1. Introdução
A atividade estatal, seja por meio de uma conduta positiva (comissiva), seja por meio de uma conduta negativa (omissiva), traz consigo riscos de ocasionalmente gerar prejuízos a particulares. Consoante a atual sistemática da responsabilidade civil adotada no Brasil, a ocorrência de tais prejuízos importaria o dever estatal de ressarcir as vítimas de seus comportamentos danosos [02], independentemente da culpabilidade, como corolário da própria noção de Estado de Direito.
Mas nem sempre foi assim. O moderno tratamento da responsabilidade civil do Estado é fruto de uma longa evolução histórica. Adotada por muito tempo a regra da irresponsabilidade (estampada nos tradicionais ditados the king can do no wrong, na Inglaterra, e le roi ne peut mal faire, na França), apenas no século XIX se passou a admitir formas de responsabilização do Estado, baseadas em teorias civilistas, que atribuíam especial destaque ao elemento culpa (responsabilidade subjetiva).
Consoante lembra RUI STOCO, "na tentativa de resolver a questão da responsabilidade do Estado surgiram três teses: a) da culpa administrativa; b) do risco administrativo; c) do risco integral" [03].
A teoria culpa administrativa ou culpa do serviço (faute du service), consagrada pela doutrina de PAUL DUEZ, representou um estágio de transição entre a teoria subjetivista da culpa civil e a doutrina objetiva do risco administrativo. Partindo da premissa de que o lesado não precisaria identificar o causador do dano, tal teoria traça distinção entre a culpa individual do funcionário e a culpa anônima do serviço público, verificada quando o serviço não funciona, funciona com atraso ou funciona mal [04].
Por sua vez, a teoria do risco administrativo, baseada "no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de lhes causar danos" [05],preconiza que o Estado deve indenizar a lesão causada ao particular, independentemente de culpa pela má prestação do serviço, ou por culpa do agente. Ao lesado caberia somente provar a conduta do agente estatal, o dano e o nexo causal entre ambos, para fazer jus ao ressarcimento.
Já a teoria do risco integral representa uma vertente extremada da doutrina do risco administrativo, não admitindo causas excludentes da responsabilidade estatal (culpa da vítima, culpa de terceiros ou força maior). Por esse motivo, é bastante criticada pela doutrina.
O Direito brasileiro, porém, jamais chegou a acolher a teoria da irresponsabilidade do Estado. Embora inexistissem normas expressas (as Constituições de 1824 e 1891 silenciavam a respeito), doutrina e jurisprudência rechaçaram tal vertente ideológica, de cunho nitidamente absolutista.
A partir da promulgação do Código Civil de 1916, começou a ser adotada no país a teoria civilista da responsabilidade subjetiva, com base no dispositivo do art. 15 daquele diploma legal, cuja redação "conduzia à idéia de que deveria ser demonstrada a culpa do funcionário para que o Estado respondesse" [06], nada obstante alguns doutrinadores já entenderem por aplicável a teoria da responsabilidade objetiva.
Nas Constituições de 1934 e 1937, acolheu-se o princípio da responsabilidade solidária entre funcionário e Estado. Com a promulgação da Carta de 1946, passou-se a adotar a teoria da responsabilidade objetiva, mantida pelas Constituições de 1967, 1969 e 1988.
Vê-se, pois, que "a responsabilidade objetiva resultou de acentuado processo evolutivo" [07], sendo festejada por trazer em seu âmago uma dupla garantia: aos particulares, o direito de serem ressarcidos independentemente da comprovação de culpa; aos agentes públicos, o de não serem acionados diretamente por atos praticados no exercício de suas funções. Mas como vêm os tribunais se manifestando a respeito do tema? É o que passaremos a analisar no tópico subseqüente.
3. As óticas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal
A Constituição Federal de 1988 prevê expressamente a responsabilidade objetiva do Estado, baseada na teoria risco administrativo, conforme se extrai do seu art. 37, § 6º, in verbis:
"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação da EC nº 19/98)
(...)
