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Barreiras impostas pelas leis eleitorais para a participação política feminina e negra.

Desafios e novas estratégias para superação via ações afirmativas

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01/03/2024 às 17:23
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As ações afirmativas possuem papel estratégico para a redução das assimetrias produzidas ao longo da história da representação política brasileira.

Resumo: Qual o papel da lei no Brasil para dificultar o direito ao voto de mulheres e pessoas negras e a sua respectiva participação nos espaços de poder ao longo da história democrática? As ações afirmativas podem desempenhar papel de remédio ao quadro atual de desigualdades no campo político? Este artigo tem como alvo a análise do sistema eleitoral brasileiro e o seu papel para a atual assimetria de participação política no país. Igualmente, faz uma análise da legislação em vigor sobre o sistema de financiamento público e a iniciativa da Justiça Eleitoral, que dirigiu recursos dos fundos públicos para as candidaturas femininas e negras. O texto tem como material de pesquisa e de estratégia de análise o levantamento da legislação sobre o voto e participação política em consórcio com a literatura especializada em participação política e sobre assimetrias entre os gêneros e os grupos de cor/raça. O resultado desse escrutínio é comprovar o papel do sistema legal por uma perspectiva histórica como óbice à participação política de mulheres e pessoas negras. Diante deste quadro, as ações afirmativas possuem papel estratégico para a redução das assimetrias produzidas ao longo da história da representação política brasileira.

Palavras-chave: Legislação eleitoral- Representação política- Assimetrias de gênero e cor/raça- Ação Afirmativa.


Introdução

Ao longo da história política eleitoral brasileira, qual o papel que a legislação teve para dificultar o acesso ao voto e à participação política de mulheres e de pessoas negras? Este artigo pretende analisar o conteúdo normativo produzido ao longo da formação do estado-nação brasileiro na regulação do voto e trazer a importância da adoção de ações afirmativas como mecanismos que permitem reduzir as assimetrias na esfera da representação política entre pessoas negras (os) e não negras (os), bem como mulheres e homens.

O Estado brasileiro manteve por mais de um século óbices à participação popular, impedindo que pessoas analfabetas pudessem votar (NICOLAU, 2002). Criou uma ideia de que a política e a instrução correspondiam a prestígios da classe alta digna de participar das decisões mais importantes do país. Como a população negra foi relegada à sua própria sorte, evidentemente que um abismo se criou para que ela pudesse participar do processo político.

Sorte não muito diferente enfrentaram as mulheres, mormente, as que possuíssem status equivalente aos criadores das leis. Ao mesmo tempo em que se regulava o direito ao voto feminino, os valores do patriarcado impunham uma hierarquia no acesso ao voto e à participação política.

Assim, este artigo busca analisar o papel do sistema legal como mecanismo de óbice à participação política de mulheres e pessoas negras e, por outro lado, qual o papel que as ações afirmativas podem desempenhar para redução dessas assimetrias. Para o alcance desse desiderato, foram usadas como fonte de pesquisa as normas constitucionais e infraconstitucionais em consórcio com a literatura que se debruçou sobre o tema do voto, participação política e assimetrias de gênero e de cor/raça no sistema partidário e político brasileiro.

O texto utiliza, portanto, de material legal, bibliográfico e jurisprudencial, visando trazer o estado da arte da política brasileira no que diz respeito à representação política por meio do que foi produzido. Por esse diapasão, busca sistematizar cronologicamente a produção normativa, trazendo a respectiva análise da qualidade do conteúdo legal, para, mais adiante, introduzir o papel das ações afirmativas, cujo formato atual foi dado pela Justiça Eleitoral, como mecanismo que pode contribuir na redução de assimetrias quanto ao acesso de recursos financeiros por mulheres e pessoas negras.

Este artigo está dividido em cinco partes contando com esta introdução e uma conclusão. Na seção seguinte será feito um levantamento da história do voto no Brasil, a partir da análise de normas Constitucionais e infraconstitucionais, e a posição da mulher e da população negra como cidadãos com direitos limitados para votarem e serem votados. Depois, o artigo discute sobre o papel das ações afirmativas como mecanismos que podem ser usados para reduzir a distância histórica de poder político entre mulheres e homens, bem como pessoas negras e brancas sob a justificativa de reparação aos danos causados ao longo da história democrática brasileira. Na penúltima seção, é discutido o papel das novas regras adotadas pela Justiça Eleitoral para divisão de recursos entre candidaturas femininas e negras impostas aos partidos políticos a partir das eleições de 2018 e 2020, respectivamente, além da resposta do Parlamento com a promulgação de duas Emendas Constitucionais.

