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O garantismo penal e o aditamento à denúncia

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01/12/2000 às 00:00
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IX. OS ARTS. 384, PARÁGRAFO ÚNICO E 385, AMBOS DO CPP

Art. 384 - Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas.

Parágrafo único - Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas.

Art. 385 - Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada (no original sem grifos).

As regras legais acima merecem uma análise, mesmo que superficial, de suas implicações diante de tudo que acima foi visto.

Em primeiro lugar o caput do art. 384 fala em circunstância elementar, termo esse que é impróprio, pois ou é circunstância e, portanto, está em volta de; ou é elementar e, nesse caso, está dentro. A elementar mexe na estrutura do crime, ou seja, faz com que desapareça ou surja outro. A elementar funcionário público se for retirada do delito do art. 319 CP (prevaricação) o mesmo desaparece. Entretanto, se for retirada do delito do art. 312 CP (peculato) restará o tipo do art. 168 CP (apropriação indébita).

A circunstância aumenta ou diminui a pena, porém o tipo fundamental continua o mesmo. A violenta emoção diminui a pena no homicídio, mas o tipo continua o mesmo (cf. art. 121, § 1º CP). No furto o repouso noturno aumenta a pena, porém se não existir o tipo continua o mesmo.

Não vemos razão para distinguir, como o código faz (e a doutrina aceita (42)), entre circunstância que agrava a pena prevista na parte geral do código penal (o fato do agente cometer o crime contra ascendente: filho que mata o pai) e a prevista na sua parte especial, por exemplo, o repouso noturno que aumenta a pena do furto. Entendemos que em ambos os casos deve ser aditada a denúncia sob pena de afrontarmos os princípios da ampla defesa, do contraditório, da correlação entre acusação e defesa, bem como, o sistema acusatório adotado entre nós, pois neste caso o juiz estaria fazendo parte da acusação quando condena com a circunstância que autoriza o aumento de pena sem que tal circunstância conste da acusação feita pelo órgão do Ministério Público.

A idéia de que o art. 385 do CPP autoriza tal entendimento não pode vingar dentro de um processo penal acusatório, justo, democrático de direito e livre dos ares autoritários da época em que foi elaborado pelo regime de Vargas: 1940. Entender diferente é jogar por terra todo o sacrifício feito e sofrido pela sociedade nos últimos 60 anos de vigência do código de processo penal.

Destarte, seja uma circunstância ou uma elementar não contida, expressamente, na denúncia (PELO ÓRGÃO ACUSADOR), deve a denúncia ser aditada para incluí-la, sob pena do juiz agir ex officio e o réu ser surpreendido em sua defesa.

O difícil para determinados operadores jurídicos é trabalhar com a Constituição e não com a regras vetustas dos arts. 384 e 385 CPP. Nesse caso, a interpretação conforme a Constituição (43) irá socorrê-los.

Por último, o art. 384, caput, admite acusação implícita, ou seja, mesmo que não conste expressamente na denúncia, porém surgindo nova definição jurídica do fato, deve ser dada vista a defesa para se manifestar. Em outras palavras o código admite que se um homem for acusado do crime de estupro por ter, como diz a denúncia, "mantido conjunção carnal com uma mulher, mediante violência, alcançando o orgasmo satisfazendo, assim, sua libido" não poderá o juiz condená-lo pelo atentado violento ao pudor se não ficar comprovada a conjunção carnal, mas sim apenas, os atos libidinosos diversos da conjunção. A idéia de que são implícitos os atos libidinosos para quem quer a prática da conjunção carnal, não pode admitir condenação do acusado se não constar da denúncia. Afronta o princípio da ampla defesa e do contraditório. O réu não se defendeu da prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal.

O parágrafo único do art. 384 impõe o aditamento à denúncia quando houver possibilidade de aplicação de pena mais grave, deixando entender que só se adita se houver pena mais grave, porém se a pena for igual ou menor não haverá aditamento (44).

Discordamos desse entendimento. Seja a pena menor, igual ou maior deve-se sempre aditar a denúncia, sob pena de afrontarmos os princípios da correlação entre acusação e a sentença, da ampla defesa, do contraditório e, principalmente, violar o sistema acusatório, pois o juiz muda a acusação, ex officio.

