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Intenção recursal no pregão eletrônico.

Manifestação do licitante sem prévio acesso à documentação e proposta do concorrente declarado vencedor

12/01/2009 às 00:00
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Não obstante já se passarem aproximadamente oito anos da instituição do Pregão como modalidade licitatória no país, algumas dúvidas procedimentais ainda não foram devidamente enfrentadas e debatidas com o devido apuro que merece o tema, especialmente considerando-se a já consolidada posição do Pregão como a modalidade preferencial e mais utilizada pelos órgãos e entidades obrigadas por lei a realizar licitações para as aquisições de bens e serviços.

Muito já se discutiu sobre as inovações trazidas pelo Pregão, como a inversão das fases de habilitação e proposta, a instituição da fase de lances, bem como sobre a celeridade e desburocratização impressas a tal procedimento, fatores esses que têm de modo inegável gerado alta eficiência na execução das licitações e comprovada economia aos cofres públicos.

Contudo, quando o assunto diz respeito à fase recursal no Pregão, especificamente no caso do Pregão Eletrônico, ainda encontramos pontos nebulosos que têm gerado entendimentos dos mais variados sobre o tema e que se alternam de licitação para licitação e de entidade para entidade, trazendo insegurança àqueles que atuam no mercado de licitações.

A lacuna legal e doutrinária a respeito do procedimento recursal no Pregão Eletrônico é flagrante! Em ambos os casos a fase recursal é tratada de maneira similar àquela prescrita para o Pregão Presencial, ou seja, após a fase de lances, declarado o vencedor habilitado/classificado os demais licitantes devem imediatamente e de forma motivada apresentar suas razões recursais, sob pena de preclusão de tal direito.

De fato, o procedimento prescrito é bem simples e não apresenta maiores problemas, porém sua utilidade não se presta ao Pregão Eletrônico de modo efetivo vez que tal procedimento possui peculiaridades próprias e únicas. Se no Pregão Presencial a manifestação de intenção recursal na sessão pública é plenamente viável ante a presença física dos licitantes, que podem realizar a análise in loco dos documentos e da proposta do concorrente declarado vencedor, como realizar a aplicação de tal regramento ao Pregão Eletrônico, onde não há qualquer possibilidade de acesso aos documentos do licitante vencedor da disputa? A ausência física do licitante ao local de realização do procedimento eletrônico e o não acesso aos documentos e proposta dos seus concorrentes, tornam a motivação imediata das razões recursais via internet algo completamente inviável e, por sua vez, cerceador da ampla defesa e do contraditório no processo administrativo.

Como demandar do licitante inconformado o registro imediato via sistema eletrônico da sua intenção recursal, já contendo os motivos que ensejam a inabilitação e/ou desclassificação de concorrentes, se inexiste qualquer possibilidade do mesmo ter acesso aos documentos e à proposta do concorrente declarado vencedor? Como obrigar o licitante a conhecer previamente os erros de seu concorrente sem sequer se disponibilizar ao mesmo tempo hábil para avaliação da documentação apresentada? A resposta é clara: a lacuna legal e o desconhecimento de muitos licitantes sobre seus direitos tornaram a fase recursal no Pregão Eletrônico algo praticamente sem sentido e meramente acessório. Lamentavelmente, o prazo de intenção recursal é aberto aos licitantes no Pregão Eletrônico apenas por força do procedimento e não para que o mesmo possa ser realmente exercido.

Diante disso, no âmbito do Pregão Eletrônico, o licitante que eventualmente discorde do julgamento de habilitação/classificação de determinado concorrente nunca terá meios hábeis de manifestar suas razões recursais por dois motivos muito óbvios: 1) não existem meios de se acessar eletronicamente a documentação e a proposta do licitante declarado vencedor; 2) o licitante inconformado precisa expor os motivos de sua intenção recursal imediatamente no âmbito da própria sessão eletrônica, sob pena de preclusão do direito de recorrer.