Diante de uma participação desvantajosa de mulheres e pessoas negras na política brasileira, é importante denunciar o papel que a lei criada por homens brancos desempenhou para esse quadro de déficit. Ter conhecimento dessa engenharia é fundamental para que mulheres e a população negra possam lutar para conquistar o espaço na arena política de modo pleno. Igualmente, compreender o atual sistema de financiamento público e as diretivas da Justiça Eleitoral, dirigindo cotas para candidaturas femininas e negras é de vital importância para que esses recursos cheguem a quem de direito.

Como será observado, o Estado brasileiro não se furtou em produzir um farto conteúdo normativo, o que torna um desafio a sua sistematização. Assim, este artigo buscou enfrentá-lo, trazendo considerações a esse extenso conteúdo em conjunto com os remédios judiciais que inauguraram, objetivamente, as ações afirmativas e que provocaram a reação do legislador.


História do voto no Brasil: exclusão das mulheres e das pessoas negras

O direito ao voto para as mulheres data a década de 1930 no Brasil (NICOLAU, 2002). Entretanto, a sua participação no processo político brasileiro manteve-se tímida de forma expressiva até os anos próximos à promulgação da Carta Constitucional de 1988 (MIGUEL, 2000; ARAÚJO, 2001). A igualdade de direitos apenas conquistada no final daquela década não permitiu um avanço significativo da presença delas nos ambientes de poder ilustrados na assunção em cargos eletivos, seja nos parlamentos, seja nos executivos, pois as taxas de representação feminina continuam baixas.

Esse cenário revela que o percurso no processo de igualdade de direitos entre mulheres e homens na política sofreu resistências que se traduziram na formalidade da norma, muitas vezes revestida de um verniz de conteúdo transformador. Vale ressaltar que a norma corresponde a um produto da dinâmica sociojurídica, traduzindo assim a dinâmica social de seu tempo, na maioria das vezes, sobretudo quando diz respeito ao controle (WOLKMER, 2007). No caso da igualdade entre os gêneros, significou uma ordem normativa de contradições.

Já em relação à participação negra na política, é preciso articular voto e políticas públicas. Desta articulação, fica evidente que a ausência de ações estatais e da sociedade em prol deste grupo para acesso de recursos básicos, como educação e renda, teve como resultado colocá-la em condição de vulnerabilidade socioeconômica (PAIXÃO et al, 2011). Ao longo da história do Brasil, mesmo quando assumiu um modelo desenvolvimentista, a questão da pobreza não foi encarada como um problema que motivasse o desenvolvimento de políticas públicas redistributivas (HASENBALG, 2002). A consequência para esta postura foi e continua sendo a população negra amargar maiores dificuldades de mobilidade social frente à histórica escassez de políticas públicas dirigidas em seu benefício. Este cenário gerou um déficit de participação e representação política quando se atribui ao nível educacional e à renda como requisitos estratégicos para o acesso a cargos eletivos (CAMPOS e MACHADO, 2019).

Na história político eleitoral brasileira, os marcos constitucionais do século XIX, a Constituição Imperial de 1824 e a Constituição Republicana de 1891 não tratavam do voto feminino. Na Imperial, as mulheres possuíam cidadania civil limitada e, por conseguinte, não possuíam direitos políticos (DOLHNIKOFF, 2008). Seguiu essa mesma linha Constituição Republicana de 1891. A disposição social de ter a mulher como subjugada à figura masculina sequer permitiu uma menção, mesmo que negativa, quanto ao direito de voto.