Assim, tanto no caput do artigo 384 como no seu parágrafo único deve-se aditar a denúncia em detrimento da prova nova surgida no curso da instrução. Se for um pedaço do fato e houver prova nova de sua ocorrência o aditamento é medida imperiosa. Se for outro fato conexo com o original, descoberto através de prova nova, adita-se a denúncia dando-se oportunidade ao réu de ser interrogado sobre esse novo fato conexo e praticar todos os demais atos processuais inerentes a sua defesa. Se for fato novo, porém sem conexão, instaura-se outra ação penal.

Nestes casos que estamos mencionando o aditamento será próprio real, ou seja, o acréscimo será de fatos ou de pedaços que lhe pertencem (elementares do tipo) e deverá, quanto a oportunidade, ser feito espontaneamente (independentemente de provocação do juiz) pelo Ministério Público face ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública.

O aditamento provocado é exceção e, por isso, está no art. 384, parágrafo único e no § 5º do art. 408, ambos do CPP.


X. CASOS CONCRETOS

Imaginemos alguns casos concretos para entendermos tudo o que acima dissemos.

             caso

: Ticio é acusado da prática do crime de roubo simples. No curso da instrução não se comprova a elementar normativa do tipo grave ameaça (ou violência).

Pergunta-se: pode o juiz condená-lo pelo furto sem aditamento a denúncia?

Resposta:

A resposta é afirmativa. A subtração patrimonial de coisa móvel alheia está descrita na denúncia e, nesse caso, não há surpresa para a defesa. Ela se defendeu dessa subtração patrimonial. Portanto, autorizado está o juiz a condenar Ticio pelo crime de furto sem o aditamento a denúncia.

             caso

: Ticio é acusado da prática do crime de furto simples. No curso da instrução se descobre que houve o emprego de arma de fogo e, portanto, trata-se de crime de roubo.

Pergunta-se: há necessidade de aditamento a denúncia para que seja condenado pelo crime de roubo com emprego de arma de fogo?

Resposta:

A resposta é afirmativa. Ticio não se defendeu de ter empregado arma de fogo durante aquela subtração patrimonial descrita na denúncia e, portanto, há, nesse caso, surpresa para a defesa. O respeito ao contraditório e a ampla defesa e a proibição do julgamento ultra petita exigem o aditamento.

             caso

: Ticio é acusado da prática do crime de furto simples. Durante a instrução se demonstra de forma cabal que, na verdade, naquele dia, hora e local, houve recusa em devolver o bem por parte de Ticio e não subtração e, portanto, tinha ele a precedente posse da res.

Pergunta-se: há necessidade de aditamento a denúncia para que possa ser condenado pelo crime de apropriação indébita?

Resposta:

A resposta é afirmativa. Não obstante as penas serem iguais, Ticio não se defendeu de ter a precedente posse da res e, portanto, deve tal elemento normativo do tipo (posse) constar da acusação. A posse de Ticio é injusta, mas não por clandestinidade e sim por precariedade. Vejam que o fato é um só. Não há dois fatos. Há dois tipos penais em discussão, porém uma única conduta. Nesse caso, o réu se defende dos fatos narrados e não da tipificação penal dada ao fato. Admitir condenação porque a pena é a mesma é admitir que o réu se defende da pena e não dos fatos. Assim, deve a denúncia ser aditada para a caracterização perfeita dos fatos.

             caso

: Ticio é acusado por ter furtado do interior de uma fazenda três vacas leiteiras colocando-as em seu caminhão depois de ter derrubado a cerca de proteção da fazenda no dia 15/01/00, às 20:00 h.

No curso da instrução se descobre, com provas novas, que na verdade foram furtados três cavalos da raça mangalarga marchador e não três vacas.

Pergunta-se: há necessidade de se aditar a denúncia para que possa Ticio ser condenado pela prática do crime de furto dos três cavalos ou é indiferente?

Resposta:

Há necessidade do aditamento, pois a res descrita não corresponde a do fato real ocorrido na vida. O que significa dizer: furto de três vacas não houve. A repercussão, inclusive, de eventual sentença condenatória pelo furto de três vascas no juízo cível é evidente, pois ao se fazer a liquidação de sentença para se determinar o quantum debeatur terá que se fazer em cima do an debeatur determinado na sentença e este menciona três vacas e não três cavalos.

