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Um estudo crítico sobre as fontes do Direito do Trabalho no Brasil e sua aplicação

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INTRODUÇÃO

Para que se possa apreender satisfatoriamente alguma matéria pertinente a qualquer área do conhecimento humano, impõe-se recorrer à base científica sobre a qual esta se assenta. No campo do Direito, essa assertiva se aplica com especial ênfase, pois, o profissional que não conhece os fundamentos de diversas ordens - históricas, filosóficas, sociológicas etc. - pelo menos dos principais institutos jurídicos, não poderá jamais aspirar ao alcance de uma posição de destaque.

Qualquer que seja a ciência de que se trate, somente a experiência e a observação é que revelam situações novas para serem desvendadas. Partindo desse pressuposto e tratando especificamente da Ciência do Direito, pode-se afirmar que dificilmente se apontará um repositório tão fértil de fatos ou situações merecedoras de considerações científicas como a prática forense, ou seja, a atividade jurídica no "forum" (=em juízo). Daí a razão pela qual, no Brasil, muitas das soluções mais inteligentes para problemas jurídicos são propostas por esses profissionais, embora se saiba que, na maioria das vezes, não se tratam de pesquisadores, mas de técnicos.

Foi exatamente na labuta diária, como Membro do Ministério Público da União, atuando junto à Justiça do Trabalho (no Brasil), que colhemos uma, dentre tantas outras questões polêmicas, para tratar nesta monografia. Trata-se de uma problemática que diz respeito ao sistema jurídico brasileiro, mais precisamente à validade, à hierarquia e à aplicação de certas fontes do Direito do Trabalho.

O problema se nos apresentou porque temos verificado, em vários temas de Direito do Trabalho, sobre os quais existem regras que se apresentam claras na Constituição ou em atos legislativos de hierarquia inferior, que os juízes e tribunais da Justiça do Trabalho no Brasil, muito freqüentemente, insistem em aplicar soluções buscadas na Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, nas jurisprudências dos Tribunais Regionais do Trabalho, nos costumes e na doutrina, em detrimento da solução apontada pela lei. Isso tem refletido nitidamente na oferta de emprego no Brasil, pois, notadamente nos dias de hoje - em que se prima

cada vez mais pela eficiência da produção e redução de despesas - o mínimo que o empresário espera, ao contratar um empregado, é conhecer as cláusulas do contrato ao qual está se obrigando. Na prática, isso tem sido impossível, pois, o que se dá no Brasil é que ao ser rompido um contrato de trabalho, mesmo pagando todas as verbas trabalhistas previstas em lei e nas cláusulas do contrato, muitas vezes o empregador é surpreendido, logo em seguida, com ação judicial movida pelo seu ex-empregado, pleiteando outros direitos relacionados com o contrato de trabalho rompido. Em regra, este aponta, como fundamento, doutrinas contendo interpretações da legislação trabalhista de modo muito mais benéfico para si ou postula direitos trabalhistas "instituídos" pela jurisprudência dos Tribunais do Trabalho, especialmente do Tribunal Superior do Trabalho - a mais alta Corte da Justiça do Trabalho no Brasil.

Disso tudo tem resultado uma visível insegurança para os empregadores em geral, que, para minimizarem os riscos que ensejam a contratação de empregados, têm, na medida do possível, optado pela terceirização de suas atividades, pela automação de sua atividade e até mesmo preferido o encolhimento de suas atividades. Esse processo, sem dúvida alguma, contribui sensivelmente para o aumento do já alto índice do desemprego.

A jurisprudência e a doutrina (muitas vezes, também, os costumes) não são consideradas fontes formais (imediatas) do Direito, nos países que adotam o sistema romanista de Direito. Assim, pode causar perplexidade a qualquer jurista o fato de que no Brasil, em que vigora este sistema jurídico, as referidas "fontes" jurídicas muitas vezes sejam aplicadas pelos juízes ou tribunais, com preferência sobre a solução - diferente - apontada na lei.

Nesta monografia procuraremos a razão para a problemática mencionada. Para que isso se torne possível, faremos, antes, uma razoável explanação sobre sistemas jurídicos, fontes do Direito, validade e hierarquia das fontes e outros assuntos correlatos, com especial enfoque para o Brasil. Depois, cuidaremos de abordar algumas situações práticas do problema cogitado, a fim de que, no final, possamos decifrar a razão de sua ocorrência e apontar possíveis soluções.


1. NOÇÃO DE SISTEMA JURÍDICO

Para captarmos a noção de sistema jurídico, é preciso termos, antes, as noções de sistema dedutivo de enunciados e de sistema normativo. Segundo Carlos Santiago Nino (Introducción al Análisis del Derecho, p. 102), Tarski define sistema dedutivo de enunciados como um conjunto qualquer de enunciados que compreende todas as suas conseqüências lógicas. Partindo desta noção, "apud" Santiago Nino (idem, ibidem), Alchourrón e Bulygin, caracterizam os sistemas normativos como aqueles sistemas dedutivos de enunciados entre cujas conseqüências lógicas há ao menos uma norma, é dizer, um enunciado que correlaciona um caso determinado com uma solução normativa (ou seja, com a permissão, a proibição ou a obrigatoriedade de certa ação).

Destarte, as normas que integram um ordenamento jurídico vigente em um dado momento, apesar de terem distintas origens, mesmo sendo dotadas de diferentes níveis de hierarquia e conquanto destinem-se, cada uma, a resolver variados casos da vida social, não estão postas a esmo no ordenamento, pois guardam entre si íntima relação. Nesse sentido, referindo-se aos diferentes preceitos que integram um dado ordenamento jurídico, Recassens Siches (Tratado General de Filosofía Del Derecho, p. 292) salienta que eles "guardan entre si una conexion formal, es decir, se dan en una articulación orgánica a pesar de las diferentes fuentes de su procedencia y de sus caracteres dispares."