A Constituição Imperial trouxe no Capítulo VI- Das eleições, artigo 94- a regulamentação do direito ao voto que possuía natureza censitária, ou seja, somente aqueles que tivessem renda mínima determinada na Constituição poderiam votar. Esta renda compreendia duzentos1 mil reis na forma de bens de raiz, indústria, comércio ou emprego. Ora, em um país notadamente rural e com grande concentração de renda, a maioria da população estava fora do direito ao voto, e os com direito restringiam basicamente à nobreza, aos donos de terra e aos altos escalões do governo, homens brancos em sua quase totalidade.

Este dispositivo inspirado na legislação de voto inglês, que impunha também o voto censitário, para a realidade da Inglaterra, correspondia reunir burgueses, que perpetraram o projeto de ruptura do modelo estamental com os aristocratas, que sobreviveram ao processo de mudanças. Assim, justificava-se esse critério condicionante pela importância dada de ter como componente ilustrativo de aquisição de cidadania a mobilidade social (SANTOS, 1978). No Brasil, onde não existia burguesia, e sim uma elite presa ao arcaísmo alvo das revoluções liberais na Europa, a imposição do voto censitário consolidava a dicotomia entre aquela classe e a dos demais, caracterizados por libertos, escravos, militares de baixa patente, como soldados e cabos, por exemplo.

Apesar de a Constituição de 1824 não impedir o direito ao voto de analfabetos, é certo que a imposição de renda restringia o acesso a esse direito de maioria da população. Igualmente, os escravos, como não cidadãos, estavam automaticamente excluídos do processo político (CASTELLUCCI, 2014). O saldo dessa legislação patrimonialista e machista era traduzida em uma participação eminentemente das elites.

A questão feminina era absolutamente ausente dos debates dos políticos da época em virtude da condição de a mulher estar tutelada a alguma figura masculina. Se a primeira Constituição brasileira se deu ao trabalho de indicar quem não poderia de jeito algum se alistar para o direito ao voto, sequer mencionou a mulher que, repita-se, encontrava-se abaixo da cidadania dos homens de renda do país.

O início da fase republicana também se mostrou desfavorável ao voto da mulher e de pessoas analfabetas. No caso dos analfabetos, estes passaram a ser impedidos de votar desde o Império quando a Lei Saraiva foi aprovada em 1881. A Constituição de 1891, a primeira da fase republicana, manteve esse óbice.

Com taxas de analfabetismo beirando aos 85%, a exclusão do voto aos analfabetos correspondia ao voto censitário da Constituição Imperial (LIMONGI, OLIVEIRA, SCHMITT, 2019). Como a Imperial, o constituinte republicano de 1891 excluía os mesmos: pessoas pobres; recém libertos; e negros, ao manter a exigência de escolaridade, e mostrava indiferença às mulheres mantidas socialmente e legalmente na condição subalterna ao homem.

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Ao longo de toda Primeira República (1889 a 1930), o modelo eleitoral, do ponto de vista social, privilegiou os membros da elite formada na fase do Império no Brasil, apesar do aumento do número de cargos elegíveis dada à institucionalização do federalismo. Este modelo político conferiu às províncias de outrora autonomia maior, permitindo a eleição dos governadores, deputados e senadores2 (NICOLAU, 2002).

A primeira vez em que há deliberação nos espaços formais da política brasileira em relação à mulher é no ano de 1932 com o Decreto 21.076, o Código Eleitoral. É importante, entretanto, destacar que inclusão da mulher no rol de pessoas com capacidade para votar não significou a possibilidade do exercício dessa prerrogativa.

O sistema legal brasileiro impôs diversos mecanismos de limitação ao exercício civil pleno das mulheres que repercutia em toda a sua vida. Estas imposições estruturais vigeram por boa parte do período republicano brasileiro apenas sofrendo mudanças com maior força a partir da redemocratização (SANTOS, 2021).

A constatação inequívoca da tese do machismo estrutural passa antes da análise do Código Eleitoral de 1932 de outro código, o Civil, promulgado ainda na Primeira República, em 1º de janeiro de 1916 por meio da Lei 3.071. Neste diploma legal, mulher casada era considerada relativamente incapaz, conforme excerto a seguir; “São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: [...] II- As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal”.

A incapacidade relativa significava que a pessoa não tinha condições de promover alguns atos por ela mesma, precisando de uma pessoa capaz que possa assisti-la. A mulher, quando se casava, passava a estar tutelada ao poder do marido, o chefe da sociedade conjugal, como estabelecia a lei civil de 1916 em seu artigo 233, precisando de sua assistência, ou melhor dizendo, de sua autorização para praticar determinados atos, como por exemplo trabalhar.

