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Cooperativas: a liberdade de associação e o registro obrigatório na OCB

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A exigência de filiação à Organização das Cooperativas Brasileiras (Lei nº 5.764/71) para que as cooperativas possam funcionar é contrária à ordem constitucional vigente.

RESUMO

O cooperativismo brasileiro, mesmo depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, continua sendo regido pelas disposições da Lei 5.764/71. Por certo, algumas disposições desta lei não foram recepcionadas pelo ordenamento constitucional vigente no país, visto se confrontarem diretamente com o especial tratamento dispensado pelo Texto Magno às cooperativas. O presente estudo dedica-se à análise das disposições constantes dos arts. 105 e 107 da Lei 5.764/71, os quais prevêem a obrigatoriedade de registro das cooperativas junto à Organização das Cooperativas Brasileiras para entrarem em funcionamento, à luz dos princípios constitucionais da livre associação e da livre criação de cooperativas.

Palavras-chave: Cooperativas. Liberdade de associação. Livre criação de cooperativas. Registro obrigatório na OCB.


1 INTRODUÇÃO

O presente ensaio é fruto de reflexões a respeito da nova ordem constitucional instaurada pela Carta Política de 1988 e de algumas disposições da Lei nº. 5.764/71, que rege o cooperativismo no Brasil, quanto à liberdade de associação e à exigência de registro/filiação das cooperativas à Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

Ao participar do I Simpósio de Pesquisa em Direito Cooperativo, realizado pelo sistema OCB, na cidade de São Paulo-SP, em maio deste ano, uma das apresentações chamou-nos atenção. Notadamente, no "Painel de Direito Regulatório", um dos renomados palestrantes, que ali tratavam de temas e desafios atuais do Direito Cooperativo, defendeu a legitimidade da exigência de registro à OCB para que as cooperativas possam funcionar, sob pena de serem consideradas contrárias à ordem jurídica, enfim, "pseudocooperativas". Na oportunidade, também foram conclamadas as Organizações das Cooperativas nos Estados (OCE’s) a combater tal prática e a iniciar uma verdadeira "caça às fraudocooperativas", que ainda não se filiaram ao sistema e, por conseguinte, funcionariam irregularmente, "manchando a imagem do movimento cooperativista no Brasil".

Parando para refletir, iniciamos pesquisa sobre a temática. Descobrimos, então, que a orientação da OCB sobre o registro das cooperativas remonta ao final do século passado. Com efeito, o Parecer CONJUR 008/2000, da assessoria jurídica da OCB, é expresso no mesmo sentido do acima exposto. Senão, vejamos:

REF.: OBRIGATORIEDADE DO REGISTRO DE COOPERATIVAS NO SISTEMA OCB E DO PAGAMENTO DA CONTRIBUIÇÃO COOPERATIVISTA. LEGALIDADE CONFORME DISPOSIÇÕES DA LEI 5764/71.

[...]

Pode-se afirmar com total segurança, que as sociedades que não estiverem obedecendo as regras insculpidas na Lei 5764/71, notadamente as previstas nos artigos 107 e 108, são pseudocooperativas. Nesses casos, recomenda-se às Organizações Estaduais que seja feito um levantamento de dados dessas sociedades irregulares que estão utilizando indevidamente a bandeira cooperativista como forma societária, com posterior encaminhamento das informações aos órgãos de fiscalização: Federal, Estadual e Municipal para que os mesmos façam criteriosa apuração das irregularidades cometidas [01]. (sem negrito no original)

Preocupa a supracitada recomendação principalmente porque a Carta Magna de 1988 inaugurou uma nova ordem especialmente quanto às liberdades individuais e coletivas – e aqui se inclui a liberdade de associação e de formação de cooperativas –, rompendo com a pecha intervencionista e controladora dos Governos Militares. Somam-se a isto os obstáculos enfrentados por pequenas cooperativas organizadas por trabalhadores com dificuldades de inserção no mundo do emprego formal – as cooperativas populares –, que, após a difícil organização e regularização de seus empreendimentos, necessitam enfrentar ainda mais uma burocratizante exigência, qual seja, a de filiação obrigatória ao sistema OCB – com o qual não se identificam, dada a sua "estrutura simples" [02] –, para que, enfim, possam ser consideradas legítimas cooperativas. É o que justifica o este ensaio.

