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Mídia, direito penal e vingança popular

11/06/2009 às 00:00
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"Vox populi, vox Dei": nada é mais pernicioso no Direito penal (e na Política criminal) que a convicção de que a voz do povo é a voz de Deus (e não de qualquer Deus, sim, de um Deus justo, equilibrado e sensato). Em razão da carga emocional que carrega, em matéria de castigo, nada mais injusta, desequilibrada e insensata que a voz do povo. A voz do povo serve para impressionar o legislador (e gerar mais reformas legislativas), serve para a mídia vender seus "produtos" (ou seja: aumentar seu faturamento), serve para reforçar o imaginário popular de que ele tem voz e vez (e o poder de comando), mas não é boa conselheira (ou companheira ideal) para a tomada de decisões razoáveis no âmbito da política criminal (nem tampouco para a solução judicial de um conflito).

Em toda história da humanidade nunca teve nenhum período em que não houvessem delitos escabrosos, chocantes e revoltantes. O enigma do delito acompanha o ser humano desde os primórdios da sua evolução. De algumas décadas para cá o que mudou esse panorama (histórico) foi a forma de reagir contra o delito (ou melhor: contra alguns delitos). Vivemos agora uma sociedade midiatizada (e globalizada). Sempre existiu uma natural empatia (da população) em relação a algumas vítimas de delito. O que mudou é que agora essa empatia é midiatizada, ou seja, potencializada e retroalimentada, porque ela passa a constituir um "produto midiático" (altamente rentável).

Quando a empatia da população se alia a um familiar midiático (pai, mãe, irmão etc. da vítima), que sabe protagonizar e catalizar a ira e a sensação de insegurança da população, tudo se transforma em nitroglicerina pura nas mãos da mídia. Empatia da população (sobretudo quando se trata de uma vítima de cor branca, olhos azuis, indefesa etc.) aliada a um familiar midiático (que protesta, que grita contra a polícia, juízes, legisladores etc.) é tudo de que necessita a mídia para promover espetáculos mórbidos (que são consumidos, até à exaustão, pela massa ambulante que reinvidica violência e vingança).

A sociedade só se tranquiliza quando há a aniquilação do delinquente (prisão perpétua ou morte, é o que a satisfaz) e as "necessárias" reformas legislativas. A vingança popular, catalizada pelos meios de comunicação, sobretudo quando encontra um familiar midiático que assume um "bom" protagonismo social e político, tem sido, nos últimos anos, um dos (mais relevantes) guias da política criminal de muitos países.

A comunicação de massas, sendo um processo unilateral (há um emissor ativo e um telespectador passivo, chamado de homo videns), sabe fazer uso da incitação subliminar, da banalização da violência, da transformação de um fato superficial em acontecimento mundial. A mídia cumpre um papel não só de mediação como, sobretudo, de conformação da realidade (Berger e Luckmann), isto é, de "conformação ideológica da realidade". Entrega o "produto" da maneira que quiser, fazendo uso e abuso das imagens (mídia iconográfica), que são recebidas sem nenhum senso crítico por um telespectador atrofiado culturalmente, sem nenhuma capacidade de abstração e de crítica.

O legislador, dotado em sua essência de uma necessidade eleitoreira insuperável, não resiste ao um milhão de assinaturas (isso ocorreu no caso Glória Peres) nem às concentrações e passeatas que pedem mais endurecimento penal. O chefe do Poder Executivo prontamente abre as portas para o familiar midiático e cada um desses momentos é devidamente filmado, narrado e "vendido" pela mídia. É difícil encontrar "produto" mais apropriado para consumo e venda imediata que um espetáculo mórbido, desejado pela população (ávida por mais vitimização).

Nas modernas sociedades democráticas governa-se por meio de pesquisas (assim como pela pressão popular). A mobilização da opinião pública é fundamental. Mas isso nem sempre a mídia consegue (ela é poderosa – aparece em quinto lugar na crença popular, na frente do Judiciário, segundo pesquisa divulgada no Consultor Jurídico em junho de 2008 -, mas não é uma deusa em que todo mundo em todo tempo acredita).