Este quadro legal disposto anteriormente ao Código Eleitoral de 1932 não foi alterado para que choques interpretativos fossem evitados. Pelo contrário, o mesmo Código previa no artigo 2º que “É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistamento na forma deste código”, facultava a mulher o direito de se alistar e votar, como estava estabelecido no artigo 121, cujo trecho se segue: “Os maiores de sessenta anos e as mulheres em qualquer idade podem isentar-se de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral” (grifos nossos).

Como se vê, o início do acesso ao direito de voto para mulher possuía diversos óbices. A interpretação articulada dos dispositivos dos códigos eleitoral e civil indicava limitação objetiva à mulher casada de votar e ser votada. Igualmente, permitiu um cem número de manifestações opostas ao exercício de voto da mulher pela faculdade que lhe foi imposta de alistar e votar.

No caso da casada, há registro de questionamento do seu direito de votar em alguns tribunais eleitorais, então criados a partir do início de vigência do Código Eleitoral, em Sergipe e Minas Gerais. Apesar de o Tribunal Superior Eleitoral ter se manifestado pela não necessidade de autorização, estas manifestações burilavam, e dada à autonomia dos Tribunais Regionais Eleitorais, era possível que mulheres casadas fossem impedidas de votar pela vontade do esposo (LIMONGI, SCHIMITT, OLIVEIRA, 2019).

A constatação, diante do sistema legal que tratava da cidadania feminina a partir de 1932, era de que não havia obrigação para votar como havia para os homens. Enquanto casada, a realidade vivida era de necessitar da autorização do marido. Assim, para uma parte expressiva das pessoas do sexo feminino e adultas, o direito ao voto estava condicionado à vontade de um homem.

Na Constituição de 1934, propostas de alteração da legislação quanto ao direito de voto foram apresentadas. O Governo Provisório apresentou o Projeto Itamarati, buscando trazer inovações ao Código Eleitoral de 1932, quanto a temas relacionados à idade mínima, voto de estudante, militares e religiosos, mas o status em relação à mulher foi mantido (NICOLAU, 2002).

Como se sabe, a Constituição de 1934 teve vigência curta em virtude do golpe dado por Getúlio Vargas estatuindo o Estado Novo em 10 de novembro de 1937. A disposição constitucional de 1934, que consagrou um ambiente democrático, com a garantia do voto secreto e direto, da pluralidade sindical, da possibilidade de alternância de poder, apenas viveu por três anos. Já a Constituição de 1937, ao contrário, foi inspirada na ideia antiliberal encarnada da figura de Francisco Campos, o principal artífice para a sua materialização e que limitou os direitos políticos de modo significativo (SANTOS, 2006).

O Brasil somente voltou a ter eleições em 1945, quando Vargas, ciente das pressões de segmentos políticos do país motivados com a vitória do Aliados na Segunda Grande Guerra, na qual o Estado brasileiro apoiou os que lutavam pelo fim do autoritarismo, fascismo e nazismo, cedeu, autorizando a sua realização em dezembro daquele ano. Igualmente, o ano de 1945 testemunhou a decretação da anistia e o início de reorganização dos partidos, inclusive o Partido Comunista Brasileiro que conseguiu conquistar para Câmara dos Deputados 10% das cadeiras disponíveis (CPDOC/FGV, 2021).

As eleições de 1945 foram possíveis graças ao Decreto lei baixado por Vargas, conhecido como Lei Agamenon, nome do então ministro da Justiça autor desta norma (NICOLAU, 2002). Este decreto-lei tratou de regulamentar as eleições de 1945 e fez menção ao voto da mulher. Alteração em relação ao Código Eleitoral de 1932 foi obrigar mulheres que exercessem atividade remunerada se alistar para votar (NICOLAU, 2002).

Entretanto, as leis civis mantinham para aquelas casadas a necessidade de autorização do esposo. Com efeito, os dispositivos civis de controle à liberdade da mulher tiveram um reforço com a publicação em 1943 da Consolidação das Leis Trabalhistas (Decreto-lei 5.452 de 1º de maio desse ano).

