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Manifesto tupi-guarani: sobre pensar o pensado e a prEdificação da vivência (e consciência) intelectual no Brasil

04/05/2024 às 10:37
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Nossa academia precisa de condições institucionais para valorizar a filosofia e a ciência nacional e se emancipar do pensamento da Europa e dos Estados Unidos.

Por que somos incapazes de pensar verdadeiramente de forma autônoma? Sei que o tema que vou abordar na sequência é sensível e, muitas vezes, a sua discussão não é bem-vinda em nossas comunidades acadêmicas. Mesmo assim, em um texto muito simples e direto, vou afirmar: falta-nos coragem para uma emancipação intelectual! Vou trazer um pouco da minha experiência nos contextos universitários para tentar deixar mais claro o que quero propor com este manifesto.

A começar, falo considerando o estudo das ciências jurídicas e de toda a produção filosófica no Brasil. Alguém já parou para olhar as ementas dos cursos de pós-graduação? Quase inexiste pensamento brasileiro (quando há algumas menções, no mais das vezes, é apenas uma “média” com algum autor ou outro...). Vou falar, a exemplo, sobre o porquê a filosofia brasileira continua sem qualquer possibilidade de emancipação e, por consequência, sem a originalidade que é capaz de atingir. Tenho constatado, considerando várias conversas com diversos professores de pós-graduação, o quanto não causa nenhuma perplexidade o fato de que a filosofia no Brasil é uma filosofia estabelecida e formalizada por filósofos de origem europeia-estadunidense, preponderantemente.

Sim, teremos professores que abarcam o pensamento indígena, assim como no direito alguns clássicos como Pontes de Miranda, Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua, mas são raras exceções. Ainda, pior, às vezes a excepcionalidade desses casos só se justifica como uma apresentação biográfica dos autores, ou seja, uma média com o “sistema” para justificar: “falamos sobre os autores brasileiros”. Verdadeiramente, não se abre espaço para o pensar do intelectual brasileiro. É quase como se disséssemos: “o que se produz no Brasil não vale a pena estudar...”

O que temos visto, então? Nos mais distintos contextos e núcleos de análise e nos variados centros de estudos, sobretudo nas universidades — federais e privadas —, é predominantemente submersivo o estudo e a demanda (gigante) das construções teóricas que são derivadas da tradição europeia, ocidental (mas, sobretudo a tradição europeia) e, em menor medida, dos teóricos estadunidenses.

Isso me chama muita atenção, especialmente porque é muito interessante o quanto que no Brasil é dogmatizado o pensamento europeu-estadunidense. Tem-se, portanto, um colonialismo epistemológico em grande parte cultivado institucionalmente pelas nossas universidades. Mas, alerto, mais do que isso, mais do que um problema de ordem do conhecimento, temos uma dogmatização ontológica do eixo Europa-EUA.

Que significa isso? Significa que há um adestramento que começa desde o estudo escolar e se fortalece progressivamente na academia brasileira para que o estudante seja um viciado em pesquisa de autores europeus-estadunidenses. Estude alemão! Estude italiano! Estude francês! Inglês já é pressuposto, dizem... “Você vai precisar lê-los em língua original...” Lemos todos, ninguém nos lê. É evidente que o exagero aqui exprime duas intenções:

  • I. Reforçar o aspecto de uma falta de originalidade e personalidade na própria produção intelectual; e

  • II. Evidenciar o fato de que por mais que os clássicos são e sempre serão clássicos, pela singular importância, inclusivamente, as próprias línguas estrangeiras, há uma necessidade de que a bagagem intelectual seja uma abertura para uma visão própria (nossa e da nossa) da realidade brasileira.

Nosso pensamento quase nunca é “contemporâneo”, é um pensamento da história, do passado e do “encaixe”. Não fazemos filosofia da nossa realidade. As teorias, culturas, tradições e línguas estrangeiras deveriam servir como instrumento, mas o fundamento deveria ser a nossa própria realidade concreta. O problema indígena deve ser tratado considerando a sua linguagem, a sua simbologia, por exemplo. O pensar se estrutura pelo Guarani (dentre tantas outras) e não pelo Langue française... Muitas vezes, não fazemos também ciência da nossa experiência social... O que fazemos é:

