"Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!"
Mário Quintana, "Das utopias".
Sumário:1. Introdução.2. Jornada de trabalho. Subordinação. Conceitos. Relação.3. Sobreaviso. Conceito legal. Jurisprudência majoritária. Crítica. 4. Conclusões. 5. Referências.
1. Introdução.
Inegável se apresenta a importância cada vez maior do fator tempo na sociedade atual, em que as distâncias continentais são dia-a-dia relativizadas, permitindo um fluxo incessante de informações e de pessoas.
Ainda que alguns apostassem no progresso científico e no avanço tecnológico como formas de reduzir o tempo necessário de trabalho, gerando, com isso, a possibilidade de dedicação do ser humano ao ócio e a outras atividades, [01] na prática, se constata o oposto.
O desenvolvimento da informática e dos meios de comunicação, com especial destaque à internet e à telefonia móvel, acabaram por inverter a perspectiva imaginada, impondo a uma gama considerável de trabalhadores um estado prolongado de "vigília", superior àquele vivenciado até então.
Neste cenário, importante se faz a análise da essência e da finalidade dos institutos jurídicos, principalmente dos idealizados há várias décadas, como o regime de sobreaviso. De igual relevância, a reflexão acerca dos entendimentos jurisprudencial e doutrinário majoritários sobre a matéria, no sentido de não configurar tempo à disposição do empregador e, portanto, de sobreaviso, o período em que o empregado estiver portando aparelho de "BIP" ou telefone celular.
Assim, propõem-se no presente estudo o exame dos conceitos de subordinação e de jornada de trabalho, sua relação, seguida e o apreço do instituto do sobreaviso. Ao final, algumas considerações críticas.
2. Jornada de trabalho. Subordinação. Conceitos. Relação.
A delimitação do lapso temporal máximo diário de trabalho representou uma das mais expressivas conquistas da classe operária, alcançada por meio de sucessivas e acirradas manifestações no curso do século XIX.
Acabou sintetizada pelo lema "8 horas de trabalho, 8 de repouso e 8 de educação", surgido durante uma greve em Chicago, Estados Unidos. [02]
O objetivo principal da fixação de um patamar máximo de trabalho traz em si diversos aspectos, relacionados à consideração do prestador de serviços como um ser complexo e dotado de dignidade. Visa à preservação do bem-estar físico e mental e, também, das relações interpessoais.
Partindo desta premissa, foram a limitação de jornada e de carga horária, bem como a saúde, erigidos a Direitos Sociais, nos termos dos arts. 6º, 7º, inciso XIII, e 196, todos da Constituição Brasileira.
Em nível internacional, destaquem-se as Convenções nº 148, 155 e 161 da OIT, ratificadas pelo país e internalizadas pelos Decretos nº 93.413/86, 1.254/94 e 127/91, respectivamente, relativas à proteção contra os riscos profissionais, normas gerais de segurança, saúde e meio ambiente do trabalho, além de serviços ligados à saúde no trabalho.
Tais disposições se fundamentam, ainda, no fato de estar o empregado, no curso da jornada, vinculado às ordens do empregador, as aguardando ou as executando, consoante previsão do art. 4º da CLT, causa da restrição de seu tempo.
Apresenta-se relativizado e cerceado o direito de ir e vir, em decorrência dos efeitos da subordinação, na medida em que, segundo palavras de Carmen Camino, "o empregador adquire o direito de dispor da força de trabalho (e, conseqüentemente, da própria pessoa do seu prestador), nos limites quantitativos e qualitativos estabelecidos", concluindo que "desse estado de disponibilidade (estar à disposição) resulta ser, o empregado, o sujeito subordinado na relação de emprego e, o empregador, o sujeito subordinante." [03]
Verifica-se, pois, um estreito vínculo entre os elementos jornada e subordinação, sendo aquela o período em que esta se manifesta e se faz mais intensa, pela atuação do trabalhador sob as ordens de seu patrão.
