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Da irretroatividade dos novos patamares para progressão de regime em crimes hediondos:

primeiras manifestações judiciais

04/08/2007 às 00:00
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Considerações iniciais

A Lei 11.464/2007 estabeleceu a possibilidade legal de progressão de regime para crimes considerados hediondos. Com a entrada em vigor do novo diploma legal, o § 1º do artigo 2º da Lei 8.072/1990, "Lei dos Crimes Hediondos" (LCH), passou a expressamente restabelecer o sistema progressivo de cumprimento de pena nos crimes rotulados como "hediondos" ao estatuir que a pena seja cumprida "inicialmente em regime fechado". A redação original estabelecia que a sanção penal fosse cumprida "integralmente em regime fechado".

A nova lei, contudo, determina parâmetros objetivos diferenciados para a progressão de regime nessa categoria de crimes. A atual redação do §2º do artigo 2º da LCH impõe o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena para que apenados primários tenham direito à progressão. Para condenados reincidentes a exigência legal é de cumprimento de 3/5 (três quintos) da sanção penal para que se possa obter o direito de ingresso em regime prisional menos gravoso.

Como é cediço, a regra geral para a progressão de regime é disciplina pelo artigo 112 da Lei 7.210/1984, "Lei de Execução Penal" (LEP), o qual estabelece como requisito objetivo para a concessão do benefício o cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena. O ordenamento execucional penal atual, portanto, apresenta três requisitos objetivos distintos para a progressão de regime: cumprimento de 1/6 da pena para apenados por crimes não rotulados como hediondos; 2/5 para condenados por crimes hediondos, desde que primários; e, por fim, 3/5 para condenados por crimes hediondos, quando reincidentes.

Questão controversa diz respeito à retroatividade ou não das novas frações de cumprimento de pena estabelecidas como requisito objetivo para a progressão de regime em crimes hediondos. Assim, condenados por crimes cometidos antes da entrada em vigor da nova lei (29 de março de 2007) têm direito a avançar para regime prisional menos severo após o cumprimento de 1/6 de pena, como prevê a regra geral da LEP, ou de 2/5 ou 3/5, consoante estatui a nova redação da LCH?


Divergência doutrinária

Há entendimentos doutrinários divergentes quanto à retroatividade ou irretroatividade dos novos requisitos objetivos para progressão de regime em crimes hediondos, disciplinados pela redação conferida ao § 2º do artigo 2º da LEP pela Lei 11.464.

Uma corrente doutrinária1 interpreta que, se confrontadas com o texto legal anterior, o qual expressamente vedava a progressão de regime para condenados pela prática de crimes hediondos, as novas regras são mais benéficas para o apenado. Assim, progredir de regime após o cumprimento de 2/5 ou 3/5 da sanção penal seria mais benéfico do que a absoluta vedação legal a tal benefício. Logo, os novos requisitos objetivos estatuídos pela Lei 11.464 retroagiriam e, portanto, seus efeitos se irradiariam para os crimes praticados antes de sua entrada em vigor.

Para outra corrente doutrinária2, na medida em que a vedação absoluta e apriorística ao direito de progredir de regime era inconstitucional, o § 1º da LEP, em sua redação original, era inválido e ineficaz, embora vigente. Por conseqüência, a progressão de regime em crimes hediondos já era admitida, mormente após o julgamento pelo STF do paradigmático HC 82.9593, relatado pelo Ministro Marco Aurélio, em que se reconheceu a inconstitucionalidade da vedação legal à progressão de regime, haja vista a patente contraposição com o princípio constitucional da individualização da pena.

Diante desse posicionamento, mesmo aos condenados por crimes hediondos era admitida a progressão de regime após o cumprimento de 1/6 da pena, conforme a regra geral da LEP. Entende essa corrente, portanto, que os novos patamares mínimos de cumprimento de pena exigidos para o direito de progredir de regime prisional são mais severos que os verificados anteriormente, se comparados com o sistema execucional penal – e não apenas se observando a literalidade do texto legal. Logo, não poderiam retroagir, sob pena de afronta ao princípio da irretroatividade da lei penal mais severa, consagrado pelo artigo 5º, XL, da Constituição da República Federativa do Brasil. Em recente artigo, defendi essa posição.

No aspecto dos novos patamares estipulados como condição objetiva para progressão de regime prisional, entretanto, entende-se tratar de verdadeira novatio legis in pejus, ao passo que nesse aspecto a norma penal é mais severa que a precedente. E, por se tratar de uma norma penal menos benéfica ao agente, vislumbra-se a sua irretroatividade.

