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Racismo no futebol sul-americano sob perspectiva dos Direitos Humanos e do Direito Desportivo

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Apesar da legislação, aumentam os casos de racismo no futebol sul-americano. As sanções concretas e efetivas ainda são poucas.

Resumo: O presente estudo busca formalizar reflexões acerca de como o Direito Desportivo, no contexto da CONMEBOL, atua no âmbito do racismo no futebol sul-americano. Constata-se que apesar da legislação, as sanções concretas e efetivas ainda são poucas. O presente artigo busca mostrar como um direito essencial, no caso o desportivo, é mais presente no nosso dia a dia do que se percebe. O estudo também traz como ao longo dos anos esse direito foi e vem sendo aperfeiçoado através de estudos e sua conexão com a tutela dos Direitos Humanos. A metodologia utilizada foi a dedutiva, analisando o assunto do geral para o específico, primeiro abordando a teoria geral dos Direitos Humanos, depois a evolução do Direito Desportivo e, por último, a temática específica do racismo no futebol sul-americano.

Palavras-chave: Racismo no Futebol Sul-americano. Direitos Humanos. Direito Desportivo.


INTRODUÇÃO

Este artigo pretende abordar o racismo no futebol sul-americano sob o enfoque dos direitos humanos e do direito desportivo, haja vista os conflitos existentes tanto no campo teórico, quanto prático. A pedido da CNN, o Observatório Racial do Futebol fez um levantamento, que mostrou que no ano de 2022 o futebol sul-americano registrou recorde nos casos de injúria racial e racismo. Os dados fazem alusão às duas competições regidas pela Conmebol: Copa Libertadores da América e Copa Sul-Americana (OBSERVATÓRIO, 2022).

Assim, o presente estudo justifica-se pelo aumento significativo de casos de discriminação racial no futebol sul-americano. O Trabalho utilizou de metodologia dedutiva, analisando o assunto do geral para o específico, começando pela Teoria Geral dos Direitos Humanos e a compreensão do Direito Desportivo. O último tópico trata da questão do Racismo no futebol Sul-americano. Da mesma forma, foi utilizada a pesquisa bibliográfica e qualitativa, uma vez que foram estudados aspectos subjetivos de fenômenos sociais (no caso, o racismo no contexto futebolístico).


1. TEORIA GERAL DOS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos são abastados de uma invariável e inegável relevância, são firmamento de todos os ordenamentos jurídicos, premissa imprescindível para se qualificar, efetivamente, um Estado Democrático e de Direito. Com a ajuda de sua proteção é que se conseguirá assegurar a dignidade humana.

No Estado Democrático de Direito, “devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos” (HC 82.424, Rel. Min. Moreira Alves, STF, J. 17/09/2003). É cognoscível que essa concepção moderna foi adotada pela Constituição Federal de 1988, na diretriz de tantas outras Leis Fundamentais, que estão em harmonia com a dinâmica internacional de avolumamento da tutela dos direitos das pessoas. Os Direitos Constitucionais intrínsecos encontram-se em comunicação com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, em todos esses campos foi maximizada a relevância dos direitos humanos.

Por consequência, legitima-se uma Teoria Geral. Esta avista, de início, localizar a matéria e fincar pilares introdutórios para o prosseguimento dos demais tópicos do artigo. Doravante, poder-se-á, ademais, explorar sobre os agrupamentos de proteção e outros temas correlatos, fundamentais para os Direitos Humanos.

1.1 Do Conceito de Direitos Humanos

Os direitos humanos são características de agir atribuídos ao indivíduo para certificar a dignidade humana nas proporções da liberdade, igualdade e solidariedade. Entreluzem na organização jurídica da comunidade internacional e são recebidos nos países que se comprometeram a assegurá-los em suas Constituições.

Não há um entendimento doutrinário pacífico, nem uma vertente jurisprudencial internacional marcada, menos ainda uma definição legal ou pactuada que possa fornecer de forma pacífica um conceito de direitos humanos. Cabe, consequentemente, à doutrina, por meio da observação de suas características e conglomerado de pensamentos, traçar um conceito, porventura, enriquecedor.

