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Simulação e falência: um estudo comparado das mudanças nas legislações civil e falimentar

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12/12/2008 às 00:00
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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo principal estudar o instituto da simulação e suas aplicações na Falência, especialmente nos diplomas normativos que abordaram a problemática falimentar.

Tendo consciência de que a simulação é elemento importantíssimo no Direito Privado, especialmente no Direito Falimentar, o qual é regido por inúmeras regras tanto de direito material quanto de direito adjetivo, adotamos uma metodologia de estudo que partiu da concentração inicial no instituto da simulação dentro do Direito Civil, tratando do conceito de simulação no Código Civil de 1916 e as significativas mudanças supervenientes, com o Código Civil de 2002.

Tais alterações foram sentidas profundamente pela simulação em sua aplicação ao Direito Falimentar. Conforme demonstraremos nas páginas que seguem, muitos dispositivos tradicionalmente aplicados pelo Decreto-Lei 7.661/1945 não mais puderam persistir com a entrada em vigor do Novo Código Civil. Assim, não temos dúvida de que essas mudanças, além de outras igualmente ou até mais importantes, ajudaram a precipitar a edição de nova lei regulando as falências, que foi a Lei 11.101/2005.

Não poderíamos nos esquecer de mencionar, ainda, a travessia histórica em que foi levado o Decreto-Lei. Publicado nos anos quarenta, quando o primeiro Código de Processo Civil de âmbito nacional ainda tinha apenas seis anos, o referido Diploma atravessou três constituições (além da Emenda Constitucional n° 1, de 1969) e não mais se enquadrava perfeitamente com os valores da Carta de 1988, sendo necessária essa mudança.

Novas perspectivas surgiram com a Constituição Federal de 1988. Exemplos surgem aos montes, sendo a questão da função social da propriedade algo bem característico dessa mudança de paradigmas. Enquanto esse princípio não era tão difundido nos anos 40, com a Constituição passou a ser uma das mais importantes diretrizes do País. Através desse exemplo, podemos ver que não mais se adequava o Decreto-Lei à realidade jurídica e fática do Brasil.

Esse conjunto de fatores influenciou marcantemente a elaboração da Nova Lei de Falências. Nela, contemplou-se a noção de que, mais importante do que salvar o devedor empresário, é salvar a atividade por ele desempenhada. Mais importante do que salvar a empresa com problemas é salvar a atividade que a empresa desenvolve, podendo ela ser substituída por outra, como prevê expressamente a legislação em alguns casos referentes aos meios de recuperação judicial.

Portanto, não há dúvidas de que esse exercício comparativo entre os dois diplomas, cada um deles representando um período específico da História Brasileira, é algo essencial para se entender a essência do Direito Comercial. E, a fim de realizar esse estudo, escolhendo um instituto que também se alterou ao longo de cerca de um século, faremos um verdadeiro passeio histórico pelos institutos jurídicos.

Esperamos, por fim, que a abordagem por nós apresentada seja satisfatória e que o leitor aprecie o texto.


2 SIMULAÇÃO

As aplicações para o termo simulação são inúmeras. Enquanto somos alunos de cursinhos pré-vestibulares, por exemplo, somos constantemente bombardeados com vestibulares simulados, que consistem em provas aplicadas com intuito de nos preparar para o exame vestibular real. Os aplicadores imitam todo o processo de avaliação, desde o ambiente onde será realizada a prova até as questões, geralmente parecidas com as frequentemente encontradas em seleções desta natureza.

Há, portanto, uma tentativa de fazer com que os alunos pensem que estão diante do exame real, para que, assim, se portem como se estivessem realmente fazendo vestibular. Obviamente, os alunos se comportarão com mais seriedade do que se fosse uma prova outra, porque a carga valorativa trazida por um vestibular simulado é bem diferente daquela que acompanha quaisquer outras avaliações.

A partir deste exemplo, verificamos que nem toda simulação é errada, bem como nem todas elas prejudicam aqueles a ela submetidos. Há, entretanto, algo a se ressaltar: na situação exemplificativa, os alunos submetidos ao vestibular simulado têm conhecimento da natureza imitativa do exame; por mais que se comportem como se estivessem diante do vestibular real, é plena a sua consciência de que aquilo não é real.

