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O "jus sanguinis" como critério de determinação da nacionalidade da pessoa natural segundo o direito internacional

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2 O JUS SANGUINIS COMO CRITÉRIO DE DETERMINAÇÃO DA NACIONALIDADE

Primeiro critério de atribuição de nacionalidade empregado pelas civilizações, o jus sanguinis foi durante a maior parte da história humana um fator decisivo para a preservação das populações dos países tradicionalmente emigrantes.

O jus sanguinis remonta à Antiguidade Oriental e Clássica. Na Grécia e em Roma, "a atribuição da nacionalidade se alicerçava na filiação, o mesmo ocorrendo no Egito e na Índia (Código de Manu), bem como entre o povo hebreu" [14].

Nesse período histórico, a família era a instituição basilar da sociedade, sendo o Estado, apenas, uma extensão das famílias, que vinculavam um número bem maior de indivíduos. A família antiga, conceitualmente, agregava centenas de pessoas, conceito sócio-jurídico anacrônico comparado ao da família na sociedade contemporânea, que reúne grupos menores, em geral reduzidos ao núcleo familiar.

Na Grécia antiga, quem quisesse naturalizar-se deveria, precipuamente, ingressar em uma família de quem quisesse obter a nacionalidade.

No Império Romano, para um indivíduo ostentar o gentílico romano, era mister que fosse filho de pai romano. As conquistas do Império ao longo dos séculos teriam disseminado também a prática da adoção do critério do jus sanguinis especialmente na Europa.

Conforme discorre Florisbal de Souza Del’Olmo, a preferência pela adoção do critério jus sanguinis, especialmente nos países europeus, fortalece o sentido de pertinência do descendente com o Estado originário de seus ascendentes:

A emigração diminui o número dos nacionais residentes no país e o emprego do jus sanguinis no ordenamento jurídico desses Estados vai propiciar que os descendentes, nascidos nas novas terras, continuem ligados pela nacionalidade à pátria de seus genitores, aonde ao chegarem estarão capacitados para uma integração mais fácil.

Por isso o jus sanguinis é o critério admitido, existindo países, como a Itália, que nem mesmo limita o número de gerações dos descedentes para continuarem nacionais [...] [15].

A adoção do jus sanguinis só perderia força durante o período medieval, em que o jus solis passaria a predominar como critério de atribuição de nacionalidade. O fator preponderante para essa mudança de preferência foi a organização sócio-econômica da época. Tendo em vista que a terra era uma riqueza e símbolo de poder, o nascimento em determinado território dava prestígio e valorizava o sentido de pertinência do indivíduo.

Com a Revolução Francesa, que rompe com o statu quo ante feudal, o jus sanguinis retorna à ordem do dia jurídica no que se refere à atribuição da nacionalidade, sendo ele consagrado especificamente no Código Napoleônico de 1804. Com a promulgação do Code, passam a ser disciplinadas as primeiras normas jurídicas sobre a aquisição, posse, perda e reaquisição da condição de francês [16].

Entretanto, a partir da independência dos Estados Unidos, no século XVIII, o jus solis renasce no mundo jurídico. É que os novos países americanos têm elevado grau de interesse na adoção do direito do território, tendo em vista serem focos intensos de imigrações européias e asiáticas.

Por outro lado, as nações européias não abandonam o interesse na adoção do jus sanguinis. Visando a manter os vínculos e algum controle estatal sobre os cidadãos emigrados e os eventuais descendentes, esse critério continuaria a ser preservado, visto que, naquele momento histórico, a Europa continuava a ser grande pólo emigratório.

Fenômeno interessante que se solidifica especialmente a partir do século XIX é o sentido de pertinência dos indivíduos que comungam, em geral, da mesma língua, cultura, raça e costumes. Com a formação dos Estados nacionais, origina-se o termo nacionalidade.

[...] E desse, no século XIX, surgiu o princípio das nacionalidades, enfaticamente defendido por Mancini, na Universidade de Turim, em 1851, segundo o qual, a cada nação deveria corresponder um Estado, ou seja, o direito natural que teria essa nação de se constituir em um país soberano no concerto da sociedade internacional. Esse princípio tem sido apontado como o impulsionador dos movimentos, afinal vitoriosos, das unificações da Itália e da Alemanha, na segunda metade do século XIX.[...] Luis Ivani de AMORIM ARAUJO observou que ‘a preocupação máxima de Mancini era imprimir conteúdo jurídico ao movimento em prol da unidade da Nação italiana, espalhada por vários Estados. [17]

Alemanha e Itália, as duas últimas grandes nações européias a se organizarem em Estados-nações, seriam também, a partir da metade daquele século, focos intensos de emigração, sobretudo para países como Estados Unidos, Canadá, Argentina, Uruguai e Brasil.

O forte sentido de nacionalidade que tem seu ápice na unificação desses dois países europeus, certamente é reforçado pela adoção do critério do direito de filiação na determinação da nacionalidade dos descendentes dos imigrantes alemães e italianos que se deslocam às Américas até a primeira metade do século XX.