Vejam que nesse caso não se trata de outro tipo penal, muito menos de fato diverso, mas sim do mesmo fato, porém com identificação errônea da res impedindo o réu de se defender do fato verdadeiro e, portanto, do fato real. Há flagrante violação à ampla defesa e ao contraditório e sempre que isso ocorrer o aditamento a denúncia é medida imperiosa.

            5º caso

: Ticio é acusado da prática do crime de homicídio qualificado por motivo fútil. Em seu interrogatório alega que na data do fato, 15/01/00, não se encontrava na cidade do Rio de Janeiro, mas sim em viagem ao exterior tendo retornado em 25/01/00.

As testemunhas arroladas pelo Ministério Público corroboram os fatos descritos na denúncia, porém discordam, com dados precisos, da data do fato, alegando que o mesmo ocorrera em 30/01/00 e não 15/01/00. Praticados os demais atos do processo e juntados documentos comprovadores de que o fato ocorrera, realmente, em 30/01/00, pergunta-se:

O juiz está autorizado a pronunciar o acusado pelo crime descrito na denúncia sem que o Ministério Público adite a denúncia, alterando a data do fato?

Resposta:

A resposta só poderá ser negativa. O réu se defendeu, exercendo o contraditório, de fato ocorrido no dia 15/01/00 e não de fato ocorrido na data de 30/01/00. Perceba o leitor que o álibi alegado vem de encontro com a data descrita na denúncia e, portanto, se não houver o aditamento impróprio de retificação a denúncia, não poderá Ticio ser pronunciado, pois naquela data (15/01/00), efetiva e realmente, não se encontrava no local do crime. O fato é o mesmo e sob o ponto de vista penal material a alteração da data é irrelevante, porém sob o ponto de vista penal processual há profunda repercussão no direito de defesa.

Destarte, independentemente de haver alteração fática ou aumento de pena, sempre que a mudança for de encontro ao direito de defesa deve a denúncia ser aditada. (45)

             caso

: Tício é processado pela prática do crime de homicídio culposo, na direção de veículo automotor (art. 302 da Lei 9.503/97), por ter, agindo imprudentemente, excedido a velocidade normal (80 km/h) estabelecida pelas regras de trânsito, naquela via pública descrita na denúncia. No curso da instrução descobre-se, através das provas carreadas para os autos, que Ticio deu causa ao resultado morte porque ingressou, na mesma via pública, pela contra mão de direção e não porque se excedeu na velocidade.

Pergunta-se: pode o juiz condenar Ticio pelo crime do art. 302 do CTB sem que haja aditamento a denúncia para descrever a conduta correta de Ticio?

Resposta:

A resposta é negativa. Sem o aditamento a denúncia não pode o juiz condenar Ticio por que não houve imprudência na modalidade descrita na denúncia (excesso de velocidade), mas sim por ter Ticio ingressado na contra mão de direção. Vejam que nesse caso há fragrante violação ao contraditório exercido por Ticio, pois é cediço, e repetimos, que o réu se defende dos fatos descritos na denúncia e não da capitulação penal dada ao fato. Ticio não está se defendendo do art. 302 do CTB, mas sim da conduta descrita na denúncia que se amolda ou não ao tipo penal.

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Assim, é imperativo garantidor da ampla defesa o aditamento a denúncia.

            7º caso: Ticio é processado e julgado pelo crime de roubo simples (art. 157, caput, do CP) sendo absolvido. A sentença absolutória transita em julgado. A autoridade policial, através do depoimento de várias pessoas que não prestaram depoimento nos autos do inquérito e muito menos no processo, porém compareceram a delegacia, espontaneamente, verifica que, na verdade, houve emprego de arma de fogo por parte de Ticio, inclusive, logrando êxito em localizar a arma que foi escondida por ele em um terreno baldio. Diante dessas peças de informação remete as mesmas para a vara criminal onde Ticio foi julgado e o juiz dá vista ao Promotor de Justiça para que adote as providências que entender cabíveis.

Pergunta-se: pode o Promotor de Justiça oferecer denúncia, pelo mesmo fato, em face de Ticio, porém imputando o emprego de arma de fogo, ou seja, roubo com emprego de arma de fogo?

