistema produtivo. Da mesma forma, as leis e penas não são uma consequência ou resposta necessária em relação ao crime ou à violência endógena, tampouco um meio de atingir objetivos de pacificação ou bem-estar social. Os sistemas punitivos são instituições de administração pública, norteados sempre pelas demandas das esferas econômica e política e têm sido forjados como resposta para a seguinte pergunta, em linhas gerais: “como garantir força de trabalho, nem a menor, nem a maior excedente, mantendo a máxima estabilidade possível que é necessária ao sistema produtivo?”.

Ao final de sua obra, (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939) traduzem de forma irretocável a dinâmica que viemos discutindo. Segundo eles, não importa quantas vezes a punição severa e o tratamento cruel sejam testados, enquanto a sociedade não tiver condição e disposição para resolver seus problemas sociais, a repressão, o caminho aparentemente mais fácil, será sempre bem aceita. “Ela possibilita a ilusão de segurança encobrindo os sintomas da doença social com um sistema legal e julgamentos de valor moral” (p. 282). Em seguida, identificam a existência de um paradoxo entre o fato de o progresso do conhecimento humano ter tornado o problema do tratamento penal mais compreensível ao mesmo tempo em que uma revisão fundamental na política penal parece estar hoje mais longe do que nunca. O paradoxo se desfaz, ou melhor, se explica, a meu ver, nas linhas seguintes, nas quais os autores relembram a dependência funcional da política penal a uma dada ordem social. Sem alterações na estrutura social, qualquer alteração em termos de política penal será incerta, transitória e insuficiente. Também (PAVARINI, 2002) adverte que para entender o objeto da criminologia, precisamos entender qual é a demanda por ordem das sociedades em cada época.

A análise de Melossi em (MELOSSI; PAVARINI, 2006) é parcialmente complementar ao que foi visto até aqui, no sentido de corroborar a equivalência entre “tempo de trabalho = salário” e “crime = tempo de pena” evidenciada em (PACHUKANIS, 2017), mas divergir de (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1939) quanto à centralidade da real utilização da exploração do trabalho forçado nas prisões para que estas tenham se consolidado como hegemônicas no capitalismo. Para Melossi a centralidade da pena estaria na dimensão de controle, reeducação, ou algo equivalente para atender às demandas econômicas historicamente.

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Sobre a autora
Thaíssa Fernanda Kratochwill de Oliveira

Psicanalista, doutoranda em saúde pública e pós graduanda em direito penal e criminologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Thaíssa Fernanda Kratochwill. Um diálogo possível? Contribuições da psicanálise e da criminologia crítica para a compreensão da questão criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7146, 24 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102164. Acesso em: 27 abr. 2024.

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