Os direitos humanos podem ser versados como:

A proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado ou regras para se estabelecer condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana (UNESCO, 1978, p. 11, apud ÂNGELO, 1998, p. 17).

Outro conceito usual é o de que os direitos humanos estabelecem um:

Conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional (TAVARES, 2008, p. 461).

Os Direitos Humanos, de acordo com a Organização das Nações Unidas, foram entendidos como uma garantia fundamental e universal que procura proteger os indivíduos e grupos sociais contra as fartas ações ou omissões daqueles que importunem contra a dignidade da pessoa humana. Em obra acerca do tema abordado, o jurista Ricardo Castilho, contextuou os Direitos Humanos e os Direitos Fundamentais, da seguinte maneira:

Assim como a expressão “pessoa humana”, a expressão “direitos humanos” também tem sido tema de grande debate, ao longo do tempo. Há autores que entendem que direitos humanos e direitos fundamentais são nomenclaturas sinônimas, mas a maioria concorda que existem diferenças conceituais. Falar em direitos fundamentais, simplesmente, elimina da expressão a importância das lutas que ocorreram para situar os direitos humanos em sua perspectiva histórica, social, política e econômica, no processo de transformação da civilização. Além disso, direitos humanos traz, no seu bojo, a ideia de reconhecimento e de proteção, que direitos fundamentais não contêm, uma vez que são apenas as inscrições legais dos direitos inerentes à pessoa humana. Os direitos humanos não foram dados, ou revelados, mas conquistados, e muitas vezes à custa de sacrifícios de vidas (CASTILHO, 2018, p. 43).

Além disso, em menção ao entendimento do jurista Ricardo Castilho, no que se refere a conquista histórica dos Direitos Humanos, válido se faz a explicação do desenvolvimento de suas gerações/dimensões.

1.2 Das Gerações/Dimensões dos Direitos Humanos

A teoria das gerações/dimensões tem como referência o desenvolvimento histórico dos direitos humanos na norma jurídica na esfera internacional e nas Constituições dos Estados Soberanos. Sugere que o processo de geração de direitos humanos é contínuo e inesgotável. Os apoiadores dessa teoria atam cada etapa civilizatória a valores pertinentes para a vida social. Sob a inspiração de determinado componente que constitui ou diz respeito a um valor, surgem direitos com o mesmo alinhamento.

Os direitos humanos não são represados ou intransmissíveis, mas suplementares e conexos: compõem-se uns aos outros para executar o ideal de dignidade humana. O vocábulo “geração” nos destina à ideia de direitos sob a mesma inspiração de determinado componente que constitui ou diz respeito a um valor, que se erguem em dado espaço de tempo e permanecem a se reproduzir de acordo com as etapas evolutivas da civilização. Também se utiliza o termo “dimensão” para evitar a falsa ideia de que uma geração supera a outra.

Podemos estruturar as gerações ou dimensões de direitos humanos da seguinte maneira:

a) 1ª Geração/Dimensão – liberdades públicas e direitos políticos;

b) 2ª Geração/Dimensão – direitos sociais, econômicos e culturais;

c) 3ª Geração/Dimensão – direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos;

d) 4ª Geração/Dimensão – direitos da bioética e direito da informática;

Cada geração/dimensão será brevemente analisada a seguir.

1.2.1. Primeira Geração/Dimensão de Direitos Humanos

A primeira geração ou dimensão dos direitos humanos tem seu fundamento na liberdade como elemento predominante. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789, é o seu marco histórico. Ainda se encontram nessa perspectiva as liberdades públicas e os direitos políticos.