Da análise da legislação pátria quanto à fase recursal nos Pregões Eletrônicos, a lacuna aqui citada se confirma. O inciso XVIII do art. 4º da Lei nº 10.520/2002, que instituiu no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios a modalidade de licitação denominada pregão, determina que, após declarado o vencedor do certame, qualquer licitante poderá manifestar imediata e motivadamente a intenção de recorrer, sendo-lhe concedido o prazo de 03 (três) dias para apresentação das razões do recurso, ficando-lhe assegurada, de logo, vista dos autos. Já o inciso XVII do art. 11 do Decreto nº 3.555/2000 fixa que a manifestação da intenção de interpor recurso será feita no final da sessão, mediante registro em ata da síntese das razões recursais, podendo os recorrentes juntar memoriais no prazo de 3 (três) dias úteis.

Nem mesmo a edição do Decreto nº 5.450/20005, que regulamentou especificamente o Pregão Eletrônico no âmbito da União e cujas disposições são utilizadas pelos demais entes que não possuem regulamentação própria para tal modalidade, foi capaz de sanar a omissão normativa acerca do procedimento recursal ora tratado. A norma legal em referência, em seu artigo 26 e Parágrafo Primeiro, determinou os seguintes procedimentos para a fase recursal no Pregão Eletrônico:

"Art.26.Declarado o vencedor, qualquer licitante poderá, durante a sessão pública, de forma imediata e motivada, em campo próprio do sistema, manifestar sua intenção de recorrer, quando lhe será concedido o prazo de três dias para apresentar as razões de recurso, ficando os demais licitantes, desde logo, intimados para, querendo, apresentarem contra-razões em igual prazo, que começará a contar do término do prazo do recorrente, sendo-lhes assegurada vista imediata dos elementos indispensáveis à defesa dos seus interesses.

§1ºA falta de manifestação imediata e motivada do licitante quanto à intenção de recorrer, nos termos do caput, importará na decadência desse direito, ficando o pregoeiro autorizado a adjudicar o objeto ao licitante declarado vencedor."

Evidentemente o comando normativo regulamentador acima citado não foi capaz de solucionar o problema pertinente ao efetivo exercício do direito recursal no Pregão Eletrônico, até porque reiterou a necessidade de manifestação imediata e motivada da intenção de recurso em campo próprio do sistema, mesmo sabendo-se da impossibilidade de acesso à documentação e à proposta do licitante declarado vencedor.

Pelo exposto, apesar de tal incompatibilidade lógica, o que se tem visto ao longo dos últimos anos por parte da maciça maioria das entidades licitantes que se utilizam dos recursos tecnológicos para realizar Pregões Eletrônicos é exatamente a solução cerceadora do direito recursal, ou seja, a exigência imediata, no momento da sessão eletrônica, da manifestação da intenção recursal já contendo os motivos que ensejam a revisão do julgamento de classificação/habilitação do licitante vencedor.

Desse modo, ou o licitante (sem acesso aos documentos/proposta e participando através de uma senha em uma sala virtual) expõe seus motivos ou então perde o direito recursal assegurado em lei. De outro lado, se o licitante eventualmente "inventa" motivos ou expõe motivos genéricos, tem sua intenção recursal negada de imediato pelo Pregoeiro, encerrando-se assim o procedimento na via eletrônica. Enfim, um verdadeiro "beco sem saída" e que simplesmente tem tornado inócua a fase recursal nos Pregões, servindo esta apenas ao licitante previamente desclassificado ou inabilitado pelo Pregoeiro, até porque nesse caso ele consegue expor seus motivos, pois já conhece os motivos de sua exclusão.

Contudo, ainda que diante da omissão do decreto regulamentador do Pregão Eletrônico acerca do franqueamento de vistas aos licitantes dos autos do processo licitatório em momento prévio à abertura do prazo para manifestação da intenção recursal no sistema eletrônico, duas premissas fundamentais devem ser consideradas, especialmente pelo agente público: 1) o respeito ao direito constitucional à ampla defesa e ao contraditório previstos no artigo 5º , inciso LV, da Constituição da República [01]. Não há como se exercer o direito recursal e motivar as razões sem acesso aos documentos e proposta do concorrente declarado vencedor da disputa; 2) o prazo de manifestação da intenção recursal no Pregão Eletrônico não deve ser iniciado e, muito menos encerrado, sem que os autos estejam disponíveis ao interessado para análise (Parágrafo Quinto do artigo 109, da Lei nº 8.666/93 [02], aplicável subsidiariamente no caso).