Bastante diferente seria a situação em que os alunos se submetessem a um vestibular simulado pensando que faziam um vestibular real. Provavelmente, comportar-se-iam de modo idêntico à maneira como se portariam diante de um vestibular simulado, mas os fins almejados pelos exames seriam bastante diferentes: enquanto no exame preparatório eles atuariam no sentido de verificarem o seu desempenho diante do exame vestibular, neste, aplicado verdadeiramente, o intuito é ser aprovado e, assim, entrar em uma universidade.

Assim, ser-nos-ia forçoso admitir que a consciência da real natureza ato praticado influencia de modo decisivo a conduta do agente, bem como as expectativas por ele geradas. Do mesmo modo, quando dos resultados, as frustrações da não-realização dessas expectativas ocasionam sentimentos diversos, com reações igualmente diversas.

É neste sentido que reside a grande diferença entre as duas simulações: quando há plena consciência de que o ato não passa de mera simulação, aquele que, em teoria, seria o prejudicado, não se frustra com a não-realização das conseqüências próprias que seriam oriundas do real acontecimento daquilo que foi simulado; em se tratando, porém, de caso de falta de consciência de um dos agentes, ou, utilizando um vocábulo mais jurídico, de um dos sujeitos da relação estabelecida, têm-se como frustradas as expectativas geradas pela parte que não tinha conhecia da natureza do ato a ela submetido, uma vez que ela esperava que, praticando determinado ato, algo acontecesse, e, na situação em discussão, jamais a conseqüência aguardada se realizaria, pois o negócio pelas partes estabelecido jamais existiu, o que impede que sejam geradas expectativas da parte que sabia da realidade.

Diante de situações como a descrita acima, o Direito criou mecanismos para impedir que as pessoas se utilizem de simulações em larga escala. Um dos parâmetros que distinguem a simulação tolerada legalmente daquela que traz conseqüências para o mundo jurídico é, como já se poderia esperar após o exemplo dos parágrafos anteriores, a consciência das partes de que estão praticando um ato simulado, ou seja, um ato que, aparentemente, tem uma natureza, mas, de fato, não a possui, não tendo, por óbvio, as conseqüências que o ato sobre o qual recaiu a imitação tem.

Portanto, nem todas as simulações são legalmente proibidas. Se alguma das partes a desconhece, não há como deixar o ato persistir, a princípio, uma vez que a vontade de uma parte de praticar o ato tinha em mente que este possuía determinadas configurações, e só o praticou porque desejava atingir determinado resultado, o qual jamais será alcançado.

A primeira conclusão lógica a que chegamos após essa rápida análise da simulação é que, para sofrer a interferência do Direito, a simulação tem que ser desconhecida por uma das partes. Não conseguimos, por hora, vislumbrar uma situação em que as duas partes não tinham conhecimento do que verdadeiramente se passava, o que implica não constituir esta situação violação às regras jurídicas. Assim, podemos obter uma segunda conclusão lógica, que seria o fato de que, na simulação, sempre há um enganado e um enganador, já que, para que surja um negócio falso, é preciso que alguém tenha agido conscientemente no sentido de falsificar o negócio, atuando propositadamente para que a outra parte reste prejudicada com seu ato. Visível deve ser a malícia do enganador.

Há, no entanto, uma outra característica da simulação, esta ainda mais importante do que as outras: a intenção de prejudicar alguém. Nas páginas seguintes, essa idéia será mais satisfatoriamente desenvolvida, a fim de que fique bem claro que, para ser contra legem, a simulação precisa ter como intuito prejudicar alguém, seja parte da relação ou, principalmente, terceiro.

§2º

A simulação não é, obviamente, a única forma de uma pessoa enganar a outra parte em um negócio jurídico. Outras condutas podem ser praticadas objetivando a finalidade de ludibriar a parte, podendo, a partir dos meios utilizados pelo enganador, ter conseqüências diversas no âmbito jurídico.

Quando estamos diante de uma situação em que haja "falta de concordância entre a vontade real e a vontade declarada" (PEREIRA, 2004: 517), caracteriza-se o erro ou ignorância. Utilizando-nos das palavras do mestre Pontes de Miranda, "se o que o figurante do ato jurídico tinha por verdadeiro não no é, dá-se o erro" (1954:271).