A pluralidade de normas, consoante estabeleceu o pensamento jusfilosófico mais moderno e como tem confirmado a experiência, constitui um todo ordenado e hierarquizado e, por isso mesmo, um sistema. Diz-se, assim, que um conjunto de normas constitui um sistema quando todas elas derivam de uma norma comum, na qual todas se apoiam, e que, por isso mesmo, recebe em relação a todas as demais a denominação de "norma fundamental".

O sistema jurídico abarca todos os diversos preceitos que integram o ordenamento de um Estado num dado momento, desde a norma mais geral até as mais individualizadas. Nesse sentido, pode-se afirmar que integram o sistema jurídico de um Estado a sua Constituição, as leis e todas as demais normas jurídicas, tais como contratos, testamentos, sentenças judiciais etc.

Hans Kelsen é um dos jusfilósofos que expuseram com profundidade essa matéria e, em uma passagem de sua Teoria Pura do Direito (tradução para portugûes por João Baptista Machado, p. 222-223), torna bem clara a relação existente entre as normas de um sistema jurídico, bem assim o fundamento de validade dessas normas. Para tanto, Kelsen toma como exemplo uma sentença penal. Formulando uma pergunta acerca de por que esta norma individual (a sentença penal) é válida como parte de um sistema jurídico determinado, o próprio Kelsen responde, em síntese, que é: "porque foi criada de acordo com uma lei penal. Esta lei recebe, por sua vez, sua validade da Constituição, já que foi estabelecida pelo órgão competente que a Constituição estabelece. Se perguntamos por que a Constituição é válida, quiçá nos remitamos a outra Constituição que foi a primeira, do ponto de vista histórico, mas que foi estabelecida ou por um usurpador ou por uma assembléia (...)."

Kelsen, explicando a estrutura lógica do ordenamento jurídico, afirmou que constitui "não um sistema de normas jurídicas de igual hierarquia, situadas umas ao lado das outras, por assim dizer, mas sim uma ordem graduada de diferentes camadas de normas".

Merkl, discípulo de Kelsen, comparou essa estrutura com uma pirâmide, e essa feliz comparação - que ficou conhecida como Teoria da Pirâmide Jurídica - se difundiu tanto, que hoje se fala de pirâmide jurídica como significado de cada ordenamento jurídico singular e até mesmo do internacional, no qual estão harmonizados todos aqueles. Na pirâmide jurídica, as normas se distribuem nos diferentes graus, que se escalonam desde o vértice até a base, diminuindo no mesmo sentido sua generalidade: no plano mais alto estão as normas constitucionais (em sentido positivo) e na base da pirâmide estão as normas individuais. Entre os dois extremos se encontram as leis stricto sensu e abaixo das normas individuais, encontram-se os atos de execução material destas normas.


2. O SISTEMA JURÍDICO DO BRASIL

Tomando-se em consideração a principal fonte do Direito como sendo, respectivamente, a legislação (em sentido amplo) ou a jurisprudência, o mundo civilizado está dividido em dois grupos de sistemas jurídicos: 1) o dos sistemas preponderantemente legislados(1); e 2) o dos sistemas preponderantemente jurisprudenciais. (2)

Ao tratar desse assunto, Abelardo Torré (Introducción Al Derecho, p. 391) adverte que a referida classificação não tem valor absoluto, porque os dois sistemas mencionados, embora há muito tempo existam, vigoram apenas nos países civilizados e, por isso mesmo, pode ocorrer que na atualidade haja povos que vivam em forma primitiva, regendo-se por um regime jurídico puramente consuetudinário, até porque, entre os povos primitivos, todo o Direito sempre foi consuetudinário.

Apesar da advertência, a classificação dos sistemas jurídicos segundo a sua origem (em Romanista ou do "Common Law") é universalmente aceita.

          No mais, resta óbvio, que o sistema de Direito vigente no Brasil é do tipo Romanista. Aliás, o sistema Romanista ocorre com toda a América do Sul, em toda a América Central e, como visto, em toda a Europa Continental (salvo Gibraltar) - incluídas até mesmo Suécia e Noruega -.(3)

Nos países de filiação romana - e, portanto, também no Brasil -, os juristas têm uma maneira particular de pensar o Direito, que é predominantemente racionalista, porque consideram em primeiro plano as normas jurídicas (especialmente a lei), deixando os fatos em segundo plano, assim como as demais fontes do Direito (incluída a Jurisprudência), que são subordinadas à lei.

Além da circunstância de ser um sistema preponderantemente legislado, os juristas costumam apontar também as seguintes características do sistema continental: 1) permite mudanças mais rápidas, já que uma lei, por exemplo, pode ser reformada ou substituída em um prazo relativamente breve, o que é uma vantagem sobre o outro sistema, numa época como a atual, em que a realidade social muda aceleradamente; 2) é tecnicamente mais avançado que o "commom law", bastando citar, para ilustrar, que todos os países do sistema romano, devido à codificação, se tornaram Estados constitucionais e neles vigora o princípio da supremacia da Constituição, o que traz inegáveis vantagens; e 3) oferece, em princípio, mais segurança jurídica, dada a maior certeza que surge devido às leis, permitindo predizer com maior probabilidade de acerto qual haverá de ser a interpretação judicial em caso de conflito (daí a razão pela qual, nos países do "commom law" há a tendência de se legislar sobre matérias que exigem grande certeza e segurança, como por exemplo o comércio); e, oferece ainda maior segurança, porque, em se tratando de Estados constitucionais, as prescrições da Constituição não podem ser validamente violadas por leis comuns.