Destarte, o presente trabalho, construção teórica com base em pesquisa documental, tem por escopo trazer à baila a discussão sobre a constitucionalidade dos artigos 105, alínea "c" e 107, ambos da Lei 5.764/71 frente ao direito fundamental de liberdade de associação insculpido na Constituição Federal de 1988, levando em conta duas proposições básicas: (i) foi constitucionalmente recepcionada a exigência de registro na OCB para fins de funcionamento das cooperativas?; e (ii) qual é a identidade do sistema OCB frente à Ordem Constitucional de 1988? Não temos a pretensão de esgotar a temática, mas apenas levantar as bases por onde devem trilhar os debates.


2 DO DIREITO À LIBERDADE DE ASSOCIÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Antes de analisarmos os referidos dispositivos da Lei 5.764/71, calha tecermos alguns comentários a respeito do direito fundamental à liberdade de associação e de criação de cooperativas insertos na Constituição de 1988.

De maneira ampla, a delimitação do direito à liberdade de associação é regulamentada pela Constituição Federal em seu art. 5º, incisos XVII a XXI, in verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;

XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente; (grifos nossos)

Com efeito, da simples leitura dos retrotranscritos dispositivos, resta claro que a Constituição assegura ampla liberdade de criação de associações, sendo vedada qualquer interferência estatal em seu funcionamento. Tal vedação, contudo, não é absoluta, pois se exige que a associação seja para fins lícitos, estando proibida, de qualquer forma, a que tenha caráter paramilitar.

O professor José Afonso da Silva aponta que, da análise dos citados dispositivos constitucionais, podem-se extrair quatro direitos, quais sejam: a) o de criar associações, o qual independe de autorização; b) o de aderir a qualquer associação, visto que "ninguém será compelido a associar-se"; c) o de desligar-se da associação, porque ninguém poderá ser obrigado a manter-se associado; e d) o de dissolver espontaneamente a associação, já que o Estado não pode compelir as associações a existirem [03].

O insigne mestre do Direito Constitucional também aponta como garantia coletiva, trazida pela Constituição para proteger a liberdade de associação, a vedação de "interferência estatal no funcionamento das associações, nem, nos termos da lei, de cooperativa" [04].

Em particular, no que toca à formação de cooperativa, a Constituição assegura a liberdade de sua criação (art. 5º, XVIII), condicionando-a à observância do disposto em lei, e veda expressamente, em qualquer caso não previsto em seu texto [05], a interferência estatal em seu funcionamento. E nisto concordamos com o Professor José Afonso da Silva, para quem, como acima fizemos referência, não é possível a interferência estatal (entenda-se Poder Executivo) no funcionamento das cooperativas após terem sido legalmente constituídas.

Acredita-se, pois, que a Constituição garante tanto a livre criação de cooperativas – desde que preenchidos os requisitos previstos em lei para tanto – quanto a liberdade de auto-organização e auto-gestão (autonomia) de seu funcionamento, proibindo qualquer tipo de intervencionismo estatal neste pormenor.

Em dissertação sobre o tema, Eduardo Faria Silva (2006, p.92), ao tratar da liberdade de associação e da Lei 5.764/71, depõe:

A Constituição Federal de 1988 fez emergir expressamente, ao assegurar o direito à livre constituição e associação, nos incisos XVIII e XX do artigo 5 º, a contrariedade existente entre a redação da Lei n.º 5.764/71 e as lutas travadas pelos atores sociais contrários ao intervencionismo Estatal exercido e legalmente permitido no cooperativismo, bem como ao controle exercido no sistema pela OCB.

O novo texto constitucional, inscrito entre os direitos fundamentais regentes da sociedade e do Estado brasileiro, refundou a estrutura de poder constante no ordenamento jurídico e, no que se refere à liberdade de organização e associação para constituição e representação das sociedades cooperativas, pode ser entendido nas seguintes dimensões: a) como o direito de livre criação dessas sociedades e de livre estabelecimento das normas de organização, funcionamento e representação interna; b) como direito à livre associação das sociedades cooperativas entre si, para deliberarem sobre a criação de pessoa jurídica que as congregue e as represente na defesa de seus interesses comuns ou, em sentido oposto, o direito de se desvincular espontaneamente da pessoa jurídica a que estavam associadas, e c) em sua vertente negativa, pode ser compreendido como o direito a não se associar, ou de não tomar parte de qualquer entidade representativa, como têm ressaltado a doutrina e as Cortes Constitucionais de outros países [06]. (sublinhamos)

