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O garantismo penal e o aditamento à denúncia

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01/12/2000 às 00:00
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VII - O OBJETO DO PROCESSO PENAL

Esta não é a sede adequada para nos aprofundarmos no estudo do objeto do processo, porém não podemos deixar de abordar seu conceito (o que se entende por objeto do processo), seu fundamento e suas funções.

O objeto do processo é um consectário lógico do sistema acusatório, pois refere-se aos "fatos descritos na acusação (22)" os quais o juiz não poderia conhecer se não houvesse provocação da parte autora, no nosso caso, o Ministério Público.

A pretensão processual penal que serve de veiculo para a imputação penal de fato definido como infração penal é que traduz o objeto do processo. Nesse caso o fato imputado é aquele ocorrido no mundo dos homens, o fato humano da natureza, praticado de determinado modo em situação de tempo e de lugar e que tem enquadramento em um tipo penal. Trata-se de um fato concreto, real, indivisível e único.

O fato que serve como suporte do objeto do processo não pode ser confundido com artigo de lei, ou seja, com um certo tipo legal de crime, mas sim, como um acontecimento histórico da vida, como um fato ocorrido no mundo dos homens que recebe ou não do ordenamento jurídico, relevância penal.

Muita vez o fato narrado na denúncia, traduzido na pretensão processual penal, não constitui crime e nem por isso deixou o processo de ter objeto. A afirmativa de que o objeto do processo é o fato crime definido como tal na lei penal é falsa, pois se ao final do processo se descobrir, através da verdade real, que o fato não é crime, nem por isso deixou o processo de ter objeto. O objeto do processo é assim a pretensão processual penal onde se traduz a acusação (imputação + pedido) de um fato da vida, um pedaço do todo que deve ser individualizado na denúncia.

Isasca (23) define o objeto do processo com as seguintes palavras:

"Objeto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço unitário da vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstruir o mais fielmente possível".

É exatamente esse fato da vida que tem que ser traduzido e transportado para o processo, através da pretensão processual penal, a fim de circunscrever os limites do conhecimento do juiz dentro do qual julgará a lide. Portanto, o objeto do processo tem três funções básicas que nos são apontadas pelo jurista alemão Claus Roxin (24):

(...) designar o objeto da litispendência, demarcar os limites da investigação judicial e de obtenção da sentença e definir a extensão da coisa julgada.

Em resumo, podemos dizer que o objeto do processo é o tema proposto como res iudicanda e que sua finalidade mais característica é a obtenção da res iudicata. O objeto resulta ser assim um assunto da vida; a materialidade afirmada como penalmente relevante (25).

Ora, se o fato da vida, objeto do processo, já foi objeto da sentença que passou em julgado não pode o réu ser acusado, novamente, pelo mesmo fato, sob pena de haver violação da regra do no bis in idem, verdadeira garantia penal de todo e qualquer acusado, em um processo penal justo e democrático. O processo penal tem exatamente esse escopo: servir para abordar um fragmento da vida (criminal) em sua totalidade (26). Trazer parte da vida praticada e vivida pelo homem para o processo a fim de que possamos julgar se, efetivamente, aquele fato merece ou não uma resposta penal do Estado no sentido de se aplicar a sanctio iuris cabível; ou de resgatar a dignidade da pessoa humana acusada do fato veiculado na pretensão processual penal (objeto do processo), face a impossibilidade do Ministério Público de provar o que alegou em sua denúncia.

O objeto do processo delimita a prestação jurisdicional sob dois aspectos: subjetivo e objetivo. Quanto ao aspecto subjetivo o judiciário não poderá emitir qualquer decisão que não seja sobre a pessoa do acusado, fazendo com que a sentença, transitada em julgado, tenha força de lei entre as partes as quais é dada (cf. art. 472 do CPC). Surgindo prova nova de que outro indivíduo também participou daquele fato da vida junto com o acusado, em verdadeiro litisconsórcio, deve a denúncia ser aditada (acrescida) para incluí-lo. Porém, jamais ser ele julgado sem constar formalmente da acusação veiculada na pretensão processual penal.

O segundo aspecto (objetivo) impõe identidade do objeto durante todo o curso do processo a fim de que o acusado possa, efetivamente, exercer sua ampla defesa dos fatos descritos na denúncia. Ser acusado de um furto simples e resultar condenado em um roubo por ter sido comprovado, de forma inequívoca, o uso de violência é fazer tábula rasa do objeto do processo, sem contar dos princípios da ampla defesa, do contraditório, da correlação entre a acusação e a sentença e da verdade real.