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa." (grifamos)
Na lição de ALEXANDRE DE MORAES, a responsabilidade prevista no dispositivo constitucional acima transcrito exige a presença dos seguintes requisitos: ocorrência do dano; ação ou omissão administrativa; existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal [08]. É o que também diz o Supremo Tribunal Federal:
"A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 – RTJ 71/99 – RTJ 91/377 – RTJ 99/1155 – RTJ 131/417)."(RE 109.615, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 02/08/96) - grifamos
Por agente público entenda-se "quem quer que desempenhe funções estatais, enquanto as exercita" [09]. Tanto assim que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o particular nomeado pelo juízo como depositário judicial deve ser considerado agente do Estado quando exerce munus próprio deste, podendo ensejar a responsabilidade objetiva prevista no art. 37, §6º da Constituição [10].
A consideração no sentido da licitude da ação administrativa é irrelevante: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, é devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais [11].
Outrossim, o agente público causador do dano não precisa estar no pleno exercício de suas atribuições, isto é, durante o serviço. Para a Suprema Corte, o Estado responde também pelos atos danosos praticados por agente de folga, mas que estejam atrelados a sua condição funcional:
"Agressão praticada por soldado, com a utilização de arma da corporação militar: incidência da responsabilidade objetiva do Estado, mesmo porque, não obstante fora do serviço, foi na condição de policial-militar que o soldado foi corrigir as pessoas. O que deve ficar assentado é que o preceito inscrito no art. 37, § 6º, da CF, não exige que o agente público tenha agido no exercício de suas funções, mas na qualidade de agente público." (RE 160.401, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 04/06/99) - grifamos
No mesmo sentido é o teor do RE 291035/SP, constante do Informativo n°. 421 do STF:
"Responsabilidade civil objetiva do estado (cf, art. 37, §6º). Policial militar, que, em seu período de folga e em trajes civis, efetua disparo com arma de fogo pertencente à sua corporação, causando a morte de pessoa inocente. Reconhecimento, na espécie, de que o uso e o porte de arma de fogo pertencente à polícia militar eram vedados aos seus integrantes nos períodos de folga. Configuração, mesmo assim, da responsabilidade civil objetiva do Poder Público. Precedente (RTJ 170/631). Pretensão do Estado de que se acha ausente, na espécie, o nexo de causalidade material, não obstante reconhecido pelo Tribunal "a quo", com apoio na apreciação soberana do conjunto probatório. Inadmissibilidade de reexame de provas e fatos em sede recursal extraordinária. Precedentes específicos em tema de responsabilidade civil objetiva do Estado. Acórdão recorrido que se ajusta à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. RE conhecido e improvido."
Elucidativo é o voto do Ministro Relator CELSO DE MELLO:
"Sabemos que a teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros, desde a Carta Política de 1946, revela-se fundamento de ordem doutrinária subjacente à norma de direito positivo que instituiu, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civil objetiva do Poder Público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, por ação ou por omissão (CF, art. 37, § 6º).
Essa concepção teórica - que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público — faz emergir, da mera ocorrência de lesão causada à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público, consoante enfatiza o magistério da doutrina (HELY LOPES MEIRELLES, "Direito Administrativo Brasileiro", p. 650, 31ª ed., 2005, Malheiros; SERGIO CAVALIERI FILHO, "Programa de Responsabilidade Civil", p. 248, 5ª ed., 2003, Malheiros; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Curso de Direito Administrativo", p. 90, 17ª ed., 2000, Forense; YUSSEF SAID CAHALI, "Responsabilidade Civil do Estado", p. 40, 2ª ed., 1996, Malheiros; TOSHIO MUKAI, "Direito Administrativo Sistematizado", p. 528, 1999, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, "Curso de Direito Administrativo", p.213, 5ª ed., 2001, Saraiva; GUILHERME COUTO DE CASTRO, "A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro", p. 61/62, 3ª ed., 2000, Forense; MÔNICA NICIDA GARCIA, "Responsabilidade do Agente Público", p. 199/200, 2004, Fórum; ODETE MEDAUAR, "Direito Administrativo Moderno", p. 430, item n. 17.3, 9ª ed., 2005, RT, v.g.).
