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Desmembramento e anexação de Municípios.

Aspectos constitucionais

24/11/2007 às 00:00
Leia nesta página:

O artigo estuda o processo de desmembramento com fins de anexação, ou seja, em que parte do Município de origem é dele separada para ser integrada ao Município de destino.

Considerações terminológicas e delimitação do objeto

Primeiramente, faz-se necessário aclarar a terminologia utilizada e delimitar o objeto do presente artigo. Nas palavras de Hely Lopes Meirelles:

"Desmembramento é a separação de parte de um Município para se integrar noutro ou constituir um novo Município.

Anexação é a junção da parte desmembrada de um território a Município já existente, que continua com sua personalidade anterior.

Incorporação é a reunião de um Município a outro, perdendo um deles a personalidade, que se integra na do território incorporador.

Fusão é a união de dois ou mais Municípios, que perdem, todos eles, sua primitiva personalidade, surgindo um novo Município." [01]

O objeto do presente artigo, portanto, não é a criação, incorporação ou fusão de Municípios, mas sim os aspectos constitucionais do processo de desmembramento com fins de anexação, ou seja, aquelas situações em que parte do Município de origem é dele separada para ser integrada ao Município de destino.

O próprio Supremo Tribunal Federal já entendeu, reiteradas vezes, o desmembramento como qualquer alteração das fronteiras de municípios vizinhos, independentemente da extensão de tal alteração, conforme se verifica, exemplificativamente, do teor das decisões nas ADIs nº 1.034 e 1.143.


Os Municípios no regime federativo brasileiro

A Constituição Federal de 1988 incluiu os Municípios nos seus arts. 1º e 18, como entes autônomos, componentes da Federação, ao lado da União, dos Estados e do Distrito Federal [02].

Com efeito, a nova ordem constitucional representou uma profunda inovação no regime vigente.

Como afirmou José Afonso da Silva, antes de 1988, a Constituição remetia aos Estados o poder de criar e organizar seus Municípios, de forma remissiva. Ou seja, competia aos Estados a organização dos Municípios, assegurando-lhes sua autonomia, mas tão somente quanto às capacidades de auto-administração, autolegislação e autogoverno.

A diferença reside exatamente em que, nas ordens constitucionais anteriores, tais normas dirigiam-se aos Estados, cabendo a eles organizarem os Municípios, definindo suas competências, a estrutura do governo local e os seus limites.

A partir de 1988, tais normas dirigem-se diretamente aos Municípios, que passam a ter o poder de auto-organização. A autorizada ingerência dos Estados sobre os Municípios, portanto, se resume a aspectos muito restritos, tais como o já citado §4º do art. 18 e a possibilidade de intervenção estatal, em casos específicos, previstas nos arts. 35 e 36, da Constituição Federal.


Criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios:

A redação original do §4º do art. 18 dispôs sobre a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, nos seguintes termos:

"§ 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios preservarão a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano, far-se-ão por lei estadual, obedecidos os requisitos previstos em lei complementar estadual, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas."

À promulgação da Constituição de 1988 seguiu-se um processo de intensa criação de Municípios no país, a maioria dos quais de pequeno porte [03], alicerçados em leis estaduais específicas, promulgadas pela maioria, senão todas, as Assembléias Legislativas Estaduais.

A Emenda Constitucional nº 15, de 12 de setembro de 1996, então, modificou o dispositivo supracitado, dando-lhe a seguinte redação:

"§4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei"

A restrição imposta no §4º do art. 18 da CF foi elaborada exatamente com o intuito de colocar, segundo exposição do Ministro Gilmar Mendes na ADI nº 2.395, "um ponto final na crescente proliferação de municípios, observada no período pós-88".

Tal mudança, entretanto, não ocorreu, na prática, de forma pacífica: muitas foram as impugnações à constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 15/96, pelos mais diversos motivos, inclusive a suposta violação ao princípio federativo, por ser considerada, entre outras coisas, uma proposta de abolição da forma federativa de Estado.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.395, que foi recentemente julgada pelo STF [04], finalmente dirimiu qualquer possível dúvida, declarando a constitucionalidade da EC nº 15/96.

Assim, o §4º do art. 18, em sua nova redação, é norma constitucional válida e eficaz, surtindo plenos efeitos jurídicos.

Como se vê, com base na nova redação do §4º do art. 18 da Constituição Federal, os requisitos para a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios são os seguintes:

1.Realização através de lei estadual, dentro do período determinado por lei complementar federal;

2.Divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei;

3.Realização de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos.

Quanto ao primeiro requisito, ou seja, a necessidade de lei complementar federal determinando o período para a criação, incorporação, fusão e o desmembramento de Municípios, alguns defendem que a mesma, até o momento, inexiste.

