Condições gerais dos contratos e o código civil brasileiro

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01/09/2023 às 18:49
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CONDIÇÕES GERAIS DOS CONTRATOS E O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Paulo Lôbo1

SUMÁRIO: 1. Condições gerais dos contratos; 2. Situando o problema na legislação brasileira; 3. Insuficiência do Código Civil brasileiro; 4. Recurso aos modelos abertos da função social e da boa-fé para interpretação das condições gerais; 5. Distinção entre contrato de adesão e condições gerais dos contratos; 6. O contrato de adesão no ambiente da América Latina; 7. As condições gerais nos planos do mundo do direito; 8. Conclusão: as condições gerais devem ser regidas pelo Código Civil?

1. condições gerais dos contratos

As condições gerais dos contratos constituem fenômeno desafiador aos juristas, no que concerne à sua qualificação, ao seu enquadramento nos ramos do direito, à terminologia utilizada, aos planos do mundo do direito (existência, validade e eficácia) e à identificação com os tipos de atos jurídicos. O Código Civil brasileiro de 2002 delas não trata, salvo em dois artigos que estabelecem regras básicas sobre o contrato de adesão, confundindo conteúdo com continente, ao contrário do Código Civil italiano de 1942, que as disciplinou diretamente, de modo pioneiro2. A pergunta que se impõe é: constituiriam matéria própria da codificação civil ou seriam parte integrante do micro-sistema de defesa do consumidor? Mais: consistiriam microssistema jurídico singular com irradiação no direito civil e no direito do consumidor?

As condições gerais podem ser entendidas como regulação contratual predisposta unilateralmente e destinada a se integrar de modo uniforme, compulsório e inalterável a cada contrato de adesão que vier a ser concluído entre o predisponente e o respectivo aderente3.

No campo jurídico o problema não é novo, tendo sido estudado pela primeira vez por Saleilles4, em 1901. Em trecho famoso, esse autor utiliza a denominação provisória, “na ausência de termo melhor, de contratos de adesão”, ainda que reconheça que são assim, porque aderem a condições gerais (“[...] que adhére aux conditions générales[...]”), admitindo intuitivamente tratar-se de situações distintas e complementares. Posteriormente, a partir da pesquisa de dogmática e de sociologia jurídica de Ludwig REISER, realizada em 19355, a doutrina alemã construiu a figura das condições gerais dos negócios (ou dos contratos), que veio a prevalecer na jurisprudência e na primeira lei específica, de 1976, da Alemanha. No Brasil, a confusão conceitual e terminológica foi bem traduzida no título da obra de Orlando GOMES, a primeira sobre a matéria: “Contrato de adesão: condições gerais dos contratos6.

As condições gerais dos contratos estão onipresentes no cotidiano das pessoas, de todos os estratos sociais, e entre empresas, na aquisição ou utilização de bens e, sobretudo, de serviços, tais como água, luz, telefonia, comunicações em geral, educação privada, serviços bancários, utilização de cartões de crédito ou débito, seguros, planos de saúde, pagamentos em prestações periódicas, transportes, turismo, relações contratuais duradouras tais como franquia e fornecimento de peças ou matérias primas para indústrias. Em suma, sempre que uma atividade econômica, de pequeno ou grande porte, tenha de se relacionar com uma pluralidade de destinatários de seus produtos ou serviços utiliza condições gerais por ela predispostas e que serão integradas a cada contrato individual que vier a ser celebrado.

2. SITUANDO O PROBLEMA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O Código Civil de 1916, como fruto tardio do individualismo jurídico, teve uma convivência difícil com as Constituições sociais do século XX, após 1934, pois estas, ao contrário daquele, instituíram o controle da ordem econômica, afetando profundamente a liberdade contratual7. Assim, vários tipos contratuais foram subtraídos do Código, sempre que o legislador, fundado nos princípios constitucionais, presumiu a vulnerabilidade jurídica do contratante, merecendo tutela especial, como se deu com o trabalhador, o arrendatário urbano ou rural, a pessoa transportada, o autor, o promitente comprador, o segurado, o usuário de plano de saúde, o turista, o consumidor, o aderente. Afinal, são paradigmas distintos, até mesmo inconciliáveis: o do Código de 1916 era da consideração exclusiva da igualdade formal dos contratantes; o da legislação protecionista é da consideração da desigualdade material dos contratantes. Nesse ambiente eclodiu a utilização crescente das condições gerais do contrato, ignoradas pelo legislador.