No artigo 446 da CLT/1943, a mulher, mais uma vez, era considerada relativamente incapaz, e havia presunção de que o marido ou o pai a autorizou trabalhar. Para reforçar o seu status subalterno em relação ao homem, o Executivo, autor do Decreto-lei, anotou no parágrafo único que o homem, que tivesse a tutela da mulher, poderia pleitear a rescisão do contrato de trabalho quando “[...] a sua continuação for suscetível de acarretar ameaça aos vínculos da família, perigo manifesto às condições peculiares da mulher [...]” (grifos nossos).

Ora, o que se tinha a temer não era ameaça à estrutura familiar e sim à perda ou relativização da autoridade do homem. Toda a mobilização legal feita na esfera política era realizada exclusivamente por homens que, a todo custo, buscavam manter a condição da mulher de inferioridade. A justificativa de “ameaça à família” traduzia, na verdade, uma determinação social de que qualquer mulher, enquanto no convívio de um homem, seja pai, seja marido, estaria sob a sua tutela. Mesmo quando fosse ela a provedora do lar, pois essa condição sempre esteve presente, mormente para as mulheres negras, estaria ela abaixo do homem da casa. A lei, o tempo todo, quando se fazia presente, lembrava a mulher de seu lugar.

A Constituição de 1946 não teve a presença de qualquer mulher. Esta Carta manteve a postura sectária à participação da mulher apesar de dispor no artigo 133 que “[...] o alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os sexos [...]”. Essa igualdade entre os sexos é destruída ao dar seguimento à leitura desse artigo: “[...] salvo as exceções previstas em lei” e descobrir quais eram elas.

As exceções já faziam parte do ordenamento jurídico brasileiro em 1946: dispositivos do Código Civil de 1916, reforçados pelo artigo 446 da CLT/1943. Em vez de uma reforma para viabilizar o direito constitucional, esses dispositivos serviam de argumento para questionar iguais direitos entre homens e mulheres.

A reforma eleitoral realizada em 1950 sacramentou o status subalterno da mulher quanto aos seus direitos básicos, como o de votar. Isto pela razão de que o Código Eleitoral promulgado em 24 de julho de 1950 pela lei 1.164 manteve a regra estabelecida na Lei Agamenon de autorizar apenas as mulheres que exercessem atividade profissional lucrativa a obrigatoriedade de votar (LIMONGI, SCHIMITT, OLIVEIRA, 2019).

Os cinquenta primeiros anos de República no século XX mudaram pouco para a mulher. Aquelas à semelhança do homem branco que tinham a cidadania, em tese, assegurada, possuíam um status de subalternidade formal, como se viu da análise do ordenamento jurídico civil e trabalhista em vigor.

E a mulher negra onde se encontrava? Ora, se a mulher branca lutou pela igualdade civil representada no direito de trabalhar, a mulher negra sempre esteve associada à labuta, seja na condição de escrava, seja de liberta (CARNEIRO, 2017). Cabia, como ainda cabe atualmente à mulher negra o desenvolvimento de diversas atividades tanto domésticas quanto nos espaços urbanos, trazendo o sustento para famílias, muitas chefiadas por elas. Mas a invisibilidade social quanto à igualdade de direitos repercutia no exercício de direitos políticos negados sistematicamente tanto às negras quanto aos negros. Estes como estas engrossavam as estatísticas de analfabetismo impedindo o acesso ao direito de voto por mais que trabalhassem buscando o sustento da família.

O Estado nada fazia para mitigar as desigualdades sociais. Ao longo da Primeira República, pouco investiu em educação pública que ainda não era gratuita, restrita, pois, às pessoas que tinham condições financeiras. Assim, as taxas de analfabetismo mantiveram-se estáveis em altos dígitos por todo esse período (FERREIRA e CARVALHO, 2018), bem como após a revolução de 1930, a Constituição de 1934, 1937, o Estado Novo, e a Quarta República, cujo marco legal de seu início foi a Constituição de 1945 (GIL, 2022). Como se viu, também agiu deliberadamente em manter a mulher em uma condição subalterna, se preocupando em fazer uma engenharia legal, que conferia direito ali e tirava-os acolá, de modo que a condição estamental, fundada no patriarcado e no racismo, vivenciada desde a fase imperial permanecesse inalterada com a ajuda do direito na sociedade brasileira.