Alguns, notadamente a Advocacia-Geral da União, defendem que o art. 18, §4º, é dispositivo de eficácia jurídica limitada, enquanto não for promulgada a legislação complementar correspondente, dando-lhe efetiva aplicação.

O segundo requisito, qual seja, a apresentação e publicação de Estudos de Viabilidade Municipal na forma da lei, também é controverso, havendo divergências quanto ao âmbito federativo competente para editar tal lei.

Finalmente, o terceiro requisito, relativo à consulta plebiscitária, já tem regulamentação, que se deu através da Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998, que dispõe no seguinte sentido:

Art. 5º O plebiscito destinado à criação, à incorporação, à fusão e ao desmembramento de Municípios, será convocado pela Assembléia Legislativa, de conformidade com a legislação federal e estadual.

Art. 7º Nas consultas plebiscitárias previstas nos arts. 4º e 5º entende-se por população diretamente interessada tanto a do território que se pretende desmembrar, quanto a do que sofrerá desmembramento; em caso de fusão ou anexação, tanto a população da área que se quer anexar quanto a da que receberá o acréscimo; e a vontade popular se aferirá pelo percentual que se manifestar em relação ao total da população consultada.


A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência conflitante acerca do tema. Em alguns precedentes, adotando entendimento ao qual nos coadunamos, o STF se pronunciou no sentido de que seja "considerado relevante apenas um dado: a realização de consulta prévia, mediante plebiscito, às áreas interessadas no desmembramento" [05].

De fato, entendemos a consulta popular como o requisito primordial e essencial do processo de desmembramento porque, conforme expôs reiteradas vezes [06] o Senhor Ministro Carlos Ayres Brito, o plebiscito é previsto na própria Constituição Federal como instrumento da soberania popular – que é, por sua vez, o primeiro fundamento da República Federativa do Brasil, insculpido no art. 1º, inciso I da CF, não obstante não conste nele, de forma expressa, o adjetivo "popular".

Não poderia, assim, a vontade popular, regular e validamente expressada através do competente instituto, ser limitada pela suposta necessidade formal de edição de lei complementar ou ordinária federal. Até porque em muitos casos os desmembramentos de Municípios, devidamente alicerçados em consulta plebiscitária favorável por parte das populações envolvidas, é medida que se impõe por razões de ordens práticas, tais como a distância da localidade aos respectivos centros urbanos ao que pretendem desmembrar-se e incorporar-se.

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Em muitos casos, a situação anterior ao desmembramento vem em detrimento da população afetada, que não recebe do Poder Público Municipal a merecida atenção, incluindo-se aí a efetiva prestação de serviços públicos essenciais. Assim, a incorporação de tais áreas a Municípios mais próximos fisicamente pode possibilitar um melhor atendimento àquelas populações.

Em outros casos não menos numerosos, o Município que pretende incorporar a área já tem uma vinculação de fato com a mesma, prestando serviços que o Município de origem é incapaz de prestar.

De fato, a consulta plebiscitária à população interessada é o requisito essencial e imprescindível para o desmembramento de Municípios; todos os demais são tão somente acessórios.

Quanto ao requisito da necessidade de lei complementar federal determinando o período para a criação, incorporação, fusão e o desmembramento de Municípios, o Senhor Ministro Ilmar Galvão, no julgamento da ADI 2.632 aventou a tese de que tal legislação já existe: trata-se da Lei Complementar nº 28, de 18 de novembro de 1975, que altera a Lei Complementar nº 1, de 9 de novembro de 1967:

"Art. 6º - A criação e, qualquer alteração territorial de Município somente poderão ser feitas no período compreendido entre dezoito e seis meses anteriores à data da eleição municipal."

No caso onde se aventou esta tese, ADI 2.632, a mesma não foi aprofundada, em razão de que não havia sido realizado o plebiscito, o que era argumento suficiente para a decisão final do STF.

Entendemos como absolutamente correta a posição do Sr. Ministro Ilmar Galvão: de fato, como não há diploma constitucional ou legislativo posterior que revogue a citada LC nº 28/75, tal lei é válida e supre o requisito do §4º do art. 18 da CF, com redação dada pela EC 15/96, dando-lhe plena eficácia.

Cabe ressaltar, todavia, que o Supremo Tribunal Federal se manifestou em outros casos semelhantes no sentido de que a EC 15/96, que deu nova redação ao §4º do art. 18 da CF tem eficácia contida até a edição da lei complementar federal, que seria inexistente. Neste sentido, veja-se, por exemplo, a ADI nº 3.689.

Também há que se salientar que em outros casos o STF julgou que a lei complementar federal deve dispor inclusive sobre o necessário estudo de viabilidade municipal e sua forma de divulgação anterior ao plebiscito. Neste sentido, veja-se a ADI nº 2.702, em especial o voto do Senhor Ministro Relator, Maurício Correa, e a ADI nº 2.381, entre outras. A adotar-se esta interpretação, verifica-se que a já citada Lei Complementar nº 28, de 18 de novembro de 1975, é omissa neste ponto, dispondo somente acerca do período para a criação e alterações territoriais de Municípios.