Senão, veja-se. A vedação à progressão de regime, nos termos da Lei 8.072, ainda que se tratasse de norma vigente, já não era válida, haja vista sua patente inconstitucionalidade, reconhecida pelo STF no julgamento do HC 82.959. Antes dessa paradigmática decisão, porém, muitos juízes já admitiam a possibilidade de progressão de regime em crimes hediondos, dada a inconstitucionalidade do §1º do artigo 2º da LCH.

Vigência e validade são categorias absolutamente distintas em um Estado Democrático e Constitucional de Direito. Não é só o fato de viger que confere validade absoluta e incontestável à norma. Esta, para ser válida, deve apresentar consonância e respeito aos princípios e disposições constitucionais. Assim, ainda que vigente, a disposição legal de proibição de progressão de regime em crimes hediondos já era inválida, pois inconstitucional.4

Vislumbra-se, pois, a divergência doutrinária em relação à irretroatividade ou não da Lei 11.464 no que tange aos novos patamares mínimos fixados como requisito objetivo para progressão de regime em crimes hediondos. Apontar-se-ão, na seqüência, as primeiras manifestações judiciais a respeito desse tema.


Posicionamento jurisprudencial

A Lei 11.464, conforme já se discorreu, entrou em vigor em 29 de março de 2007. São recentíssimas, pois, as primeiras manifestações judiciais acerca da aplicação no tempo do conteúdo da nova lei no que tange aos novos requisitos objetivos para a progressão de regime em crimes hediondos. Pode-se considerar, a partir de uma análise ainda incipiente, que a jurisprudência tende a se firmar no sentido da irretroatividade dos dispositivos relativos aos novos patamares mínimos de cumprimento de pena estabelecidos pelo diploma legal em apreço.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou que a aplicação do requisito temporal estabelecido pela Lei 11.464 afrontaria o princípio da retroatividade da lei penal mais benigna, haja vista a patente inconstitucionalidade de lei penal mais severa retroagir.

Execução penal. Progressão de regime. Crimes hediondos.

Requisito temporal. Lei nº 11.464/07 — "Em que pese a Lei 11.464/07, tenha fixado o percentual de 2/5 para a progressão de regime, no que tange aos crimes hediondos e equiparados, preservou o princípio da retroatividade da lei penal, que só ocorrerá em favor do réu — art. 5º, inciso XL da CF. Assim, tratando-se de lei mais gravosa, resta mantido o prazo comum do artigo 112 da Lei de Execução Penal, ou seja, 1/6".5

O Tribunal de Justiça do Paraná, da mesma forma, decidiu no sentido de que a Lei 11.464, em relação aos critérios autorizadores da progressão de regime, é mais severa para o apenado, sendo, portanto, irretroativa.

Execução penal. Progressão de regime. Irretroatividade da lei mais severa. "Até a publicação da Lei 11.464 de 29 de março de 2007 o único critério legal existente para a concessão da progressão, declarada a inconstitucionalidade do §1º do artigo 2 da Lei 8.072/90 pelo STF era o de 1/6, expresso no artigo 112 da LEP. Com a Nova Lei, o prazo passa a ser de 2/5, para os crimes hediondos e equiparados, mas vedada a retroatividade em desfavor do réu, artigo 5º, inciso XL, da CF/88, só retroage em seu favor nos termos da disposição do ‘parágrafo único’ do artigo 2º do Código Penal".6

O mesmo posicionamento tem sido adotado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o qual considera as disposições atinentes à progressão de regime mais severas na Lei 11.464 que se comparadas ao sistema execucional penal anterior.

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Execução penal - Crime hediondo, assemelhado ou equiparado - Incidência das frações previstas na lei n. 11.464/2007 aos casos pretéritos - Impossibilidade - Irretroatividade absoluta da lex gravior - Vedação incidente sobre normas penais de caráter material - Aplicação restrita aos crimes cometidos a partir da publicação do novo diploma legal - Prevalência da regra contida no art. 112 da lei de execução penal - Ordem concedida.7


Considerações finais

A doutrina penal diverge quanto à aplicabilidade da Lei 11.464 no tempo, especificamente no que tange à retroatividade ou irretroatividade dos novos requisitos objetivos estabelecidos para a progressão de regime em crimes rotulados como hediondos. Em razão da recenticidade do tema, são ainda incipientes as manifestações dos tribunais acerca da matéria.

A tendência jurisprudencial, contudo, parece se firmar no sentido da irretroatividade do conteúdo da Lei 11.464 referente aos novos patamares de cumprimento de pena exigidos para a concessão de progressão de regime nesses delitos. Das decisões judiciais apreciadas no presente artigo se extrai que aos crimes hediondos praticados anteriormente ao dia 29 de março de 2007 se aplica como requisito objetivo para a progressão de regime o previsto como regra geral no artigo 112 da LEP, a saber, cumprimento de 1/6 da pena.