1.2.2. Segunda Geração/Dimensão de Direitos Humanos

Os direitos de segunda geração ou dimensão advêm da apreciação teórica de Estado do Bem-Estar Social, que inicializou a ganhar forma após o fim da Primeira Guerra Mundial. Estabelecem-se por serem prestações estatais positivas que certifiquem igualdade a todos de oportunidades. Nas Constituições correntes, se subdividem nas seguintes categorias: direitos sociais, direitos econômicos e direitos culturais.

a) Direitos Sociais: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer segurança, previdência social, assistência aos desamparados, proteção à maternidade e à infância (art. 6º, CF).

b) Direitos Econômicos: valorização do trabalho, livre iniciativa, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, redução das desigualdades regionais e sociais, dentre outros (art. 170, CF).

c) Direitos Culturais: valorização e difusão das manifestações culturais, proteção às culturas populares, indígenas e afro-brasileiras; acesso às fontes da cultura nacional, proteção ao patrimônio cultural brasileiro, que são os bens de natureza material e imaterial portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, dentre outros (arts. 215 e 216, CF).

1.2.3. Terceira Geração ou Dimensão de Direitos Humanos

Os direitos de terceira geração ou dimensão, igualmente reputados como direitos de fraternidade, como foram intitulados por Karel Vasak, ou direitos de solidariedade, passaram a ser adotados nos textos constitucionais a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, se fortalecendo na década de 1960. Têm como delineamento o acolhimento de grupos sociais menos favorecidos e doravante a conservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado. A salvaguarda desses direitos depende em boa parte da atuação do Ministério Público ou de representantes da sociedade civil, em especial as organizações não-governamentais. Da mesma forma pode ser exercida pelo cidadão nas ações populares.

1.2.4. Quarta Geração ou Dimensão dos Direitos Humanos

A quarta geração ou dimensão dos direitos humanos ainda não está integralmente caracterizada. As convicções dos doutrinadores são divergentes em relação ao seu argumento. Muitos até não concordam com sua existência. A polêmica difere aos propósitos dessa exposição. Em tese, ela se desenvolve em dois eixos: os direitos da bioética (incluindo o biodireito), e os direitos da informática.

Alguns doutrinadores também alegam a existência de outras gerações ou dimensões de Direitos Humanos, porém tais concepções ainda não são aceitas de forma pacífica.


2. DO DIREITO DESPORTIVO

O Direito Desportivo resume-se a um ramo de operação jurídica focalizada no mundo dos esportes. Melhor dizendo, são as normas, os termos, as regulamentações e os comportamentos do Direito, porém empregues na esfera esportiva, como representação de clubes de futebol, atletas, associações, entre outros.

De início, é apropriado analisar a classificação do Direito Desportivo dentro do Ordenamento Jurídico. A maior e mais antecessora divisão positivista é aquela que desdobra o Direito em dois ramos: Público e Privado, em concordância com o critério da utilidade pública ou particular da relação, o primeiro tem relação com às coisas do Estado e o segundo seria alusivo aos interesses individuais.

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O Direito Desportivo se situa nas relações e na vida advindas da prática do desporto. O Estado em regra não participa diretamente da sua prática ou competição, mas na realidade o fomenta e regulamenta. Assim, o Direito Desportivo é considerado de natureza privada, porém contendo normas de ordem pública. De acordo com o professor Eduardo Viana:

o direito desportivo se apresenta em sentido amplo e em sentido restrito. Em sentido amplo acompanha a formação do Direito Civil, do Direito Penal, do Direito Administrativo, do Direito do Trabalho, do Direito Financeiro, do Direito Comercial, etc. Já em sentido restrito é a soma das leis internas, criadas e formalizadas dentro e por inspiração do desporto (DA SILVA, Eduardo Augusto Viana, p.37).

Somente no ano de 1938 surgem os primeiros documentos de legislação estatal ligados à prática desportiva: o Decreto Lei nº 527, o qual garante ao desporto a contribuição financeira da União. No ano de 1939 com o Decreto Lei nº 1056, é criada a Comissão Nacional de Desportos, alicerçada por cinco integrantes escolhidos pelo Presidente da República que detinha como missão desenvolver um projeto para regulamentar o desporto nacional. A tal projeto foi dado o nome de “Código Nacional de Desportos” e sua referência legal é o Decreto Lei 3.199 de 14 de abril de 1941. O “nacionalismo” da era Vargas fazia-se presente ao longo de praticamente todo o texto, como demonstrado no artigo 1º:

O Governo da República toma o patrocínio da instituição desportiva do país e institui um Conselho Nacional de Desportos (C.N.D.), incumbido de orientá-la de acordo com os princípios definidos pelo Estado para a formação física e espiritual dos brasileiros.