Na doutrina alemã, Roxin (27), assim se manifesta:

A identidade do objeto processual tem um componente pessoal e um material, é dizer, ela pressupõe: a identidade da pessoa e a identidade do fato

O juiz deve pronunciar-se sobre os fatos e sujeitos descritos na denúncia, respeitando o princípio da correlação entre acusação e sentença.

Frederico Isasca (28), em sua excelente obra, assim se manifesta:

Uma vez tomado o acontecimento da vida como a base do processo, necessário será que este seja suficientemente descrito, pois sem uma correcta e concreta individualização dos factos acusados, não é possível ao agente defender-se convenientemente e poder afastar de si uma possível punição, nem ao tribunal é fornecida a base de confiança e de certeza necessárias para fundamentar e proferir uma decisão, quer esta seja absolutória quer condenatória, e aplicar, de uma forma justa, a lei penal.

A perfeita delimitação do objeto do processo, portanto, não é mero deleite doutrinário muito menos uma questão meramente teórica sem nenhuma repercussão na validade do processo em si. Trata-se da necessidade de se identificar eventual litispendência, coisa julgada, modificação da ação ou sua cumulação (29).


VIII - A COISA JULGADA: CONCEITO, FUNDAMENTO, LIMITES, NO BIS IN IDEM

Conceito.

O conceito de coisa julgada é polêmico e antigo no direito, sendo, inclusive, proveniente do direito privado romano onde a irrevogabilidade da sentença penal era desconhecida, diferente da sentença civil (30).

Coisa julgada, na definição clara de Giovanni Leone (31), é a coisa sobre a qual haja recaído a decisão do juiz; expressando uma entidade passada, fixa, firme no tempo. Significa decisão imutável e irrevogável, a imutabilidade do mandato que nasce da sentença.

Mas foi Liebman quem tratou da matéria e melhor definiu coisa julgada como sendo "o comando emergente de uma sentença. Não se identifica com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato (32).

A coisa julgada pode ser formal ou material. Formal quando fica limitada ao processo que com ela se encerra. Material quando transcende nos seus efeitos para atingir processo posterior sobre o mesmo litígio (33). Criam-se vínculos e limitações de natureza processual e material que impedem o bis in idem, ou seja, o reexame do mérito da questão decidida em outro processo perante as mesmas partes.

Fundamento.

O fundamento da coisa julgada repousa exatamente na necessidade que tem o Estado de garantir a todos os indivíduos (partes ou não no processo) que os conflitos que foram objeto de julgamento e, portanto, de apreciação pelo Estado, terão um fim com a decisão judicial de forma a não mais se admitir discussão.

Portanto, se pode dizer, com Manzini, que o fundamento do instituto da autoridade da coisa julgada está na necessidade de aplicar e assegurar a ordem jurídica estabelecida pelas leis do Estado (34). Trata-se de um garantismo penal do acusado de que as questões decididas pelo juiz, em sua sentença, não poderão ser revistas, salvo se for em benefício do réu, através da revisão criminal.

O processo penal, dentro de um Estado Democrático de Direito, tem que dar as garantias necessárias ao acusado de que as questões propostas, discutidas e decididas pelo Estado, não poderão ser reabertas, sob pena de se criar uma instabilidade social e um abalo aos pilares de sustentação do Estado justo de direito.

No Brasil, (diferente da Alemanha, Noruega, Portugal, Rússia e Suécia) não se admite a revisão criminal pro societat, ou seja, a desconstituição de sentença absolutória mesmo que eivada de error iudicando ou error in procedendo. Nesse caso, a discussão da coisa julgada traz inúmeras questões interessantes (cf. item X, infra) que merecem nossa análise a fim de enfrentarmos o no bis in idem (35).

Destarte, a coisa julgada é mais uma medida de segurança criada em favor do indivíduo do que, propriamente, de um instituto meramente processual sem conseqüências práticas. É Claus Roxin quem nos dá suporte para esta afirmativa. Diz o mestre alemão:

"A coisa julgada material serve de proteção do acusado. Com ela se reconhece jurídico-fundamentalmente seu interesse em ser deixado em paz depois de ditada uma decisão de mérito que já não mais é impugnável. (36)

A coisa julgada impede, assim, que os fatos que foram objeto de julgamento possam ser investigados, novamente, pelo Estado em face do mesmo réu, com a desculpa de melhor apurar os fatos e descobrir situações que agregam o fato principal ou de circunstâncias que lhe pertencem, porém que não foram objeto de julgamento.

Limites.

Há limites objetivos e subjetivos na coisa julgada.

