Constitucionalização da parentalidade socioafetiva: em torno de um voto divergente do Min. Edson Fachin

01/09/2023 às 19:02
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CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA: em torno de um voto divergente do Min. Edson Fachin

PAULO LÔBO1

Sumário: 1. O caso e a tese jurídica adotada. 2. Recuperando os requisitos da parentalidade socioafetiva na doutrina jurídica brasileira. 3. Distinção entre os direitos à filiação socioafetiva e ao conhecimento da origem genética. 4. Não há falsidade ou erro no registro civil da parentalidade socioafetiva. 5. As precisões do voto divergente do Min. Edson Fachin sobre a filiação socioafetiva. 6. Consequências: reconhecimento da socioafetividade e da multiparentalidade (ou a possibilidade jurídica de múltiplos pais e mães)

1. O caso e a tese jurídica adotada

Em 21 de setembro de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (doravante, STF) concluiu o julgamento do RE 898.060, Rel. Min. Luiz Fux, com repercussão geral reconhecida, tendo sido fixada, por maioria, a seguinte tese jurídica:

“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

O Min. Luiz Edson Fachin - acompanhado pelo Min. Teori Zavascki – apresentou voto substancialmente divergente do Relator. Vencidos, quanto à solução a ser adotada no caso concreto, aderiram ao final à redação jurídica geral aprovada pela maioria (divergiram desta os Ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio).

Houve convergência quanto aos fundamentos constitucionais, notadamente os princípios explícitos da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º), além dos princípios implícitos da busca da felicidade e da afetividade nas relações parentais.

O item 13 da Ementa do Acórdão indica que, mercê desses fundamentos constitucionais, impõe-se o reconhecimento conjunto da filiação socioafetiva e da filiação biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo, “quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos”. Todavia, esse requisito de melhor interesse, que também comparece como hipótese admissível de multipropriedade no voto divergente do Min. Edson Fachin, não figurou na redação da tese jurídica geral.

Eis, resumidamente, o caso concreto que serviu de paradigma para a tese jurídica acima transcrita: F. G., à época com dezenove anos de idade, ingressou com ação de investigação de paternidade, cumulada com pedido de alimentos e retificação de registro civil, contra A. N., alegando que era filha biológica deste, apesar de ter sido criada pelo marido de sua mãe, que a registrou como filha, quando nasceu. Exame de DNA consensual confirmou o vínculo biológico. A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido. O Tribunal estadual reformou a sentença, entendendo que, apesar do vínculo biológico, a paternidade socioafetiva consolidada em largo tempo deveria prevalecer. O mesmo Tribunal, apreciando embargos infringentes, fez prevalecer a paternidade biológica, com alteração do registro de nascimento e fixação de obrigação alimentícia desde a citação até ao final do curso universitário da autora recorrida. Irresignado, o genitor biológico interpôs recurso extraordinário ao STF.

Interessa-nos refletir sobre os argumentos e os enquadramentos constitucionais expostos no voto divergente do Min. Luiz Edson Fachin, relativos à parentalidade socioafetiva, que são essencialmente os mesmos que vimos defendendo em sede doutrinária, antes e após essa importante decisão.

2. Recuperando os requisitos da parentalidade socioafetiva na doutrina jurídica brasileira

A socioafetividade, como categoria jurídica, é de origem recente no direito brasileiro. Em grande medida resultou das investigações das transformações ocorridas no âmbito das relações de família, máxime das relações parentais, desde os anos 1970. Permitam-nos destacar três trabalhos nessa direção, em momentos distintos, que confluíram para demonstrar a dimensão jurídica da afetividade nas relações de filiação, no direito brasileiro, antes e após a Constituição de 1988:

a) Em 1979, João Baptista Villela, com Desbiologização da paternidade, no qual o autor afirma que não tem, a paternidade, em essência, conteúdo biológico, sendo sempre uma opção, pois, inclusive, pode realizar-se sobre prole alheia2.

b) Em 1989, nosso Repersonalização das relações familiares, no qual concluímos que, na longa evolução jurídica da família, sua função afetiva que esteve por séculos reprimida, emergiu com força para substituir as tradicionais funções procracional, econômica, política e procracional da família patriarcal. A afetividade projetou-se como princípio jurídico, máxime após a Constituição de 19883.

c) Em 1996, Luiz Edson Fachin, com Da paternidade: relação biológica e afetiva, assinalando a recuperação, no âmbito do direito de família, da noção de posse de estado de filho, na relação paterno-filial, como realidade sociológica e jurídica. Foi um dos primeiros, entre nós, a utilizar o termo “socioafetivo”, que conquistou a doutrina especializada4.