3. AS FONTES DO DIREITO

3.1. O QUE SE DEVE ENTENDER POR FONTES DO DIREITO

A locução "fontes do Direito" é multívoca, ou seja, pode ser empregada em distintas acepções. Abelardo Torré (op. cit., p. 299-301) fundamenta muito bem essa assertiva, ilustrando que a expressão "fontes do Direito", dentre outras acepções: 1) presta-se para designar as fontes de conhecimento ou históricas: são os documentos (inscrições, papiros, livros, coleções legislativas etc.), que contêm o texto de uma lei ou conjunto de leis. Por exemplo, as Institutas, o Digesto, etc., são fontes de conhecimento do Direito Romano; 2) designa as fontes de produção: alguns autores empregam esta expressão para estabelecer uma diferença com as fontes de conhecimento e outros o fazem por entender que se agrupam sob esta denominação uma séria de questões heterogêneas; 3) de um ponto de vista geral e filosófico, tem o significado de o espírito humano, que, com afirmou Del Vecchio é a fonte primária e inesgotável do Direito; 4) serve para designar a autoridade criadora do Direito: por exemplo, se diz que o Congresso é a fonte das leis; 5) presta-se para fazer referência ao ato criador do Direito. Neste sentido se fala do costume, enquanto fato social, do ato legislativo etc., como fontes do Direito; 6) refere-se à fonte do conteúdo das normas: são as chamadas fontes materiais ou reais, que podem ser definidas como os fatores e elementos que determinam o conteúdo de tais normas.

Também influi no conteúdo das normas - são, portanto, fontes materiais -o sentimento jurídico, que contribui não só para conformar o conteúdo da legislação como também o da jurisprudência; 7) tem o sentido de fontes formais, ou seja, as diferentes maneiras pelas quais se manifestam as normas jurídicas (lei, jurisprudência, contratos etc.); e 8) equivale à fonte de validade do Direito; ou a vontade do Estado, que é a fonte de validade de todo o Direito.

Miguel Maria de Serpa Lopes (Curso de Direito Civil, v.I, pág. 81), ensina que pela expressão "fontes do Direito" podem ser entendidos dois aspectos especiais da origem do Direito: ou num sentido real, dogmático, isto é, os sistemas de fato que dão ao Direito a sua própria razão de ser, ou as próprias necessidades individuais ou sociais a que o Direito é destinado a satisfazer, caso em que as fontes se confundem com o próprio Direito; ou então a expressão fontes do Direito pode significar, mais exata e especificamente para o jurista, os órgãos sociais donde imediatamente deriva o Direito. No primeiro caso, as fontes do Direito representam o elemento básico de todos os estudos jurídicos, de que foram pioneiros Geny e Lambert; no segundo caso, que é o que mais interessa ao jurista, constitui uma categoria formal.

O mesmo autor mencionado no parágrafo anterior (op. cit., p. 82), propõe a seguinte distinção para as fontes do direito: 1º) fonte do Direito, entendida como causa última do próprio Direito, o fundamento da realidade do ordenamento jurídico, e que constitui o objeto de especulações da Filosofia do Direito, investigação da sua legitimação objetiva e sua validade sociológica; 2º) fontes do Direito Positivo, isto é, as forças sociais que produzem legitimamente, dentro de uma organização jurídica, os vários tipos de normas jurídicas, que constituem seu ordenamento jurídico; 3º) as fontes de conhecimento do Direito Positivo, ou material usado para poder averiguar o conteúdo das normas jurídicas.

Inúmeros outros autores classificam as fontes do Direito, simplesmente, em fontes formais e fontes materiais. Estas últimas correspondem aos fatos sociais e históricos que precisam de ser disciplinados e, por isso, fazem surgir Direito (equivalem às "fontes de Direito", simplesmente, a que se refere Serpa Lopes); e as primeiras correspondem às normas que são efetivamente acatadas como lei pelos membros de uma sociedade e cuja necessidade de observância é não só reconhecida, mas também imposta, coativamente, pelos órgãos estatais com poder para tanto (equivalem às "fontes de Direito Positivo", referidas por Serpa Lopes).

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Carlos Alberto Bittar (Curso de Direito Civil, v.1, pág. 21), usa a expressão fontes do Direito para designar tão-somente as fontes materiais (os mananciais de onde promanam as normas jurídicas, que são, para ele, o Direito Natural e o arbítrio humano); e adota a locução meios de expressão do Direito, sem agregar o uso da palavra fontes, quando quer se referir às fontes formais.

Independente do termo utilizado, fontes do Direito, enquanto objeto da Teoria Geral do Direito, são as normas que regulam coativamente a vida social.

          3.2. CLASSIFICAÇÃO DAS FONTES DO DIREITO

À Teoria Geral do Direito não cabe se ocupar do estudo das fontes quanto aos seus demais sentidos, incumbindo-lhe averiguar as fontes do Direito somente enquanto normas de conduta efetivamente acatadas em um dado sistema jurídico. Os demais aspectos das fontes do Direito devem ser vistos em matérias como a Sociologia Jurídica e a Filosofia do Direito, além de outras ciências especiais que também se ocupam do fenômeno do Direito sob distintos prismas.

Oportuno, por isso, estabelecer uma classificação que nos permita identificar, com precisão, o verdadeiro sentido das fontes de Direito a que estivermos nos referindo.