Somente com o advento do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 1991, após a Constituição de 1988 que determinou sua edição, as condições gerais dos contratos foram implicitamente disciplinadas, ainda que restritas ao âmbito de abrangência do consumidor, assim considerado o destinatário final de produtos e serviços lançados no mercado de consumo (pessoa física ou jurídica e comunidade indeterminada de pessoas), ou a ele equiparado (vítima de evento danoso ou pessoa exposta às práticas comerciais). As condições gerais dos contratos estão contempladas, ainda que sem referência expressa, no Capítulo VI, intitulado “Da proteção contratual”, relativamente ao contrato de adesão e às cláusulas abusivas.

Antes da Constituição de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor, o direito positivo brasileiro disciplinava, de maneira esparsa e casuística, algumas nuanças do direito das condições gerais dos contratos em leis que cuidaram de determinadas relações jurídicas negociais. Delas não se pode, com rigor, extrair um sistema ordenado. A finalidade desse tipo de legislação não é a de “liberdade vigiada”, sintomática do regime das condições gerais, mas a do dirigismo contratual, predeterminando-se rigidamente o conteúdo e as formas de conclusão dos contratos, traçando uma linha de limites que não pode ser transposta. São exemplos as legislações que: a) consideram nulas as cláusulas que estabeleçam pagamento em moeda estrangeira; b) limitam o percentual da cláusula penal (em dívida de dinheiro, em empréstimos com garantia hipotecária, em financiamentos rurais, em financiamento por meio de cédulas de crédito industrial, em promessas de compra e venda de imóveis oriundos de parcelamento do solo); c) atribuem a órgão público o poder de fixar “as características gerais dos contratos de seguros”; d) interditam a exclusão de riscos resultantes de transportes em aeronaves; e) proíbem a condição que subordina a venda de bens à aquisição de outros, qualificada como abuso do poder econômico; e) proíbe o proprietário fiduciário de ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga; f) considera nulas, em contratos de software, cláusulas que limitem a produção, distribuição e comercialização.

O Código Civil de 2002 reservou apenas dois artigos ao contrato de adesão, nas disposições gerais aplicáveis aos contratos, insuficientes para abranger as complexas dimensões das condições gerais dos contratos, e assim enunciados:

Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação ais favorável ao aderente.

Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.

Tendo em vista o campo de abrangência do Código de Defesa do Consumidor, como lei especial, a todos os contratos havidos em relações de consumo, as normas do Código Civil aplicam-se residualmente aos contratos de adesão a condições gerais que não sejam celebrados entre fornecedor e consumidor.

3. INSUFICIÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL brasileiro

A lenta tramitação legislativa (três décadas) do projeto de lei convertido no Código Civil de 2002 coincidiu com intensa criatividade jurídica nesse período, assim na doutrina como na legislação de vários países do mundo, inclusive o Brasil, em torno do direito das condições gerais dos contratos, principalmente no âmbito do direito do consumidor.

Infelizmente não houve reflexos positivos dessa criatividade no Código Civil brasileiro, que veio a lume com a mesma redação do projeto de 1975, quando o direito do consumidor e a experiência dos povos acerca das condições gerais dos contratos eram incipientes. O Código nasceu desatualizado e foi vencido pelos acontecimentos. O Código Civil italiano, seis décadas anteriores, avançou muito mais na matéria. Do mesmo modo, na América Latina, o Código Civil peruano de 1984 abordou quase todas as facetas de direito material das condições gerais.