A eficácia, em si, da sentença atua em relação a todos os indivíduos, porém a res iudicata só tem validade entre as partes as quais é dada (37). As partes suportam a sentença transitada em julgado. A imutabilidade se dirige às partes. Assim, se Caio é absolvido da prática do crime de roubo e a sentença transita em julgado nada impede que Ticio seja processado, pelo mesmo fato, face o concurso de agentes descoberto após o trânsito em julgado. Nesse caso, dependendo do fundamento da sentença, poderá Ticio ser trazido ao banco dos réus. O limite do caso julgado atinge apenas a Caio. Entretanto, se Caio foi absolvido por ser o fato atípico, lógico que Ticio não poderá ser processado pelo mesmo fato, pois aplica-se o art. 580 do CPP, analogicamente. A isso chamamos de limites subjetivos da coisa julgada.

O fundamento político dos limites subjetivos da coisa julgada está no próprio direito de liberdade, como acentua Ada Pellegrini Grinover (38)

Os limites objetivos se referem aos fatos objeto de julgamento. Os fatos principais. Os pontos ou questões litigiosas que foram decididos na sentença é que circunscrevem os limites objetivos da coisa julgada.

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O Código de Processo Penal é tímido quanto ao limites objetivos da coisa julgada referindo-se aos mesmos no art. 110, §2º do CPP:

§ 2º - A exceção de coisa julgada somente poderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido objeto da sentença (sem grifos no original).

Ora, o que entender por fato principal para acobertar-lhe com o manto da coisa julgada?

Entendemos que fato principal é aquele fato material ocorrido no mundo dos homens independentemente da qualificação jurídico penal dada ao fato. É o fato, cometido pelo homem, em sua integridade física. É o fato histórico ocorrido na vida.

Se Tício subtraiu para si coisa móvel alheia mediante destruição de obstáculo com emprego de arma de fogo (fato da vida, ocorrido no mundo dos homens) porém, o Ministério Público somente imputou ao ele a subtração para si de coisa móvel alheia mediante destruição de obstáculo (furto qualificado), não pode o Estado, após o trânsito em julgado, mesmo com provas novas, instaurar processo pelo crime de porte de arma. O fato principal é um só e já foi julgado. Entender diferente, é estabelecer no ordenamento jurídico brasileiro a revisão criminal pro societat, o que, por si só, é vedado.

Não pode o Estado continuar as investigações sobre o acusado que foi absolvido com trânsito em julgado, alegando que o crime foi de roubo, porém não ficou demonstrada a grave ameaça exercida com a arma de fogo. Assim, inadmissível será instauração de novo processo para apurar, agora, aquele porte (ou utilização) de arma. A utilização da arma faz parte do fato principal (roubo) que já foi objeto de julgamento e não admite reabertura da ferida cicatrizada com a res iudicata.

No mesmo sentido, se o acusado foi condenado no furto simples não pode o Estado, agora, aceitar a instauração de novo processo, contra o mesmo réu, pelo crime de dano alegando ter havido destruição de obstáculo à subtração da coisa, já objeto de julgamento trânsito em julgado.

O fato principal é um só e já foi objeto de julgamento.

E ainda: se absolvido do crime de furto não pode o réu ser, agora, acusado pelo crime de constrangimento ilegal (ou lesão corporal leve) contra mesma vítima praticado no mesmo dia, hora e local, provando-se, entretanto, com provas novas, que houve emprego de violência. O fato é um só. Já operou o trânsito em julgado, nada mais se pode fazer, sob pena de não haver a segurança e a estabilidade social que exige a coisa julgada.

A coisa julgada açambarca o fato sob todos os pontos de vista jurídicos (39). Se o réu foi absolvido (ou condenado) pela prática do crime de latrocínio não pode o Estado, agora, querer instaurar novo processo, pelo mesmo fato, contra o mesmo réu, pela prática do crime de homicídio com a desculpa de que novas provas demonstram que nada foi subtraído e que sua intenção era de matar. O fato principal, sobre o qual recaiu a apreciação do Estado, já está protegido pelo manto da res iudicata.

É bem verdade que o Código de Processo Penal é tímido na disciplina da coisa julgada não havendo, como deveria, um capítulo próprio da res judicata. Entretanto, nada impede que se aplique não só o disposto no § 2º do art. 110 CPP, mas também as regras insertas no Código de Processo Civil (40).

O no bis in idem tem a função garantidora impedindo que o acusado, que já se submeteu a cerimônia fúnebre (41) que é o processo penal, venha novamente a ser processado pelo mesmo fato.

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Sobre o autor
Paulo Rangel

promotor de Justiça no Rio de Janeiro, professor da Faculdade Cândido Mendes, da Escola da Magistratura e do CEPAD, mestrando em Direito Processual Penal e Criminologia da Universidade Cândido Mendes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RANGEL, Paulo. O garantismo penal e o aditamento à denúncia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1057. Acesso em: 19 abr. 2024.

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