Tão somente em relação aos delitos hediondos praticados a partir da entrada em vigor da Lei 11.464 é que se aplicam as novas frações estatuídas como parâmetro objetivo para a concessão do direito de progredir de regime, quais sejam, 2/5 para condenados primários e 3/5 para reincidentes. A aplicação da lei de modo diverso ensejaria grave ofensa à garantia de que a lei penal jamais retroage, salvo para beneficiar o réu. Essa disposição decorrente do princípio da legalidade em matéria penal é corolário do valor da dignidade da pessoa humana, preceito maior de um Estado Democrático e Constitucional de Direito.


Notas

1 A respeito desse entendimento, sugere-se a leitura de: BASTOS, Marcelo Lessa. Crimes hediondos, regime prisional e questões de direito intertemporal . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1380, 12 abr. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9734>. Acesso em: 02 ago. 2007. PORTO, Pedro Rui da Fontoura. A nova redação do art. 2º da Lei nº 8.072/90 e o sofisma da "novatio legis in pejus" . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1421, 23 maio 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9914>. Acesso em: 02 ago. 2007.

2 Com relação a esse posicionamento doutrinário, recomenda-se a leitura de: GOMES, Luiz Flávio. Lei nº 11.464/2007: liberdade provisória e progressão de regime nos crimes hediondos. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1371, 3 abr. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9686>. Acesso em: 02 ago. 2007. LEAL, João José; LEAL, Rodrigo José. Progressão de regime prisional e crime hediondo. Análise da Lei nº 11.464/2007 à luz da política criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1426, 28 maio 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9936>. Acesso em: 02 ago. 2007.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82.959 / SP. Relator: Ministro Marco Aurélio. Julgado em: 23/02/2006. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Publicado no Diário da Justiça de 01/09/2006.

4 BERNARDES NETO, Napoleão. Lei nº 11.464/2007: aspectos introdutórios à nova disciplina legal para a progressão de regimes em crimes hediondos . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1480, 21 jul. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10183>. Acesso em: 02 ago. 2007.

5 TJRS - 3ª C. - Agr. Exec. 70019978907 - rel. José Antônio Hirt Preiss - j. 29.06.2007 - DOE 10.07.2007. Publicada no Boletim IBCCRIM nº 177 - Agosto / 2007.

6 TJPR - 5ª C. - Agr. Exec. 372.312-0 - rel. Eduardo Fagundes - j. 31.05.2007 - DOE 15.06.2007. Publicada no Boletim IBCCRIM nº 177 - Agosto / 2007.

7 TJSC – HC 2007.018808-2 – rel. Irineu João da Silva – j. 29.05.2007 – Disponível em <http://www.tj.sc.gov.br>.


Referências

BASTOS, Marcelo Lessa. Crimes hediondos, regime prisional e questões de direito intertemporal . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1380, 12 abr. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9734>. Acesso em: 02 ago. 2007.

BERNARDES NETO, Napoleão. Lei nº 11.464/2007: aspectos introdutórios à nova disciplina legal para a progressão de regimes em crimes hediondos . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1480, 21 jul. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10183>. Acesso em: 02 ago. 2007.

BERNARDES NETO, Napoleão. O ideário iluminista e o descompasso com a legislação penal atual: o exemplo do RDD. Revista Direito e Política, Itajaí, v. 2, n. 1, 1º quadrimestre de 2007. Disponível em: <http://www.univali.br/direitoepolitica>. Acesso em: 02 ago. 2007.

GOMES, Luiz Flávio. Lei nº 11.464/2007: liberdade provisória e progressão de regime nos crimes hediondos. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1371, 3 abr. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9686>. Acesso em: 02 ago. 2007.

LEAL, João José; LEAL, Rodrigo José. Progressão de regime prisional e crime hediondo. Análise da Lei nº 11.464/2007 à luz da política criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1426, 28 maio 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9936>. Acesso em: 02 ago. 2007.

PORTO, Pedro Rui da Fontoura. A nova redação do art. 2º da Lei nº 8.072/90 e o sofisma da "novatio legis in pejus" . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1421, 23 maio 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9914>. Acesso em: 02 ago. 2007.

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Sobre o autor
Napoleão Bernardes Neto

mestrando em Ciência Jurídica pela UNIVALI, especializando em Ciências Criminais pela Rede LFG, professor de Direito Penal, advogado criminalista em Blumenau (SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES NETO, Napoleão. Da irretroatividade dos novos patamares para progressão de regime em crimes hediondos:: primeiras manifestações judiciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1494, 4 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10236. Acesso em: 19 dez. 2024.

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