SUMÁRIO: 1. Prova: 1.1. Conceito; 1.2. Valoração da prova; 1.3. Ônus da prova; 1.4. Distribuição do ônus da prova; 1.5. Poderes instrutórios do juiz; 1.6. Modificação do ônus da prova - 2. Teoria Dinâmica de Distribuição do Ônus da Prova: 2.1. Origem e definição; 2.2. Recepcionabilidade da Teoria das Cargas Processuais Dinâmicas no Direito Brasileiro - 3. Conclusão - 4. Referências bibliográficas.
RESUMO: O presente artigo versa sobre a Teoria Dinâmica de Distribuição do Ônus da Prova, cujas premissas essenciais se contrapõem às regras do art. 333, do CPC, rígidas e apriorísticas, que impõem exclusivamente ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito, e, ao réu, os fatos modificativos, extintivos e impeditivos de sua oposição. A teoria, base de estudo deste trabalho, defende, justamente, o afastamento daquelas regras estáticas, impondo o ônus da prova à parte que se encontrar em melhores condições de produzir a prova, podendo o mesmo recair tanto sobre o autor como sobre o réu, a depender das circunstâncias fáticas e processuais de cada um. A mudança busca uma maior efetividade e instrumentalidade do processo, ensejando, por conseguinte, decisões mais justas e equânimes a cada caso concreto submetido ao crivo do Poder Judiciário.
PALAVRAS-CHAVE: Processo Civil; Ônus da prova; Modificação do ônus da prova; Teoria Dinâmica de Distribuição do Ônus da Prova.
1. Prova
1.1. Conceito
A prova, na seara do Direito Processual Civil, tem diversas acepções. Inicialmente, prova no sentido de fonte de prova. Como o próprio nome já indica, fonte de prova é a origem de onde brota a prova. Exemplificando, fontes de prova podem ser coisas, pessoas, fenômenos etc. Há, também, prova como meio de prova, que é a técnica de se extrair a prova de sua fonte e transplantá-la no processo a fim de proporcionar ao juiz o conhecimento da verdade dos fatos trazidos à sua apreciação pelas partes processuais e sobre a qual alicerçará seu convencimento. Por fim, a prova como resultado, ou seja, a prova em sentido subjetivo, que se traduz na convicção do julgador formada a partir das provas produzidas no curso do processo.
Embora haja essa plurissignificância da palavra prova, para o presente trabalho, doravante, cuidaremos do conceito de prova como o meio de obter a verdade dos fatos, ou chegar ao mais próximo desta possível, no decorrer do processo, para que o juiz construa seu convencimento a respeito dos fatos aventados pelas partes. Em face disso, o Mestre DOMINGOS AFONSO KRIGER FILHO, com inexcedível clareza, assevera que "a prova é a alma do processo, o instrumento necessário à realização do direito ou, no dizer das Ordenações Filipinas, ‘o farol que deve guiar o magistrado nas suas decisões’." [01]
Contudo, essa verdade dos fatos que se busca alcançar com toda a produção probatória não refletirá a mais pura tradução da verdade real, pois é muito difícil, senão impossível, a integral e irretorquível reprodução dos fatos pretéritos em torno dos quais orbita a lide. O que há, na realidade, é uma representação parcial dos fatos, por conseqüência, uma representação parcial da verdade, através da qual se chegará à mais próxima probabilidade dos fatos, isto é, o que possivelmente ocorreu ou quais foram ou são provavelmente os fatos.
Os fatos, porquanto, constituem o objeto da prova, uma vez que o direito independe de demonstração, exceto nos casos previstos no art. 337, do Código de Processo Civil. Todavia, dentre os fatos, existem aqueles que prescindem de prova, conforme os ditames do art. 334 do já referido Código – são eles: os fatos notórios; os afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária; os admitidos como incontroversos; e aqueles em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade. Desta forma, somente os fatos controvertidos, relevantes e determinados carecem de prova.
