I) Serviços públicos sob incidência do CDC
Como o art. 3º, §2º, do CDC, define como serviço, para fins de aplicação da legislação de proteção ao consumidor, aquele feito mediante remuneração, Cláudia Lima Marques [01] exclui dessa definição os serviços públicos realizados uti universi, que são financiados pelos impostos pagos pela população; para a citada autora, somente estariam sujeitos às regras do CDC aqueles serviços prestados em virtude de vínculo contratual entre o consumidor e o órgão público ou seu concessionário, uti singuli, com contraprestação direta através de tarifa, ou preço público – também estariam excluídos os serviços uti singuli prestados gratuitamente.
Assim, toda e qualquer empresa, pública ou privada, que "por via de contratação com a Administração Pública forneça serviços públicos, assim como, também as autarquias, fundações e sociedades de economia mista" prestar serviços ou fornecer produtos numa relação típica de consumo estão sujeitas às regras do CDC – i.e., pouco importa se o serviço é prestado pela Administração de forma direta ou indireta.
Há, porém, quem entenda – Denari [02] e Rizzatto [03] – que todo serviço público posto à disposição do administrado configura uma relação de consumo, aplicando-se sempre o CDC, visto que o art. 3º, §2º somente excetua a sua incidência sobre as relações de natureza trabalhista e aquelas prestadas sem remuneração alguma, ainda que indireta. Rizzatto faz apenas uma ressalva em relação à aplicação das demais leis pertinentes ao caso concreto.
Ainda que sobre os serviços públicos incida o CDC, o regime desses contratos é especial: "mesmo se regidos por leis civis, não perde a relação seu caráter dito de ‘verticalidade’, reservando-se a administração faculdades que quebram o equilíbrio do contrato." [04] Incidiriam então as normas do CDC sobre proteção contratual? Para Cláudia Lima Marques, a resposta está na conciliação entre "as imposições de direito constitucional, com a proteção do consumidor e as prerrogativas administrativas." [05]
Para Marçal Justen Fº. [06], a "fruição de serviço público não envolve um vínculo contratual entre o usuário e o prestador de serviço, mas uma situação jurídica denatureza unilateral"; "o usuário do serviço manifesta sua vontade no sentido de fruir os benefícios e de subordinar-se ao regime jurídico pertinente ao serviço público. Não há acordo de vontades, mas manifestação de vontade individual, que é condição para a fruição do serviço". Acrescenta ainda que "o direito do consumidor não pode ser aplicado integralmente no âmbito do serviço público por uma espécie de solidariedade entre os usuários, em virtude da qual nenhum deles pode exigir vantagens especiais cuja fruição acarretaria a inviabilização de oferta do serviço público em favor de outros sujeitos." [07]
II) Eficiência e adequação na prestação dos serviços públicos
1.O dever de eficiência estampado no caput, do art. 22, do CDC, passou a ser redundante desde que ele foi inserido na redação do caput, do art. 37, da CF, em 1998 (EC 19/98).
Ser eficiente é, no dizer de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Jr. [08], concretizar a atividade administrativa de modo a extrair o maior número possível de efeitos positivos ao administrado.
Logo, "não basta haver adequação, nem estar à disposição das pessoas. O serviço tem de ser realmente eficiente; tem de cumprir sua finalidade na realidade concreta. (...) o significado de eficiência remete ao resultado: eficiente é aquilo que funciona. (...) O indivíduo recebe serviço público eficiente quando a necessidade para a qual ele foi criado é suprida concretamente." [09]
Assim é que para Rizzatto a eficiência é gênero, enquanto a adequação, segurança e continuidade "são características ligadas à necessária eficiência que devem ter os serviços públicos". [10]
2.O dever de adequação do serviço público também encontra eco no disposto no art. 175, parágrafo único, IV, regulamentado pela Lei 8.987/95, em especial seu art. 6º, e seus parágrafos.
III) Dever de continuidade na prestação do serviço público essencial
1.Serviço público essencial é, no dizer de Cláudia Lima Marques [11], aqueles indispensáveis à vida, saúde e segurança da pessoa.
Já Rizzatto [12] diz que todos os serviços públicos são inerentemente essenciais, no que é acompanhado pela doutrina administrativista [13].
2.Para Celso Antônio [14] o "princípio da continuidade do serviço público é um subprincípio, ou, se se quiser, princípio derivado, que decorre da obrigatoriedade do desempenho da atividade administrativa. Esta última (...) é, por sua vez, oriunda do princípio fundamental da ‘indisponibilidade, para a Administração, dos interesses públicos’".