Resposta:

A resposta é negativa. Ticio já foi julgado por aquele fato ocorrido no mundo, por aquele pedaço da vida não podendo ser julgado, duas vezes, pelo mesmo fato, sob pena de afrontarmos a coisa julgada. Não se pode confundir o tipo penal com o fato praticado que já foi objeto de julgamento. Se o Ministério Público (Estado-administração) não apurou o fato com todos os seus elementos que lhe integram não faz sentido, agora, com o trânsito em julgado da decisão, chamar Ticio para responder por um pedaço do fato. Muito menos por porte de arma que foi absorvido pelo crime de roubo. O fato é um só. Do contrário, se assim não pensarmos, não haverá a segurança jurídica necessária à manutenção da paz e da segurança social.

Se é na sentença que o Estado, substituindo a vontade das partes, faz valer a lei e, portanto, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas (cf. art. 468 CPC), tal decisão tem proteção constitucional nas cláusulas pétreas, pois "a lei não prejudicará ... a coisa julgada" (cf. art. 5º, XXXVI da CRFB). (46)

Há nesse caso identidade da eadem causa petendi (a mesma causa de pedir); identidade sobre o fato sobre o que decide a sentença e aquele sobre o que se quisera acionar: eadem res (a mesma coisa) e; por último, identidade também de pessoa: eadem persona (a mesma pessoa).

             caso

: Ticio, Caio e Mévio são processados e julgados pelo crime de latrocínio tentado (subtração patrimonial tentada e homicídio tentado) sendo condenados no 1º grau de jurisdição. Apelam da sentença alegando, primeiro, inépcia da denúncia e, segundo, atipicidade do fato. O Tribunal de Justiça, por maioria de votos, nega provimento ao recurso, porém um voto vencido dava provimento para absolver os acusados.

A Defensoria Pública interpõe recurso de Embargos Infringentes com base no voto vencido e o Grupo de Câmaras absolve os acusados alegando que o fato era atípico e determina a remessa dos autos à comarca de origem para que o Ministério Público ofereça denúncia pelo crime de homicídio tentado que, na opinião do Tribunal, era o crime remanescente.*

Pergunta-se: está correta a decisão do Tribunal em absolver pelo latrocínio tentado e entender que havia crime de homicídio tentado determinando o oferecimento de denúncia em face dos acusados por este crime?

Resposta:

A negativa se impõe. Quanto a absolvição pelo crime de latrocínio tentado o Tribunal agiu dentro de sua esfera de competência e a decisão deve ser (como foi) cumprida. Porém, determinar que se instaure contra os réus processo por crime de homicídio tentado foi um equívoco, para não dizer um error in iudicando. Até porque, o recurso foi exclusivo dos réus não sendo admissível uma reforma que não seja aquela pedida. Ou dá o que os réus pediram ou deixa como está, porém, jamais piorar de qualquer modo, sua situação jurídica (cf. art. 617 do CPP). Na medida em que dá provimento aos embargos infringentes, porém manda processar os réus por outro crime, julga ultra petita.

Os réus já foram absolvidos pelo fato ocorrido na vida e que foi objeto do processo, fazendo operar, assim, a coisa julgada. Dar uma nova roupagem jurídica ao fato é criar uma instabilidade social aos acusados, agora absolvidos pelo Tribunal, deixando-os na eterna incerteza de quando aquele conflito terá fim. No mesmo sentido não cabe ao judiciário determinar ao Ministério Público que ofereça denúncia por esse ou aquele fato, em verdadeira afronta ao sistema acusatório e, principalmente, a característica mor da jurisdição que é a imparcialidade do órgão jurisdicional. Na medida em que assim age, compromete sua posição de sujeito processual imparcial.

             caso: Ticio é processado e julgado pelo crime de roubo simples (art. 157, caput, do CP) sendo absolvido. A sentença absolutória transita em julgado. A autoridade policial, através do depoimento de várias pessoas que não prestaram depoimento nos autos do inquérito e muito menos no processo, porém compareceram a delegacia, espontaneamente, verifica que, na verdade, houve emprego de arma de fogo por parte de Caio que ameaçou a vítima enquanto Ticio subtraia a res, inclusive, logrando êxito em localizar a arma na residência de Caio, sendo este reconhecido pelas testemunhas.