Os estudos jurídicos produzidos, desde então, passaram a salientar o papel determinante da socioafetividade na configuração do contemporâneo direito de família.

A socioafetividade tem sido empregada no Brasil para significar as relações de parentesco não biológico, de parentalidade e filiação, notadamente quando em colisão com os vínculos de origem biológica. A evolução da família expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da afetividade, principalmente no mundo ocidental contemporâneo. Os termos “socioafetividade” e seus correlatos congregam o fato social (“socio”) e a incidência do princípio normativo (“afetividade”).

Não é o afeto, enquanto fato anímico ou social, que interessa ao direito. Interessam, como seu objeto próprio de conhecimento, as relações sociais de natureza afetiva que engendram condutas suscetíveis de merecer a incidência de normas jurídicas e, consequentemente, deveres jurídicos. O afeto, em si, não pode ser obrigado juridicamente, mas sim as condutas que o direito impõe tomando-o como referência. Uma pessoa não pode ser obrigada pelo direito a ter afeto real por outra, até mesmo entre pais e filhos. Mas, o direito pode instituir deveres jurídicos e impor comportamentos inspirados nas relações afetivas reais.

Qualquer relação parental/filial é socioafetiva, porque brota de raiz cultural adotada pelo direito. Nesse sentido, a parentalidade socioafetiva é gênero, da qual a parentalidade biológica e a parentalidade socioafetiva em sentido estrito são espécies.

A parentalidade socioafetiva consolidou-se na legislação, na doutrina e na jurisprudência brasileiras orientada pelos seguintes eixos: 1. Reconhecimento jurídico da filiação de origem não biológica (socioafetiva); 2. Igualdade de direitos dos filhos biológicos e socioafetivos; 3. Não prevalência a priori ou abstrata de uma filiação sobre outra, dependendo da situação concreta; 4. Impossibilidade de impugnação da parentalidade socioafetiva em razão de posterior conhecimento de vínculo biológico; 5. O conhecimento da origem biológica é direito da personalidade sem efeitos necessários de parentesco.

Orientados pela necessidade de segurança jurídica, com a massa de dados e informações obtidos de investigações variadas, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais foram progressivamente construindo requisitos que conformassem essa categoria jurídica, nas relações parentais, notadamente de filiação. Esses requisitos são interligados e podem ser assim enunciados:

a) Comportamento social típico como pais e filhos. O comportamento que se tem entre pais e filhos deve ser aferível socialmente. É típico porque se repete de modo subjetivo e objetivo em todos os relacionamentos equivalentes, de modo a que qualquer pessoa possa identificá-los como os que ocorrem regularmente entre pais e filhos. No Brasil, a doutrina tradicionalmente desdobra esse requisito em três outros, segundo antiga lição: nome, quando um dos pais ou ambos atribuem seus sobrenomes ao perfilhado, mediante registro civil; b) trato, quando um ou ambos os pais tratam socialmente o perfilhado como seu filho; c) fama, quando a comunidade onde vivem os pretensos pais e filhos os reconhecem assim, segundo as circunstâncias. Porém, esses requisitos não são cumulativos e basta um deles ou outras circunstâncias distintas para gerar o convencimento judicial da existência de comportamento social típico entre pais e filhos.

b) Convivência familiar duradoura. O comportamento social típico de pais e filhos apenas se consolida quando ocorre convivência familiar, ou seja, quando essas pessoas integrem uma entidade familiar juridicamente reconhecida e convivam assim. Essa convivência há de ser duradoura e não episódica. O direito brasileiro não impõe um tempo determinado para que se caracterize a convivência familiar, mas há de ser suficiente para que se identifiquem laços familiares efetivos e não apenas relações genericamente afetivas.

c) Relação de afetividade familiar. As relações entre as pessoas devem ser de natureza afetiva e com escopo de constituição de família, para que se constitua estado de parentalidade e de filiação. Devem ser desconsideradas como tais as que tenham outro escopo ou interesse, ainda que haja convivência sob o mesmo teto. Assim, não há afetividade familiar no acolhimento doméstico que uma pessoa dá a uma criança desabrigada, ou na relação social entre padrinhos e madrinhas e seus afilhados, ou na prática de apadrinhamento de criança que viva em instituição de acolhimento.