  1. “Esperar” os europeus-estadunidenses (nossos colonizadores) escreverem suas teorias, aí nossos bons e excepcionais alunos e professores traduzem (às vezes décadas após o texto original ser escrito) e passamos a estudá-los (volto a dizer, não estou negando a importância de tal atividade intelectual!);

  2. Não nos permitimos estudar (e produzir) textos originais brasileiros, isso por várias razões, dentre as quais:

    • Nossa “produção intelectual”, como dito, é voltada quase que exclusivamente para formar “comentadores” de autores europeus-estadunidenses. Somos ótimos nisso...;

    • Não nos permitimos inserir nos cursos textos originais dos professores e alunos. A razão para isso é de difícil explicação;

    • Fazemos um endeusamento de autores estrangeiros e, ser um especialista em um estrangeiro, é digno de máximos elogios e considerações...;

    • Não estudamos os nossos textos por medo e falta de coragem (sim, isso temos que considerar, os professores europeus e estadunidenses submetem seus originais às críticas de colegas e alunos, o que permite um contínuo aprimoramento, na medida em que boas ideias e confrontos interessantes vão surgindo, a tal ponto que em sua última edição o escrito é apresentado em uma fase “madura”). Isso não acontece no Brasil, perdemos a oportunidade de amadurecer intelectualmente nossos professores e alunos e, mais do que isso, criar um pensamento crítico sobre a nossa própria realidade;

    • Falta de estímulo dos professores, na medida em que se eles próprios não criam o exemplo (pior, em grande parte somente mostram a versão da produção intelectual estrangeira), então são os responsáveis pelos alunos não terem a capacidade de pensar “fora” do enquadramento dos teóricos europeus-estadunidenses;

  1. Temos uma filosofia (poderia se falar de outras áreas do conhecimento em igual sentido) do “encaixe”, ao invés de produzirmos um saber que se origina da nossa realidade, somos mais adeptos, pela simples razão de que o “sistema” acadêmico é mais articulado a este modo, de explorar autores estrangeiros e comentá-los. É o pensar pela subsunção: conceito estrangeiro (por justificação teórica) + realidade local (que muitas vezes é completamente diversa) = aceitação acadêmica. Se fizermos isso com média competência, tudo certo, temos as aprovações e os títulos, só não temos o essencial, a crítica sobre nós mesmos e sobre o modo como conduzimos a construção da nossa intelectualidade.

Esse assunto é demasiado complexo de abrir ao debate, haja vista a resistência acadêmica e institucional. Quase não tematizamos esse problema e essa questão de modo geral, sobretudo, pelo fato de que nas universidades e, inclusive, os nossos professores, não nos colocam a discutir sobre as construções teóricas que são derivadas de autores brasileiros. Então, nós permanecemos sempre e a cada vez e a cada programa, a cada curso, estudando a tradição alemã, italiana, inglesa, francesa etc... É inegável que voltar aos gregos, revisitar o idealismo alemão, a tradição fenomenológica, a teoria crítica, todas as grandes escolas, tudo isso é válido, tudo isso é importantíssimo, ninguém vai desconsiderar, seria absurdo reduzir a importância dos grandes pensadores da história da humanidade.

Não obstante, é traço característico, e isso de modo geral se faz presente em outros cursos, mas, especialmente na filosofia, a questão e o problema de que nós não nos deparamos no percurso de formação com o pensamento original brasileiro. Mais do que isso, nós não conhecemos o pensamento filosófico brasileiro. E aqui, então, existe um problema muito fundamental, que é enxergamos os problemas filosóficos com base nas lentes que nos são dadas pela tradição europeia, então, um eurocentrismo filosófico e em menor grau, pela tradição que é derivada da filosofia dos pensadores que estão situados nas escolas estadunidense. O pensar no Brasil é, especialmente, formado por uma matriz eua-eurocentrista.

Um ponto adicional é que essa filosofia nacional (ou o pensamento intelectual em geral) não é justificada pelo fato de que existe uma adoração ao Brasil ou uma necessidade de um reconhecimento do ponto de vista estrangeiro, isto é, da comunidade internacional. Não é isso. A grande questão é, se nós temos problemas que são originários, e mais do que isso, problemas filosóficos do ponto de vista do indivíduo, da relação de alteridade, da relação social, que são exclusivos do Brasil, é fundamental que nós tenhamos a capacidade de produzir um olhar crítico que tenha condições e instrumentos de avaliar problemáticas típicas do Brasil. Ou seja, a capacidade de realizar, de identificar e de propor soluções aos nossos problemas com base em construções teóricas que são nossas, porque nós estamos tentando resolver questões filosóficas nossas e, mesmo que o ser humano, em alguma medida, compartilhe problemas similares, os mecanismos socioculturais são de perspectivas de outras sociedades, de realidades que são outras.