É certo, no entanto, que o princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite abrandamento e, até mesmo, exclusão da própria responsabilidade civil do Estado nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias — como o caso fortuito e a força maior — ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 - RTJ 55/50 - RTJ 163/1107-1109, v.g.).
Impõe-se destacar, neste ponto, na linha da jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal Federal (RTJ163/1107-1109, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), que os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o "eventus damni" e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público, que, nessa condição funcional, tenha incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do seu comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 131/417).
É por isso que a ausência de qualquer dos pressupostos legitimadores da incidência da regra inscrita no art. 37, § 6º, da Carta Política basta para descaracterizar a responsabilidade civil objetiva do Estado, especialmente quando ocorre circunstância que rompe o nexo de causalidade material entre o comportamento do agente público e a consumação do dano pessoal ou patrimonial infligido ao ofendido.
As circunstâncias do presente caso, no entanto, apoiadas em pressupostos fáticos soberanamente reconhecidos pelo Tribunal "a quo", evidenciam que o nexo de causalidade material restou plenamente configurado em face do comportamento comissivo em que incidiu o agente do Poder Público, que, ao disparar arma de fogo da corporação à qual pertencia — e cuja posse somente detinha em virtude de sua condição funcional de policial militar —, atingiu a vítima, que veio a falecer. (...)"
Observe-se que, no tangente ao alcance da expressão serviços públicos, referida no art. 37, §6º, o Supremo tem adotado uma posição bastante flexível. Embora a Constituição Federal atribua ao Estado não apenas a prestação de serviços públicos (art. 175), mas também o exercício da polícia administrativa (art. 145, II) e a realização de obras públicas (art. 145, III), além da exploração de atividades econômicas (art. 173) e de fomento (arts. 174, § 2º, 215, 217 e 218), é necessário entendê-la sob um aspecto amplo, afastando interpretações literais. Tanto que o STF já condenou ente público a reparar danos provocados por obra pública (RE 115370/PR), e pela permanência de animais em via de circulação, por insuficiência do serviço de fiscalização - configurado como polícia administrativa (RE 180.602-8/SP).
De outra banda, cabe notar que a modalidade subjetiva da responsabilidade civil do Estado, constituída em torno da idéia de culpa não individualizada no agente público, mas anônima do serviço (imprudência, negligência ou imperícia), tem sido perfeitamente admitida pelo STF nos casos de omissões ou insuficiência de serviços públicos, desde que comprovado o nexo de causalidade:
"Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, esta numa de suas três vertentes, a negligência, a imperícia ou a imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. A falta do serviço — faute du service dos franceses — não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre a ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro. Latrocínio praticado por quadrilha da qual participava um apenado que fugira da prisão tempos antes: neste caso, não há falar em nexo de causalidade entre a fuga do apenado e o latrocínio." (RE 369.820, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 27/02/04) [12].