Sem sombra de dúvidas, a Carta de 1988 garantiu a autonomia que faltava às cooperativas, proporcionando o desenvolvimento dos mais variados ramos do cooperativismo, de forma independente e autônoma, através da ruptura com a histórica ligação do cooperativismo brasileiro aos órgãos estatais [07], indo ao encontro das concepções basilares do movimento, que incluem a emancipação e a libertação humanitária dos cooperativados contra qualquer tipo de estrutura dominadora e exploradora.

É mister destacar também que o art. 5º, XVIII, da Constituição configura-se como norma de eficácia contida, na medida em que está sujeita a restrições a serem impostas pelo legislador ordinário que limitem sua eficácia e aplicabilidade [08]. Isso quer dizer que, independentemente de autorização, podem ser criadas livremente cooperativas dentro dos limites e condições impostos pela lei, a qual será responsável por "conter" este direito de livre criação.

Por óbvio, as condições e os limites à formação de cooperativas não podem ser impostos por qualquer lei, devendo esta ser constitucional. Neste contexto, podem emergir dúvidas quanto aos limites da regulamentação infraconstitucional sobre a criação de cooperativas, mas é a própria Constituição quem nos auxilia a dirimi-las. Motivos infra.

Primeiramente, a lei que regulamentará a criação de cooperativas não poderá condicionar o seu funcionamento a qualquer tipo de autorização específica (que não as previstas na própria Constituição), a teor da primeira parte do art. 5º, XVIII c/c o parágrafo único do art. 170, da Carta Magna. Segundo, a lei também não poderá prever nenhuma forma de intervenção estatal nas cooperativas já legalmente criadas e em funcionamento, na esteira da última parte do art. 5º, XVIII, da Lei Fundamental. Terceiro, não poderá impor a filiação das entidades cooperativas a qualquer sistema de representação – quer oficial, quer não –, consoante a letra do art. 5º, XX, da Lei das leis. Por fim, sempre que possível, de lege ferenda, o legislador ordinário deverá estimular a atividade cooperativista no país, com vistas ao fortalecimento do movimento, o qual foi eleito como especial forma de organização do trabalho, de distribuição de renda e de combate das desigualdades em geral, de acordo com o disposto no art. 174, § 2º, inserido nas disposições constitucionais sobre a ordem econômica brasileira. Sobre o thema, dispara Paulo Renato Fernandes da Silva:

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Vale dizer, o Estado passa a reconhecer a importância da criação de uma ambiência jurídica e econômica propícia e facilitadora ao nascimento e desenvolvimento de cooperativas no país, como uma forma de minonar os efeitos das chagas sociais da miséria e do desemprego. Isso pode ser feito através de políticas públicas de incentivo e fomento ao associativismo cooperativo [09].

Por fim, giza-se que a incorporação no texto constitucional da proteção favorável à autonomia das cooperativas não pode, sequer, ser passível de alteração por processo de modificação constitucional (quer de revisão, quer de reforma), pois se encontra sobre o manto de proteção das cláusulas pétreas (art. 60, §4º da CF/88).

Isso posto, passemos à análise dos dispositivos da Lei 5.764/71 frente à regulamentação constitucional do direito à liberdade de associação.


3 A CRIAÇÃO E O FUNCIONAMENTO DAS COOPERATIVAS E A LEI 5.764/71

Dispõe a Lei 5.764/71, in verbis:

[...] Art. 105. A representação do sistema cooperativista nacional cabe à Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB, sociedade civil, com sede na Capital Federal, órgão técnico-consultivo do Governo, estruturada nos termos desta Lei, sem finalidade lucrativa, competindo-lhe precipuamente:

[...]

c) manter registro de todas as sociedades cooperativas que, para todos os efeitos, integram a Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB;

[...]

Art. 107. As cooperativas são obrigadas, para seu funcionamento, a registrar-se na Organização das Cooperativas Brasileiras ou na entidade estadual, se houver, mediante apresentação dos estatutos sociais e suas alterações posteriores.

