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Natureza jurídica do Inquérito Civil Público:

breve estudo do seu ocaso e o Ministério Público do Trabalho

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Introdução

O escopo do presente trabalho é traçar um análise jurídica da natureza jurídica do inquérito civil público como instrumento do Ministério Público do Trabalho, para a viabilização da melhor tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos no campo das relações de trabalho, sabendo que na atualidade não temos uma norma interna que regule o seu procedimento, como houve a Resolução n º 24 do Conselho Superior Ministério Público do Trabalho, de 27 de maio de 1997 e que substituiu a anterior Instrução normativa n° 01/93 da Procuradoria Geral do Trabalho,

Compreendemos que uma vez que a Lei permite a composição dentro do ICP é porque muito mais que meio preparatório de ação civil pública, situa-se como mais um instrumento de viabilização de meios alternativos de acesso a justiça, não deixando a esfera judicial como a única possível, mas a derradeira.

No presente trabalho nos propomos no âmbito do MPT identificar a natureza jurídica do ICP via a moderna concepção do "due process of law",, e o que pode resultar do ICP, seja composição ou propositura de ação civil pública.


2.Interesses que podem ser objeto de ICP

O Inquérito Civil Público surgiu com a Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85), que como sabemos ainda não previa a tutela dos interesses individuais homogêneos, o que restou superada a discussão da possibilidade de tutela por meio de ACP destes interesses ao lado dos difusos e coletivos(1).

Porém, percebemos que os artigos 1o. e 2o. da Resolução MPT no. 24/97, dispõem que o ICP poderá ser instaurado em face de ocorrência de lesão a interesses difusos, coletivos e em face a práticas que transcendam o interesse meramente individual, referentes a direitos sociais indisponíveis ligados às relações de trabalho, não havendo manifestação explicita quanto a investigação sobre a lesão de interesses individuais homogêneos.

O artigo 6o., VII, alineas "a" e "d" da Lei Compmentar no 75/93, onde a alínea "d" se refere expressamente a promoção do ICP para a proteção de "outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difuso e coletivos", é o fundamento legislativo legitimador para se apurar via ICP todos os tipos de interesses metainviduais, especialmente referente aos interesses individuais homogêneos no campo das relações de trabalho.

Como defendemos alhures a possibilidade dos interesses individuais homogêneos serem defendidos por meio de ACP, legitimado o MPT, corolário pode ser apurada a sua lesão ou ameaça em ICP(2), assim como os interesses difusos e coletivos, desde que relacionados às relações de Trabalho.


3. Natureza jurídica do ICP

O artigo 1 º da Resolução n º 24/97 - CSMPT, hoje revogada preceituava de forma veemente que o Inquérito Civil Público (ICP), como um procedimento de natureza administrativa e inquisitorial, forte expressão não prevista na Lei 7.347/85 e na Lei Complementar 75/93.

Em nossa singela opinião, melhor que não mais exista a referida norma, pois ela soava mais como convite a beligerância do que a uma necessidade legislativa de melhor conformação do instituto, o que data vênia, vai na contramão da moderna tendência processual das formas alternativas de solução dos conflitos, onde o consenso e o diálogo estão na ordem do dia. Destaca-se que até mesmo o nosso Código de Processo Penal, quando trata do Inquérito Policial, dos artigos 4o. a 23, não prevê no mesmo tom a natureza do Inquérito Policial.

Lógico que sabemos que qualificar um conjunto de atos como procedimento administrativo e inquisitorial não significa dizer que dentro do seu desenrolar exista um juízo divino onde a verdade está posta pelo acusante /apurador de um lado e doutro está o acusado/apurado que deve submeter-se de forma total ao primeiro de forma que o erro latente seja desvelado de forma imediata.

A bem verdade vale registrar que tecnicamente sabemos que o qualificativo inquisitorial significa dizer que o procedimento pode ter o seu início ex-offício, sem que o Órgão/Autoridade responsável pela investigação necessite ser provocado, como normalmente ocorre no procedimento inquisitorial por excelência do direito brasileiro o Inquérito Policial, ao contrário dos procedimentos judiciais.