Todavia, situações há em que a mesmo a responsabilidade objetiva do Estado por atos comissivos de seus agentes pode ser afastada. Quando constatada a ocorrência de caso fortuito, força maior, ou culpa exclusiva da vítima, corrente majoritária da jurisprudência, fundada na teoria do risco administrativo, entende ocorrer a ruptura do nexo de causalidade entre a conduta do Poder Público e o dano. Nesse sentido, já assentou o STF:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO E DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO. CULPA DA VÍTIMA. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, admite pesquisa em torno da culpa da vítima, para o fim de abrandá-la ou mesmo excluí-la. Precedentes. 2. Reexame de fatos e provas. Inviabilidade do recurso extraordinário. Súmula n. 279 do Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI-Agr636814/ DF, Rel. Min. Eros Grau, DJ 15/06/2007) - grifamos
"Em face dessa fundamentação, não há que se pretender que, por haver o acórdão recorrido se referido à teoria do risco integral, tenha ofendido o disposto no artigo 37, § 6º, da Constituição que, pela doutrina dominante, acolheu a teoria do risco administrativo, que afasta a responsabilidade objetiva do Estado quando não há nexo de causalidade entre a ação ou a omissão deste e o dano, em virtude da culpa exclusiva da vítima ou da ocorrência de caso fortuito ou de força maior." (RE 238.453, voto do Min. Moreira Alves, DJ 19/12/02) [13] (grifamos)
"Responsabilidade objetiva do Estado. Ocorrência de culpa exclusiva da vítima. - Esta Corte tem admitido que a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito público seja reduzida ou excluída conforme haja culpa concorrente do particular ou tenha sido este o exclusivo culpado (Ag. 113.722-3-AgRg e RE 113.587). - No caso, tendo o acórdão recorrido, com base na analise dos elementos probatórios cujo reexame não e admissível em recurso extraordinário, decidido que ocorreu culpa exclusiva da vítima, inexistente a responsabilidade civil da pessoa jurídica de direito público, pois foi a vítima que deu causa ao infortúnio, o que afasta, sem duvida, o nexo de causalidade entre a ação e a omissão e o dano, no tocante ao ora recorrido. Recurso extraordinário não conhecido." (RE 120924 / SP, DJ 27-08-1993)
Não sendo possível o afastamento da responsabilidade, a Constituição ainda assegura o direito de regresso contra o causador do dano, se este agiu com dolo ou culpa. Discute-se, então, a incidência do art. 70, III, do CPC, segundo o qual é obrigatória a denunciação da lide àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda. MARIA SYLVIA DI PIETRO [14] adota o seguinte entendimento a respeito da controvertida temática:
"1. quando se trata de ação fundada na culpa anônima do serviço ou apenas na responsabilidade objetiva decorrente do risco, a denunciação não cabe, porque o denunciante estaria incluindo novo fundamento na ação: a culpa ou dolo do funcionário, não argüida pelo autor;
2. quando se trata de ação fundada na responsabilidade objetiva do Estado, mas com argüição de culpa do agente público, a denunciação da lide é cabível como também é possível o litisconsórcio facultativo (com citação da pessoa jurídica e de seu agente) ou a propositura da ação diretamente contra o agente público".
O processualista Alexandre Freitas Câmara, baseado em vetusto precedente do STF, chega a defender tratar-se a hipótese de chamamento ao processo:
"A nosso juízo, e assumindo os riscos de uma posição isolada, o fato de o Estado, civilmente responsável, ter direito de regresso em face de seu agente que tenha causado o dano, não exclui a responsabilidade deste perante o lesado, a qual decorre do art. 927 do Código Civil de 2002. Assim sendo, nada impediria que se formasse um litisconsórcio (facultativo, obviamente entre a pessoa jurídica de direito público e seu servidor (o que, aliás, já foi admitido pelo Supremo Tribunal Federal, relator o Ministro Cunha Peixoto, RE 90.071, j. 18.8.1980, v.u., DJU 26.9.1980). Em prevalecendo tal entendimento, há que se reconhecer a solidariedade entre a pessoa jurídica de direito público e seu agente, o que torna inadequada a denunciação da lide, revelando-se cabível, no caso, o chamamento ao processo". [15]
Todavia, o fato é que a 1 ª Seção do Superior Tribunal de Justiça já pacificou a celeuma, assentando que a denunciação da lide ao agente do Estado em ação fundada na responsabilidade prevista no art. 37, § 6º, da CF/88 não é obrigatória:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - DENUNCIAÇÃO DA LIDE - DIREITO DE REGRESSO - ART. 70, III, DO CPC.
1. A denunciação da lide só é obrigatória em relação ao denunciante que, não denunciando, perderá o direito de regresso, mas não está obrigado o julgador a processá-la, se concluir que a tramitação de duas ações em uma só onerará em demasia uma das partes, ferindo os princípios da economia e da celeridade na prestação jurisdicional.