d) Ausência de hierarquia em razão da origem da filiação. Não é a origem da filiação que lhe atribui primazia. Antes, enquanto predominou a desigualdade e a discriminação jurídicas dos filhos, a origem biológica determinava a primazia sobre outras espécies de filiação, cujos direitos em sonegados ou reduzidos. A evolução que se produziu e desembocou na Constituição de 1988 estabeleceu igualdade irrestrita de direitos e obrigações entre os filhos de qualquer origem, como estabelecem a CF, art. 227, § 6º, e o CC, art. 1.596. A filiação, no direito brasileiro, recuperou sua natureza essencialmente cultural, pois não é a natureza mas a cultura que sempre a determinou, em todos os povos, como demonstrou Claude Lévi-Strauss5.

3. Distinção entre os direitos à filiação socioafetiva e ao conhecimento da origem genética

Em estudo específico sobre essa temática, expressamos nosso ponto de vista quanto à necessidade dessa distinção, tendo em vista se tratar de direitos subjetivos e deveres jurídicos que não se confundem6.

O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram.

Para garantir a tutela do direito da personalidade não há necessidade de investigar a paternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida. Não há necessidade de se atribuir a paternidade a alguém para se ter o direito da personalidade de conhecer, por exemplo, os ascendentes biológicos paternos do que foi gerado por dador anônimo de sêmen, ou do que foi adotado, ou do que foi concebido por inseminação artificial heteróloga.

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Em contrapartida, toda pessoa humana tem direito inalienável ao estado de filiação, quando não o tenha. Apenas nessa hipótese, a origem biológica desempenha papel relevante no campo do direito de família, como fundamento do reconhecimento da paternidade ou da maternidade, cujos laços não se tenham constituído de outro modo (adoção, inseminação artificial heteróloga ou posse de estado). É inadmissível que sirva de base para vindicar novo estado de filiação, contrariando o já existente.

A evolução do direito conduz à distinção, que já se impõe, entre pai e genitor ou procriador. Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Ao ser humano, concebido fora da comunhão familiar dos pais socioafetivos, e que já desfruta do estado de filiação, deve ser assegurado o conhecimento de sua origem genética, ou da própria ascendência, como direito geral da personalidade.

Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, personalíssimo, não dependendo de ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. A paternidade e a maternidade derivam do estado de filiação, independentemente da origem (biológica ou não). Na hipótese de inseminação artificial heteróloga, o filho pode vindicar os dados genéticos de dador anônimo de sêmen que constem dos arquivos da instituição que o armazenou, para fins de direito da personalidade, mas não poderá fazê-lo com escopo de atribuição de paternidade.

Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não determina a paternidade jurídica. O biodireito depara-se com as consequências da dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética, apontam para atribuir a paternidade aos que fazem dação anônima de sêmen aos chamados bancos de sêmen de instituições especializadas ou hospitalares. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.

4. Não há falsidade ou erro no registro civil da parentalidade socioafetiva

O art.1.604 do Código Civil estabelece que ninguém poderá vindicar estado civil distinto do que conste do registro civil, salvo provando erro ou falsidade. Portanto, a norma contém a regra da imutabilidade do registro civil e impedimento da pretensão para desfazê-lo. Também contém as exceções a essa regra (erro e falsidade).

O erro é o desvio não intencional da declaração do nascimento, concernente ao próprio ato de registro (erro material), imputável ao oficial de registro, ou da informação do declarante legitimado (art. 52 da Lei n. 6.015/1973), concernente à atribuição da paternidade ou maternidade da pessoa. O erro da declaração pode ter derivado de outro erro, como na hipótese de troca voluntária ou involuntária de recém-nascidos por parte do hospital onde ocorreu o parto, invalidando o estado de filiação tanto em face do pai quanto em face da mãe7.

A falsidade, ao contrário do erro, é a declaração intencionalmente contrária à verdade do nascimento. É atribuir a si ou a outrem (declarantes outros que não os pais) a maternidade ou a paternidade do nascido, ou declarar nascimento inexistente.

O registro de nascimento é definitivo, pouco importando se a origem da filiação declarada é biológica ou socioafetiva. É declaração consciente de quem faz. Assim, não é livremente disponível pelo pai registral, máxime quando o casamento se extingue. Não há erro de pessoa, porque o declarante sabia exatamente que a criança não era seu filho biológico. Não há falsidade porque a lei não exige que o registro civil apenas contemple a origem biológica. Não pode o autor da declaração que pretende falsa vindicar a invalidade do registro do nascimento, conscientemente assumida, porque violaria o princípio assentado em nosso sistema jurídico de venire contra factum proprium.