A maioria dos juristras brasileiros concorda em que as fontes formais do Direito são uma categoria composta de fontes pré-estabelecidas e portadoras de um caráter estático e que, porém, o movimento das sociedades humanas não se contenta com essas bases exclusivamente estáticas, de modo que pede e exige outras, mais compatíveis com a sua dinâmica. Por isso, as fontes formais do Direito são seguidas de outras, que certos juristas denominam de não formais; e alguns juristas ainda criam uma terceira categoria, de modo que na bibliografia brasileira são encontradiças referências a três espécies de fontes: 1) as imediatas ou formais, que são as leis no seu sentido amplo, de regras sociais obrigatórias; 2) as mediatas ou geradoras, que são o costume, a doutrina (ou Ciência do Direito) e a jurisprudência dos tribunais; e 3) as fontes subsidiárias do Direito, isto é, os preceitos jurídicos aplicáveis aos casos não previstos (analogia, eqüidade e princípios gerais do Direito).

Outros juristas simplificam essa classificação, reduzindo-as a dois graus: 1) fontes diretas ou imediatas, representada por aquelas fontes que sejam suficientes para produzir a regra jurídica por sua própria força; e 2) fontes indiretas ou mediatas, quando insuficientes a produzir a regra por sua própria força.

          3.3. AS FONTES QUE TÊM E AS QUE NÃO TÊM FORÇA OBRIGATÓRIA E SUA CLASSIFICAÇÃO

Em harmonia com a classificação acima exposta, as fontes que têm força obrigatória - efetivamente capazes de produzir de pronto a regra jurídica - são as fontes formais, também denominadas diretas ou imediatas.

São fontes revestidas de tais atributos - e, por isso, fontes formais, diretas ou imediatas - a lei e o costume (4), dependendo, é claro, do tipo de sistema jurídico ao qual se esteja filiado (nos sistemas filiados ao tipo "common law" os costumes sempre são fontes diretas; e no sistema do tipo Romanista isso ficará a critério da legislação, podendo esta determinar que se tratam de fontes primárias ou de fontes secundárias).

São fontes indiretas, mediatas ou geradoras (incapazes de produzir, por si próprias, regra jurídica), conforme a maioria dos juristas brasileiros, a jurisprudência dos tribunais e a doutrina.

Como fontes subsidiárias, aparecem os princípios gerais do Direito, a analogia e a eqüidade, dada a sua função de colmatar as normas positivas ou de orientar o aplicador para melhor aplicar a lei.

Há ainda quem insira o contrato como fonte jurídica formal, direta ou imediata. O contrato tem força obrigatória, mas não tem o caráter geral e abstrato, como a lei em sentido amplo. A teoria clássica exclui os atos jurídicos (gênero de que faz parte o contrato) da categoria de fontes do Direito, porque se destinam a reger casos particulares, regulando somente situações individualizadas, em oposição ao conceito de lei. A doutrina clássica manteve vivo contraste entre as fontes do Direito propriamente ditas e os atos jurídicos, dando este causa a situações individuais, a Direito subjetivo ou poderes de Direito. No fim do século XIX e começo do século XX, os autores de Direito Público criticaram essa concepção clássica e, partindo do conceito de ato jurídico, como manifestação de vontade, exteriorizada com o objetivo de produzir um efeito de Direito, entenderam tal conceito como perfeitamente ajustável (equiparado) à decisão do legislador, da qual decorrem efeitos de Direito, sob a forma de uma regra nova.

Assim, com base na doutrina publicista, pode-se acrescentar os contratos como fontes jurídicas formais diretas ou imediatas, na medida em que - embora, diferentemente da lei, sem eficácia generalizada, mas sim voltado para um caso concreto - eles proporcionam a criação de direitos, tal como a lei.

Desse modo, reiteramos que nesta monografia nos ocupamos de problemas relacionados tão-somente com as fontes do Direito no seu sentido de normas cogentes, integrantes de um ordenamento jurídico.

          3.4. FONTES DO DIREITO E A DISTINÇÃO ENTRE DIREITO OBJETIVO E SUBJETIVO

É necessário esclarecer, também, que em Teoria Geral do Direito, quando falamos em "fontes do Direito", referimo-nos às fontes do Direito com força de norma coativa, ou seja, falamos do Direito Objetivo.

Realmente, seria impróprio pretender nortear o estudo das fontes do Direito para pretensas fontes do Direito Subjetivo, porque isso constituiria em incorrer, embora para outro fim, no mesmo equívoco em que incidiu Kelsen, ao supor que Direito Objetivo é o mesmo que Direito Subjetivo, quando afirmou que Direito Subjetivo é o mesmo Direito Objetivo, em relação com o sujeito de cuja declaração de vontade depende a aplicação do ato coativo estatal, assinalado por uma norma.

Tecnicamente, quando se fala de Direito, deve-se ter em mente o Direito Positivo, posto que este, na feliz expressão de Abelardo Torré (op. cit., p.299), é o único Direito que existe. De fato, o Direito Subjetivo não tem existência material, existindo apenas abstratamente, em decorrência de uma norma positiva, ou seja, é "uma possibilidade de ação autorizada por uma norma jurídica".

Essa conclusão - de que o Direito que existe concretamente é apenas o Direito Positivo -, ressalvada na Teoria Formalista, de Kelsen, pode ser deduzida de qualquer das principais teorias existentes a respeito da natureza do Direito Subjetivo. Para corroborar esse entendimento, nada melhor do que examinar o enunciado das principais teorias que afirmam a natureza do Direito Subjetivo.