Não compartilhamos tal entendimento, entretanto, porque a nova redação do dispositivo constitucional, dada pela EC 15/96, no que se refere aos Estudos de Viabilidade Municipal, faz referência tão somente a "apresentados e publicados na forma da lei". Não especifica em nenhum momento que lei é esta, se lei complementar ou ordinária, se lei federal, estadual ou municipal.

Há autores, como Ives Gandra Martins, que afirmam que tal lei seria lei ordinária federal, através de interpretação comparativa com outros dispositivos da Constituição Federal. Senão vejamos:

"Sobre exigir lei complementar federal, determinou, o constituinte, que estudos de viabilidade municipal devem ser apresentados e publicados na forma de lei ordinária, para apenas depois poder convocar um plebiscito, condicionando, portanto, o surgimento de uma nova unidade federativa, a sua viabilidade política, econômica e social." [07]

Entretanto, repisamos o argumento já exposto, de que a soberania popular, externada através do regular e competente instituto de participação popular, qual seja, o plebiscito, não pode ser limitada pela inexistência de norma que regulamente a divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal.

Esta afirmação é ainda mais verdadeira no caso do desmembramento. É que tais Estudos podem ser necessários e até recomendados no caso de criação de município, porém não tem cabimento ou utilidade na hipótese de desmembramento, podendo ser considerado, inclusive, como afronta aos princípios da razoabilidade e da eficiência.

Portanto, e em apertada síntese, entendemos que para o desmembramento de municípios, ou seja, para aquelas situações em que parte do Município de origem é dele separada para ser integrada ao Município de destino, o requisito essencial é a consulta plebiscitária à população envolvida.

O desmembramento deve obedecer o período previsto na Lei Complementar nº 28, de 18 de novembro de 1975, que altera a Lei Complementar nº 1, de 9 de novembro de 1967, ou seja, somente poderá ser feita "no período compreendido entre dezoito e seis meses anteriores à data da eleição municipal".

Finalmente, entendemos que a inexistência de lei que disponha sobre a apresentação e publicação dos Estudos de Viabilidade Municipal não é empecilho para o desmembramento de Municípios, visto que tais estudos se destinam a verificar as condições para a criação de Municípios. Assim, regra geral, se não se trata de criação, mas tão somente do desmembramento de parte de território de um Município e a sua anexação a outro Município, já existente, não há que se falar em necessidade de realização de Estudos de Viabilidade Municipal.

Condicionar o desmembramento de Municípios a tais requisitos formais, mesmo após a manifestação soberana da população diretamente interessada é subverter a soberania popular – fundamento último da República – em favor de aspectos legais meramente formais.


Notas

01 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 68-69.

02 Não obstante, eminentes doutrinadores afirmam que este preceito constitucional é um equívoco, haja vista que Município seria tão somente divisão política do Estado-Membro. José Afonso da Silva, por exemplo, afirma que "o Município é um componente da federação, mas não entidade federativa" (SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006. p. 101).

03 "(...) nos 13 anos que vão de 1984 a 1997, o número total de municípios no país aumentou em 34,3%. (...) dos 1.405 municípios instalados no Brasil, de 1984 a 1997, nada menos que 1329 (94,5%) têm menos de 20 mil habitantes" (GOMES, Gustavo Maia, MAC DOWELL, Maria Cristina. Descentralização Política, Federalismo Fiscal e Criação de Municípios: O que É Mau para o Econômico nem sempre é Bom para o Social. Brasília: IPEA, 2000. Disponível em <http://www.ipea.gov.br/pub/td/td_2000/td_706.pdf>. p. 9-10.)

04 Julgamento do Pleno aos 09/05/2007, decisão publicada no D.J. e no D.O.U. de 17/05/2007.

05 Cf. exposição do Sr. Ministro Joaquim Barbosa, na ADI 3.149, no qual foi relator. No mesmo sentido, segundo o próprio Ministro, vide ADI nº 2.812, 2.702 e 1.825.

06Vide ADI 3.149 e 2.660.

07 BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 3 de outubro de 1988. 3º vol, Tomo I. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001 apud LORENZETTI, Maria Silvia Barros. Criação, Incorporação, Fusão e Desmembramento de Municípios. Câmara dos Deputados: Julho, 2003. Disponível em <http://www2.camara.gov.br/internet/publicacoes/estnottec/tema14/pdf/305317.pdf>, acesso em 14/11/2007.

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DALLAGNOL, Paulo Renato. Desmembramento e anexação de Municípios.: Aspectos constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1606, 24 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10680. Acesso em: 26 abr. 2024.

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