Quando a opinião pública tem empatia com uma determinada vítima (branca, olhos azuis, indefesa etc.), que foi atacada por um determinado criminoso (nada simpático: pobre, de cor escura, sem olhos azuis, sem posses, sem status, sem diploma etc.), tem-se a combinação perfeita (que se completa explosivamente quando também se encontra um familiar midiático). Tudo isso combinado, claro que vamos ter (por força da pressão midiática) mudanças legislativas, apoios do Executivo, eficiência da polícia, atenção especial do Ministério Público e, muitas vezes, a cumplicidade (vingativa) até mesmo do juiz.

Não existe "produto" midiático mais rentável que a dramatização da dor humana gerada por uma perda perversa e devidamente explorada, de forma a catalizar a aflição das pessoas e suas iras. Isso ganha uma rápida solidariedade popular, todos passando a fazer um discurso único: mais leis, mais prisões, mais castigos para os sádicos que destroem a vida de inocentes e indefesos. As vítimas (ou seus familiares), a população e a mídia, hoje, constituem o motor que mais impulsiona o legislador (e, muitas vezes, também os juízes). É, talvez, a corrente punitivista mais eficiente em termos de mudanças legislativas, que tendem a aceitar o clamor público por penas mais longas, cárceres mais aviltantes, eliminação das progressões de regime, cumprimento integral da pena, nada de reinserção nem permissões penitenciárias, saídas de ressocialização etc.

Quando o autor do delito é um menor, imediatamente e midiaticamente, já se postula a alteração da maioridade penal (aliás, há um projeto já aprovado na CCJ do Senado que está só aguardando outro fato midiático para ter andamento). Esse é o programa político criminal desenhado (e reivindicado) pelos protagonistas da vingança popular, acima descritos. Nesse processo nunca se pode ignorar a importância da mídia, sobretudo da televisada, que sabe gerar necessidades (inclusive legislativas).

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Claro que muitas das demandas populistas descritas conflitam com a Constituição brasileira (assim como com vários tratados internacionais de direitos humanos). Que reformem então a Constituição (esse é o grito de insurreição)! Mal sabem que contra a tirania das maiorias e da população foram inventadas as tais "cláusulas pétreas" (justamente para que não se repita o injusto e emocional julgamento popular narrado em relação a Jesus Cristo). A justiça, quando deixada sob o comando do povo, fica totalmente cega e condena até quem seria seu máximo defensor! Tudo em nome da justiça, ou seja, quando a emoção fala mais alto que a razão, tudo quanto satisfaz a ira da massa ou a amargura dos familiares ou a falta de segurança coletiva passa a ser "válido" e "justo". E a ética do jornalista sucumbe: o fundamental é "vender o produto" mórbido, consumido exaustivamente pela população. Censuras internas (no próprio âmbito midiático) quase nunca acontecem. A nefasta consequencia de tudo isso é a "banalização do mal" (expressão cunhada por Hannah Arendt para criticar a irresponsabilidade dos algozes nazistas durante o holocausto).

O movimento punitivista que instrumentaliza o Direito penal como objeto de vingança é tão avassalador, que poucos (ou melhor: praticamente ninguém) perguntam de onde vem o criminoso que está sendo publicamente execrado. Teve família ou não, foi educado ou não, foi criado em qual ambiente social etc. O chamativo é a manipulação da dor da vítima (ou da sua família) que, com frequencia, se incrementa, quando chega o momento da vitimização secundária (que é a decorrente do contado da vítima ou da sua família com o sistema penal: mau atendimento, erros judiciais, justiça lenta, exposição frente ao criminoso, despesas não ressarcidas, ausência de indenização etc.).

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Mídia, direito penal e vingança popular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2171, 11 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12956. Acesso em: 20 abr. 2024.

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