Em linhas gerais, controvertidos são todos aqueles fatos sobre os quais as partes conflitam. Uma parte os afirma e a parte contrária os contesta, não os admitindo como verdadeiros. Relevantes, por sua vez, são aqueles que têm relação ou conexão com a causa ajuizada, isto é, os que possuem condições de influir na decisão da causa. E, por fim, determinados são os que apresentam características, limites e qualidades intrínsecas capazes de diferenciá-los dos demais que se lhes assemelham.
Deste modo, são insuscetíveis de prova os fatos indeterminados ou indefinidos. Da mesma forma, aqueles que não têm o condão de influenciar no julgamento da causa são considerados inúteis e, conseqüentemente, não necessitam serem submetidos à comprovação. Trata-se inequivocamente de uma fiel concretização do vetusto brocardo latino "frusta probatur quod probatum nom relevat". Logo, consideram-se irrelevantes os fatos, física ou juridicamente, impossíveis e, igualmente, aqueles nos quais a prova se mostra impossível por determinação legal ou pela sua própria natureza.
1.2. Valoração da prova
Depois da produção das provas pelas partes, cabe ao magistrado efetuar a valoração das provas produzidas. O sistema adotado pelo Processo Civil Brasileiro, atualmente, é o da persuasão racional ou do livre convencimento motivado, através do qual o juiz tem ampla liberdade para valorar a prova constante dos autos e, assim, formar seu convencimento – devendo, entretanto, motivá-lo de forma racional, consoante rezam os arts. 131, 165, 436 e 458, II, do nosso Código de Processo Civil. Como principais balizas desse sistema, apontam-se a exigência de fundamentação, a argumentação racional e a obediência às regras da experiência. Enveredando sobre o tema em comento, OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA assevera que o juiz tem o
"dever de fundamentar sua decisão, indicando os motivos e as circunstâncias que o levaram a admitir a veracidade dos fatos em que o mesmo baseara sua decisão. Cumpre-lhe indicar, na sentença, os elementos de prova com que formou sua convicção, de tal modo que a conclusão sentencial guarde coerência lógica com a prova constante dos autos". [02]
Destarte, no hodierno estágio da evolução da doutrina processualista civil, mais desapegada do formalismo exacerbado e com mais discricionariedade do magistrado, este passa a ter um papel cada vez mais ativo tanto na produção da prova, em sua valoração, bem como na repartição do ônus da prova como veremos a seguir pormenorizadamente.
1.3. Ônus da prova
Na linguagem técnico-jurídica, ônus não é sinônimo de obrigação. Processualmente, fala-se em ônus quando se tutela interesse próprio, e em obrigação quando há interesse de outrem. Eis o entendimento burilado de ALVIM NETTO, transcrito por RODRIGO GARCIA SCHWARZ, que faz essa diferenciação de maneira fulgente:
"A distinção que nos parece primordial é a de que a obrigação pede uma conduta cujo adimplemento ou cumprimento aproveita à parte que ocupa o outro pólo da relação jurídica. Havendo omissão do obrigado, este será ou poderá ser coercitivamente obrigado pelo sujeito ativo. Já com relação ao ônus, o indivíduo que não o cumprir sofrerá, pura e simplesmente, via de regra, as conseqüências negativas do descumprimento que recairão sobre ele próprio. Aquela é essencialmente transitiva e o ônus só o é reflexamente." [03]
Ônus, por conseguinte, é a faculdade que a parte dispõe para praticar ou deixar de praticar determinado ato processual – ato este que lhe proporcionará alguma vantagem própria se adimplir com seu ônus. Se a parte não exercita o ônus que lhe compete, esta apenas deixa de usufruir a vantagem processual que obteria se o tivesse exercitado, no momento e na forma previstos nas leis processuais.