2. A denunciação da lide ao agente do Estado em ação fundada na responsabilidade prevista no art. 37, § 6º, da CF/88 não é obrigatória, vez que a primeira relação jurídica funda-se na culpa objetiva e a segunda na culpa subjetiva, fundamento novo não constante da lide originária.
3. Não perde o Estado o direito de regresso se não denuncia a lide ao seu preposto (precedentes jurisprudenciais).
4. Embargos de divergência rejeitados.
(EREsp 313886/RN, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26.02.2004, DJ 22.03.2004 p. 188)
Se antes a Corte entendia ser até conveniente a denunciação em ações fundadas na responsabilidade objetiva do Estado com alegação de culpa de agente público [16], hoje chega a afirmar a impossibilidade de sua admissão, para evitar a ocorrência de "prejuízo à celeridade e à economia processual" [17]. À evidência, havendo agregação de elemento novo na lide, descabe a denunciação.
Bastante polêmica, ainda, é a questão da responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais. Segundo a orientação do STF, o princípio da responsabilidade objetiva não se aplica aos atos do Poder Judiciário, salvo nos casos expressamente declarados em lei [18], como o erro judiciário e a prisão além do tempo devido (CF, art. 5°, LXXV; CPP, art. 630):
Erro judiciário. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Direito à indenização por danos morais decorrentes de condenação desconstituída em revisão criminal e de prisão preventiva. CF, art. 5º, LXXV. C.Pr.Penal, art. 630. 1. O direito à indenização da vítima de erro judiciário e daquela presa além do tempo devido, previsto no art. 5º, LXXV, da Constituição, já era previsto no art. 630 do C. Pr. Penal, com a exceção do caso de ação penal privada e só uma hipótese de exoneração, quando para a condenação tivesse contribuído o próprio réu. 2. A regra constitucional não veio para aditar pressupostos subjetivos à regra geral da responsabilidade fundada no risco administrativo, conforme o art. 37, § 6º, da Lei Fundamental: a partir do entendimento consolidado de que a regra geral é a irresponsabilidade civil do Estado por atos de jurisdição, estabelece que, naqueles casos, a indenização é uma garantia individual e, manifestamente, não a submete à exigência de dolo ou culpa do magistrado. 3. O art. 5º, LXXV, da Constituição: é uma garantia, um mínimo, que nem impede a lei, nem impede eventuais construções doutrinárias que venham a reconhecer a responsabilidade do Estado em hipóteses que não a de erro judiciário stricto sensu, mas de evidente falta objetiva do serviço público da Justiça. (RE505393 / PE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julgamento: 26/06/2007)
Nessa mesma seara, o Pretório Excelso já decidiu possuir a Fazenda Pública legitimidade para figurar no pólo passivo da lide indenizatória fundamentada em danos causados por atuação de magistrado:
"A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. Ação que deveria ter sido ajuizada contra a Fazenda Estadual — responsável eventual pelos alegados danos causados pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições —, a qual, posteriormente, terá assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa. Legitimidade passiva reservada ao Estado. Ausência de responsabilidade concorrente em face dos eventuais prejuízos causados a terceiros pela autoridade julgadora no exercício de suas funções, a teor do art. 37, § 6º, da CF/88." (RE 228.977, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 12/04/02)
Observe-se que o voto do ministro aposentado Néri da Silveira, à época relator do recurso, baseado em parecer ofertado pela Procuradoria-Geral da República, chega a ratificar textualmente a responsabilidade objetiva por danos decorrentes de atos judiciais:
"Pelos prejuízos que os atos judiciais, quer jurisdicionais, quer não jurisdicionais, causem ao administrado, responderá o Estado, quer se prove a culpa ou o dolo do magistrado, quer os danos sejam ocasionados pelo serviço da administração da justiça, que é, primordialmente, um serviço Público do Estado. Se há uma culpa ou dolo do julgador, o Estado responde pelos prejuízos causados, exercendo depois o direito de regresso contra o causador do dano."