É interessante notarmos que isso faz com que nós tenhamos, em alguma medida, um condicionamento especial ao que estudar, que é o pressuposto ao privilégio às fontes originárias daquilo que se estuda. Então, muito pouco nós revisitamos uma filosofia oriental, essa é praticamente inexistente. Igualmente, muito pouco nós nos deparamos com uma filosofia e vou usar uma expressão aqui forte, mesmo sabendo do exagero, que é uma filosofia do “sul global”, ou seja, o Continente Africano, a Oceania e a América do Sul. Continuamos reféns de uma interpretação filosófica e científica de mundo que nos é dada pela tradição, especialmente, tradição europeia-estadunidense e esse é um ponto de crítica e questionamento.

É possível ter originalidade no pensar? Se sim, como ter originalidade se o que se entende por originalidade é, pré-ontologicamente falando, um manifesto categorial apreendido pela e na tradição — e se for assim, portanto, de matriz teórica euro-estadunidense —. Como nós teremos uma originalidade no pensar se o nosso pensamento é condicionado por bases teóricas que sempre já nos são dadas e já são previamente construídas para que nós, ao pensarmos, possamos dizer algo e ao dizer algo, no seu conteúdo e modo de ser (questionar, interrogar e manifestar), o dito, de um determinado modo e ponto de vista, mesmo quando em forma de crítica, permanecemos vinculados sobre as mesmas (claras ou ocultas) bases da própria tradição. Em outras palavras, o que o nosso modelo de pensamento filosófico nos mostra e isso é um dado impactante, é, sobretudo, o pensar no modos do filosofar da tradição filosófica ocidental. A começar dos gregos, dos pré-socráticos, até as escolas filosóficas contemporâneas.

Então, desde o percurso da graduação, mas especialmente no mestrado e no doutorado, o nosso aluno é absorvido, absorvido por uma quantidade significativa e quase que totalitária de leitura de filosofia europeia e estadunidense. Enquadra-se em nível ontológico — porque dali se aprende a ser pesquisador, ser filósofo, ser questionador, ser cientista (neste ou naquele modo) — e também em nível epistemológico — porque os pressupostos teóricos já lhe condicionam o pensar e o pesquisar em geral.

Isso significa que não há espaço para que se faça uma reflexão sobre a autoria filosófica brasileira. Portanto, o aluno, em sua formação, ele desconhece a produção filosófica nacional, e, quando conhece essa a filosofia brasileira (casos excepcionais), ela está muito mais centrada e orientada a escritos de comentários às obras dos filósofos europeus-estadunidenses, do que propriamente a um pensamento original. Por quê? Porque, se dissemos antes que o percurso formativo de pós-graduação é recheado de “um totalitarismo” formado pela coligação EUA-Europa, é natural que esse aluno, no caminho do formar-se, seja pré-conduzido a uma especialização filosófica de natureza estrangeira, ou seja, no final das contas, ele tende a ser um comentador de algum autor europeu-estadunidense, não propriamente alguém que produz uma filosofia autônoma.

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Então essa crítica é, em alguma medida, para nós refazermos o modelo filosófico e, mais do que isso, científico no Brasil. O objetivo: um novo estatuto intelectual originário. Jamais devemos desconsiderar ou deixar de estudar aprofundadamente os grandes clássicos e as novidades teórico-práticas, provenientes seja de onde for. No entanto, a convocação que faço é para começarmos a olhar para a nossa realidade e, com esforço, apresentar soluções nossas. É, a meu ver, fundamental que nossos cursos e seminários sejam compostos por bibliografias dos nossos pesquisadores. Temos que estudá-los, criticá-los e disso proporcionar um avanço científico-filosófico capaz de dar maturidade as nossas próprias obras.