Por sua vez, o ônus da prova trata-se de uma regra processual que, ressalte-se, não atribui o dever de provar o fato, mas sim atribui o encargo a uma das partes pela falta de prova daquele fato que lhe competia. Na precisa lição do Mestre FREDIE DIDIER JR., a "expressão ‘ônus da prova’ sintetiza o problema de saber quem responderá pela ausência de prova de determinado fato." [04]
O ônus da prova tem duas funções primordiais. Primeiro, estimular as partes a provar as alegações que fizerem. Segundo, ajudar o magistrado que ainda permanecer em estado de dúvida, oferecendo-lhe um critério de julgamento capaz de evitar o "non liquet". Como cediço, no Direito Romano, era permitido ao juiz se recusar a julgar causas que, na visão dele, não estavam claras. Podia simplesmente sentenciar "sibi non liquere". No entanto, hoje em dia, vigora regra da vedação do "non liquet", não admitindo mais que o juiz se esquive de decidir sob qualquer alegativa, inclusive por falta ou insuficiência de provas. Deparando-se com a incerteza, plenamente aceitável no sistema do livre convencimento motivado, o juiz, nesse caso, utilizar-se-á das regras de distribuição do ônus da prova, onerando aquela parte que carregava o encargo da prova com uma sentença desfavorável visto que não produziu prova necessária a corroborar suas alegações. Tais regras resolvem a controvérsia nos casos em que a produção probatória não convence ao juiz, guiando-o a julgar em desfavor daquele a quem incumbia o ônus da prova, e não o cumpriu satisfatoriamente.
1.4. Distribuição do ônus da prova
Na dicção do art. 333, do Código de Processo Civil, a distribuição do ônus da prova, regra geral, se dá nos seguintes moldes: incumbe ao autor a prova dos fatos constitutivos de seu direito; e, ao réu, a existência de fatos modificativos, extintivos e impeditivos do direito do autor.
Segundo o entendimento clássico, as regras emanadas do artigo sobredito seriam objetivas e fixas, distribuídas de forma imutável pelo legislador. Entretanto, essa visão estática de distribuição do ônus da prova vem sofrendo críticas da doutrina moderna e, felizmente, perdendo forças, visto que essa rigidez muitas vezes dificulta a adequação do regime da prova ao caso concreto. Por exemplo, há situações onde o direito material alegado por uma das partes é de difícil, onerosa ou mesmo impossível demonstração pela mesma. Já para a parte adversa não existem tantos óbices dificultando a produção por ela da prova imprescindível ao deslinde da causa "sub judice". Por tudo isso, a doutrina contemporânea vem pugnando pela flexibilização destas regras de distribuição do ônus da prova, no sentido de permitir ao juiz que, deparando-se com nítido desequilíbrio das condições probatórias entre as partes, motivadamente, decida por adequar a regra de distribuição do ônus da prova ao caso concreto, determinando que este ônus recaia sobre a parte que dispuser das melhores condições de provar os fatos submetidos a julgamento.
Assim sendo, a regra estática de distribuição do ônus da prova, acolhida pelo nosso Código de Processo Civil, notadamente em seu art. 333, vem sofrendo mitigações em prol de uma maior efetividade e instrumentalidade do processo, que são alguns dos estandartes da perspectiva publicista do processo, atual tendência do Direito Processual Civil, capitaneada por Cândido Rangel Dinamarco. Para esta corrente doutrinária, estas regras de distribuição do ônus da prova não devem ser interpretadas como limitadores dos poderes instrutórios do juiz. Ao contrário, defende uma atuação ativa do juiz no âmbito da instrução processual, com o escopo de corrigir eventuais desequilíbrios na produção probatória vislumbrados caso a caso, para, com isso, proferir uma decisão mais justa e equânime.
1.5. Poderes instrutórios do juiz
Ao finalizar a instrução probatória, o juiz, de posse do arcabouço probatório constante nos autos, formará seu convencimento. Se entender que já há provas suficientes a gerar um grau de certeza sobre os fatos apreciados, o juiz proferirá seu julgamento, pouco importando a quem competia o ônus da prova. Mas, se ainda persistir seu estado de dúvida, o que deve fazer o magistrado?