Mas, também, não é cediço lembrar que o Inquérito Policial tem um objetivo por excelência que é preparar a ação penal, partindo da apuração dos fatos tendo o sujeito como mero objeto da investigação da autoria e forma do delito, aliás é válido transcrever a exposição de motivos do CP que afirma "o inquérito policial foi mantido como processo preliminar ou preparatório da ação penal" (grifo nosso).

O escopo investigatório como único escopo do Inquérito Policial, é tão presente, que se no decorrer da apuração dela a autoridade responsável pela sua condução, por mais que tenha a convicção de que não ocorreu a lesão ao bem da vida, não pode mandar arquivar os autos de inquérito (art. 17 do CPP), mesmo naqueles crimes que não são de ação pública (artigo 19 do CPP).

Compreendemos com isto, data máxima vênia, que não andava bem a resolução 24/97 do CSMPT que taxativamente delimitava a natureza jurídica do ICP, como procedimento administrativo e inquisitorial, não que este não possa ter efetivamente esta natureza, como boas vozes a sustentam, mas por que com a força destas palavras deixava em primeira plano o elemento investigatório cominatório que pode resultar da conclusão do procedimento investigatório.

Destarte, deixar em primeiro plano o escopo investigatório cominatório do ICP com a força das palavras da definição da natureza jurídica do ICP, pelo artigo 1o. da revogada resolução no. 24/97 - CSMPT, pela imediata relação de semelhança que se estabeleceria entre o ICP e o IP, que cominaria com destaque ao escopo de formação da culpa e provável ajuizamento de ACP.

O elemento que entendemos deve ser ressaltado em sede de ICP que é a possibilidade de Composição do Conflito, como expressamente previsto na Lei 7.347/85, em seu artigo 5o.§ 6o., mediante Compromisso de Ajustamento de Conduta. Numa época em que privilegia-se a atuação do Estado como parceiro da resolução dos conflitos em detrimento do seu atuar repressivo e cominatório, até mesmo como meio de aumentar a efetividade do controle social pela conhecida falibilidade do nosso aparelho jurisdicional, é importante aproveitar-se todas as formas alternativas de resolução dos conflitos que previstas encontram-se no sistema, como meio de legitimar os atos do poder e levar a uma menor resistência das partes em conflito (Luhman).

Merece registro neste sentido a própria atuação do órgão ministerial trabalhista, em que não se privilegia o atuar repressivo, mas atua em favor da resolução dos conflitos através da composição.

Trazemos como meio de demonstrar esta assertiva o testemunho de José Cláudio Monteiro Brito Filho - Procurador do Trabalho da 8 ª Região, quando noticia que, embora seja inexistente uma regra específica a respeito da mediação e a atuação do MPT, não está inibida a sua atuação como mediador de conflitos coletivos, aproximando-se o instituto da Mediação do instituto da Conciliação/Composição(3), registrando-se, por isto, que feito o desconto do raciocínio do autor, retro citado, que afirma da impossibilidade da mediação ser iniciada ex-ofício, no caso da Conciliação/Composição, da qual pode resultar o Termo de Ajuste de Conduta, esta pode e deve ser iniciada Ex -offício pelo Membro do MPT, se for o melhor caminho para a defesa dos interesses coletivos(4) a serem tutelados.

Assim, transcrevemos o raciocínio do citado autor, para maior fidelidade do seu entendimento que, com as ressalvas feitas no parágrafo anterior, pode perfeitamente ser aplicado em sede de composição do conflito coletivo dentro do ICP, quando o autor trata da mediação, ainda sob a égide da antiga resolução :

" apenas, só poderá ela ocorrer, entendemos, dentro do procedimento instaurado nos termos da Resolução no. 28/87, do E. CSMPT - que ‘Dispõe sobre a instauração e autuação de inquéritos civis públicos e procedimentos investigatórios no âmbito do Ministério Público do Traballho.

É que acreditamos, pela inexistência de previsão específica para a mediação, como procedimento autônomo e, só podendo atuar o MPT na forma da lei, é preciso que ela surja dentro de procedimento expressamente regulado.

Nada impede, porém, que o procedimento seja aberto, desde logo, para fim específico de possibilitar a mediação; só não poderá ele, entretanto, esgotar-se nessa atuação, pelo que não havendo sucesso na atividade, deverá o membro do MPT prosseguir na apuração, atuando de forma repressiva, até, se for o caso.