A questão do direito das mulheres sofreu mudanças com a promulgação do Estatuto da Mulher Casada pela Lei 4.121 de 27 de agosto de 1962. Nesta lei, a mulher foi excluída do rol de relativamente incapazes. Igualmente, houve mudanças para mulher casada que desenvolvesse atividades econômicas distintas do esposo. Ela passou a dispor livremente do que auferisse (art. 246). Assim, a mulher casada deixava de ser incapaz e podia dispor do que ganhasse, mas a autorização para trabalhar não havia sido revogada ainda expressamente. Isso só aconteceu em 1989 quando foi revogada o artigo 446 da CLT pela lei 7.855 de 1989. Essas mudanças foram possíveis graças à mobilização social que jamais se calou.

Mesmo com algum avanço, a mulher para gozar do direito ao voto com mais independência precisava além de trabalhar, ter renda, ser solteira, não morar com os pais, pois, assim, estaria fora do jugo de algum homem, o chefe da família como previsto na legislação civil. Esta situação perdurou até a Constituição de 1988 quando se alterou a condição da família destituindo o pater família e reconhecendo a entidade familiar formada por qualquer dos seus integrantes (pai e/ou mãe) e seus descentes (CORDEIRO, 2016), conforme consta no parágrafo 4º do artigo 226 da Constituição de 1988.

O estado da arte da história do direito ao voto no Brasil indica uma realidade refratária à mulher e as pessoas sem instrução. Aquela, quando na mesma condição social do homem branco, possuía um status ao dele menor, enquanto as pessoas sem estudo, em que se encontravam a maioria das pessoas pretas e pardas, foram impedidas de votar desde a publicação da lei Saraiva em 1881 ainda no Império. Assim, o sistema legal eleitoral brasileiro possuía nitidamente um fundo machista, misógino, classista e racista. Sabia-se quem deveria ter direito ao voto e quem não deveria.

Esta realidade trouxe consigo um déficit da percepção do significado da democracia representativa e o papel do voto para o exercício político. Igualmente, ajudou a formatar um quadro de baixa representação de mulheres em espaços de poder (SACHET, 2011). Quanto à representação negra também implicou em baixos índices (JOHNSON III, 2000 e 2015).

Para se ter uma ideia, nas eleições na Primeira República a taxa populacional que estava apta a participar não alcançava 8% e apenas 2,2% votaram. Em 1945, houve um aumento das taxas 16,1% dos votantes, e 13, 4% de fato votaram graças às alterações que ampliaram o número de pessoas que poderiam votar, inclusive com o direito para mulheres (LIMONGI, SCHMITT, OLIVEIRA, 2019). Mas somente com a queda das barreiras à condição da mulher e à extensão ao voto para o analfabeto que as taxas de participação nas eleições aumentaram significativamente, apesar de se considerar desde 1945 que o Brasil se incluía no rol das democracias de massa (NICOLAU, 2002).

De todo modo, o direito de votar não significou proporcionalmente a presença de mulheres na política, tampouco de negros e negras. Um modelo legal excludente deixou consequências danosas sentidas até os dias atuais.

A consolidação de um projeto de igualdade social com a redemocratização e participação de segmentos da sociedade trouxe um suspiro de esperança para mudanças desse quadro. Entretanto, a velocidade das transformações mantém-se lenta, o que exige a adoção de ações afirmativas como mecanismos que ajudem a materialização do pacto celebrado em 1988.

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Sobre o autor
Cleber Lazaro Julião Costa

Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia na área de Ciência Política e Teoria do Direito. Leciona a cadeira de Ciência Política do Curso de Ciências Sociais da UNEB. É doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ, Mestre em Sociologia pelo IUPERJ/UCAM e tem graduação em Direito pela UCSal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Cleber Lazaro Julião. Barreiras impostas pelas leis eleitorais para a participação política feminina e negra.: Desafios e novas estratégias para superação via ações afirmativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7548, 1 mar. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/108410. Acesso em: 27 abr. 2024.

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