Se tomarmos por parâmetro o entendimento da doutrina tradicional, fundamentada no Estado Liberal, cujos princípios vetoriais são o do dispositivo, o da inércia e o da imparcialidade do juiz, a atuação do magistrado seria excessivamente tolhida pelos supramencionados princípios, devendo somente esperar que a prova venha ao seu crivo. Assim, não lhe restaria outra solução senão apenas regular o desenrolar do processo, até que o mesmo esteja em condições de ser julgado. A iniciativa do magistrado seria tão-somente complementar e dar-se-ia somente após as partes se desincumbirem de provar os fatos afirmados por cada uma delas. Se, depois das partes apresentarem suas respectivas provas, ainda pairarem dúvidas a respeito dos fatos em questão no entender do juiz, só neste momento se movimentaria no afã de encontrar uma solução para o litígio. Isto poderia implicar em algum suposto prejuízo, já que há alguns tipos de provas que, se não colhidas no exato momento em que vêm à tona, não produzirão mais os mesmos efeitos que teriam caso tivessem sido produzidas naquele momento oportuno.
Noutro sentido, nos trilhos da Democracia Social, o Processo Civil passa a conferir uma intensificação na participação ativa do juiz, inclusive na fase instrutória, com o propósito fundamental de assegurar efetividade à tutela jurisdicional. LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART, empunhando a bandeira desse posicionamento, asseguram que só assim ocorrerá:
"i) a justa aplicação das normas de direito material; ii) a adequada verificação dos fatos e a participação das partes em um contraditório real e iii) a efetividade da tutela dos direitos, pois a neutralidade é mito, e a inércia do juiz, ou abandono do processo à sorte que as partes lhe derem, não é compatível com os valores do Estado atual." [05]
É incontestável que o ônus da prova continua sendo um encargo das partes. A estas competem provar os fatos que alegarem. Nada obstante, ao magistrado também interessa a produção da prova, posto que a falta de prova ou a falha na sua produção prejudicará, em demasia, seu convencimento. Daí, a principal mudança defendida pela doutrina moderna que vê o processo como um Direito Público. Tomando por base esta visão publicística, o juiz pode determinar a prova de ofício, bem como agir concomitantemente e em igual condições com as partes, respeitando, sem sombra de dúvidas, as garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da obrigatoriedade de motivação, tudo isso com o objetivo primordial de elucidar os fatos imprescindíveis para a formação de sua convicção sobre o mérito da causa. A possibilidade do juiz de participar de uma forma mais ativa na produção da prova não retira das partes, de maneira alguma, a possibilidade de continuar participando da formação da prova e também da consideração de seus resultados.
Na atual conjuntura da processualística civil, não existem razões plausíveis para podar este progressivo aumento dos poderes outorgados ao juiz, que realmente deve desempenhar um papel cada vez mais diligente na fase probatória do processo. Como dizem os festejados processualistas MARINONI e ARENHART, "um processo verdadeiramente democrático, fundado na isonomia substancial, exige uma postura ativa do magistrado" [06]. Sustentar que, agindo deste modo, o juiz estaria perdendo sua imparcialidade configuraria, no mínimo, um despautério. Podem muito bem ocorrer, e, de fato, ocorrem situações fáticas onde fatos relevantes não são trazidos ao processo em decorrência de uma menor sorte econômica de uma das partes ou mesmo por astúcia de uma delas que omitem ou mascaram os fatos conforme a sua conveniência e ao seu bel-prazer. Nestes casos, o cruzar de braços do juiz é que caracterizaria uma parcialidade. Poderosas e irrefragáveis são as palavras de TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER firmando seu entendimento, cujo enxerto abaixo trasladado arremata perfeitamente o posicionamento aqui defendido:
"O juiz, nesse contexto, seria parcial se assistisse inerte, como espectador de um duelo, ao massacre de uma das partes, ou seja, de deixasse de interferir para tornar iguais partes que são desiguais. A interferência do juiz na fase probatória, vista sob este ângulo, não o torna parcial. Ao contrário, pois tem ele a função de impedir que uma das partes se torne vencedora na ação, não por causa do direito que assevera ter, mas porque, por exemplo, é economicamente mais favorecida que a outra. A circunstância de uma delas ser hipossuficiente pode fazer com que não consiga demonstrar e provar o direito que efetivamente tem. O processo foi concebido para declarar lato sensu o direito da parte que a ela faz jus e não para dela retirá-lo, dando-o a quem não o possua. Em função desse parâmetro, pois, devem ser concebidas todas as regras do processo, inclusive e principalmente as que dizem respeito ao ônus da prova." [07]
Ademais, o próprio Código de Processo Civil, em seu art. 130, reconhece ao juiz o poder de determinar a produção de toda prova que entender pertinente à instrução do processo, independentemente da feição inicial do processo ser regida pelo princípio do dispositivo da demanda. Ou seja, ao juiz não é permitido iniciar a ação ou alterar seu objeto, mas conduzir ativamente a instrução probatória é plenamente possível, por orientação expressa do legislador.