5. As precisões do voto divergente do Min. Edson Fachin sobre a filiação socioafetiva

Em seu voto divergente, o Min. Edson Fachin procurou precisar os pontos essenciais de sua divergência, em sintonia com a construção doutrinária dominante e sua recepção jurisprudencial, tanto em relação ao caso concreto, quanto – o mais importante – em relação à tese jurídica geral (a qual terminou por adotar orientação estranha à evolução do direito brasileiro; o Ministro Relator invoca a experiência do Estado de Louisiana, nos Estados Unidos, para concluir pela possibilidade jurídica de multiparentalidade). São eles, incluindo os expostos na antecipação de seu voto:

a) Não havia conflito de paternidades, no caso paradigmático, ou seja, a pretensão da autora era de prevalecer a ascendência genética, quando já havia uma paternidade estabelecida, com todos os requisitos de posse de estado de filho, a saber, a reputatio, a nominativo e a tractatio;

b) Não há hierarquia, à luz do que estabelece a CF, arts. 226 e 227, entre as diversas espécies de famílias, entre diversas espécies de filiação e, por consequência, entre diversas formas de paternidade. Assim, nenhum vínculo de filiação, seja biológico ou socioafetivo, se impõe juridicamente sobre o outro;

c) Houve superação do juízo de ilegitimidade pelo princípio da igualdade entre filhos, ante a opção constitucional pela neutralidade e pela inocência da filiação;

d) Não se pode confundir investigação de paternidade - que fixa o parentesco paterno-filial -, com direito ao reconhecimento da origem genética, que tem a natureza de direito da personalidade, quando esse parentesco, sob a modalidade socioafetiva, já existe;

e) O parentesco parte da realidade da vida, mas não deixa de ser jurídico. “É nesse sentido que avulta a expressão relacional em que se funda a paternidade”. O vínculo biológico pode ser suficiente para determinar o parentesco jurídico, desde que não se sobreponha a outro já estabelecido.

f) A adoção e a filiação decorrente de inseminação artificial heteróloga são exemplos, previstos expressamente no sistema jurídico brasileiro, de filiação em que o vínculo biológico não prevalece, o que revela a necessidade da distinção entre genitor e pai;

g) A desconstituição do vínculo jurídico de socioafetividade somente é possível quando tal vínculo relacional não mais existe;

g) A multiparentalidade pode ser admitida em caráter excepcional, quando se expressa na realidade da socioafetividade (“o pai biológico quer ser pai, o pai socioafetivo não quer deixar de sê-lo, e isso atende ao melhor interesse da criança – ou é consentido pelo adolescente”).

O voto conclui pelo provimento parcial do recurso extraordinário do genitor biológico para que, prevalecendo (no caso) os efeitos jurídicos do vínculo socioafetivo, sem a retificação do registro civil pretendida, fique resguardado o direito da recorrida de reconhecimento de sua origem biológica, porém sem fins de parentesco.

O voto condutor do Ministro Relator, todavia, orientou-se pela admissibilidade da multiparentalidade (dois ou mais pais ou mães socioafetivos e biológicos), pelas razões já expostas. A tese jurídica geral adotada, como salientado, não incluiu o requisito de excepcionalidade, quando presente o melhor interesse do descendente, apesar de referido no item 13 da Ementa do Acórdão.

6. Consequências: reconhecimento da socioafetividade e da multiparentalidade (ou a possibilidade jurídica de múltiplos pais e mães)

Constata-se, positivamente, que o STF, tanto no voto condutor, quanto no voto divergente, confirmou o reconhecimento jurídico da socioafetividade. Como o julgamento em repercussão geral produz eficácia geral, de cumprimento obrigatório pelo sistema judiciário, a socioafetividade e, principalmente, a filiação socioafetiva não mais poderão ser questionadas em juízo.

Ainda que o STF não tenha utilizado a expressão “parentalidade socioafetiva”, a alusão à “paternidade socioafetiva” deve ser entendida como abrangente da maternidade socioafetiva. A exclusão da maternidade socioafetiva importaria tratamento desigual para situações equivalentes do mundo da vida, o que contrariaria os pressupostos sobre os quais o STF decidiu. Portanto, há seu reconhecimento implícito.