Apesar de terem natureza diversa, como já seria de se esperar, uma vez que, possuindo denominações diferentes, não poderiam se tratar de coisas idênticas, receberam igual tratamento do legislador que promulgou o Código Civil de 2002. Caio Mário da Silva Pereira, traça as linhas diferenciadoras dos dois seres jurídicos "No erro existe uma deformação do conhecimento relativamente às circunstâncias que revestem a manifestação de vontade. A ignorância importa no desconhecimento do que determinada a declaração de vontade." (PEREIRA, 2004:517).

Não é, entretanto, todo e qualquer erro que pode ensejar a anulação de negócio jurídico. É preciso que adquira duas características: que tenha sido o erro a causa determinante da celebração do negócio e que alcance a declaração de vontade em sua substância, ou seja, que atinja a essência do negócio.

Em seguida, traz o legislador outra espécie de ato de uma das partes no sentido ludibriar a outra, o qual se trata do dolo. Termo bastante utilizado no direito penal, o conceito de crime doloso foi trazido pelo próprio Código Penal, em seu artigo 18, I, como aquele em que "o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo". Rogério Greco define dolo como "a vontade livre e consciente dirigida a realizar a conduta prevista no tipo penal incriminador" (2003:200).

No Direito Privado, não se afasta tanto muito do conceito criminal, existindo, entretanto, algumas diferenças substanciais. O ato privado doloso é aquele que, "positivo, ou negativo, com que, conscientemente, se induz, se mantém, ou se confirma outrem em representação errônea" (MIRANDA, 1954:326). O agente que pratica ato com dolo o faz maliciosamente, no sentido de fazer com que a outra parte pratique ato de vontade que, de alguma maneira, venha a lhe aproveitar.

De modo idêntico ao erro, não é qualquer conduta dolosa que torna inválido o negócio jurídico. Há certos requisitos que devem ter sido observados para que se anule o negócio. Inicialmente, deve haver relação de causalidade entre a conduta dolosa do agente e a prática do negócio, o que implica a necessidade de o dolo ser essencial; ainda mais, mesmo que seja essencial, deve ser grave, pois só as enganações graves são repelidas legalmente. Por fim, exige-se a unilateralidade do dolo, já que, conforme situação acima descrita, não seria viável a anulação de ato praticado dolosamente pelas duas partes, já que o Direito entra nas relações privadas para regular situações em que uma das partes esteja em desvantagem visível e injusta, como no dolo.

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Bastante próxima do dolo é a coação, mas o limite divisor entre eles é facilmente reconhecível. Enquanto aquele é oriundo de artimanhas e manobras de uma das partes, aquela é caracterizada pela violência, seja ela física ou moral. Essa violência é a causa determinante para que a parte que a sofreu tenha fechado o negócio, sendo necessário o nexo de causalidade entre a violência e a decisão da parte de fechar o negócio. Como não há restrição à natureza da coação, pode ser ela ameaça à própria parte, à sua família, a pessoa a quem tenha bastante apreço, a algum bem da parte ou mesmo ameaça à sua imagem. Todo meio que possa fazer com que a parte se sinta obrigada a fechar o negócio por medo da conduta da outra parte ou de terceiro pode ensejar a anulação do negócio.

Se uma pessoa, diante de situação de desespero, em que ela ou terceiro a ela muito ligado precisem de salvamento, firme negócio extremamente oneroso, deve este ser anulado. É o que o Legislador de 2002 chamou de estado de perigo, o qual não precisa existir de fato, mas, principalmente, deve existir para aquele que aceita as condições; este deve acreditar que a situação perigosa é iminente, e que a conduta do terceiro, após a celebração do negócio, pode salvar quem esteja precisando de socorro. Aqui, não se está diante de uma situação em que uma pessoa quer enganar a outra; aquela pretende, todavia, se aproveitar do estado de desvantagem desta.

Para que se configure o estado de perigo, necessário se faz, primeiramente, que haja configuração do risco de que já tratamos, sendo adequado, porém, que esse risco seja pessoal, ou seja, recaia sobre pessoas, e não sobre patrimônio. A parte que se aproveite da situação precisa, necessariamente, conhecer o desespero da outra, para assim, realizar o outro requisito, o qual é a excessiva onerosidade da obrigação assumida. Não seria inteligente da parte da lei anular qualquer negócio celebrado nessas condições, mas somente aqueles a partir dos quais venha a surgir um dever pesado para a parte que não sofreu com a situação.