Em relação a atos emanados do Poder Legislativo, a regra geral é não caber a atribuição de responsabilidade civil ao Estado por decorrência da edição de normas jurídicas. Contudo, segundo pontua JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, "é plenamente admissível que, se o dano surge em decorrência de lei inconstitucional, a qual evidentemente reflete a atuação indevida do órgão legislativo, não pode o estado Simplesmente eximir-se da obrigação de repará-lo". Idêntico raciocínio se aplicaria às leis de efeitos concretos, as quais materialmente constituem atos administrativos, apesar do revestimento formal de lei. Sobre tanto, o STJ já assentou que "o Estado só responde (em forma de indenização, ao indivíduo prejudicado) por atos legislativos quando inconstitucionais, assim declarados pelo Supremo Tribunal Federal" [19].
Vale lembrar, ademais, que a jurisprudência do STJ e do STF vem caminhando no sentido de reconhecer a existência de responsabilidade civil do Estado por ato omissivo, fundada na teoria subjetiva, que pressupõe a existência de dano ou culpa. Entretanto, aceita a atribuição de culpa genérica do serviço público (faute du service):
Recurso extraordinário. 2. Morte de detento por colegas de carceragem. Indenização por danos morais e materiais. 3. Detento sob a custódia do Estado. Responsabilidade objetiva. 4. Teoria do Risco Administrativo. Configuração do nexo de causalidade em função do dever constitucional de guarda (art. 5º, XLX). Responsabilidade de reparar o dano que prevalece ainda que demonstrada a ausência de culpa dos agentes públicos. 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento.(STF, RE272839/MT, Rel. Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 01/02/2005. DJ 08/04/2005, p. 38).
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS PÚBLICAS. ATO OMISSIVO DO PODER PÚBLICO: LATROCÍNIO PRATICADO POR APENADO FUGITIVO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA: CULPA PUBLICIZADA: FALTA DO SERVIÇO. C.F., art. 37, § 6º. I. - Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, esta numa de suas três vertentes, a negligência, a imperícia ou a imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. II. - A falta do serviço - faute du service dos franceses - não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre a ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro. III. - Latrocínio praticado por quadrilha da qual participava um apenado que fugira da prisão tempos antes: neste caso, não há falar em nexo de causalidade entre a fuga do apenado e o latrocínio. Precedentes do STF: RE 172.025/RJ, Ministro Ilmar Galvão, "D.J." de 19.12.96; RE 130.764/PR, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 143/270. IV. - RE conhecido e provido. (STF, RE369820/RS, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ 27/02/2004, p. 38)
ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATO OMISSIVO – QUEDA DE ENTULHOS EM RESIDÊNCIA LOCALIZADA À MARGEM DE RODOVIA.
1. A responsabilidade civil imputada ao Estado por ato danoso de seus prepostos é objetiva (art. 37, § 6º, CF), impondo-se o dever de indenizar quando houver dano ao patrimônio de outrem e nexo causal entre o dano e o comportamento do preposto.
2. Somente se afasta a responsabilidade se o evento danoso resultar de caso fortuito ou força maior, ou decorrer de culpa da vítima.
3. Em se tratando de ato omissivo, embora esteja a doutrina dividida entre as correntes da responsabilidade objetiva e da responsabilidade subjetiva, prevalece, na jurisprudência, a teoria subjetiva do ato omissivo, só havendo indenização culpa do preposto.