Importante ter em mente, tanto em relação a arbitragem como no tocante à mediação que, nelas só atuará o membro do Ministério Público do trabalho se houver solicitação de ambas as partes, não se podendo cogitar dessas formas de atuação de ofício ou mediante solicitação de, apenas, uma delas. Os dois meios são voluntários, ou seja, só com o consenso de todos os conflitantes eles são utilizados.

"Outra questão relevante, também, diz respeito ao sentimento que deve mover o membro do Ministério Público do Trabalho, nesses casos. Embora a atuação repressiva, como dito antes, fique latente, não podendo, no mais das vezes, ser ignorada, deve ser, enquanto age o Ministério Público do Trabalho como àrbitro ou mediador, relegada a segundo plano, como forma de permitir atuação concentrada.

Ressalta-se que essas formas de atuação não constituem, propriamente, novidade para os membros do Ministério Público do Trabalho.

A mediação é uma constante, em todas as unidades administrativas do MPT, quer na Procuradoria-Geral, quer nas Procuradorias Regionais sendo contados às centenas os casos em que, com a mediação de membros da Instituição, conflitos trabalhistas lograram composição" (IN.Mediação e Arbitragem como Meios de Solução de Cosnflitos Coletivos de Trabalho : Atuação do Ministério Público do Trabalho. Revista LTR. Vol 62, no. 03. São Paulo.1998, pág. 350)

Assim, feitas estas considerações cumpre nos apontar os motivos que nos impelem a uma compreensão mais ampla da natureza jurídica do ICP.

Cumpre primeiramente destacar que em nosso sistema jurídico as noções de "processo" e "procedimento" encontram-se por vezes tão próximas que numa visão exterior em alguns casos fica difícil distinguir "procedimento" ou "processo".

Não fazemos a perfeita distinção periférica destes fenômenos como ocorre no direito Português, como nos dá notícia J. J. Gomes Canotilho, que leciona :

"Em termos genéricos o procedimento é a transformação em acto do poder legislativo (e também administrativo) ou, se se quiser, a concretização da competência legislativa (e administrativa), enquanto o processo é o modo de desenvolvimento da função jurisdicional (ou, noutra perspectiva, a concretização da competência jurisdicional." (.Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra : Almedina.1993, pág 1.027)

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Assim que todo conjunto de atos coordenados feitos pelo Poder Judiciário em exercício de suas atribuições seria "processo" e os realizados por outros órgãos seriam "procedimentos" ainda, que presentes nestes a possibilidade de intervenção dos sujeitos, utilizando-se do Status acitvis processualis ou garantia dos direitos fundamentais através da participação no procedimento(5).

Assim, embora o direito Português faça esta perfeita distinção de nomenclatura entre "procedimento" e "processo", não fecha os seus olhos ao que consideramos o mais importante fenômeno do moderno direito, que é a abertura de canais de intervenção e diálogo dentro dos "procedimentos administrativos" por parte dos sujeitos e cidadãos, a fim de obter maior legitimidade dos atos do poder.

Este fenômeno da possibilidade de espaço de manifestação das razões a fim de influir no caráter decisório, leva dentro de nossa doutrina à noção de processo, como demonstraremos mais ao norte.

Assim, que para nós antes de saber se um conjunto de atos é judicial ou administrativo, para defini-lo como "procedimento" ou "processo" é mais importante analisar a forma como se organiza, posto se o conjunto de atos visa a uma conclusão em que o sujeito figura apenas como objeto é procedimento, mas se presente a possibilidade de manifestação da parte é integrante do elemento conclusivo do conjunto de atos, estamos frente a processo, pode ser judicial ou administrativo. Como passaremos a melhor análise a seguir.


4.Inquérito Civil Público e o Due Process of Law.

Como sabemos o "Due process of law", de tão importante função nos modernos sistemas jurídicos, possui a sua origem na carta magna de 1225 na Inglaterra. Com o seu desenvolvimento, e inclusão no direito constitucional estadunidense, alargou o seu significado com o passar do tempo.