São muitas as teorias que foram formuladas, visando a apontar a natureza do Direito Subjetivo, sendo mais conhecidas as seguintes (inclusive a de Kelsen), consoante explicações de García Maynez (Introducción al Estudio del Derecho, págs. 186-194): 1) Teoria da Vontade (de Windscheid) - para este autor, o Direito Subjetivo é um poder ou senhorio da vontade, reconhecido pelo ordenamento jurídico; 2) Teoria do Interesse (de Ihering) - Ihering sustentou que Direito Subjetivo é um interesse juridicamente protegido ou, em outras palavras, é um interesse tutelado pela lei; 3) Teoria Eclética (de Jellinek) - afirma que o Direito Subjetivo é um interesse tutelado pela lei, mediante o reconhecimento da vontade individual; 4) Teoria Formalista (de Kelsen) - parte do entendimento de que Direito Subjetivo é o mesmo que Direito Objetivo, em relação com o sujeito de cuja declaração de vontade depende a aplicação do ato coativo estatal, assinalado por uma norma; e 5) Teoria da Faculdade Jurídica Normatizada - consoante esta teoria, o Direito Subjetivo é uma possibilidade de ação de acordo com uma norma jurídica.

A teoria considerada ideal é esta última, porque no seu enunciado se destaca a verdadeira essência do Direito Subjetivo e sua relação iniludível com a norma jurídica, na medida em que não há faculdade jurídica sem uma norma que a estabeleça. Mas, como é evidente, a existência de dita relação não impede que se tratem de coisas distintas, mesmo que relacionadas entre si.

Na formulação da sua teoria, Kelsen, como visto antes, incorreu no erro de afirmar que, em determinada relação com sujeito, Direito Subjetivo é o mesmo que Direito Objetivo. Com efeito, isso significa o mesmo que confundir norma com faculdade, que é coisa diferente. A circunstância de que todo Direito deriva de uma norma não demonstra que norma e faculdade sejam o mesmo.

Também mereceram críticas - que não serão comentadas por não interessarem diretamente a este estudo - as demais teorias, porém, em todas estas se pode notar aquilo que se visava expor, ou seja, que não se confunde Direito Objetivo com Direito Subjetivo, porque aquele é norma existente, com força coativa, e este é uma possibilidade de agir decorrente da existência da norma.

Talvez, melhor é afirmarmos que no estudo de Teoria Geral do Direito, quando falamos pura e simplesmente em "Direito", queremos mencionar a norma, o Direito com força coativa, e sabermos que dessa norma (Direito) pode decorrer relação jurídica, bem como que, dentro desta, é possível diferenciar o Direito Subjetivo (faculdade do sujeito ativo de exigir algo que a norma lhe assegura) e dever jurídico (algo que o outro sujeito - passivo - deve cumprir).

          3.5. A FONTE OU FUNDAMENTO UNITÁRIO DE VALIDADE DE UM SISTEMA DE DIREITO POSITIVO

Conforme vimos em tópico anterior, o Direito tem variados modos de expressão ou, em outros termos, variadas "fontes". Todavia, todas as fontes do Direito têm uma fonte de validade comum e unitária ou - para afastar mal-entendidos vocabulares e conseqüente desvirtuamento daquilo de que realmente se trata aqui - um fundamento de validade comum.

Sobre este assunto, Recasens Siches (op. cit., p. 284-285) fornece excelente subsídio, ao explicar que o fundamento de validade de todo o Direito é a vontade do Estado. Todo Direito Positivo, qualquer que seja a sua natureza (consuetudinário, jurisprudencial, legislado, contratual, institucional etc.) só é Direito Positivo se consistir na expressão da vontade do Estado. Esta é, portanto, a única fonte formal das normas jurídicas positivas vigentes, e é assim porque toda norma positiva, seja qual for sua origem efetiva, constituirá Direito vigente na medida em que deva ser aplicada, imposta pelo Estado, ou seja, por seus órgãos.

Órgãos do Estado são aqueles que o Direito estabelece como tais, porque determinados atos deles não são a eles atribuídos, mas sim ao Estado. Os órgãos do Estado deixam de ser tais quando aquilo que realizam não está previsto na ordem jurídica como vontade do Estado. Mas tudo aquilo que os órgãos do Estado realizam, dentro do âmbito de sua competência formal e material, vale como vontade do Estado (mesmo que de fato haja sido criado em outra instância: consuetudinária, institucional, contratual etc.).

Um costume, uma norma contratual, uma norma institucional ou qualquer outra espécie normativa não é Direito Positivo, não é Direito vigente, quando não for suscetível de obter aplicação pelos tribunais ou por outros órgãos do Estado, isto é, não é Direito Positivo uma norma cujo cumprimento não seja imposto inexoravelmente pelo Estado. Se um constume (ou qualquer outro tipo normativo) é aplicado por um órgão estatal com competência para tanto, só por isso já se torna uma manifestação da vontade do Estado; ou, dizendo de outro modo, é pelo fato de se considerar que o Estado faz sua a vontade expressada nessa norma que ela é aplicada pelos órgãos estatais.

Se de fato existe, por exemplo, um vigoroso costume normativo que parece ter a pretensão de constituir regra jurídica, mas não é reconhecida como tal pelos órgãos do Estado, os quais não a aplicam, não impõem o seu cumprimento, teremos que reconhecer que esse costume não é Direito vigente, ainda que fique a salvo a estimação crítica de que acaso devesse ser Direito.

Portanto, a vontade do Estado - entendida esta como o centro comum de imputação de todos os mandados contidos no ordenamento jurídico - é a fonte ou a razão unitária formal do Direito Positivo, e não deve ser confundida com os modos de expressão do Direito.

          3.6. AS FORMAS DE PRODUÇÃO DO DIREITO DE MODO ORIGINÁRIO E DE MODO DERIVADO

Trata-se de uma classificação muito usual das fontes do Direito a que as distingue em fontes originárias e fontes derivadas (ou formas de produção do Direito de modo originário e formas de produção do Direito de modo derivado), tomando em consideração, respectivamente, a circunstância de a norma nascer com fundamento em outra norma ou não.