O coordenador da Comissão elaboradora do projeto, Prof. Miguel Reale, justificou a avareza do tratamento, por serem as duas regras genéricas (arts. 423 e 424) “exemplo típico de um modelo jurídico de caráter aberto que proporciona ao juiz a possibilidade de encontrar a equidade”8. A experiência no mundo inteiro provou o contrário. Relações sociais geradoras de conflitos agudos e constantes exigem regras de jogo claras e específicas. A jurisprudência, trabalhando à larga com modelos abertos, foi incapaz de responder às exigências sociais de defesa razoável do aderente, inclusive em países tradicionalmente notáveis em construção jurisprudencial, como a Alemanha. Neste país optou-se por uma lei especial de condições gerais extremamente minuciosa, em 1976. Do mesmo modo Portugal, com sua Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, de 1985, e, por fim as Diretivas européias que provocaram intensa modificação dos direitos nacionais, para os quais os modelos jurídicos abertos foram considerados insuficientes para estabelecer controle razoável do poder contratual dominante.

Por outro lado, os dois artigos referidos não consistem em modelos tão abertos. O art. 423 limita a interpretação favorável ao aderente à ocorrência de cláusulas ambíguas ou contraditórias, enquanto o art. 47 do Código de Defesa do Consumidor é irrestrito, determinando que as cláusulas contratuais sejam “interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”, pura e simplesmente. A regra do CDC corresponde à presunção legal e constitucional de vulnerabilidade jurídica do contratante consumidor, devendo o aplicador realizar o equilíbrio material e efetivo dos direitos e deveres, inexistente desde a celebração do contrato, se for o caso. Todavia a regra do Código Civil abre espaço à subjetividade e às pré-compreensões das partes e do julgador. Se este entender que não se apresenta ambigüidade ou contraditoriedade, o desequilíbrio de direitos e deveres será mantido, em prejuízo do aderente, que não participou da elaboração ou predisposição das condições gerais. Estudos atuais de teoria hermenêutica têm demonstrado a falácia da identificação de ambigüidade no texto, pois todo o discurso é necessariamente ambíguo, exigindo interpretação. Para alguns, a norma jurídica não é o texto legal, mas o texto interpretado. Há muito tempo, os juristas afastaram antigo brocardo que enunciava in claris cessat interpretatio. O requisito de contraditoriedade é ainda mais restritivo, pois apenas ocorre quando uma cláusula ou condição geral colidir com outra.

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Quanto ao art. 424, tem-se uma única hipótese de nulidade de cláusula abusiva, quando o aderente renunciar a direito resultante da natureza do negócio. Já o CDC, ao lado das legislações estrangeiras congêneres de proteção do consumidor, adotou a enunciação não taxativa das hipóteses de cláusulas abusivas, além do modelo efetivamente aberto da boa-fé, que permite ao julgador aferir a ocorrência ou não de desequilíbrio de direitos e deveres em desfavor do consumidor.

4. Recurso aos modelos abertos da função social e da boa-fé para interpretação das condições gerais

Sem referência expressa no Código Civil de 2002, as condições gerais dos contratos comuns (não regidos pelo direito do consumidor) são, como vimos, indiretamente disciplinadas nos arts. 423 e 424, que tratam do contrato de adesão, continente delas. Os contratos de adesão, por sua vez, foram inseridos no conjunto de artigos que compõem a parte geral dos contratos, onde estão os princípios da função social e da boa-fé (arts. 421 e 422). Assim, também estes são aplicáveis àquelas.

Portanto, o julgador não apenas manejará os preceitos legais destinados especificamente ao contrato de adesão, mas todos os contidos na parte geral dos contratos, especialmente os princípios, cuja violação acarreta nulidade, pois nulos são os negócios jurídicos que violarem norma cogente (art. 166, VII, do Código Civil). Os princípios (que qualificamos como sociais, pois em conformidade com o paradigma do Estado social, e para estremá-los dos princípios liberais ou individualistas) estão concebidos no Código Civil como normas cogentes que determinam a conclusão, o conteúdo e a execução de qualquer contrato (a fortiori das condições gerais dos contratos), além de fundamentarem as responsabilidades pré e pós-contratuais.