Diante dessas peças de informação a autoridade policial remete as mesmas para a vara criminal onde Ticio foi julgado e o juiz dá vista ao Promotor de Justiça para que adote as providências que entender cabíveis.

Pergunta-se: pode o Promotor de Justiça oferecer denúncia, pelo mesmo fato, em face de Ticio e Caio, porém imputando aos mesmos o crime de roubo com emprego de arma de fogo e mediante concurso de agentes (art. 157, §2º, I e II do CP)?

Resposta:

Quanto a Ticio nada mais se pode fazer, já há o trânsito em julgado e não pode ser ele chamado para responder pelo mesmo fato. O fato é um só. Se o Estado não identificou e apurou o fato corretamente, estando a decisão acobertada pelo trânsito em julgado, Ticio está livre das garras da justiça. Do contrário, seria estabelecermos o bis in idem (47).

Entretanto, quanto a Caio nada impede que seja chamado para responder pelo crime de roubo com emprego de arma de fogo e mediante concurso de agentes, na medida de sua culpabilidade. A sentença fez coisa julgada entre as partes as quais foi dada, ou seja, o Estado-administração (Ministério Público) e Ticio, mas não para Caio. Nesse caso, Caio teve o componente subjetivo necessário da co-autoria, qual seja: a resolução comum de realizar o fato, o atuar de cooperação consciente e querida (48). Portanto, deve responder na medida de sua culpabilidade. Entender que Caio não pode ser processado pelo crime que cometeu é garantir sua impunidade, fim este não visado pela coisa julgada. A coisa julgada é medida de garantia e não de impunidade àquele que não foi julgado (cf. nota n.º 38, supra).

            10º caso: Ticio é investigado em regular inquérito policial pela prática do crime de furto qualificado mediante rompimento de obstáculo, porém não há o laudo de exame de corpo de delito, mas sim os depoimentos do lesado e de três testemunhas comprovando o rompimento. Concluído o inquérito o Ministério Público denuncia Ticio pelo furto simples entendendo que o exame de corpo de delito, comprovando o rompimento, era indispensável, e, portanto, nada menciona quanto a qualificadora. O juiz recebe a denúncia e silencia quanto a qualificadora. No curso da instrução o laudo chega aos autos comprovando o rompimento de obstáculo.

Pergunta-se: pode o Ministério Público aditar a denúncia para incluir a qualificadora do rompimento de obstáculo, considerando ser o laudo prova nova?

Resposta:

A resposta é negativa. Não há no processo penal hierarquia entre as provas, ou seja, uma prova não vale mais do que a outra. O Ministério Público tinha em mãos provas que autorizavam o oferecimento de denúncia pelo furto mediante rompimento de obstáculo e não utilizou, acarretando, assim, o arquivamento implícito objetivo do tipo derivado (rompimento de obstáculo) do inquérito policial. O laudo, surgido no curso da instrução, não é considerado substancialmente prova nova, mas sim, formalmente, o que significa dizer: não altera o quadro probatório do processo a ponto de ser considerado prova nova. A prova da qualificadora já constava do inquérito e não foi utilizada.

O princípio reitor para o Ministério Público oferecer denúncia é o do in dubio pro societat, ou seja, na dúvida, diante das provas contidas no inquérito, deve resolvê-la em favor da sociedade denunciando o indiciado.

Assim, houve o arquivamento implícito objetivo do elemento derivado do tipo e o laudo constitui prova nova formal e não substancial (49).

Do contrário, havendo prisão em flagrante delito pela prática do crime de homicídio e não havendo, ainda, laudo nos autos do inquérito, não se poderia oferecer denúncia com base nos outros elementos de prova constantes dos autos, o que constituiria verdadeiro absurdo.

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Sobre o autor
Paulo Rangel

promotor de Justiça no Rio de Janeiro, professor da Faculdade Cândido Mendes, da Escola da Magistratura e do CEPAD, mestrando em Direito Processual Penal e Criminologia da Universidade Cândido Mendes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RANGEL, Paulo. O garantismo penal e o aditamento à denúncia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1057. Acesso em: 26 abr. 2024.

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