Convém, contudo, advertir que nesta classificação, embora se utilize a denominação de fontes, incluem-se objetos de distintas essências. Para ilustrar essa assertiva, tomemos como exemplo uma revolução: segundo o critério ora expendido, trata-se de uma fonte originária de Direito, mas, sem dúvida alguma, é um fato social e histórico, além de se tratar, também, de uma fonte material de Direito. A importância da classificação em análise, a nosso ver, se encontra no fato de que ela serve para aclarar ainda mais a noção que já passamos a respeito de sistemas jurídicos, além de facilitar a compreensão do estudo da hierarquia das fontes, de que trataremos mais adiante.

Produção originária é aquela em que se cria a norma fundamental de um sistema ou ordem, fazendo nascer, assim, esse sistema, sem apoio em nenhuma norma jurídica positiva pré-existente. Produção derivada é a que tem lugar quando se produzem normas a teor do disposto em um sistema jurídico já constituído, pelas competências e segundo os procedimentos nele estabelecidos.

          São exemplos de fontes originárias: a) o costume jurídico, pois surge espontaneamente da convivência social; b) a justiça e a eqüidade, conforme citam alguns autores, na medida em que nenhuma norma pré-existente (lei, por exemplo) diz em que elas consistem (convindo advertir que a justiça e a eqüidade se inserem também na classificação das fontes materiais do Direito); c) o estabelecimento de uma comunidade jurídica em um território não pertencente a nenhum Estado, porque dá nascimento a uma ordem jurídica ou sistema jurídico, sem apoiar-se em nenhuma norma anterior - eis que inexistia; d) pelas mesmas razões do exemplo anterior, a fundação de um novo Estado; a revolução, o golpe de Estado e a conquista triunfantes (que , enquanto fontes, são, também, fatos sociais). Nesse sentido, à guisa de ilustração, pode-se concluir que a fonte originária do Direito indiano foi a conquista da América pelos espanhóis; e) a ocupação originária: por exemplo, o estabelecimento de colônia em lugares desabitados e, portanto, desprovidos de Direito. Ilustrativo é o célebre caso da colônia Pitcair, constituída nessa ilha polinésica por alguns marinheiros ingleses amotinados, em 1790.

Por sua vez, são exemplos de fontes derivadas do Direito: a) as leis ordinárias, posto que ditadas pelo Poder Legislativo que é consagrado pela Constituição; b) os regulamentos decretados pelas autoridades competentes para tanto, consoante pré-estabelecido em outra norma; c) as decisões produzidas pelos tribunais competentes, segundo o previsto nas leis aplicáveis; d) os contratos formalizados pelos particulares, que sejam capazes, segundo a lei, dentro do campo por esta admitido; e e) a jurisprudência, enquanto surgida do marco da lei etc..

          3.7. VALIDADE DAS FONTES DO DIREITO

Como bem salienta Carlos Santiago Nino (op. cit., p. 132), a expressão "validade" é ambígua, quer quando se aplica para qualificar uma norma jurídica, quer quando se usa em relação a toda uma ordem jurídica. Segundo bem explicita o mesmo autor, a palavra "validade" pode ser empregada: 1) para expressar que uma norma ou um sistema normativo existem, isto porque uma norma ou sistema só existem porque são válidos e vice-versa; 2) significando a justificabilidade de uma norma ou de um sistema jurídico na sua força obrigatória moral. Neste sentido, uma norma existe se e somente se estiver moralmente justificada, na medida em que aquilo que declara proibido, obrigatório ou permitido é, efetivamente, proibido, obrigatório ou permitido; 3) para expressar que uma norma jurídica vale como tal porque há outra norma do sistema jurídico que declara como obrigatória sua aplicação ou observação.; 4) para expressar que uma norma jurídica é oriunda de uma autoridade competente, dentro dos limites de sua competência, o que significa que tal norma foi produzida em consonância com o que autorizam outras normas jurídicas; 5) para dizer que uma norma em questão pertence a um certo sistema jurídico; e 6) significando que uma norma ou um sistema jurídico tem vigência ou eficácia, ou seja, que são geralmente observados e aplicados.

Em sentido amplo, realmente,cada um dos significados acima expressa uma razoável noção de validade das normas jurídicas. Convém, todavia, que busquemos uma definição que expresse com mais precisão aquilo que se deve entender por validade da ordem jurídica (as normas numa consideração global) ou mesmo de uma norma jurídica singular, ou seja, de uma fonte de Direito.

Ao estudar o tema dos Sistemas Jurídicos (item 1.), vimos que Kelsen nos fornece a clara noção de como se dá a estrutura lógica de um ordenamento jurídico, evidenciando que não se trata de um sistema de normas de igual hierarquia, simplesmente situadas umas ao lado das outras, mas sim de uma ordem graduada de diferentes camadas de normas. Vimos, também, que Merkl comparou essa estrutura com uma pirâmide, dando origem à expressão "Pirâmide Jurídica", que se tornou clássica, dada sua larga utilização pelos juristas, para fazer referência a uma dada ordem jurídica dotada de validade.

Isso basta para evidenciar que a validade das normas jurídicas é um tema que tem íntima relação com o tema dos sistemas jurídicos.

O conceito de validade pode ser dado sob uma ótica normativa ou sob o sentido descritivo. Se a designação do conceito de validade inclui a justificabilidade ou força obrigatória moral das normas ou do sistema jurídico de cuja validade se cogita, o conceito se converte em uma noção normativa. Não incluindo esse predicado, o sentido de "validade" será descritivo, tendo, assim, algum dos significados elencados no primeiro parágrafo deste tópico "3.7", conforme a hipótese a que se aplique.