Outro ponto relevante é o reconhecimento de que a filiação socioafetiva não apenas se constata pela declaração ao registro público, mas também pela ocorrência no mundo da vida, notadamente pela posse do estado da filiação, cujos efeitos jurídicos independem do registro público, ao qual é atribuída função declaratória, do mesmo modo que à sentença judicial.

O direito de família brasileiro sempre teve entre seus pilares o modelo binário de parentalidade em relação aos filhos. Segundo o padrão tradicional, o casal constituído de pai e mãe. Quando os pais não fossem casados e apenas um fosse o declarante do nascimento no registro civil, caberia a pretensão à investigação da paternidade ou maternidade em relação ao outro, se não tivesse havido o reconhecimento voluntário. Essa regra era aplicável tanto à parentalidade biológica quanto à socioafetiva.

Com a decisão do STF (ADI n. 4.277) em 2011, a união homoafetiva foi juridicamente reconhecida como entidade familiar, com igual tutela jurídica conferida às demais entidades familiares. Nessa entidade familiar, o modelo binário da parentalidade continuou, dado a que se encerra no casal de pessoas do mesmo sexo, excluídas terceira ou terceiras pessoas.

Todavia, paralelamente à construção da categoria da socioafetividade, peregrinou a tese da possível tutela da multiparentalidade, rompendo o modelo binário, tanto dos casais heterossexuais quanto dos casais de mesmo sexo. Pugna pela legalidade, no direito brasileiro, de múltiplos pais e mães.

É uma realidade da vida, cuja complexidade o direito não conseguiu lidar satisfatoriamente até agora, em nenhum país do mundo. Ela é agravada com os resultados fantásticos das manipulações genéticas (por exemplo, o uso de materiais genéticos de três pessoas, para reprodução assistida).

No início, a multiparentalidade pareceu ser o caminho adequado para abrigar a parentalidade dos casais de mesmo sexo, mas tornou-se dispensável desde quando o STF admitiu que esses casais podem constituir família. Permanece sua utilidade, no entanto, para as técnicas de reprodução assistida, quando mais de duas pessoas são nelas envolvidas, a exemplo de utilização de sêmen de amigo para inseminação de uma ou das duas integrantes de união homoafetiva. Essas hipóteses não estão suficientemente enfrentadas pelo direito brasileiro.

Igualmente, a multiparentalidade tem sido ressaltada em casos julgados por nossos tribunais, incluindo o STJ, que envolvem a admissibilidade de cumulação de paternidade ou maternidade, no registro civil, em situações em que há pai ou mãe registral e se pleiteia o acréscimo do sobrenome de pai ou mãe biológicos. Ou quando o registro de pai ou mãe biológicos é acrescentado do sobrenome de quem efetivamente criou a pessoa.

Na legislação, há previsão expressa do acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta, por requerimento do enteado e assentimento daqueles (“Lei Clodovil”, nº 11.924/2009), cuja anotação simbólica reflete a história de vida da pessoa. A lei é omissa quanto aos demais efeitos jurídicos, para além do parentesco por afinidade. A averbação não significa substituição ou supressão do sobrenome anterior, mas acréscimo, de modo a não ensejar dúvida sobre a antiga identidade da pessoa, para fins de eventuais responsabilidades. O acréscimo do sobrenome não altera a relação de parentesco por afinidade com o padrasto ou madrasta, cujo vínculo assim permanece, sem repercussão patrimonial, uma vez que tem finalidade simbólica e existencial. Consequentemente, não são cabíveis pretensões a alimentos ou sucessão hereditária, em razão desse fato.

O namoro ou noivado não podem ensejar multiparentalidade. Assim é porque esses relacionamentos afetivos são pré-familiares, ou seja, têm o escopo de constituição de família, mas não são ainda famílias constituídas. É certo que, às vezes, ultrapassam a tênue zona limítrofe e se convertem em união estável, que é ato-fato jurídico - quando o direito desconsidera a vontade e atribui consequências ao resultado fático - e não ato ou negócio jurídico, estes dependentes de manifestação de vontade negocial consciente; porém, quando isso ocorre, não se cogita mais de namoro ou noivado, mas sim de entidade familiar própria.