Vamos parar de “esperar” o movimento do mundo, o “movimento do mundo” começará aqui. Sejamos os responsáveis pela construção da grandeza do nosso país. A provocação é no sentido de buscar um movimento reflexivo e prático para que seja possível pensar uma cultura que proporcione uma identidade própria. E uma identidade própria não significa que seja uma filosofia ou ciência homogênea, mas que permita o pensamento originário brasileiro, isto é, a sua emancipação. Para isso, é necessário que os nossos professores sejam encorajados a estabelecer diretrizes, nos seus planos de ensino e nas respectivas universidades, que fomentem o pensamento criativo e originário, com debates de obras brasileiras.

O que estou dizendo é que “eu preciso me autocompreender” olhando para a minha biografia. E aqui mora o X da questão, nós construímos o pensamento intelectual sob bases estrangeiras. Qual que é a biografia da filosofia e da ciência brasileira? Que tipo de contribuição nós temos? Que tipo de legado? O que nós estamos produzindo? O que nós estamos fazendo? Qual que é a nossa contribuição para a sociedade? São perguntas que nós temos que nos fazer para que a gente possa ter uma perspectiva de ver a filosofia brasileira (e expando ao pensamento científico em geral) como um valor humanitário para o Brasil e para o mundo.

Existe, portanto, uma necessidade que é dúplice. Primeiro, é necessário que isso seja conscientizado pelo indivíduo, pela comunidade acadêmica, que isso seja transposto de uma perspectiva teórica para a prática, ou seja, que de fato haja essa permissão, eu diria quase que interna de professores, professoras, alunos e alunas de permitir falar em uma filosofia nacional; e segundo, de que haja um movimento institucional de adesão dessa filosofia nacional (um incentivo e respaldo da instituição).

Portanto, se na filosofia europeia ou estadunidense faz parte dos cursos filosóficos, e isso é muito interessante, que os professores, no mais das vezes, debatam os seus próprios textos, deveria, por assim dizer, ser pressuposto do nosso pensar que aqui também os nossos professores pudessem colocar o seu pensamento filosófico numa perspectiva dialética. O que significa isso? Significa que, no confronto do seu texto com o aluno, ele possa reconstruir, reposicionar, reimpostar a própria filosofia até que possa chegar numa condição de maturidade filosófica.

Isso é um papel, então, fundamental para que nós tenhamos duas grandes consequências. Primeiro, que a partir de agora a filosofia brasileira possa ser colocada em pauta, esse é o primeiro ponto. E o segundo ponto é que a filosofia brasileira possa ser objeto de própria análise. Dois outros fatores em relação a este último são: I. disso nós temos uma propagação do saber filosófico brasileiro, em outras palavras, os professores passam a ter um maior conhecimento da produção filosófica nacional. Por quê? Porque os seus próprios textos filosóficos passam a estar nos programas, nos cursos de filosofia etc.; e II. nós temos um incentivo natural de que esse conhecimento filosófico brasileiro possa chegar num nível superior de maturidade, a partir da dialética com o conhecimento que é produzido em sala de aula no confronto com os alunos. Isso significa que o professor vai ser encorajado a submeter o seu texto ao confronto, à discussão, ao saber geral, e essa discussão vai proporcionar um fomento para que esse saber filosófico deste professor e, consequentemente, dos alunos, se expanda e tenha uma originalidade na própria percepção sobre o mundo. A segunda consequência é justamente a possibilidade real de uma originariedade filosófico-científica, isto é, a emancipação do pensamento brasileiro. Eis um verdadeiro Manifesto Tupi-Guarani: Sobre Pensar o Pensado e a PrEdificação da Vivência (e Consciência) Intelectual no Brasil.

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Sobre o autor
Wilian Mauri Friedrich Neu

Bacharel em Direito pela Antonio Meneghetti Faculdade (com bolsa integral do Programa Federal Universidade para Todos - ProUni), graduando em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas - UFPEL, especialista em Ensino de Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas - UFPEL, especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, pós-graduando em Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) pela Faculdade Legale, doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), extensão Internacional Human Rights and Diplomacy, Palácio da Paz, Haia, na Holanda, pela United Nations Institute for Training and Research. Painelista em direito empresarial e tributário pela OAB/RS, Subseção de Santa Maria (RS). Advogado, escritor e professor universitário e sócio-proprietário na Renard, Friedrich & Neu Advogados Associados, e-mail: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEU, Wilian Mauri Friedrich. Manifesto tupi-guarani: sobre pensar o pensado e a prEdificação da vivência (e consciência) intelectual no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7612, 4 mai. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109210. Acesso em: 18 mai. 2024.

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