Todavia, este decreto tinha seus predicados, pois instaurava regulamentos gerais para o desporto, num momento temeroso para o esporte nacional, como a unicidade jurisdicional das entidades responsáveis. Em 1933 foi criada a Federação Brasileira de Futebol e as Federações Carioca e Paulista de Futebol, se contrapondo à Confederação Brasileira de Desportos (CBD), à Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA) e à Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA). Na Copa do Mundo de 1934, a atuação brasileira se ateve aos jogadores dos clubes fiéis às entidades “oficiais”, no caso a CBD, pois somente uma entidade pode ser reconhecida pela FIFA em certa jurisdição, sendo as demais entidades ironicamente reconhecidas como “piratas”.

O Decreto Lei nº 3.199 vigorou até o ano de 1975 ocasião em que foi revogado em razão da promulgação da Lei nº 6.251, apesar de que neste período tenha existido certas leis que modificaram ou acrescentaram a legislação vigente em 1941, especialmente o Decreto Lei nº 5.342, do ano de 1943, e o Decreto Lei nº 7.674, do ano de 1945, que abordava sobre a proteção devida ao desporto.

Nada obstante a existência de larga legislação sobre o tema, havia ainda quem levantasse dúvida sobre a existência do Direito Desportivo, conforme se percebe no pronunciamento do penalista Oscar Stevenson, em seu livro chamado “Da Exclusão de Crime”, publicado em 1941:

Tantas e tão notáveis as relações engendradas pelos desportos nos dias do presente, quer na órbita penal, quer na órbita civil, que os mais audaciosos proclamam o direito desportivo como realidade. Não vamos até aí. Nesse particular o futuro é que poderá dizer a última palavra (Apud, PERRY, Valed, p. 84).

Dada a evolução das técnicas legislativas, e do Direito Brasileiro em seu todo, o dirigismo intervencionista estatal direcionado ao desporto deveria extinguir-se, com o surgimento da Constituição de 1988, a qual valoriza a livre iniciativa e a autonomia das entidades desportivas. Assim, a Constituição Federal de 1988 concedeu à União Federal competência legislativa restrita a normas gerais em matéria desportiva.

No ano de 1998 entrou em vigor a Lei nº 9.615, denominada Lei Pelé, que havia ocupado o cargo de Ministro Extraordinário dos Esportes entre 1995-1999 e enviou o projeto ao Congresso Nacional. Das alterações trazidas pela Lei Pelé, cabe salientar em especial a dada obrigatoriedade da transformação dos clubes em empresas, conforme redação original do artigo 27 da Lei nº 9.615/98 que especificava a prática de atividade esportiva profissional para as sociedades revestidas da maneira jurídica na legislação, ou seja, impunha que os clubes se tornassem empresas, indo de encontro à autonomia garantida às entidades do Desporto pela Constituição Federal (art.217, I, CF/88) e contra uma série de Princípios Gerais de Direito como, por exemplo, o do direito adquirido.

No Brasil, há três leis essenciais que regimentam o esporte e que são instruídas ao advogado desportivo. São elas:

- Lei nº 9.615/98, ou “Lei Pelé”, que disserta sobre o direito dos atletas do futebol quanto às questões econômicas;

- Lei nº 10.671/03, ou “Estatuto do Torcedor”, que estabelece leis de proteção e segurança do torcedor; e a

- Lei nº 11.438/06, ou “Lei de Incentivos Fiscais ao Desporto”, que regulamenta os investimentos nas diferentes modalidades do esporte.

O Direito Desportivo vem com o passar dos anos, ganhando mais e mais significância dentro do ambiente do mundo esportivo. Isto se dá principalmente por todo o capital que gira neste segmento, sendo reconhecida como uma área economicamente rentável. A exemplo temos o protagonista deste artigo, ora nada mais nada menos que o Futebol, o qual movimenta todos os anos ‘rios’ de dinheiro, seja com jogadores, artigos do clube, direitos de transmissão, patrocínios e renda de bilheteria.