2.2 Conflitos de nacionalidade: o jus sanguinis gerando a figura do polipátrida e do apátrida

A adoção de critérios diversos de atribuição de nacionalidade originária pelo ente estatal pode levar, em muitos casos, a anomalias, conhecidas como conflitos de nacionalidade: o positivo (ou plurinacionalidade) e o negativo (ou apatrídia).

Isso pode ocorrer tendo em vista a prerrogativa que cada Estado tem de determinar quais aqueles indivíduos que contarão com sua proteção no que se refere à determinação da nacionalidade.

Quando o nascimento de um indivíduo tiver relação intrínseca com dois critérios de determinação da nacionalidade, o jus solis e o jus sanguinis, tem-se o conflito positivo, surgindo, dessa forma, a figura do polipátrida, pois terá esse indivíduo mais de uma nacionalidade.

Aliás, em tese é possível que um mesmo indivíduo tenha três ou mais nacionalidades, conforme ilustra Florisbal de Souza Del’Olmo:

[...] Assim, na hipótese de um casal italiano que visitasse o Brasil e nessa ocasião nascesse seu filho, estar-se-ia diante de um caso de dupla nacionalidade: a criança seria italiana por seus pais possuírem essa nacionalidade, já que a Itália adota o jus sanguinis, e seria brasileira, porque o Brasil admite o jus soli. Por outro lado, caso a mãe fosse francesa, o recém-nascido teria tripla nacionalidade, uma vez que seria legalmente cidadão francês, país que também adota o jus sanguinis. Ainda, nesse hipotético parto, poderia algum dos genitores ser detentor de dupla nacionalidade, o que tornaria a criança um ser humano com diversas nacionalidades [18].

Embora para alguns indivíduos a plurinacionalidade – equivocadamente denominada dupla nacionalidade pelo mundo leigo, não gere, a priori, nenhum problema para o polipátrida, pelo contrário, pode lhe assegurar benefícios, como facilidade para o exercício profissional, franquear-lhe o ingresso e a permanência em determinados países ou até mesmo evitar transtornos nos consulados e aeroportos, a polipatrídia pode criar constrangimentos no âmbito das relações diplomáticas.

Não pode o indivíduo valer-se de sua condição de multinacional para utilizar indistintamente benefícios para esquivar-se do cumprimento de obrigações impostas aos compatriotas de um dos Estados de que seja nacional. Exemplo disso é o caso específico do cumprimento do serviço militar e a proteção diplomática [19].

Conforme a Convenção de Haia, de 1930 [20], relativa a questões atinentes a conflitos de leis sobre a nacionalidade, fixaram-se alguns princípios sobre a polipatrídia:

[...] a) a proteção diplomática não pode ser exercida por um Estado de que o indivíduo é nacional em relação a outro Estado de que ele também seja nacional; b) cada Estado tem o direito de considerar o polipátrida como seu nacional; em um terceiro Estado o polipátrida deverá ser tratado como tendo apenas uma nacionalidade; c) o polipátrida pode renunciar a uma nacionalidade que ele tenha adquirido sem manifestar a sua vontade, se o Estado permitir, d) e esta autorização deve ser dada quando ele tiver a sua residência habitual no exterior.

Já em 1963, o Conselho da Europa concluiu uma convenção versando sobre a redução dos casos de plurinacionalidade e sobre a obrigação militar em caso de polipatrídia e a obrigação de prestar serviço militar. Estabeleceu-se, entre outros, que o polipátrida de duas ou mais nacionalidades só estaria obrigado á prestação do serviço militar em apenas um Estado [21].

Entretanto, indivíduos polipátridas que cometam crimes, em um dos países de que sejam nacionais, têm se valido do fato de terem mais de uma nacionalidade para se beneficiarem das brechas no Direito interno e no Direito Internacional, inclusive, para se esquivarem de condenações judiciais ou julgamentos políticos.

Nesse sentido, três casos recentes no âmbito do Direito Internacional ilustram bem essa problemática, quando pessoas que detêm a dupla nacionalidade ou a múltipla nacionalidade necessitam invocar apenas uma delas.

O ex-presidente peruano Alberto Fujimori, acusado de corrupção no país sul-americano, cujo critério de determinação de nacionalidade adotado é o direito do território, valeu-se do fato de ter ainda a nacionalidade japonesa para livrar-se de uma prisão no Peru.

Tendo em vista que o Japão, um país que foi, até o século XX, uma zona de intensa emigração, especialmente para o continente americano, ser um dos Estados que adota o jus sanguinis, o presidente peruano, ao ingressar em território japonês, não pôde ser extraditado para responder pelos crimes praticados em solo peruano. Isso porque, em geral, segundo o Direito interno de vários países, em obediência a princípio de Direito Internacional, é vedado ao ente estatal extraditar seus próprios nacionais.

Caso semelhante ocorreu no Brasil com o banqueiro Salvatore Casciolla, que também se valeu da nacionalidade italiana para não responder por crimes praticados no Brasil, ao transferir seu domicílio para a Itália.

Também o recente caso envolvendo a estudante Suzane von Richtoffen, acusada em participação de homicídio e que responde a processo criminal no Brasil, requereu em São Paulo, ao Consulado da Alemanha, país que também adota o critério jus sanguinis, a nacionalidade alemã, de molde a não ser impelida a permanecer no Brasil e submeter-se ao julgamento pela Justiça brasileira [22].