Pelo sentido normativo da expressão "validade", dizer que uma norma ou um sistema são válidos implica afirmar que devem ser observados e aplicados, ou seja, que são bastantes em si para justificarem uma ação ou decisão. Não se pode deixar de notar, contudo, que nessa afirmação há uma visível auto-contradição. Com efeito, considerando-se a palavra "validade" com o seu significado normativo, toda vez que afirmarmos, por exemplo, que uma norma é válida, mas que não deve ser obedecida ou aplicada - por ser injusta ou por alguma outra razão - isso constituirá uma auto-contradição. Advertimos, também, que quando se usa a expressão "validade"com o significado normativo - sustentando, portanto, que uma regra só é norma jurídica se é válida, ou seja, se está justificada ou tem força obrigatória - está-se pressupondo uma definição não positivista do direito, ou seja, uma definição que alude não às normas reconhecidas por certos órgãos, mas sim às normas que devem ser reconhecidas por eles.

No sentido descritivo, "validade" abrange qualquer um daqueles significados, que estão associados com a vigência de uma norma ou de um sistema, ou com a circunstância da norma pertencer a um sistema ou, ainda, com a circunstância de que uma norma haja sido permitida ou declarada obrigatória por outra. A aplicabilidade destes distintos conceitos de validade depende somente de verificações fáticas, ou seja, conforme aquilo de que se trate. Outrossim, vale observar que, diferentemente da anterior (noção normativista) se tratam de significados de cunho positivista, estes a que acabamos de nos referir.

Por isso é que buscamos subsídios no ensinamento de Kelsen e na Teoria da Pirâmide Jurídica, resultante daquela comparação feita por Merkl, para definirmos "validade" de uma norma ou de uma ordem jurídica (sistema).

Não podemos deixar de anotar que existem duas interpretações acerca do conceito de "validade" Kelseniano, uma considerando que ele segue a noção descritiva e outra considerando que ele segue o sentido normativo quando dá o conceito de "validade".

A nosso ver, seja sob uma ótica normativista ou mesmo descritiva, o fato é que Kelsen conceituou muito bem a validade de uma norma ou sistema jurídico. Essa discussão gerada em torno do seu pensamento serve para nos recomendar que mantenhamos cuidadosamente separados o conceito normativo dos conceitos descritivos de validade (ou existência) de uma norma ou sistema jurídico, apenas para que, quando formos empregá-los, o façamos adequadamente.

Nesse contexto, parece-nos salutar a orientação de Carlos Santiago Nino (op. cit., p. 139), de que é melhor utilizar a palavra "validade" para fazer referência à justificabilidade ou força obrigatória das normas jurídicas e outorgar à palavra "existência" exclusivamente um significado descritivo.

Desse modo, para concluir este tópico, e sem perder de vista as duas noções (normativa e descritiva) de validade, parece-nos que melhor é definir validade como o atributo de uma norma jurídica que foi originada de acordo com uma outra norma, dita fundamental, a qual, por sua vez, é pressuposta como válida. Conseqüentemente, uma norma jurídica válida é geralmente observada por seus destinatários e aceita efetivamente em suas decisões por órgãos que têm a possibilidade fática de pôr em movimento o monopólio da força estatal para executar as medidas coativas que o sistema autoriza.

          3.8. HIERARQUIA DAS FONTES DO DIREITO

Conforme já ressaltamos, os temas relativos à noção e conceito das fontes do Direito, aos sistemas jurídicos, à validade das fontes e à hierarquia das fontes guardam entre si acentuada conexão. Muitas vezes acontece que o aplicador do Direito se depara com um problema e não sabe enquadrá-lo, com exatidão, dentro da ciência jurídica, para buscar a melhor solução à luz da teoria geral exposta na doutrina. Isso ocorre com freqüência no caso dos temas mencionados, devido à evidente conexão existente entre eles, criando, por assim dizer, uma "zona cinzenta". Estudando os referidos temas em tópicos separados, podemos captar suas respectivas sutilezas, e, sempre que nos depararmos com um problema envolvendo algum deles, saberemos situá-lo acertadamente dentro da teoria pertinente e, por conseguinte, poderemos encontrar a melhor solução.

As normas que constituem um sistema jurídico, de acordo com o que já expusemos, ordenam-se segundo certos níveis de hierarquia, de modo que, ante o conflito entre a aplicação de uma ou de outra norma, deve ser aplicada aquela que está em plano hierárquico superior.

Porém, a hierarquia das fontes jurídicas - no sentido de fontes com força coativa própria- não é algo uniforme, pois varia de sistema para sistema, de modo que deve ser examinada dentro do contexto de cada um. Outrossim, não se pode estabelecer, "a priori", qual ou quais das diversas fontes do Direito são admitidas em cada sistema jurídico em particular, devendo a resposta para essa questão ser buscada mediante a aplicação de técnica específica.

Em outras palavras, não existe uma escala hierárquica taxativa, que se aplique indistintamente para qualquer sistema jurídico. Para estabelecer a escala hierárquica num sistema jurídico, devemos primeiro considerá-lo isoladamente, em seguida verificar quais são as formas de criar Direito que são usualmente obedecidas nesse sistema e depois partir para a última etapa, que é a de saber quais são as normas que têm preferência sobre outras e qual a razão dessa preferência.

Para averiguar por que umas normas têm preferência sobre outras, podemos nos socorrer dos critérios vigentes para identificação das normas pertencentes a um sistema e para definição da base desse sistema.

Um dentre vários critérios de identificação, utilizado por muitos autores, é o critério da cadeia de validade, segundo a qual pertencem a um sistema as normas derivadas, ou seja, aquelas normas cujos atos de ditá-las estão autorizados por outra norma que pertença ao sistema jurídico em questão. Assim, para determinar se uma norma pertence a um sistema, devemos chegar, através do que Raz denomina "cadeia de validade" e von Wright de "cadeia de subordinação" (cfe. Santiago Nino, p. 114), a uma norma ou conjunto de normas que consideramos que já forma parte do sistema. Cadeia de validade, segundo Raz (idem, ibidem), é o conjunto de todas aquelas normas tais que: 1) cada uma delas autorize a criação de uma só das restantes, exceto uma que não autorizará a criação de nenhuma; e 2) a criação de cada uma delas esteja autorizada por uma norma do conjunto.