A relação entre padrasto ou madrasta e enteado configura vínculo de parentalidade singular, permitindo-se àqueles contribuir para o exercício do poder familiar do cônjuge ou companheiro sobre o filho/enteado, uma vez que a direção da família é conjunta dos cônjuges ou companheiros, em face das crianças e adolescentes que a integram. Dessa forma, há dois vínculos de parentalidade que se entrecruzam, em relação ao filho do cônjuge ou do companheiro: um, do genitor originário separado, assegurado o direito de contato ou de visita com o filho; outro, do padrasto ou madrasta, de convivência com o enteado. Porém, por mais intensa e duradoura que seja a relação afetiva entre padrasto ou madrasta e seus enteados, dessa relação não nasce paternidade ou maternidade socioafetiva em desfavor do pai ou da mãe legais ou registrais, porque não se caracteriza a posse de estado de filiação, o que igualmente afasta a multiparentalidade, salvo se houver a perda do poder familiar dos pais, como decidiu o STJ (REsp 1106637), que reconheceu a legitimidade de padrasto para pedir a destituição do poder familiar, em face do pai biológico, como medida preparatória para a adoção unilateral da criança.

A decisão do STF provocou verdadeiro giro de Copérnico. Até então, no conflito entre parentalidade socioafetiva e origem genética, esta não podia prevalecer sobre aquela (notadamente nos casos de “adoção à brasileira”), máxime quando o móvel fosse patrimonial ou econômico, notadamente participar da sucessão de genitor biológico afortunado. A rejeição a essa pretensão já tinha sido objeto de antigo precedente do STF, em 1970, tendo sido relator o Min. Aliomar Baleeiro8. Doravante, as discussões sobre a origem biológica e a força desta para afastar a parentalidade socioafetiva perderam consistência.

Por ser tema de repercussão geral, não pode ficar adstrito ao caso concreto. Destarte, têm-se como abrangidas as hipóteses de mãe e pai socioafetivos registrados, aos quais se pode acrescentar a mãe biológica, ou o pai biológico ou ambos, o que resultará, eventualmente, em três ou quatro pais, no total.

Do núcleo da tese jurídica geral, nesse julgamento do STF, resultam as seguintes conclusões, que nos permitem avançar nos efeitos jurídicos próprios:

1ª. O reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva;

2ª. A inexistência de primazia entre as filiações biológicas e socioafetivas;

3ª. A admissão da multiparentalidade;

4ª. A parentalidade socioafetiva – para os fins da tese - restringe-se às hipóteses de posse de estado de filiação, excluindo-se a adoção e a filiação oriunda de inseminação artificial heteróloga. Também está excluída a filiação biológica que nunca foi antecedida por filiação socioafetiva.

Assim sendo, em relação aos efeitos da origem genética ou biológica:

a) quando configurada a prévia parentalidade socioafetiva, registrada ou não, a origem genética intitula o filho a investigar a parentalidade biológica com efeitos amplos de parentesco, além do registro civil. Igualmente, pode o genitor biológico reconhecer o filho biológico, com todos os efeitos decorrentes, inclusive o do registro civil concomitante;

b) permanece o direito ao conhecimento da origem genética, como direito da personalidade, sem efeitos de parentesco, na hipótese de adoção, conforme previsto expressamente no art.48 do ECA, com a redação dada pela Lei n. 12.010/2009: O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como a obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos. Em caso de recusa ao acesso, pode ser ajuizada ação para tal finalidade, que não se confunde com investigação de paternidade ou maternidade. A decisão do STF não implica inconstitucionalidade da norma legal que estabelece a ruptura dos vínculos familiares de origem do adotado, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais. Vigora, no direito constitucional brasileiro, a presunção de constitucionalidade das normas legais, até que sejam declaradas inconstitucionais pelo STF;

c) o direito ao conhecimento da origem genética, também sem efeitos de parentesco, é assegurado ao que foi concebido com uso de sêmen de outro homem, que não o marido da mãe e com autorização deste, de acordo com o art. 1.597, V do Código Civil, desde que o dador tenha consentido nessa utilização, sem se valer da garantia de anonimato;

d) não há direito ao conhecimento da origem genética nem ao reconhecimento judicial da parentalidade, se a técnica de reprodução assistida utilizar materiais genéticos de dador anônimo, crioconservados em estabelecimentos especializados para inseminação artificial.