Tinha, no início, apenas significativo de "Liberdade" na Common Law, correspondente a pouco mais que o direito de não ser fisicamente coagido, salvo por motivo justo. Com nova interpretação, no ano de 1925, a Corte Constitucional Norte Americana deu mais um passo no sentido de estender o termo, tal como usado na Décima Quarta emenda, seção I, da Constituição Norte Americana, a certos direitos descritos como fundamentais.(7)

O desenvolvimento constante da cláusula do "due process", com relação a sua origem, pode ser observada quando lembramos que, enquanto no direito inglês esta cláusula não vinculava o poder legislativo, em face do princípio da supremacia do Parlamento, nas colônias da América do Norte se deu maior extensão ao princípio, por vincular todos os poderes do Estado.(8)

Da constante interpretação evolutiva da cláusula do "due process" - tida, inicialmente, como garantia de legalidade; depois, como garantia de um processo segundo a "Common Law "; e posteriormente ainda, como garantia de justiça -, a XIV Emenda da Constituição Americana representa hoje um dos fundamentos do sistema constitucional estadunidense(9), correspondendo a largo espectro que vai além de uma garantia constitucional, porque abarca todo aquele conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais - expressa na figura do contraditório - e, de outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição/poder estatal - notadamente expresso no respeito ao devido processo legal.

Torna-se necessária a compreensão de que o "due process of law", cada vez mais se desenvolve e se estende, além dos processos e/ou procedimentos estritamente jurisdicionais, pelo seu constante desenvolvimento histórico e correlata relação com o grau de desenvolvimento das teorias políticas sobre e a respeito da democracia e do fundamento legitimador do Estado.

Decorre que, para a compreensão moderna desta cláusula, é necessária a percepção da função mais que jurídica e sim política que ela vem exercendo nas modernas concepções jurídicas.

Por isso, fazemos coro com DINAMARCO, quando afirma que na sua redução mais sintética, o " due process of Law" é uma garantia de justiça e consiste no direito ao processo(10), porém, buscamos noção mais ampliada do que seja o processo, para que este esteja em sintonia com a moderna compreensão da democracia, para abarcar todo o procedimento que atue sobre a esfera de liberdade material dos jurisdicionados, pois o processo não é apenas um instrumento técnico, mas sobretudo ético, sendo, portanto, profundamente influenciado por fatores históricos sociológicos e políticos, porque a história, a sociologia e a política hão de parar às portas da experiência processual, entendida como fenômeno jurídico(11).

Embora concordando com DINAMARCO que o due process of law ao tutelar os direitos processuais dos litigantes, traz ao processo uma configuração não apenas técnica mas também ético-política(12), este não pode restringir-se aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, mas deve alcançar significativo maior para abranger a nova categoria dos acusados em geral(13), prevista na atual constituição, que aponta uma larga compreensão da exigência de respeito pelo Estado às pessoas que estão sob o raio de sua atuação e da questão de sua legitimidade, pois o problema da constituição não é o passado e sim o futuro, e, portanto, qualquer análise e trabalho interpretativo de preceitos constitucionais deve centrar-se sobre núcleos valorativos essenciais que não devem ser retrospectivos, retirados a partir de arquétipos do passado, mas do presente, pois a tarefa da constituição é a renovação.(14)

O "due process of law" é a expressão jurídica da democracia, expressa na dimensão procedimental da legitimidade como fator importante para se aquilatar a bondade de uma lei fundamental. Esta idéia sobre o "due process" é, de resto, cada vez mais importante num mundo de complexidade crescente que carece de estruturas, de competências e de procedimentos para se reduzir essa complexidade e assegurar ordem social vinculativamente ordenada. Mas como não se asseguram decisões informadas por critérios de justiça material só pelo fato de essas decisões terem observado determinados princípios de "justiça procedimental", é necessária a compreensão da reserva de justiça guardada na constituição, porque o próprio procedimento não é um fim em si mesmo, antes, desempenha a tarefa de abrir o caminho para soluções intrinsecamente justas(15).