Nesse particular, "mutatis mutandis", o citado jurista segue diretriz semelhante à de Kelsen (apud Santiago Nino, p. 115), o qual sustenta que uma norma é válida quando concorda com o estabelecido por outra norma válida no que diz respeito ao órgão que deve ditá-la, ao procedimento mediante o qual deve ser sancionada e ao conteúdo que deve ter dita norma. Pressupondo que a validade de cada norma reside no fato de ser derivada de outra norma válida, chega sucessivamente até a primeira norma positiva do sistema - a Constituição, por exemplo –, e então se pergunta se esta também é válida. Se a resposta for positiva, resta confirmada a validade de todas as normas que derivam dessa norma primeira. Esta norma última da cadeia, Kelsen denominou de norma fundamental ou básica, que não é uma norma ditada por algum legislador humano ou divino, mas simplesmente um pressuposto epistemológico, uma espécie de hipótese de trabalho que utilizam implicitamente os juristas em suas elaborações (cfe. Santiago Nino, p. 115).

Enfim, pelo critério da cadeia de validade - ou de derivação das normas – podemos identificar as normas que estão na base, as que estão na parte intermediária e a que se encontra no ápice de um sistema ou ordenamento jurídico qualquer.

Outra maneira de identificar as normas que integram um certo sistema jurídico é através das regras que Hart (O Conceito de direito, p. 89-109) denomina de regras de reconhecimento. Esse autor considera que o Direito não se reduz a um só tipo de regras e propõe que o ordenamento jurídico é uma união de diferentes tipos de normas que classifica em primárias e secundárias. Regras primárias são as regras que prescrevem aos indivíduos o que devem ou não fazer e regras secundárias são regras que não tratam diretamente do que os indivíduos devem ou não fazer, mas se ocupam, tão-somente, das regras primárias. Estas, por sua vez, Hart (idem, ibidem) as sub-divide em regras de conhecimento, regras de mudança e regras de adjudicação.5(5)

Para explicar em que consistem as regras de conhecimento de Hart, talvez seja melhor mediante a repetição de uma pergunta e sua resposta, dadas por ele. À pergunta sobre por que os juízes são obrigados a aplicar certas normas, Hart (O Conceito de direito, p. 118) responde que é porque "ela surge de uma prática ou regra social, desenvolvida principalmente por eles mesmo, que estabelece que as normas que satisfazem certas condições (como ter sido ditadas por determinado órgão legislativo) são válidas, ou seja, devem ser aplicadas".

Portanto, regra de reconhecimento pode ser definida como a prática social de reconhecimento de certas normas, que pode se manifestar de diversos modos, como por exemplo na aplicação reiterada dessas normas, na forma de justificar essa aplicação, nas críticas a quem não as aplica etc.. Assim, qualquer que seja a forma pela qual os juízes justifiquem ou devessem justificar suas conclusões acerca de que normas eles devem aplicar, a convergência nessas conclusões entre distintos juízes gera uma prática comum de reconhecimento que pode ser tomada em conta por um observador externo, interessado em descrever o conteúdo do sistema jurídico, para determinar que normas os juízes desse sistema consideram válidas e obrigatórias. Uma regra de reconhecimento simples seria, por exemplo, a que declarasse: "São Direito neste país todas as regras ditadas pelo legislador "A" ou por quem ele autorizar".

Pois bem, através de um desses critérios de reconhecimento acima tratados, facilmente se poderá identificar a base de um sistema jurídico. Esses critérios podem revelar, por exemplo, que na base de um dado sistema jurídico existem duas classes distintas de normas - digamos,
"verbi gratia", todas as normas ditadas por uma convenção constituinte e, além destas, um conjunto de normas consuetudinárias - e revelar, também, que uma dessas classes de normas tem prelação sobre a outra, não porque as normas da segunda class e "derivem" das normas da primeira, mas sim porque, em caso de conflito, estas prevalecem sobre aquelas.

Há outro modo de constatar a ordem de prelação das normas de um sistema, que, pelo seu grande uso, merece menção: através do que, eventualmente, disponham as próprias normas do sistema. Com efeito, uma norma de um sistema pode estabelecer a prelação que deve existir quanto à validade das normas inferiores a ela.

Para encerrarmos a citação de critérios, devemos registrar que também serve como critério para exame da hierarquia das normas num sistema jurídico a verificação da espécie a que pertine o sistema analisado: se de origem romanista ou do "common law", por exemplo. Assim, em se tratando de um sistema que deriva do sistema Romanista, é claro que as leis "stricto sensu" predominarão sobre quaiquer outras espécies de normas. Por outro lado, cuidando-se de um sistema derivado do "common law", estarão no nível máximo os precedentes (ou jurisprudência, como denominamos os latinos).

Finalmente, concluimos dizendo que, seguindo os critérios de reconhecimento que se utilizam para identificar a base de um sistema jurídico e o que dispõem as normas do próprio sistema, podemos diagramar razoavelmente a estrutura hierárquica de qualquer ordenamento ou sistema jurídico. Exemplo prático disso damos logo abaixo, quando tratamos das fontes do Direito no Brasil e ali esboçamos a sua prelação ou hierarquia.

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Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. Um estudo crítico sobre as fontes do Direito do Trabalho no Brasil e sua aplicação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1138. Acesso em: 26 abr. 2024.

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