Os princípios sociais do contrato não eliminam os princípios individuais do contrato paritário ou negociado, a saber, o princípio da autonomia privada (ou da liberdade contratual em seu tríplice aspecto, como liberdades de escolher o tipo contratual, o outro contratante e o conteúdo do contrato), o princípio de pacta sunt servanda (ou da obrigatoriedade gerada por manifestações de vontades livres, reconhecida e atribuída pelo direito) e o princípio da eficácia relativa apenas às partes do contrato (ou da relatividade subjetiva); mas limitaram, profundamente, seu alcance e seu conteúdo9. Contudo, no que concerne às condições gerais são inaplicáveis, justamente porque estas surgem no mundo do direito por ato unilateral, passando ao largo da autonomia do contratante aderente, que a elas se submete sem exercício de liberdade de escolha. A autonomia do aderente radica no contrato de adesão, em realizá-lo ou não, mas nunca com relação às condições gerais que nele se integram. Às vezes, em virtude da imposição da necessidade de aquisição ou utilização do produto ou serviço, nem mesmo a autonomia de “pegar ou largar” é possível.

Os princípios sociais adotados aproximam, muito mais do que se imaginava, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, ainda que neste estejam mais precisos. A tendência, portanto, é o desaparecimento progressivo da distinção dos regimes jurídicos dos contratos comuns e dos contratos de consumo, ao menos no que concerne a seus princípios e fundamentos básicos, com natural irradiação às condições gerais.

A utilização de princípios e cláusulas gerais sempre foi vista com muita reserva pelos juristas, ante sua inevitável indeterminação de conteúdo e, no que concerne ao hegemônico individualismo jurídico do Estado liberal, o receio da intervenção do Estado nas relações privadas, por meio do juiz. Todavia, para a sociedade em mudanças, para a realização das finalidades da justiça social e para o trato adequado do fenômeno avassalador da massificação contratual e da parte contratante vulnerável, constituem ferramentas hermenêuticas indispensáveis e imprescindíveis.

O princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles, pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico. O princípio da função social é a mais importante inovação do direito contratual comum brasileiro e, talvez, a de todo o novo Código Civil. Os contratos que não são protegidos pelo direito do consumidor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, particularmente o aderente em contrato de adesão a condições gerais. Segundo o modelo do direito constitucional, o contrato deve ser interpretado em conformidade com o princípio da função social.

Para Miguel Reale o contrato nasce de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. “O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida”10.

A boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam11. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de comportamento. A boa-fé objetiva não é princípio dedutivo, não é argumentação dialética; é medida e diretiva para pesquisa da norma de decisão, da regra a aplicar no caso concreto, sem hipótese normativa pré-constituída12, mas que será preenchida com a mediação concretizadora do intérprete-julgador.

A melhor doutrina tem ressaltado que a boa-fé não apenas é aplicável à conduta dos contratantes na execução de suas obrigações, mas aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebração (in contrahendo) ou após a extinção do contrato (post pactum finitum). Assim, para fins do princípio da boa-fé objetiva são alcançados os comportamentos do contratante antes, durante e após o contrato.

Na relação contratual comum, o princípio da boa-fé objetiva dirige-se a todos os participantes, por igual. Nas condições gerais dos contratos volta-se ao predisponente, ou seja, ao único que as formulou. Geralmente a infração da boa-fé se deduz de que o predisponente criou uma situação sobre a qual o aderente podia confiar (argumento da proibição do venire contra factum proprium) ou de que engendrou comportamento enganoso in contrahendo. A boa-fe é, assim, utilizada ora como requisito de integração das condições gerais ao contrato individual, ora como instrumento delimitador de seu exercício, através da interpretação.

No âmbito do direito das condições gerais, das cláusulas abusivas e do direito do consumidor, a boa-fé foi tradicionalmente preferida como cláusula geral ou modelo aberto de decisão de nulidade, para além dos tipos legais expressos. Veja-se, a respeito, o art. 3º da Diretiva européia 93/13/CEE, que enuncia:

l. Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a contrário da exigência de boa-fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

Inclui-se igualmente nos modelos abertos do Código Civil de 2002 o enunciado em seu art. 931, no qual comina-se responsabilidade objetiva às empresas pelos danos causados pelos produtos postos em circulação. Dessarte, são nulas as condições gerais que pré-excluam essa responsabilidade.