Em cortes internacionais, quanto à proteção diplomática, a solução encontrada parece ser a da nacionalidade efetiva. Coincidente em regra com a nacionalidade do Estado em que o cidadão encontra-se efetivamente vinculado. Exemplo citado na doutrina é o chamado Caso Canevaro [23]:

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"[...] Refere-se o mesmo a Rafael Canevaro, peruano pelo jus soli e italiano pelo jus sanguinis, que, ante um processo na área tributária no Peru, e na iminência de expropriações em seus bens, invocou proteção diplomática da Itália. Sentença arbitral, em 1912, não recepcionou seu preito por não se admitir ação de um dos Estados de que o indivíduo é nacional contra o outro, podendo, entretanto, qualquer deles agir contra terceiro país em seu favor".

No que concerne aos conflitos negativos, ou seja, quando por força da lei o indivíduo não se vincula a nenhum dos critérios de determinação da nacionalidade, surge a figura do apátrida ou do heimatlos.

Em alguns casos, a legislação interna pode corrigir a distorção, visando a obediência aos ditames do Direito Internacional e, principalmente, respeitando um direito fundamental da pessoa humana, que é o de obter uma nacionalidade.

Nesse sentido, a atual Constituição argentina procura resolver uma questão jurídica criada quando um filho de argentinos – a Argentina em regra adota o jus solis – nasce em território da Espanha, país de tradição jus sanguinis. Em tese, a criança não terá nacionalidade da Argentina, pois não nascida em território argentino, nem será nacional da Espanha, por não possuir ascendência espanhola. [24]

O artigo 20 da Carta Argentina de 22.8.1994 adentra ao mundo jurídico para evitar a figura do heimatlos, facilitando, assim a naturalização do indivíduo [25].

É o que dispõe o artigo 20 daquele diploma: "Os estrangeiros gozam no território da Nação de todos os direitos civis do cidadão [...] Obtêm nacionalização residindo dois anos contínuos na Nação[...] [26] (tradução nossa).

Outro fator importante que pode gerar a apatrídia é quando ocorre a perda da nacionalidade, sem que o indivíduo adquira uma outra.

A perda da nacionalidade pode ocorrer por diversas razões: quando o indivíduo adquire uma outra por meio da naturalização, em geral perde a sua originária; quando adquire uma outra por benefício legal; quando o indivíduo é súdito de Estado que sofreu cessão ou anexação territorial; pela renúncia; por punição da lei.

A apatrídia, bem como assevera Celso D. de Albuquerque Mello, é um dos problemas que o Direito Internacional visa a eliminar. Conquanto a figura do apátrida seja reconhecida no âmbito internacional, ela é uma distorção que viola nada menos que um dos direitos fundamentais do homem, qual seja o de ter uma nacionalidade.

Entretanto, o Direito Internacional proíbe os Estados de confeccionarem legislações que promovam a apatrídia. E, nesse sentido, baseia-se em um aspecto social. É que em meio aos apátridas eram no passado recrutados anarco-terroristas, que, em geral, não nutrem sentimento algum de pátria.

O mundo jurídico internacional, conforme bem esclarece Celso D. de Albuquerque Mello tem procurado eliminar a condição de apátrida, por meio de convenções internacionais. O doutrinador também propõe um a sistema para se terminar com a polipatrídia, que seria aquele que obrigasse os plurinacionais a optarem por uma de suas nacionalidades, de modo que esta opção haveria que ser válida para todos os Estados. E cita o caso da Espanha, onde se admite a renúncia à nacionalidade espanhola quando o polipátrida tenha outra nacionalidade.

Já Penna Marinho [27], em seus estudos sobre a apatrídia, há mais de meio século, propunha:

Que se esforcem as legislações por suprimir as causas da apatridia; que se limitem, nos casos de naturalização, os efeitos de perda da nacionalidade à pessoa naturalizada; que se facilitem às pessoas desnacionalizadas uma reaquisição rápida da cidadania perdida; que se prescrevam, nas anexações parciais, cláusulas de opção, impedindo a desnacionalização; que se estenda, nas anexações totais, a nacionalidade do Estado anexante a todos os habitantes do território incorporado e que, por fim, se submetam os apátridas remanescentes à nacionalidade do país onde estão domiciliados, observadas certas condições, e ter-se-á livrado os Estados de um dos seus grandes flagelos.

Sem dúvida, a questão da apatrídia configura-se no maior problema provocado pela adoção de variados critérios de determinação de nacionalidade, especialmente do jus sanguinis, o que afronta visceralmente um dos direitos fundamentais do homem, que é o de possuir uma nacionalidade.

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Sobre o autor
Márcio José Coutinho dos Santos

Assistente de Desembargador - TRT 10ª Região; Especialista em Direito Público; Bacharel em Direito e Jornalismo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Márcio José Coutinho. O "jus sanguinis" como critério de determinação da nacionalidade da pessoa natural segundo o direito internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2046, 6 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12298. Acesso em: 25 abr. 2024.

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