A necessidade de que o estado de perigo traga risco pessoal se faz porque existe outra categoria independente para os riscos de natureza patrimonial. É o caso da lesão, que seria "o prejuízo que uma pessoa sofre na conclusão de um ato negocial, resultante da desproporção existente entre as prestações das duas partes" (PEREIRA, 2004:544), sendo este prejuízo necessariamente patrimonial (Cf. PEREIRA, 2004:546).

Por fim, tem-se a fraude contra credores, problema dos mais comuns no Direito Privado. Não é falha no consentimento (Cf. PEREIRA, 2004:536), pois a declaração de vontade está em consonância como desejo do agente. Pontes de Miranda, em linguagem quase poética, disserta sobre o conceito de fraude:

Fraudar é apenas violar indiretamente. Qualquer elemento subjetivo que se intrometa provém de confusão com outros elementos do suporte fático das regras jurídicas sobre fraude; portanto, de elementos que não são a fraus. Quem frauda frustra. O étimo é o mesmo. Quem frauda viola, frustrando. Violar, frustrando, é violar indiretamente. Se o sistema jurídico exige algum elemento subjetivo, esse elemento é à parte. Se os exige cumulativamente, não conhece mais de uma figura de fraude contra credores. Se exige um, como elemento do suporte fático de uma regra jurídica, pode não no exigir, tratando-se de outras regras jurídicas, ou figuras ou espécies de fraude contra credores. (1954:415)

Tem-se, portanto, situação em que as partes celebram negócio com o intuito de prejudicar terceiro, o qual deve ser credor de uma das partes. Ambas atuam no sentido de realizar um negócio para que, com ele, terceiro venha a sair perdendo. Desta forma, as partes têm conhecimento da verdadeira intenção do acordo. O devedor do terceiro prejudicado não é mais culpado do que a outra, visto que esta tinha conhecimento do verdadeiro intuito do devedor, e, mais do que isso, a outra parte contribuiu para que a fraude se consumasse. Há o que os romanos já chamavam de consilium fraudis.

Pretendemos trazer todas as espécies de atos das partes que, uma vez praticados, prejudicam a outra parte ou terceiro. Passaremos agora à análise da sistematização da simulação, espécie por nós escolhida para o presente trabalho, nos Códigos Civis de 1916 e 2002. Acreditamos ser importante esta comparação, porque, enquanto a Lei n° 11.101/2005 já foi promulgada sob a égide da Lei de 2002, o Decreto-Lei n° 7.661/1945 o foi durante a vigência do Código de Beviláqua, e, como o nosso tema visa abordar os dois momentos da legislação falimentar, necessário se faz o estudo comparado entre as duas leis civis e de falência.

§3º

O Código Civil de 1916 trouxe a simulação entre outras espécies de atos caracterizadores dos defeitos dos negócios jurídicos. Num mesmo capítulo, versava o Código sobre o erro ou ignorância, o dolo, a coação, a simulação e a fraude contra credores.

Pontes de Miranda traz precisa definição do que são os defeitos dos negócios jurídicos, os quais, a saber, são "as faltas de elementos, ou a presença de fatos que tornam deficientes os suportes fáticos: entram esses no mundo jurídico e se fazem, assim, atos jurídicos, mas defeituosos" (1954:213).

Característica comum aos defeitos do negócio jurídico é o fato de que, uma vez constatado qualquer desses defeitos legalmente disciplinados, deve ser anulado o negócio jurídico.

Em momento posterior, o Código disciplinava, em capítulo próprio, as nulidades do negócio jurídico. Logo no artigo 145, trazia o rol daquilo que, uma vez acontecendo, fazia com que nulo fosse o negócio jurídico. Nulidade poderia ser definida como aquela situação em que, tendo ocorrido os casos que a ela podem dar ensejo, o negócio será completamente "inexistente e, como tal, nenhum efeito poderia produzir" (TABOSA, 2003:164). E assim dizia o artigo 145:

É nulo o ato jurídico:

I - quando praticado por pessoa absolutamente incapaz (art. 5º);

II - quando for ilícito, ou impossível, o seu objeto;

III - quando não revestir a forma prescrita em lei (arts. 82 e 130);

IV - quando for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;

V - quando a lei taxativamente o declarar nulo ou lhe negar efeito.