Sendo hoje opinião corrente a tese de que uma participação consultiva dos indivíduos no processo de decisão serve como válvula de escape para ressentimentos e críticas, absorvendo objeções e promovendo assim a hipótese, ou pelo menos a possibilidade de estabelecer a decisão definitiva, através da cooperação dos participantes, pois a existência de canal de ligação entre o indivíduo e a administração possibilita que, mesmo no caso de decisões desfavoráveis para os participantes, estas sejam de antemão aceitas por eles quando se realizaram sob a sua intervenção decisiva, pois esta participação aumenta a disposição para que seja aceita uma decisão construída num processo de diálogo.(16)

É necessário atentar que antes de regular, a função do procedimento é a especificação do descontentamento, o fracionamento e absorção dos protestos(17).

Por isso, divergindo em profundidade mas não na essência da posição dos mestres DINAMARCO, CINTRA E GRINOVER, quando afirmam que o contraditório e a ampla defesa vêm assegurados em todos processos, inclusive administrativos desde que haja litigantes ou acusados (18) (grifo nosso), posto, embora, a afirmação dos professores não esteja errada, o que nem de longe ousamos afirmar, mas por entendermos que houve uma restrição do preceito constitucional quanto ao alcance da noção de acusado e, conseqüentemente, do que seja processo, já que nesta linha de raciocínio, aliás como da maioria da doutrina, o contraditório estaria excluído dos procedimentos investigatórios, a exemplo do que ocorre no inquérito policial e, mais particularmente no que toca ao nosso objeto de estudo, estaria excluído do Inquérito Civil Público..

A sua interpretação, embora lógica, para nossa compreensão, cria o problema de uma ritualização na concepção do que seja processo, até inconscientemente, no sentido de atribuir à norma constitucional um sentido que está amparada numa determinada interpretação ritual do processo que não pode espraiar-se além dos costumeiros limites da doutrina, provenientes os seus movimentos categóricos e simetricamente determinados das ordens dos "deuses", ofuscando a nova visão presente na atualidade da norma constitucional fruto da materialidade da vida dos homens que a produziram.

Assim, o próprio movimento desta época não podemos deixar perceber que a Constituição Federal com a nova categoria dos acusados em geral, abre novíssimas possibilidades para a compreensão do que seja o processo, para abarcar o ICP, como demonstraremos.

É sempre oportuno lembrar o problema do futuro nas constituições, particularmente na constituição de l988, com a introdução da categoria dos acusados em geral, num momento histórico de reconstrução da democracia no Brasil.

Ensina JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO que uma ordem constitucional democrática será uma ordem legítima quando o processo de formação e de decisão política, compreendendo-se esta em amplo sentido, desenvolvida segundo regras formais de procedimento, oriente-se para a realização de pretensões básicas da justiça.(19)

Corolário é que, em nosso entendimento, quando a CF/88 expressamente assegurou o contraditório e a ampla defesa, em processo judicial ou administrativo, aos litigantes e aos "acusados em geral" (Art. 5 °inc, LV), trazendo à colação do substantivo acusados o adjetivo em geral, em realidade, além de traçar a inovação constitucional, sobejamente demonstrada por diversos daqueles autores e outros, quanto a inafastabilidade do contraditório em processos judiciais ou administrativos, traçou, também, quanto aos "acusados em geral", verdadeira ampliação da noção de acusado, e conseqüentemente do que seja um processo.

Portanto, compreendemos que quando a constituição preceitua no art 5° , inciso LV que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (grifo nosso), colocando, após o substantivo litigantes, o aposto "em processo judicial ou administrativo", e, logo em seguida coloca a conjunção aditiva "e" para acrescentar a nova categoria dos acusados em geral, inexistente anteriormente em nosso direito constitucional(20).

Ao criar a nova categoria dos acusados em geral, a Constituição está se referindo, em nossa compreensão, a qualquer pessoa que tenha sobre si um procedimento do Estado que vise apurar, investigar, colher dados a seu respeito ou de atividade que exerça, pois materialmente é assim que se sente qualquer pessoa sujeita a procedimento estatal desta natureza investigatória.

Embora a doutrina seja unânime em afirmar, que no inquérito civil público estaria excluído o contraditório e, como conseqüência, não haveria processo, mas "mero procedimento", discordamos desta conclusão.