3. DO RACISMO NO FUTEBOL SUL-AMERICANO

O escritor Mário Filho, que empresta seu nome ao Maracanã, destaca que o The Bangu Athletic Club (atual, Bangu Atlético Clube), foi pioneiro no Brasil escalando um atleta amador preto no ano de 1905. O escritor Marcelo Medeiros aponta que, devido à época, tal decisão foi interpretada como ameaça a norma racial e social que se estruturava. Tal fato ocasionou no ano de 1907, que a Liga Metropolitana de Futebol viesse a divulgar um informe, que desautorizava expressamente a inscrição de “pessoas de cor” no futebol amador. O time decidiu então abandonar a liga e assim não participar do campeonato carioca da época (MÁRIO FILHO, 2010). No dia 7 de abril de 1924, o Vasco da Gama também emitiu um comunicado dizendo que se recusaria a jogar o campeonato carioca sem os seus jogadores negros, como havia sido determinado pela confederação (EL PAÍS, 2019). Com o passar do tempo, jogadores pretos foram incorporados aos campeonatos de futebol.

Na contemporaneidade, a Justiça Desportiva como organização do futebol (e dos demais esportes), tem a competência para lidar com casos de racismo em sua tutela, apesar da ampla legislação vigente no Brasil, pugnando esta prática, que infelizmente é mais comum do que se imagina em nossa sociedade. Em concordância com o que se extraiu do Observatório de Discriminação Racial no Futebol, a justiça desportiva não faz distinção entre injúria racial e racismo. Inclusive, possui um dispositivo que trata da prática discriminatória, sendo:

Art. 243-G do referido diploma legal: Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Pena: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais). 1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de pratica desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de pratica desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente. 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada a entidade de pratica desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.3º Quando a infração for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art. 170 (Código de Justiça Esportiva, 2012).

No dia 15 de fevereiro de 2023 a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou uma mudança no Regulamento Geral de Competições, estabelecendo, entre outras coisas, a possibilidade da perda de pontos por atos discriminatórios, conforme segue:

Art. 134 – A inobservância ou descumprimento deste RGC, assim como dos RECs, sem prejuízo de outras penalidades estabelecidas no presente Regulamento, sujeitará o infrator às seguintes penalidades administrativas que poderão ser aplicadas pela CBF, de forma cumulativa ou não, não necessariamente nesta ordem:

I – advertência;

II – multa pecuniária administrativa, no valor de até R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), a ser revertida em prol de causas sociais, inclusive através da dedução de cotas a receber;

III – vedação de registro ou de transferência de atletas; e.

IV – Perda de pontos, em relação a clubes por infração ao disposto no §1º e observado o §4º.

§ 1° - Considera-se de extrema gravidade a infração de cunho discriminatório praticada por dirigentes, representantes e profissionais dos Clubes, atletas, técnicos, membros de Comissão Técnica, torcedores e equipes de arbitragem em competições coordenadas pela CBF, especialmente injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia, procedência nacional ou social, sexo, gênero, deficiência, orientação sexual, idioma, religião, opinião política, fortuna, nascimento ou qualquer outra forma de discriminação que afronte a dignidade humana.

§ 2º - Na hipótese de reincidência das infrações elencadas no parágrafo primeiro, independentemente das sanções que venham a ser aplicadas pela Justiça Desportiva e de eventual apuração e responsabilização por crime, a multa pecuniária administrativa máxima poderá ser aplicada em dobro, que será integralmente revertida para entidade representativa de proteção de direitos, conforme o caso (...)

§ 4º - A penalidade disposta no art. 134, IV poderá ser imposta administrativamente pela CBF, encaminhado-se o caso ao STJD para apreciação, ficando sua cominação definitiva condicionada ao julgamento do STJD sobre a aplicação da perda de pontos ao clube infrator... (GE, 2023).

Assim, para que o clube seja punido com a perda de pontos são necessários dois passos: (1) a punição administrativa da CBF e (2) a confirmação do STJD em seu julgamento. Com certeza, foi um grande avanço.