Parágrafo único. Por ocasião do registro, a cooperativa pagará 10% (dez por cento) do maior salário mínimo vigente, se a soma do respectivo capital integralizado e fundos não exceder de 250 (duzentos e cinqüenta) salários mínimos, e 50% (cinqüenta por cento) se aquele montante for superior.

Ambos os supracitados dispositivos são originalmente encontrados desde a sanção da Lei nº 5.764/71 e carregam consigo o ranço do intervencionismo estatal sobre o cooperativismo desde os tempos da Ditadura Militar. Com efeito, tanto a alínea "c" do art. 105 quanto o art. 107 contêm regra explícita que (i) condiciona o funcionamento das cooperativas ao registro na OCB e (ii) impõe, ab initio, a filiação de todas as cooperativas ao sistema OCB de representação.

Em defesa dos dispositivos em comento, pronunciou-se a OCB por meio do citado Parecer CONJUR nº 008/2000, in litteris:

Após a realização das formalidades relativamente à constituição, os atos originários da criação da sociedade cooperativa são levados ao registro e arquivamento na Junta Comercial do Estado. Ainda com relação a parte constitutiva, reservou o legislador a obrigatoriedade que se fossem tais atos levados a registro, junto à Organização das Cooperativas Brasileiras. A aquisição da personalidade jurídica da cooperativa efetiva-se, portanto, após o cumprimento desses requisitos básicos.

A disciplina legal sobre a questão do registro está contemplada no artigo 107, da lei de regência do cooperativismo, que assim dispõe, in verbis:

[...]

Cumpridas todas as etapas conforme as considerações acima, a sociedade estará plenamente legalizada, podendo, daí por diante, exercer os seus objetivos sociais cooperativistas. Qualquer desvio de conduta relativamente ao cumprimento dos ditames da lei de regência, ensejará a descaracterização da sociedade como cooperativa, enquadrando-a no rol de sociedade irregular. (g.n.)

Ao condicionar a aquisição da personalidade jurídica e, conseqüentemente, do funcionamento das cooperativas à "autorização" da OCB, o parecer CONJUR 008/2000 contraria tanto a ordem constitucional, quanto a sistemática da Lei 5.764/71, bem como os princípios basilares de hermenêutica jurídica. É o que passaremos a abordar.

Num esforço de interpretação, podemos imaginar a forma como o sistema OCB enxerga o direito à liberdade de associação e de criação de cooperativas garantidos pela Constituição. Com efeito, num raciocínio simplista, pode-se dizer que, quando da elaboração do Texto Magno, o constituinte originário tinha previamente delineado um modelo para o cooperativismo brasileiro, qual seja o contido na Lei 5.764/71, pelo qual as cooperativas deveriam pautar sua atuação de acordo com os princípios contidos em seu art. 4º e teriam sua constituição e funcionamento sob a guarda de um órgão, criado pelo Estado para representar o movimento no país e resguardá-lo de iniciativas contrárias aos seus interesses. Diante disso, se a criação das cooperativas, independentemente de autorização, deva ser na "forma da lei", como prevê a Constituição; se a lei 5.764/71 é a Lei de Regência do Cooperativismo no Brasil e nela está previsto a filiação obrigatória ao sistema OCB para o funcionamento das cooperativas, logicamente seria constitucional tal exigência. Isso porque não se trataria de efetiva "autorização" (o que é expressamente vedado pela Constituição Cidadã), mas de mera "filiação sindical". Trata-se, porém, de exegese puramente legalista, porquanto não se sustenta frente a uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico pátrio.

Efetivamente, dispõe o Código Civil de 2002 que:

Art 45. Começa a existência legal das pessoas jurídica de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

Prima facie, parece que o disposto no Código Civil brasileiro corroboraria com a Lei 5.764/71, pois permitiria a prévia aprovação para inscrição dos atos constitutivos de certas pessoas jurídicas de direito privado. No entanto, logicamente, não é o mesmo que se condicionar o registro das cooperativas à aprovação da OCB, visto que esta não integra o Poder Executivo (o único que dispõe de competência para proceder à autorização e ao arquivamento), por ser entidade civil de natureza privada [10], como restará exposto mais à frente.