Pelo tratamento legislativo dado ao Inquérito civil público e pela introdução da nova noção de acusados em geral presente em nossa constituição, compreendemos que se torna insuficiente a sua classificação como de "mero procedimento preparatório" (MAZZILLI, MILARÉ, MANCUSO), pois, é necessário considerar que "a validade de uma constituição pressupõe a sua conformidade necessária e substancial com os interesses, aspirações e valores de um determinado povo em determinado momento histórico"(21).

Torna-se necessária a compreensão que, no sentido tradicional estritamente jurídico-formal anterior à atual Constituição, poderíamos até considerar que o ICP é mero procedimento, mas com a nova preceituação constitucional não podemos mais trabalhar somente com a categoria do "Acusado".

Aqui, entra, na nossa compreensão, a inovação constitucional dos sujeitos amparados pela nova categoria dos "acusados em geral ", que é gênero ampliado da categoria acusado, que agora é apenas espécie desta, mais ampla, sendo verdadeira conquista jurídico-política inserida na nossa carta política de 88, para amparar qualquer pessoa que tenha sobre si um procedimento estatal de natureza investigatória onde exista a possibilidade de contribuir na formação da conclusão do conjunto de atos procedimentais, assim pode muito bem abarcar o "inquirido" do ICP.(22)

Por tudo isto, é que se torna para nós necessária a conclusão de que no inquérito civil preparatório da ação civil pública, que é o objeto de nosso estudo, embora não exista o acusado - estrito senso - mas apenas o "inquirido", está presente um personagem que se inclui dentro da categoria dos "acusados em geral".

De fato, embora não caiba o contraditório em sentido amplo, dentro do ICP mas, como se trata de procedimento estatal e, portanto, ato de exercício do poder, sob a direção do Ministério Público, não é correta a afirmação de que está excluído o contraditório, mas sim que esta garantia constitucional deve ser levada em conta, embora mitigada, respeitando-se o fim teleológico da norma constitucional que é permitir a defesa do cidadão ante qualquer manifestação do poder estatal, o que inegavelmente o ICP demonstra ser.

Destaca-se que dentro do ICP há a definição legal de uma possibilidade de decisão, e compreendendo que, quando falamos em decisão, não nos restringimos àquela que possa ser imposta, mas também àquela em que há possibilidade da existência de uma solução de conflito construída no diálogo das partes, através da composição, como é cabível no ICP, com os interessados como previsto na LACP, artigo 5o., inc. II, § 6o,, que preceitua que os Órgãos Públicos legitimados, in casu o MPT, poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações pelo descumprimento.

Válido mais uma vez lembrar a lição de NIKLAS LUHMANN, anteriormente exposta, de que a participação consultiva dos indivíduos no processo de decisão serve como válvula de escape para ressentimentos e críticas, absorvendo objeções e promovendo assim a hipótese, ou, pelo menos, a possibilidade de estabelecer a decisão definitiva, através da cooperação dos participantes, pois a existência de um canal de ligação entre o indivíduo e a administração possibilita que, mesmo no caso de decisões desfavoráveis para os participantes, estas sejam de antemão aceitas por eles quando se realizaram sob a sua intervenção decisiva, pois esta participação aumenta a disposição para que seja aceita uma decisão, construída em processo de diálogo.(23)

Se é verdade que nem todo procedimento é processo, mesmo se tratando de procedimento estatal, ainda que de algum modo possa envolver os interesses de pessoas(24), sendo o critério para a sua conceituação como processo a presença do contraditório, temos de compreender que, como o poder constituinte deve transportar uma "reserva de justiça", e por isso as normas e princípios constitucionais não se devem esgotar na sua positividade, mas, antes, devem aspirar a ser " direito justo "(25), temos de compreender que a atual constituição, com a nova categoria dos acusados em geral, na sua função de reserva de justiça, leva-nos a conceito mais amplo e à visão ampla do processo que deve ir além do processo jurisdicional e administrativo - stricto sensu -, e alcançar os limites que permitem a exegese do texto constitucional, somada à maturidade da noção de democracia, para abranger todo procedimento do Estado que vise a apurar, investigar, a colher dados a respeito do cidadão ou de atividade que exerça, em que haja possibilidade de solução ou composição do conflito, como ocorre no ICP por expressa determinação legal.