5. distinção entre contrato de adesão e condições gerais dos contratos

Como temos salientado, a relação existente entre condições gerais e contrato de adesão é, respectivamente, de conteúdo e continente, de matéria e instrumento de eficácia. O contrato de adesão é instrumento que concretiza os efeitos das condições gerais. Por ser o contrato de adesão o instrumento de eficácia das condições gerais, tende-se a reduzir as duas categorias a uma expressão fenomênica indefinida de escassa utilidade para a construção de um regime próprio.

O contrato de adesão não contém apenas condições gerais. Pode haver cláusulas negociadas ponto por ponto e outras partes que componham a declaração comum dos contratantes. As partes preenchidas em contrato impresso e padronizado são particulares, em princípio, e preferem às condições gerais. No contrato de adesão há um espaço, por menor que escapa à predisposição, ficando sob regime comum do negócio jurídico. Os elementos de existência, os requisitos de validade, os fatores de eficácia do contrato de adesão são os mesmos do negócio jurídico13. Por conseguinte, fica um espaço mais ou menos estreito, no qual cabem tratativas entre os contraentes, se bem que frequentemente se destine somente à determinação de dados pessoais, identificação do objeto, preço e situações particulares. Na dúvida quanto à efetiva e paritária negociação, contudo, prevalece a interperetação contra stipulatorem.

Necessário se torna que precisemos o significado de adesão em se tratando de condições gerais. É comum falar-se em contratante aderente, para significar a parte que não predispõe as condições gerais. Adesão, em nosso léxico, significa assentimento, aprovação, concordância. Em direito indica quase sempre forma anômala de aceitação. Aderir a um contrato ou a uma convenção implica a preexistência do ato ou negócio jurídico. Mas o contrato de adesão só passa a existir com a declaração comum das partes contratantes. Antes da conclusão (oferta mais aceitação) não há contrato; há, tão-somente, condições gerais dos contratos.

Não se pode, por conseqüência, falar em adesão ao juridicamente inexistente (contrato). Não se pode falar em adesão de contratante a condições gerais porque elas se aplicam independentemente de consentimento. O que adere – liga, une, cola – às condições gerais é o contrato individual quando se conclui (dito contrato de adesão). É o contrato que adere e não o contratante, pois sua adesão é irrelevante. O contrato de adesão não é geral, mas particular. Gerais são as condições predispostas às quais adere necessariamente.

O Código Civil italiano (art. 1.332) distingue o que denomina adesão a contrato (adesione de altri parti al contratto), relativamente à adesão de terceiro a contrato já concluído, das condições gerais dos contratos (art. 1.341), que são predispostas por um contraente antes da conclusão dos contratos. Apenas na primeira hipótese cogita-se rigorosamente de aderente. Só por antonomásia e rendição ao uso lingüístico admitimos qualificar de aderente o contratante não predisponente.

No atual estágio da ciência jurídica, o contrato de adesão pode ser assim concebido: o contrato que, ao ser concluído, adere a condições gerais predispostas por uma das partes, que passam a produzir efeitos independentemente de aceitação da outra. Ou simplesmente: o contrato que adere a condições gerais.

O Código de Defesa do Consumidor incorre no mesmo erro ao confundir contrato de adesão com as condições gerais. O art. 54 estabelece que o contrato de adesão é aquele cujas cláusulas “tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”. O que pode ser objeto de aprovação prévia da autoridade ou de predisposição unilateral são as condições gerais, jamais as cláusulas, porque algumas são negociadas, constituindo declaração comum das partes. O conceito é mais apropriado para as condições gerais.

6. o contrato de adesão no ambiente da américa latina

Sob evidente influência do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, as condições gerais dos contratos restaram subsumidas no conceito de contrato de adesão, nas legislações da América Latina, voltadas ao direito do consumidor. A lei argentina de defesa do consumidor, de 1993, em seu art. 38, refere a contrato de adesão “ou similar”, além de “cláusulas uniformes, gerais ou estandardizadas dos contratos feitos em formulários”, além de o art. 39 referir a “contrato tipo”, quando em todas as hipóteses quer tratar de condições gerais dos contratos. A lei da Venezuela de proteção ao consumidor e ao usuário, de 1995, reproduz fielmente o art. 54 do CDC brasileiro, ao conceituar o contrato de adesão. O mesmo ocorre com a lei do Paraguai de defesa do consumidor e do usuário, de 1998, art. 4º, e a lei de relações de consumo do Uruguai, de 1999, em seu art. 28.