Como ressaltamos, o negócio nulo não gera efeitos, porque ele, de fato, nunca existiu. A declaração de nulidade de um ato jurídico opera efeitos retroativos (ex tunc), porque algo nulo é algo que jamais existiu em momento algum.

A simulação, juntamente com os outros atos praticados com o intuito de prejudicar a outra parte ou terceiro, foram tratados pelo Código Civil e 1916 como causas ensejadoras da anulação do negócio jurídico. E nulidade e anulação, apesar de possuírem um mesmo radical, não são sinônimas. Enquanto a nulidade é mais grave, pois atinge normas de ordem pública e, devido à sua essência, faz com que seu alcance seja mais amplo, operando, como já mencionamos, retroativamente.

A anulabilidade, por sua vez, apesar de ser problema grave, é menos gravosa do que a nulidade. Há, nela, a intenção de se proteger, primordialmente o consentimento do agente. Caio Mário da Silva Pereira traça linhas extremamente precisas sobre a anulabilidade:

Nela não se vislumbra o interesse público, porém a mera conveniência das partes, já que na sua instituição o legislador visa à proteção de interesses privados. O ato é imperfeito, mas não tão grave nem profundamente defeituoso, como nos casos de nulidade, razão pela qual a lei oferece ao interessado a alternativa de pleitear a obtenção de sua ineficácia, ou deixar que os seus efeitos decorram normalmente, como se não houvesse irregularidade, o que se reflete no problema dos efeitos. (2004:639-640)

Assim, traz o Código de 1916, em seu artigo 147, as causas que ocasionam a anulação do ato jurídico:

É anulável o ato jurídico:

I - por incapacidade relativa do agente (art. 6º);

II - por vício resultante de erro, dolo, coação, simulação, ou fraude (arts. 86 a 113)

Claro resta, portanto, que a simulação, no regime traçado pelo Antigo Código Civil, era causa ensajodora de anulação do negócio jurídico, assim como os outros defeitos dos negócios jurídicos.

A partir da análise desses conceitos preliminares, partiremos para a análise da simulação em si, dentro da lógica do Código Anterior. A Lei preferiu não definir o que seria simulação; ao autor do Anteprojeto do Código, porém, pareceu importante que se fizesse, em caráter doutrinário, a definição do instituto, bem como dos demais institutos presentes na Codificação. Da simulação, falou Clóvis Beviláqua:

Diz-se que há simulação, quando o acto existe apenas apparentemente, sob a fórma em que o agente o faz entrar nas relações da vida. É um acto fictício, que encobre e disfarça uma declaração real da vontade, ou que simula a existência de uma declaração que se não fez (1951:287-288).

Necessário se fazia o intuito de alguma das partes de, agindo de má-fé, prejudicar alguém ou fraudar a lei (Cf. BEVILÁQUA, 1951:288-289). Conforme ressaltado em páginas anteriores, era preciso que uma das partes atuasse com o intuito de lesar a outra, sendo irrelevante ao Direito, porém, a simulação em que ambas tinham conhecimento, não havendo engano nem nada parecido. Nesse sentido, é expressa a determinação do Código Civil [1].

Apesar de não ter definido o que seria simulação, a Lei trouxe o que vem a caracterizar um ato jurídico como simulado. De maneira até mesmo didática, o artigo 102 do Código Civil é preciso ao trazer essas situações caracterizadoras da simulação:

Haverá simulação nos atos jurídicos em geral:

I - quando aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas das a quem realmente se conferem, ou transmitem;

II - quando contiverem declaração, confissão, condição, ou cláusula não verdadeira;

III - quando os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.

Portanto, concebida foi a simulação, pelo Código de 1916, como vício de vontade, ou seja, como causa de anulabilidade do ato jurídico, estando intimamente ligada às partes. Certamente, Clóvis Beviláqua deve ter sofrido grande influência do mestre de todos os civilistas brasileiros do século XIX, Teixeira de Freitas [2], o qual, na sua Consolidação das Leis Civis, artigo 358, trazia a simulação como defeito ligado ao interesse das partes.