O dogma de neutralidade do juiz se mostra cada vez mais obsoleto, ainda mais agora que a igualdade é uma das importantes bússolas do processo. A igualdade substancial no processo consiste em tratar os iguais de forma igual, e os desiguais desigualmente, na medida de suas desigualdades, permitindo, na medida do possível, que partes se apresentem com as mesmas oportunidades e com os mesmos instrumentos processuais capazes de estear seu direito perquirido, ou seja, proporcionar que as partes que venham a juízo em paridade de armas, pois que "o processo não deve ser um jogo em que o mais capaz sai vencedor, mas instrumento de justiça, com o qual se pretende encontrar o verdadeiro titular de um direito" [08]. Daí a justificação do aumento dos poderes instrutórios do juiz: equilibrar as partes dentro do processo.
1.6. Modificação do ônus da prova
Normalmente, a maioria dos operadores do direito, neste rol o próprio legislador, emprega o termo inversão do ônus da prova, em vez de modificação do ônus da prova. Embora a expressão já esteja arraigada no mundo jurídico, não podemos deixar de objurgá-la, tendo em vista que, na realidade, inversão não ocorre. Se assim fosse, caberia ao réu o ônus da prova dos fatos constitutivos do autor, e, ao autor, a prova dos fatos modificativos, extintivos e impeditivos aduzidos pelo réu em seu desfavor. E não é assim que se sucede. Na verdade, ocorre é uma modificação na regra geral prevista no art. 333, do Código de Processo Civil, quando o juiz se depara com uma instrução processual tímida e fraca, incapaz de convencê-lo. Diante da proibição do "non liquet", o juiz modifica o encargo de fazer a prova, transferindo-o à parte que tem mais condições de produzi-la no caso concreto visando afastar, de uma vez por todas, a obscuridade dos fatos para, com isso, conseguir formar o seu convencimento.
Frise-se, por oportuno, que a modificação do ônus da prova pelo juiz deve ser sempre pautada pela razoabilidade de tal medida. Se não há possibilidade da outra parte cumpri-lo a contento ou se a modificação da regra de distribuição do ônus da prova lhe implicar uma verdadeira pena, em vez de um ônus, não se justificará a alteração da regra geral. Urge, todavia, uma ponderação racional em cada caso, particularmente com o fito de certificar que a imposição dessa modificação não violará normas constitucionais e processuais protetivas de ambas as partes. Como cuidadosamente dito por LUIZ GUILHERME MARINONI, a modificação do ônus da prova só deve ocorrer quando "ao autor é impossível, ou muito difícil, provar o fato constitutivo, mas ao réu é viável, ou muito mais fácil, provar a sua inexistência." [09]
1.7. Momento de aplicação das regras de distribuição do ônus da prova
Ultrapassadas todas as tentativas, tanto das partes como do juiz, de fazer com que os fatos trazidos a julgamento fossem comprovados no processo e, ainda assim, persistir a situação de incerteza impeditiva do juiz proferir sua decisão de mérito, não lhe restará outra opção senão distribuir o ônus de ter ficado em estado de dúvida. Usando as regras de distribuição do ônus probatório, identificará quem sucumbirá no seu direito justamente por não tê-lo provado conforme seu encargo.