4. Recurso especial improvido.
(REsp 721.439/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 21.08.2007, DJ 31.08.2007 p. 221)
Por fim, um último ponto a ser mencionado: a questão da prescrição da pretensão indenizatória em face do Poder Público. Autores como JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, em interpretação normativo-sistemática, entendem que a regra do art. 206, § 3°, V, do novo Código Civil, a qual fixa o prazo de três anos para a prescrição da reparação civil, se aplica plenamente aos casos envolvendo responsabilidade extracontratual do Estado. A prescrição, assim, teria deixado de ser qüinqüenal (conforme prevista no Decreto n°. 20.910/32) para ser trienal. No entanto, há inúmeros precedentes do STJ considerando devida a aplicação do prazo especial previsto no Decreto n°. 20.910/32 em detrimento do prazo geral da lei civil, por força do princípio da especialidade. Apesar de abordarem a controvérsia sob o pálio do Código de 1916, é possível que a concepção de julgados como o abaixo reproduzido se mantenha na Corte:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PRESCRIÇÃO. DECRETO LEGISLATIVO 20.910/32. APLICAÇÃO. NORMA ESPECIAL.
1. O art. 1º do Decreto nº 20.910/32 dispõe acerca da prescrição qüinqüenal de qualquer direito ou ação contra a Fazenda Pública, seja qual for a sua natureza, a partir do ato ou fato do qual se originou.
2. In casu, tendo a parte interessada deixado escoar o prazo qüinqüenal para propor a ação objetivando o reconhecimento do seu direito, vez que o dano indenizável ocorrera em 24 de outubro de 1993, enquanto a ação judicial somente fora ajuizada em 17 de abril de 2003, ou seja, quase dez anos após o incidente, impõe-se decretar extinto o processo, com resolução de mérito pela ocorrência da inequívoca prescrição.
3. Deveras, a lei especial convive com a lei geral, por isso que os prazos do Decreto 20.910/32 coexistem com aqueles fixados na lei civil.
4. Recurso especial provido para reconhecer a incidência da prescrição quinquenal e declarar extinto o processo com resolução de mérito (art. 269, IV do CPC).
(REsp 820.768/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04.10.2007, DJ 05.11.2007 p. 227)
4. A título de conclusão
Conforme pudemos esboçar nas linhas anteriores, a problemática da responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado por danos causados pelos seus agentes desdobra-se em inúmeras vertentes, cuja análise, à luz da interpretação dominante no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, assume extrema relevância na atuação prática dos operadores jurídicos. Sem ter a vã pretensão de exaurir a efervescente temática, procuramos traçar alguns dos aspectos mais relevantes que poderão fomentar debates futuros.
5. Referências Bibliográficas
ALEGRE, José Sérgio Monte. A Responsabilidade Patrimonial do Estado por Comportamentos Administrativos na Atual Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, vol. 2, Minas Gerais: Fórum, 2003, pp. 225-233.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.
STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial: Doutrina e Jurisprudência. 4ª ed. São Paulo: RT, 1999.
Sítios Eletrônicos:
http://www.stf.gov.br
Notas
01 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 853.
02 Idem, ibidem.
03 STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial: Doutrina e Jurisprudência. 4ª ed. São Paulo: RT, 1999, p. 502.
04 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 551.
05 STOCO, Rui. Op. cit. p. 503.
06 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit. p. 553.
07 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 475.
08 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 904.
09 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit. p. 227.
10 REsp 648818 / RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 07.11.2005, p. 94.
11 STF, RE 113.587, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 03/03/92.
12 No mesmo sentido: RE 409.203, Rel. Min. Carlos Velloso, Informativo n°. 391.
13 No mesmo sentido: RE 109.615, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 02/08/96
14 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit. p. 561.
15 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 200.
16 Nesse sentido, REsp 35.853-1/SC – Rel. Min. Demócrito Reinaldo; REsp 594/RS – Rel. Min. Garcia Vieira; REsp 15.614-0/SP, Rel. Min. José de Jesus Filho; REsp 109.208-0/RJ – Rel. Min. Ari Pargendler.
17 STJ, 1ª Turma, REsp 770590 / BA, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ 03.04.2006 p. 267
18 Cf. RE 219.117, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 29/10/99.
19 STJ, REsp 201972 / Rel. Min. DEMÓCRITO REINALDO, DJ 30.08.1999, p. 41.