Rizzatto [15] procura os identificar os serviços que devem ser contínuos pelo aspecto de urgência na necessidade de sua prestação. Ele se utiliza ainda da Lei de Greve (Lei 7.783/89), que define em seu art. 10 quais são os serviços essenciais.
Nos termos do CDC 42, a suspensão do serviço não pode ser feita como meio de cobrança ou ameaça, somente sendo autorizada "a suspensão a posteriori, avisada e determinada por rompimento não abusivo (por exemplo, judicial) do contrato." [16] Ademais, por força do art. 22, o serviço público deve ser prestado de forma ininterrupta, resultando que a "concessionária de serviço público deve utilizar-se dos meio próprios para receber os pagamentos em atraso" [17].
"Em resumo, o corte ou suspensão do serviço essencial, face pessoa física, tendo em vista a sua ‘dignidade’ como pessoa humana (art. 5º, XXXII, c/c art. 1º, III, da CF/1988 c/c art. 2º do CDC), só pode ser possível excepcionalmente e quando não é forma de cobrança ou constrangimento, mas sim reflexo de uma decisão judicial ou do fim não abusivo do vínculo." [18]
Já para Rizzatto [19], somente em situações de fraude judicialmente reconhecida, o consumidor poderá sofrer o corte no fornecimento, pois para ele essa é a única hipótese em que haverá "inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade" (art. 6º, §3º, da Lei 8.987/95 – Lei de Concessões) que justifique o corte.
"Com efeito, (...), a legislação consumerista deve obediência aos vários princípios constitucionais que dirigem suas determinações. Entre esses princípios encontram-se os da intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da garantia à segurança e à vida (caput do art. 5º), que tem de ser sadia e de qualidade, em função da garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225) e da qual decorre o direito necessário à saúde (caput do art. 6º) etc." [20]
3.Há previsão legal de que a interrupção poderá ocorrer por motivo de "ordem técnica ou de segurança das instalações" (art. 6º, §3º, I, da Lei 8.987/95).
Porém a sua constitucionalidade é posta em dúvida por Rizzatto [21], pois "ainda que, eventualmente, venham a surgir, significam interrupção irregular do serviço público, aliás em clara contradição com o sentido de eficiência e adequação. Afinal, problema técnico e de insegurança demonstra ineficiência e inadequação".
Ademais, tais hipóteses de paralisação envolvem a discussão de culpa e de modo algum isentariam a responsabilidade por danos, que no caso é objetiva.
IV) Responsabilidade
O parágrafo único, do art. 22, do CDC, diz o óbvio: que aquele que desrespeitar as obrigações impostas pela lei é responsável pelos prejuízos que causar, tal como os demais fornecedores de serviços/produtos.
Tal regra já se encontrava inserida na CF, art. 37, §6º, onde está ainda previsto o direito de regresso da pessoa jurídica contra o seu "agente" que agir com dolo ou culpa.
Para Denari [22], no entanto, não se aplicaria aos serviços públicos as regras do art. 20, estando afastadas "as alternativas da restituição da quantia paga e do abatimento do preço, envolvendo somente a reexecução dos serviços públicos defeituosos".
BIBLIOGRAFIA
DENARI, Zelmo et alii. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
JUSTEN Fº., Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.
MARQUES, Cláudia Lima et alii. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: RT, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003.
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005.
Notas
01 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 330.
02 Denari, Código comentado, p. 215.
03 Rizzatto, Comentários, p. 319-320.
04 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 330.
05 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 330.
06 Marçal Justen Fº., Curso, p. 492.
07 Marçal Justen Fº., Curso, p. 493.
08 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Jr., Curso de direito constitucional, p. 235 apud Rizzatto, Comentários, p. 305.
09 Rizzatto, Comentários, p. 306.
10 Rizzatto, Comentários, p. 306.
11 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 331.
12 Rizzatto, Comentários, p. 308.
13 Celso Antônio, Marçal Justen Fº., etc..
14 Celso Antônio, Curso, I-65, p. 71.
15 Rizzatto, Comentários, p. 308.
16 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 331.
17 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 331.
18 Cláudia Lima Marques, Comentários, p. 332.
19 Rizzatto, Comentários, p. 311.
20 Rizzatto, Comentários, p. 310.
21 Rizzatto, Comentários, p. 310.
22 Zelmo Denari, Código comentado, p. 217.