Os direitos e deveres jurídicos do filho com múltiplas parentalidades são iguais em face dos pais socioafetivos e biológicos, particularmente quanto:

a) à autoridade parental ou poder familiar, que é exercida de modo compartilhado, em princípio, pelos pais biológicos e socioafetivos, tal como ocorre com os pais separados. Em caso de conflito entre pais biológicos e socioafetivos, como não há primazia entre eles, o juiz deve se orientar pelo princípio do melhor interesse do filho, para a tomada de decisão.

b) à guarda compartilhada, entre os pais separados ou divorciados, salvo se se ficar demonstrada em decisão judicial motivada que a guarda individual, ante as circunstâncias especiais, é a que mais recomendável por força do melhor interesse do filho. Esse regra é aplicável tanto para situação comum do casal de pais, quanto para a de multiparentalidade (mais de dois pais), até porque não há hierarquia entre eles. A guarda compartilhada é compatível com a preferência da moradia que o filho tem como referência para suas relações sociais e afetivas. No exemplo comum, de filho que sempre viveu com seus pais socioafetivos, a moradia deste é preferencial. O conflito deve ser arbitrado pelo juiz, de modo a que assegure o contato do filho com seus pais socioafetivos e biológicos, e com os parentes de cada linhagem, especialmente os avós.

c) aos alimentos, que devem ser partilhados pelos pais socioafetivos e biológicos em igualdade de condições, em princípio. Em caso de conflito entre eles, o juiz deve considerar a partilha proporcional do valor de acordo com as possibilidades econômicas de cada um, segundo os critérios da justiça distributiva. Os alimentos devem ser fixados em valor único, para partilha entre os pais, pois o suprimento da necessidade do alimentando não depende da quantidade de devedores alimentantes, além da observância da vedação legal do enriquecimento sem causa (CC, art. 884). Os avós, tanto os biológicos quanto os socioafetivos apenas são obrigados aos alimentos em caráter complementar, distribuídos de acordo com as possibilidades econômicas de cada um. Como o dever de alimentos na linha reta de parentesco é ilimitado, o filho com múltiplos pais e avós pode se obrigar a todos eles. Na hipótese de a mãe estar separada tanto do pai biológico quanto do pai socioafetivo, o filho poderá reclamar alimentos tanto a um quanto a outro, de acordo com as possibilidades econômicas de cada um.

d) à sucessão hereditária legitima, que deve ser assegurada ao filho de pais concomitantes biológicos e socioafetivos, em igualdade de condições. Aberta a sucessão de cada um deles é herdeiro legítimo de quota parte atribuída aos herdeiros de mesma classe (direta ou por representação), imediatamente, em virtude da saisine. A igualdade entre filhos de qualquer origem é princípio cardeal do direito brasileiro, a partir da Constituição, incluindo o direito à sucessão aberta. Os limites dizem respeito às legítimas dos herdeiros necessários de cada sucessão aberta e não ao número de pais autores das heranças. O filho será herdeiro necessário tanto do pai socioafetivo, quanto do pai biológico, em igualdade de direitos em relação aos demais herdeiros necessários de cada um; terá duplo direito à herança, levando-o a situação vantajosa em relação aos respectivos irmãos socioafetivos, de um lado, e irmãos biológicos, do outro, mas essa não é razão impediente da aquisição do direito.

Os efeitos da tese jurídica do STF alcançam os casos já julgados definitivamente, pois há largo entendimento sobre a relativização da coisa julgada nas relações de família e em matéria de estado civil, que operaria segundo a regra rebus sic stantibus.

A tese jurídica do STF, em termos tão gerais, é positiva em seus inegáveis avanços, notadamente quanto ao reconhecimento jurídico constitucional da parentalidade socioafetiva, mas não se pode negar que também é fator de agravamento de litigiosidade, notadamente por motivações patrimoniais, apesar do sopesamento dos efeitos jurídicos próprios, como acima indicado, pois a variedade de circunstâncias é difícil de ser por ela inteiramente atingida.


  1. Doutor em Direito (USP). Professor Emérito da UFAL. Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições.

  2. VILLELA, João Bptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 21, maio 1979, passim.

  3. LOBO, Paulo Luiz Neto. Repersonalização das relações familiares. O direito de família na Constituição de 1988. Carlos Alberto Bittar (Coord.). São Paulo: Saraiva, p. 53-82, 1989.

  4. FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

  5. LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 2009.

  6. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Afeto, ética, família e o novo Código Civil Brasileiro. Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.). Belo Horizonte: Del Rey , p. 505-530, 2004.

  7. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 231.

  8. RTJ n. 53/131.

Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

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