§4º

Com o Código Civil de 2002, profundas alterações se operaram na legislação civil brasileira. Entre as instituições que mais modificações sofreram, encontra-se a simulação, a qual teve praticamente toda a sua essência alterada.

A mais significativa modificação operou-se na natureza do instituto. Deixou de ser a simulação vício de consentimento, como estava anteriormente previsto pelo Código de 1916, para se tornar causa de nulidade dos negócios jurídicos. Houve, assim, a aceitação de que a simulação não seria mais mero defeito do negócio jurídico, mas sim gravíssimo vício da ordem legalmente estabelecida. A sua definição não foi alterada: continua a ser celebração de "ato, que tem aparência de normal, mas que na verdade, não visa ao efeito que juridicamente devia produzir" (PEREIRA, 2004:636), sendo, assim, declaração de vontade, porém de forma enganosa.

Seguiu-se a prescrição do Direito Civil Alemão sobre a simulação. O Código Civil Alemão (BGB) [3], §117, tratando sobre os negócios aparentes (Scheingeschäft), determina serem nulas as declarações de vontade feitas por outros, com o seu consentimento, só por uma questão de aparência [4].

A simulação, no Código Civil de 2002, pode ser tanto absoluta quanto relativa. Na primeira, há declaração de vontade destinada a não produzir resultado algum. Nos dizeres de Caio Mário da Silva Pereira, "o agente aparentemente quer, mas na realidade não quer; a declaração de vontade deveria produzir um resultado, mas o agente não pretende resultado nenhum" (2004:637). Já na segunda, tem o negócio simulado a pretensão de encobrir o negócio verdadeiramente pretendido, sendo chamada de relativa devido ao fato de que a emissão de vontade feita por uma das partes é divergente daquilo que ela, de fato, deseja que aconteça.

Outra alteração importante originou-se da natureza de ordem pública da norma infringida. Como existe a possibilidade de ambas as partes estarem simulando o negócio, como no amplamente utilizado exemplo da simulação de compra e venda para esconder a pretendida doação, a fim de que terceiro saísse prejudicado, não existe a possibilidade de acordo ou de transação, nem muito menos a possibilidade ser o negócio simulado parcialmente válido. Enquanto a anulabilidade, a qual deve ser argüida pelas partes, admite a invalidade parcial do negócio jurídico [5], não há que se falar em nulidade parcial. O negócio é nulo ou não é; utilizado-nos da ontologia aristotélica, há duas categorias distintas para o caso, o ser e o não-ser; uma é a negação da outra, não sendo admitido terceiro gênero.

A cabeça do artigo 167, entretanto, traz ponto interessante sobre essa questão, ao diferenciar os efeitos das simulações absoluta e relativa [6]. Enquanto a primeira é logo declarada nula, por completo, para a relativa, ou dissimulação, como preferiu o Código de 2002, este previu a possibilidade de subsistir o negócio, desde que válidas sejam a substância e a forma adotadas. Assim, no exemplo dado, se as partes tiverem utilizado os meios válidos já tratados, a doação será válida, desde que não venha a ferir direito de terceiro. A compra e venda, porém, jamais terá existido, porque nula foi declarada.

O parágrafo primeiro do artigo 167 [7] em nada alterou os casos em que se dá a simulação, sendo mera cópia do artigo 102 do Código Civil de 1916. No parágrafo seguinte [8], ficam ressalvados os direitos de terceiros de boa-fé perante aqueles que contrataram em negócio jurídico simulado.

Uma conseqüência natural da transferência da simulação para as causas de nulidade dos negócios jurídicos é possibilidade de a simulação, assim como as outras causas de nulidade, ser alegada por qualquer interessado, além do Ministério Público, quando for caso de sua intervenção [9]. Reconheceu-se, ainda, a imprescritibilidade da simulação [10], característica marcante de praticamente todas as outras determinações absolutas da legislação civil e processual civil.

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Sobre o autor
Gustavo César Machado Cabral

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABRAL, Gustavo César Machado. Simulação e falência: um estudo comparado das mudanças nas legislações civil e falimentar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1990, 12 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12074. Acesso em: 19 abr. 2024.

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