Digno de nota que o Código da Fifa, determina que:

a discriminação de qualquer tipo contra um país, uma pessoa ou grupos de pessoas por causa da raça, cor da pele, etnia, origem social, gênero, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, saúde, local de nascimento ou qualquer estatuto, orientação sexual ou qualquer outra razão é estritamente proibida e passível de punição por suspensão ou expulsão (FIFA, 2022).

No dia 9 de maio de 2022, o Conselho da Confederação Sul-Americana de Futebol (CONMEBOL) alterou o artigo 17º do Código Disciplinar, aumentando as penas para atos discriminatórios, incluindo os seguintes:

1. Qualquer jogador ou funcionário que insulte ou atente contra a dignidade humana de outra pessoa ou grupo de pessoas, por qualquer meio, por motivos de pele, raça, sexo ou orientação sexual, etnia, idioma, credo ou origem será suspenso por um mínimo de cinco jogos ou por um período mínimo de dois meses. 2. Qualquer Associação Membro ou clube cujos apoiadores insultem ou atentem contra a dignidade humana de outra pessoa ou grupo de pessoas, por qualquer meio, por motivos de cor de pele, raça, sexo ou orientação sexual, etnia, idioma, credo ou origem, será multado em pelo menos cem mil dólares americanos (USD 100.000). O órgão judicial competente poderá também impor a sanção de disputar um ou mais jogos com portões fechados ou o bloqueio parcial do estádio. 3. Se as circunstâncias particulares de um caso a exigirem, o Órgão Judicial competente poderá impor sanções adicionais à Associação Membro ou ao clube, jogador ou funcionário responsável (CONMEBOL, 2022).

Anteriormente, a pena era uma multa máxima de 30.000 dólares americanos e não incluía a possibilidade de jogos com portões fechados. Esta alteração entrou em vigor no mesmo dia de sua emissão e é aplicável a atos racistas cometidos após essa data.

Portanto, é possível perceber, a partir da análise do Regulamento Disciplinar da CONMEBOL, a possibilidade de coibir atos dessa natureza de forma mais eficaz. Porém, na prática as punições mais contundentes geralmente só são cogitadas em caso de reincidência, o que fragiliza o combate ao racismo. Na edição da Copa Libertadores e da Copa Sul-americana de 2022, nenhum clube jogou com estádio vazio em virtude da prática de racismo por seus torcedores. Como é de conhecimento público, apenas para citar um exemplo, o tradicional Boca Juniors da Argentina teve manifestação racista em sua torcida nos dois jogos contra a equipe brasileira do Corinthians (SP) na Copa Libertadores, e mesmo assim não jogou com estádio vazio nem mesmo após a mudança do regulamento.

De fato, no histórico das competições da CONMEBOL, ainda não houve nenhuma sanção neste sentido, embora as práticas racistas ocorram já a décadas e em diversos jogos das suas mais variadas competições (incluindo categorias de base). Times muito populares e com peso político na CONMEBOL, como Boca Juniors (ARG), River Plate (ARG), Cerro Porteño (PAR) e Universidad Católica (CHI), tiveram manifestações racistas em suas torcidas. Agora é aguardar como a CONMEBOL irá tratar o assunto no decorrer das competições em 2023.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo trouxe à tona a discussão acerca de como o racismo afeta o desporto, mais precisamente o futebol sul-americano. Também foram analisados o regramento e o desempenho da Justiça Desportiva no combate a tal discriminação, incluindo a CONMEBOL. Foi possível constatar que a mesma, inúmeras vezes se mostra, infelizmente, ineficiente e branda no combate ao mesmo, ao invés de aplicar penas severas e efetivas, que de fato desestimulem esse tipo de prática.

Apesar de as instituições estarem aparentemente mais preocupadas com a vítima, o aspecto financeiro e político (incluindo o receio de desagradar dirigentes de equipes de futebol tradicionais, as quais possuem poder de voto e influência nas confederações e federações), ainda parece falar mais auto, deixando a vítima em segundo plano.