A exceção é o Código Civil do Peru, de 1984. Este Código define o que sejam condições gerais, diferenciando-as do contrato de adesão. As condições aprovadas pela autoridade administrativa integram-se automaticamente aos contratos individuais, cabendo ao Poder Executivo definir os tipos de fornecimento de bens ou de serviços que ficam sujeitos a aprovação prévia. Porém, as partes podem convencionar expressamente que não se integrem ao contrato certas condições aprovadas pela autoridade. Não diz o Código como se deve dar a convenção em contrário. As condições gerais aprovadas pela autoridade obrigam o aderente que consumiu o bem ou utilizou o serviço, ainda quando não tenha formalizado o contrato ou seja incapaz, sendo irrelevante o consentimento. No caso de condições gerais não aprovadas, a eficácia depende de o aderente ter podido conhecê-las. A lei peruana de proteção consumidor, de 1991, com as modificações ulteriores, não trata de contrato de adesão, convivendo com as normas do Código Civil acerca das condições gerais.

7. as condições gerais nos planos do mundo do direito

Seguindo a lição de Pontes De Miranda14, dividimos o mundo do direito três planos: existência, validade e eficácia.

Nem todos os fatos jurídicos (isto é, os fatos ou conjunto de fatos cuja hipótese normativa se concretizou, recebendo a incidência da norma jurídica que a previu) necessitam percorrer os três planos para que possam produzir efeitos jurídicos (eficácia jurídica distinta da eficácia da norma jurídica). Apenas os atos jurídicos (fatos jurídicos voluntários) têm de ser válidos (não-nulos, não-anuláveis).

O ato de predispor condições gerais é ato jurídico em sentido amplo: o predisponente edita-as voluntária e unilateralmente. Não pode ser considerado ato destituído de juridicidade, como pareceu aos primeiros tratadistas da matéria. Quando o predisponente divulga entre seus agentes e destes para os possíveis interessados as condições gerais, estas passam a existir juridicamente, podendo inclusive ser objeto de controle preventivo judicial, principalmente mediante ação civil pública.

Válidas são as condições gerais que não forem consideradas nulas, por implicarem renúncia a direito, ou por violarem a função social do contrato ou a boa-fé, segundo o sistema do Código Civil (no âmbito do direito do consumidor, abusivas).

A eficácia jurídica das condições gerais dá-se concretamente com sua integração ao contrato individual (dito contrato de adesão), quando este é concluído. A eficácia se consuma pela adesão necessária e automática do contrato individual às condições gerais, que sejam consideradas válidas. As condições gerais podem existir, ser válidas e nunca produzir efeitos se qualquer contrato de adesão vier a ser concluído. A eficácia jurídica é, também, dependente da plena realização do dever de informar imputável ao predisponente. Cumpre-se o dever de informar quando a informação recebida pelo aderente preenche os requisitos de adequação, suficiência e veracidade. Os requisitos devem estar interligados. A ausência de qualquer deles importa descumprimento do dever de informar.

8. conclusão: as condições gerais devem ser regidas pelo código civil?

Nas três décadas que antecederam o Código Civil de 2002, correspondentes à sua lenta tramitação legislativa, as legislações relativas às condições gerais dos contratos tenderam a ser especiais, exclusivamente ou por inserção nas leis de proteção ao consumidor, passando ao largo das codificações civis. Assim ocorreu com a lei americana das garantias para os consumidores (Warranty Act), de 1972, com a lei alemã das condições gerais, de 1976 (AGB-Gesetz), com a lei inglesa das cláusulas contratuais abusivas (unfair), de 1977, com a legislação francesa sobre cláusulas abusivas, de 1978, com a lei israelita sobre contratos padronizados (standard contracts), de 1982, com a lei portuguesa sobre condições gerais dos contratos (cláusulas gerais contratuais), de 1985, com o código do consumidor brasileiro, de 1990, e, como vimos, as ulteriores legislações latino-americanas de defesa do consumidor.