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Desse modo, com fincas em tais premissas normativas não se deve exigir do licitante no âmbito do Pregão Eletrônico a inserção imediata e motivada, via internet, das razões recursais. Deve-se, sim, disponibilizar ao mesmo tempo hábil para acesso aos documentos de habilitação e de proposta do concorrente declarado vencedor, para que então, após encerrado tal procedimento, seja aberto prazo no sistema eletrônico para inserção da intenção recursal. O cerceamento de defesa não deve jamais ser tolerado pelo administrador público, sob pena do Pregão Eletrônico se tornar um procedimento sigiloso, de acesso interno e exclusivo do órgão licitante, deixando de lado seu caráter público e transparente.

A fase recursal não pode ser tratada como um pseudo direito nos Pregões Eletrônicos e, muito menos, como um empecilho à celeridade do procedimento. Inadmissível inviabilizar o exercício do direito recursal para se economizar tempo ao procedimento licitatório. A busca da celeridade não pode transpor aos limites da legalidade e, muito menos, sufocar o direito recursal a ponto de tornar seu exercício algo impossível. Trata-se de um direito assegurado aos licitantes e que deve ser respeitado, até porque em muitos casos os erros e falhas são identificados e apontados pelos demais participantes, auxiliando os trabalhos do Pregoeiro e de sua equipe de apoio, bem como conferindo ao julgamento do certame um conteúdo ainda mais imparcial e discricionário.

Poder-se-ia alegar que os documentos de habilitação são conferidos através do cadastro do licitante no SICAF, o que, em princípio, retiraria a necessidade de suspensão do certame para se abrir vistas aos licitantes, porém, sabe-se bem que o registro cadastral no SICAF, assim como os demais registros de fornecedores dos demais órgãos públicos, não suprem os documentos de qualificação técnica exigidos usualmente como os atestados de capacidade técnica, registros nas entidades profissionais, licenças de funcionamento para exercício de atividade, qualificação e documentação de técnicos ou de equipe técnica, entre outras condições previstas em lei especial (artigo 30 da Lei nº 8.666/93). Isso sem falar nos documentos eventualmente exigidos para a fase de propostas, como manuais, catálogos, currículos, registro de produtos e equipamentos (casos das licitações envolvendo produtos para a saúde e correlatos).

Inegavelmente, deve-se elogiar a celeridade e a desburocratização das contratações administrativas trazidas pela modalidade licitatória do Pregão, porém o alcance de tais objetivos não pode estar calcado na restrição aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Com razão, se o licitante deseja recorrer contra a habilitação/classificação de um concorrente no Pregão Eletrônico deve lhe ser conferido de fato os meios concretos de exercer tal direito. Uma solução simples seria a inserção no edital de cláusula que previsse a abertura, após a fase de lances e declaração do vencedor, do prazo de 24 (vinte e quatro) horas para que os licitantes possam ter vista aos autos do processo licitatório e acesso aos documentos apresentados pelo participante declarado vencedor. Após o decurso de tal prazo seria aberto via sistema o prazo para manifestação da intenção recursal, dando-se então seqüência ao procedimento.

Obedecendo-se aos preceitos constitucionais vigentes e visando sempre a transparência que deve permear as contratações públicas, a fase recursal nos Pregões Eletrônicos deve ser encarada não como um entrave à celeridade do procedimento, mas sim como um auxiliar da Administração na busca do julgamento mais justo e coerente com os ditames legais e as regras editalícias. Não basta conferir ao licitante apenas o direito recursal no Pregão Eletrônico. É preciso, também, conceder ao participante os mecanismos efetivos para o exercício de tal direito.


Notas

  1. Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...]

    LV

    - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
  2. §5ºdo Artigo 109 - Nenhum prazo de recurso, representação ou pedido de reconsideração se inicia ou corre sem que os autos do processo estejam com vista franqueada ao interessado.
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Sobre o autor
Ricardo Silva das Neves

Advogado, especialista em Direito Público e Licitações, consultor da Organização Pan-Americana de Saúde.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Ricardo Silva. Intenção recursal no pregão eletrônico.: Manifestação do licitante sem prévio acesso à documentação e proposta do concorrente declarado vencedor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2021, 12 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12188. Acesso em: 23 abr. 2024.

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