Desde 2013, o código disciplinar da FIFA, prevê que o clube envolvido direta ou indiretamente em racismo pode ser afastado da competição que disputa ou até mesmo rebaixado da divisão que se encontra. A pergunta que se faz é: “até quando a CONMEBOL atuará de forma branda para um problema tão sério como o racismo? A população e os atletas (principalmente pretos) continuam sofrendo discriminação em estádios de futebol no continente sul-americano e apesar dos avanços no campo teórico dos regulamentos das entidades esportivas, pouco se realizou de concreto.

É da expectativa que este artigo possa trazer reflexão acerca de um tema tão importante e presente na nossa sociedade, e que a justiça (incluindo a desportiva), seja eficaz às camadas historicamente negligenciadas e discriminadas da população, tendo em vista que a prática do futebol não pode se tornar um mundo à parte da proteção aos Direitos Humanos. Em síntese, é necessário compreender que o campo de futebol também está sob a tutela do ordenamento jurídico.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Código Brasileiro de Justiça Desportiva. Disponível em: https://www.esporte.gov.br/arquivos/cejd/arquivos/CBJD09032015.pdf.

CONMEBOL. Reglamento disciplinário. Gran Asunción: 2022. Disponível em: - https://www.conmebol.com/pt-br/

EL PAÍS. Vasco da Gama, o clube que abriu as portas do futebol para os negros. Edição de 07 abr 2019, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/05/deportes/1554498170_792322.html

HELAL, Ronaldo. O racismo no futebol carioca na década de 1920: imprensa e invenção das tradições. Fortaleza: Revista de Ciências Sociais. 42 (1): 77- 88, jan/ jun 2011.

HONESKO, Raquel Schlommer. Discussão Histórico-Jurídica sobre as Gerações de Direitos Fundamentais: a Paz como Direito Fundamental de Quinta Geração. In Direitos Fundamentais e Cidadania. FACHIN, Zulmar (coordenador). São Paulo: Método, 2008.

MÁRIO FILHO, O negro no futebol brasileiro, Mauad, 2010, Rio de Janeiro, 2010.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direitos humanos. 4. ed. ver., atual. E ampl. Rio de Janeiro; Forense: São Paulo: MÉTODO, 2017.

OBSERVATÓRIO RACIAL. Futebol sul-americano tem recorde de casos de racismo em 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/futebol-sul-americano-tem-recorde-de-casos-de-racismo-em-2022-aponta-observatorio/

PORTAL GE, CBF institui punições por racismo em futebol brasileiro, disponível em: https://ge.globo.com/futebol/noticia/2023/02/14/cbf-institui-punicoes-por-racismo-em-competicoes-brasileiras.ghtml

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.

SOARES, Antonio Jorge. O racismo no futebol do Rio de Janeiro nos anos 20: uma história de identidade. São Paulo: Revista Paulista de Educação Física. 13 (1): 119 -29, jan/ jun 1999.

UOL ESPORTE. Resolução da FIFA propõe medidas mais duras contra o racismo. 28 mai. 2013. Disponível em: <https://esporte.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2013/05/28/resolucao-da-fifa-propoe-medidas-mais-duras-contra-o-racismo.htm.

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Sobre os autores
Bruno Marini

Professor de Direitos Humanos, Biodireito e Bioética na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande (MS), Doutorando em Saúde (UFMS), Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB) e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP).

Joyce Ferreira de Melo Marini

Advogada (OAB/MS 24.832-B). Escritora. Professora de Direito Migratório. Possui Mestrado em Estudos Fronteiriços pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2018), Especialização em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza (2009) e Graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza (2007). Atualmente, é Colunista de Direito Internacional do Magis Portal Jurídico (MG), assina a Coluna: "Direito Internacional: Sob à Perspectiva dos Direitos Humanos e Migrações". E, tem experiência em Advocacia Consultiva na Feldmann Advocacia (SP), com ênfase no ramo do Direito Migratório. Contato/E-mail: [email protected]

Tarsis Witley de Arruda

Advogado, Especialista em Direitos Humanos (CLARETIANO)

Silvia de Araújo Ifran

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINI, Bruno ; MARINI, Joyce Ferreira Melo et al. Racismo no futebol sul-americano sob perspectiva dos Direitos Humanos e do Direito Desportivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7430, 4 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102963. Acesso em: 27 abr. 2024.

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