De outra sorte, pode parecer também, de uma leitura rápida do art. 45 do C.C./2002, que, para cada pessoa jurídica de direito privado (associações, sociedades, fundações), exista um "registro" respectivo e, assim, caberia às cooperativas registrarem-se na OCB, por ser ela o seu "respectivo registro" – o que não é o caso. Isso porque os "respectivos registros", aos quais se refere o retro transcrito artigo da Lei Civil, no caso das sociedades – onde se incluem as cooperativas – são (i) o registro Civil das Pessoas Jurídicas, para as sociedades simples (art. 998, CC/02), e (ii) o Registro Público das Empresas Mercantis, para as sociedades empresárias (art. 967, CC/02).

Nesta senda, conquanto a equiparação feita pelo Código Civil de 2002 entre as cooperativas e as sociedades simples (art. 982, parágrafo único), ressalvadas as posições em contrário, é pacífico o entendimento de que as cooperativas devam registrar seus atos constitutivos nas Juntas Comerciais para adquirir personalidade jurídica, dado as disposições especiais da Lei de Regência [11].

Do mesmo modo, o § 6º do art. 18 da Lei 5.764/71 explicita que: "arquivados os documentos na Junta Comercial e feita a respectiva publicação, a cooperativa adquire personalidade jurídica, tornado-se apta a funcionar". Ou seja, mesmo que se considere apenas o microssistema da Lei 5.764/71, ainda assim teríamos uma antinomia entre os seus arts. 105, "c", e 107 frente às disposições de seu art. 18, § 6º. Fiquemos com o dispositivo que melhor se alinhe aos ditames constitucionais, qual seja, o § 6º do art. 18 da Lei do Cooperativismo.

A aquisição de personalidade jurídica, após o devido arquivamento dos atos constitutivos da pessoa jurídica (cooperativa, in casu), implica na "aptidão genérica para adquirir direito e contrair obrigações" [12]. É a atribuição de personalidade jurídica que torna apta a pessoa jurídica a participar de qualquer espécie de relação jurídica com outras pessoas – ou seja, a "funcionar" – não podendo o Estado interferir, especialmente no caso das cooperativas, em seu funcionamento.

Outrossim, se desconsiderarmos o ordenamento jurídico infra-constitucional, e focarmos nossa análise apenas sobre o Texto Fundamental, veremos que os dispositivos da Lei de Regência do Cooperativismo em comento afrontam diretamente o direito à livre associação e criação de cooperativas, como aqui delineado no item 2 supra.

Isso porque, primeiramente, dispõe a Carta Política de 1988 que é livre o "exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei" (art. 170, parágrafo único). Na ressalva contida na parte final do parágrafo único, do art. 170, da Constituição, não se incluem as cooperativas. A um porque o seu objeto (serviço, produção, comércio) é que se constitui em "atividade econômica" e não sua estrutura societária ("de cooperativa"). E, a dois porque as cooperativas (organização societária) independem de autorização para funcionar, desde que sua criação se processe "na forma da lei" (art. 5º, XVIII, CF/88).

Segundo, porque é vedada a interferência estatal no funcionamento das cooperativas (art. 5º, CF/88), sendo inconstitucional exigir que para funcionar elas tenham de se registrar obrigatoriamente na Ordem das Cooperativas Brasileiras (art. 107, Lei 5764/71). Ora, se é garantido o livre exercício de atividade econômica, sem necessidade de autorização de órgãos públicos, por que seria exigida "autorização para funcionar" para as cooperativas, emitida por entidade que nem sequer compõe a Administração Pública? Apenas se considerássemos que a OCB teria o mágico poder de transformar qualquer "sociedade de no mínimo vinte pessoas" em legítima cooperativa pelo simples fato de nela ser registrada, poderíamos defender a recepção do art. 107 da Lei 5.764/71 pela Constituição de 1988 – o que também não é o caso.

Terceiro, porque é assegurada a liberdade de associação. Esta, por um lado, implica na garantia de que ninguém será obrigado a associar-se e, de outro, igualmente, ninguém será compelido a manter-se associado. Ou seja, ela possui um caráter positivo, de associação livre, e um viés negativo, o de não-associação livre. Deste modo, dizer que todas as cooperativas integram obrigatoriamente o sistema representativo da OCB (art. 105, "c", c.c. art. 107, da Lei 5.764/71) é o mesmo que declarar que para elas não existe o direito de livre associação garantido pelo art. 5º, XX, da Constituição Federal, o que é inconstitucional.