Outro caminho não podemos adotar para acreditar que o ICP é mais que mero procedimento, é autêntico processo administrativo(26), em sentindo amplo, nele devendo existir o contraditório (embora mitigado), porque presente um dos sujeitos abrangidos pela nova categoria constitucional dos acusados em geral, já que passível de composição dos conflitos coletivos que envolvam interesses dos trabalhadores, compreendido no substrato do Termo de Ajuste de Conduta o consenso legitimador da atual Carta Política e a necessidade de melhor tutela social aos interesses metaindividuais.

Como direito que regula o procedimento estatal, o direito processual, por estabelecer a disciplina do exercício do poder estatal, através de uma seqüência de atos encadeados, deve ser apto a abranger todo e qualquer ato de poder que materialmente coloque uma pessoa/cidadão sob procedimento de natureza investigatória do Estado, como ocorre in casu, no Inquérito Civil Público, e dentro do qual a intervenção dos sujeitos pode levar até mesmo a uma composição do conflito.

Não é a toa que no caso de arquivamento do ICP, o relatório deve ser este deve ser analisado pelo Conselho Superior do Ministério Público (artigo 9°, parágrafo 3° da Lei 7.347/85).

Aponta DINAMARCO que a suposta distinção entre processo e procedimento sempre foi algo muito mal explicado, já que exposto sem a percepção de que o procedimento se integra por completo no conceito de processo, sendo, desta forma, o procedimento o lado visível do processo, na experiência empírica.

A adequação do processo ao modelo procedimental traçado em lei é, em última análise, a observância do contraditório(27), além do que a própria observância do procedimento em si, é uma necessidade para o respeito aos níveis constitucionalmente satisfatórios de participação efetiva e equilibrada, segundo a generosa cláusula due process of law. Isso é o que traz legitimidade ao ato final do processo, vinculativo dos participantes(28).

Exatamente por crermos que todo o procedimento estatal de natureza investigatória coloca materialmente uma pessoa dentro da categoria constitucional de acusado em geral, ainda mais que a Lei prevê a possibilidade de Composição do Conflito, que por óbvio somente será possível se for dado a parte uma real possibilidade de expor as suas razões, deve existir, conseqüentemente, a exigência do contraditório no Inquérito Civil Público - embora mitigado - e portanto existe processo(29).-(30)

Destaca-se, ainda, que esta noção de contraditório dentro do ICP, não lhe tira o caráter administrativo, nem lhe diminui o escopo apuratório, apenas lhe coloca em foco que a parceria é entre Estado e sociedade é melhor que a mera beligerância, sendo válido lembrar a Lição de Canotilho de que é hoje corrente a presença da idéia da procedimentalização relativamente à atividade administrativa que deve estar sujeita a um procedimento que, sem aniquilar a eficiência da atividade administrativa, garanta a proteção jurídica dos administrados(31)

Podemos concluir, no que tange a natureza jurídica do Inquérito Civil Público, dizer que Inquérito Civil Público é procedimento do Estado, sob a direção do Ministério público, que visa a apurar, a investigar, colher dados a respeito de fatos que envolvam interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, em que o sujeito passivo da investigação está dentro da categoria dos acusados em geral, existindo a possibilidade de solução ou composição do conflito, manifestando-se como fenômeno superior a mero procedimento, sendo autêntico processo administrativo, em sentido amplo, em que existe o contraditório, embora mitigado, tendo o requerido o direito a ser intimado e ouvido em todos os atos para que colabore com o escopo de pacificação social do processo, sobretudo no sentido de composição voluntária do conflito coletivo.

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Sobre o autor
Ibraim José das Mercês Rocha

advogado, procurador do Estado do Pará, mestre em Direito pela UFPA, secretário do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública no Pará, ex-diretor do departamento jurídico do Instituto de Terras do Pará (ITERPA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ibraim José Mercês. Natureza jurídica do Inquérito Civil Público:: breve estudo do seu ocaso e o Ministério Público do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1268. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho originalmente apresentado como requisito parcial para obtenção de créditos da disciplina de interesses difusos do Mestrado em Direito da UFPa, orientado pelo professor José Augusto Torres Potyguar

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