No que pertine à natureza das regras que fixam a distribuição do ônus da prova entre as partes, a doutrina especializada é divergente. Para uma parte dela, as regras em comento são regras de procedimento, destinadas às partes, indicando-lhes como devem ser suas condutas no processo, notadamente fixando-lhes a função de trazer as provas para o processo. Em contraponto, outra corrente doutrinária, da qual comungamos, sustenta que estas regras determinadoras do ônus probatório são regras de julgamento, dirigida ao juiz, que as utilizará no momento de sua decisão, onerando a parte a quem caberia a prova do fato e não a fez ou a fez de modo insuficiente ou deficiente. Deduz-se disto que estas regras não são destinadas às partes, tampouco postas para determinar como elas devem proceder na produção das provas que lhe competem, mas direcionadas ao juiz para influir na forma de seu julgamento quando o mesmo constatar no processo a ausência ou insuficiência de prova dos fatos ventilados no transcurso do processo. Na precisa lição de NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, "o sistema não determina quem deve fazer a prova, mas sim quem assume o risco caso não se produza." [10]
Enfim, no que tange ao momento de aplicação das regras de repartição do ônus da prova, entendidas como regras de julgamento, SÉRGIO CRUZ ARENHART é incisivo ao afirmar que estas
"não incidem no início do processo, de forma a apresentar às partes como devem comportar-se, senão ao final, quando do julgamento da causa - ou, excepcionalmente, em outro momento processual, por ocasião da análise de alguma liminar requerida - quando exauridas as formas de tentar obter a prova de todos os fatos relevantes ao processo." [11]
Imperioso, nesta ocasião, fazermos uma distinção merecedora de destaque, qual seja, entre o momento de aplicação das regras do ônus probatório e o momento da ciência às partes que a modificação das regras ocorrerá. Como explanado alhures, o momento de aplicação das regras do ônus probatório se dá quando o juiz está julgando a causa. No que toca ao momento da ciência às partes da modificação das regras do ônus probatório, em razão de situações peculiares detectadas no processo, há uma flamante polêmica baseada em eventual ofensa às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Muitos doutrinadores entendem que, para não ferir as garantias aludidas, o juiz deveria proceder tal comunicação às partes no momento do recebimento da petição inicial, ou por ocasião do despacho saneador, ou até o final da instrução. Quanto à fase processual exata de advertir às partes da provável mudança das regras do ônus probatório, é outra celeuma doutrinária que não vem ao caso. Com um forte argumento, CARLOS FONSECA MONNERAT ousa divergir de significativa parcela da doutrina defendendo a desnecessidade de aviso prévio da probabilidade de modificação do ônus da prova possivelmente aplicado pelo juiz ao tempo de sua decisão por uma simples razão: a previsão de tal possibilidade está na lei e todos os operadores do direito têm por obrigação conhecê-la. Sintetizando todo o seu raciocínio, conclui que "o juiz não precisa avisar às partes que, tendo dúvidas no momento da valoração das provas, utilizar-se-á de presunções, de máximas da experiência e, persistindo o impasse, aferirá a distribuição do ônus da prova. Está na lei." [12] ARENHART também envereda pelo mesmo caminho, porém, com um pouco mais de cautela, e diz que "este aviso anterior (sobre a modificação do regime do ônus da prova) é conveniente, mas não obrigatório para o juiz." [13] Outrossim, acrescenta:
"não se pode falar em lesão à ampla defesa e ao contraditório em razão da modificação dos critérios do ônus da prova, sendo a regra, naturalmente, destinada a incidir quando do julgamento da causa. Não há lesão a tais garantias constitucionais simplesmente pelo fato de que as partes não têm disponibilidade sobre as provas que detêm e que são de interesse do processo; é dever das partes apresentar todas as provas que possuem e que possam ter alguma importância para o processo, (...). Não há, por isso mesmo, que se falar em surpresa da parte diante da inversão do ônus da prova em seu prejuízo; se ela não produziu a prova que poderia fazer, faltou com dever processual, não podendo esta omissão ser invocada em seu beneficio." [14]