Eduardo Faria Silva corrobora as idéias aqui expostas, ao asseverar que:

Nesse ambiente político-constitucional, que conjuga valores, princípios e normas, a instituição e o funcionamento das sociedades cooperativas continuam a ser regulados pela Lei n.º 5.764/71, mas esta norma não pode, em hipótese alguma, conter dispositivos que venham ferir ou restringir os direitos fundamentais afirmados. Assim, a Lei n.º 5.764/71 foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, nos pontos em que é mantida a harmonia com o sistema constitucional vigente.

Adotando-se essa posição hermenêutica coerente com o programa e a estrutura constitucional vigentes, os artigos 17, 18, 105 e 107, da Lei n.º 5.764/71, foram, sob o ângulo material, revogados tacitamente, em virtude da superveniência da Constituição Federal, pois os artigos revelam o caráter intervencionista e controlador estatal na atividade privada, preconizada em um modelo de Estado claramente refutado, desde 1988, pela sociedade brasileira.

Como se observa, compõem esse conjunto de dispositivos revogados todos aqueles que sustentavam a existência de um sistema de intervenção e de controle do Estado, de forma direta ou delegada, sobre a atividade privada das cooperativas [13]. (g.n.)

Ainda o mesmo autor, agora em Parecer Jurídico sobre a constitucionalidade da Portaria nº 939/05, do Ministério do Planejamento,Orçamento e Gestão, a qual impõe às cooperativas o registro junto à OCB para fins de cadastro no SIAPE, opinou:

Finalmente conclui-se pela inconstitucionalidade e ilegalidade de exigência constante da Portaria n º 939//05, em exame, porque impõe às cooperativas o registro de seus atos constitutivos, junto à Entidade de caráter privado, sindical patronal, o que contraria, frontalmente, a liberdade de criação dessas pessoas jurídicas e de atribuição de sua personalidade jurídica. O ato administrativo regulamentar atinge, ainda, a liberdade de associação dessas sociedades cooperativas, e dificulta seu funcionamento, promovendo a quebra do tratamento isonômico que o Estado deve dispensar a todos os cidadãos e entidades privadas, ao realizar suas atividades [14]. (g.n.)

No mesmo sentido, a Justiça Federal, no Rio Grande do Sul, firmou o seguinte entendimento em caráter liminar, em sede de Mandado de Segurança:

De fato, a exigência em pauta cerceia o direito constitucional de livre associação, uma vez que o art. 5º, XX da CF/88 diz que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado. Ademais, também a Constituição garante, pretendendo incentivar a criação de cooperativas, que estas não dependem de autorização do Poder Público para serem criadas. Ora, se não dependem sequer de autorização do Poder Público, por que dependeriam de autorização de pessoas jurídicas de direito privado, como os sindicatos? E em que pese a lei estadual não mencionar o vocábulo ‘autorização’, a exigência de pré-registro no Sindicato Funciona como verdadeira autorização para funcionarem as cooperativas, na medida em que sem tal medida não conseguem efetivar o registro na Junta Comercial, e em conseqüência, no CNPJ, inviabilizando inteiramente as atividade da Cooperativa, o que denota a presença do periculum in mora [15]. (g.n.)

Por derradeiro, anota-se que, mesmo que se considere o registro à OCB como uma filiação sindical, igualmente cairíamos na garantia constitucional do direito à livre associação. E, neste caso, ainda se acresça a garantia de livre associação sindical, especificamente inserta no art. 8º, V, da Constituição Federal.

Por tudo isso, conclui-se pela não recepção dos arts. 105, "c", e 107 da Lei 5.764/71 pela Constituição Federal de 1988, o que implica na revogação destes dispositivos, visto que conflitam diretamente com o texto da nova Carta [16], o que responde à primeira de nossas indagações.

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Sobre o autor
José Carlos Bastos Silva Filho

Advogado.Procurador do Estado do Piauí.Professor. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão.Especialista em Docência do Ensino Superior pelo Instituto Labora/ Universidade Estácio de Sá-RJ. Especialista em Direito Processual do Trabalho pela OAB/ESA-MA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA FILHO, José Carlos Bastos. Cooperativas: a liberdade de associação e o registro obrigatório na OCB. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1568, 17 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10495. Acesso em: 26 abr. 2024.

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