Alguns países optaram por leis próprias de condições gerais dos contratos, com destaque para as leis referidas de Alemanha e Portugal, distanciando-se tanto dos códigos civis quanto da legislação do consumidor, porque abordaram a dupla dimensão com que elas se revelam, a saber, as praticadas entre fornecedor e consumidor e as destinadas a aderentes não consumidores, notadamente empresas. Na segundo dimensão, considerando que as empresas são presumivelmente dotadas de mais informação que os consumidores, essas leis específicas atenuaram o grau de proteção, especialmente pela enunciação de listas distintas de cláusulas abusivas.

Até pareceu que a experiência inovadora do Código Civil italiano, de 1942, ao enfrentar expressamente a regulamentação básica das condições gerais dos contratos não tinha produzido frutos alhures. Dois principais fatores contribuíram para esse distanciamento da codificação civil: a) a convicção, largamente difundida nas últimas décadas do século XX, da superação da função prestante das grandes codificações, ante a força dinâmica dos microssistemas jurídicos, multidisciplinares por excelência, ao concentrarem não apenas a matéria civil mas as matérias conexas de direito processual, direito penal, direito administrativo, cujo exemplo frisante é a legislação do consumidor; b) a difícil compatibilidade do regime das condições gerais do contrato com o paradigma contratual adotado nos códigos civis, fundado na igualdade formal e no consentimento livre dos contratantes na oferta e na aceitação.

Nos últimos anos, todavia, observou-se inesperado retorno aos Códigos Civis, com atração de matérias que se tinham aninhado em microssistemas, inclusive as relativas às condições gerais dos contratos. O exemplo mais impressionante é o do Código Civil alemão, modificado pela lei de modernização do direito das obrigações, que entrou em vigor em lº de janeiro de 2002, considerada a mais profunda reforma do BGB desde seu advento em 1º de janeiro de 1900. O pretexto foi a necessidade de incorporação ao direito interno das diretivas européias tutelares dos contratantes vulneráveis, especialmente os contratantes consumidores, como se lê na redação atual e minuciosa dos arts. 305 a 310. A nova redação do art. 305 considera condições gerais dos contratos as que forem pré-estabelecidas para uma pluralidade de contratos que uma parte [predisponente] apresenta à outra parte para conclusão do contrato, sendo irrelevante que elas apareçam separadamente ou sejam introduzidas no instrumento contratual, com exceção das cláusulas que forem individualmente negociadas entre referidas partes. A integração ao contrato individual depende do efetivo cumprimento do dever de informar e de se ter assegurada a possibilidade de conhecimento de seu conteúdo ao aderente.

Respondendo às perguntas que introduzimos neste estudo, entendemos que as condições gerais dos contratos ultrapassam os amplos limites do direito do consumidor, porque nem todos os aderentes são consumidores. Veja-se, na hipótese de franchising, o que ocorre com a ampla rede de contratos submetidos a condições gerais predispostas pelo franqueador a todos seus franqueados (os aderentes). Nesta e em tantas outras hipóteses, o aderente dificilmente consegue enquadrar-se como consumidor, porque o direito brasileiro não inclui nesta tutela específica os consumidores intermediários, salvo se comprovarem que ficaram expostos a práticas comerciais abusivas (art. 29 do CDC). Por tal razão, se as condições gerais dos contratos não podem ser inteiramente regulamentadas pela legislação do consumidor, e, não sendo objeto conjuntamente de lei própria, necessitam que sejam disciplinadas, nos seus aspectos gerais de direito material, nomeadamente quanto aos elementos de existência, os requisitos de validade e os fatores de eficácia, no Código Civil. Para tanto, a exemplo do novo Código Civil alemão e do que já dispunha o Código Civil italiano15, exige-se que sejam referidas diretamente e não confundidas com o contrato de adesão, como faz, de modo inadequado e insuficiente, o Código Civil brasileiro.

Muito o direito civil terá a ganhar, inclusive para aplicação concreta, se se obtiver a interlocução adequada da teoria geral do contrato com a teoria geral das condições gerais dos contratos, e sua compatibilidade normativa no mesmo espaço legal, além do fecundo diálogo com o microssistema do direito do consumidor, cujos avanços enriqueceram o sistema jurídico brasileiro das obrigações, nomeadamente quanto à tutela do contratante vulnerável16.

Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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