Contudo, as obrigações contratuais do empregado não produzem efeitos tão-somente no curso do expediente, se fazendo sentir, por vezes, após seu encerramento, mesmo que de maneira mitigada, tal como na hipótese do sobreaviso.
3. Sobreaviso. Conceito legal. Jurisprudência majoritária. Crítica.
Por regime de sobreaviso, compreende-se o tempo em que o trabalhador "permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço", por meio de escala, nos termos estabelecidos no art. 244, §2º, da CLT, com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 05/1966.
Cada escala "será, no máximo, de vinte e quatro horas", enquanto que "as horas de sobreaviso, para todos os efeitos, serão contadas à razão de 1/3 (um terço) do salário normal" (CLT, art. 244, §2º). [04]
O sistema, como se depreende do teor do caput da regra transcrita, foi idealizado para regular os plantões dos ferroviários em época em que as estradas de ferro eram amplamente utilizadas no país e os meios de comunicação se encontravam em um estágio embrionário de desenvolvimento.
Com o passar dos anos, outros ramos produtivos passaram a lançar mão do regime de sobreaviso, o adaptando às próprias particularidades, tais como os setores de comunicação (telefonia e provedores de internet) e de prestação de serviços de socorro e de manutenção de emergência (automóveis, elevadores e etc), bem como de saúde. [05]
Caracteriza-se, para Carmen Camino, como um "estado de alerta, na iminência de ser, eventualmente chamado ao trabalho (...) em situação intermediária entre a disponibilidade efetiva para o trabalho (art. 4º da CLT) e o descomprometimento completo com suas obrigações contratuais (intervalos ou folgas)." [06]
É retirado do trabalhador, em período estranho à jornada, a ampla liberdade de dispor de seu tempo, o impedindo de se dirigir para local afastado do centro da prestação de serviços ou realizar atividades que o impeçam de atender prontamente a chamados.
Entretanto, com a evolução dos meios de comunicação, pelo surgimento de "BIPs", "pagers", telefones móveis, "GPS" e internet, a qual, atualmente, pode ser acionada de um computador portátil, houve a mitigação da necessidade de permanência do trabalhador em sua moradia, um dos elementos do suporte fático da norma da CLT que rege o sobreaviso.
Segundo a jurisprudência majoritária "o uso do aparelho BIP pelo empregado, por si só, não carateriza o regime de sobreaviso, uma vez que o empregado não permanece em sua residência aguardando, a qualquer momento, convocação para o serviço" (Orientação Jurisprudencial nº 49 da SDI I do TST).
Do entendimento em questão, constata-se que o mero uso de BIP não inviabiliza, em tese, a caracterização do regime de sobreaviso, pelo uso da expressão "por si só".
Ocorre que este não vem sendo o alcance dados pelos Tribunais, os quais têm o ampliado in pejus ao trabalhador, abarcando, ainda, o uso de telefones celulares, por exemplo.
Com efeito, recorde-se o dever o intérprete de decifrar o conteúdo da norma no processo de sua aplicação, na medida em que "o direito é alográfico (...) porque o texto normativo não se completa no sentido nele impresso pelo legislador", segundo as palavras do Ministro do STF Eros Grau, concluindo "que a ‘completude’ do texto somente é atingida quando o sentido por ele expressado é produzido, como nova forma de expressão, pelo intérprete." [07]
Fazendo-se uma leitura do art. 244, §2º, da CLT em consonância com a atual tecnologia dos meios de comunicação, conclui-se que o cerne de seu suporte fático não mais corresponde ao aguardo de ordens pelo trabalhador em sua residência, por meio de escala.
Representa, na realidade, a limitação do direito de livre disposição do tempo alheio à jornada, pela ampliação do poder de comando do empregador, mesmo em caráter atenuado. Além disso, ocorre o impedimento da fruição do efetivo descanso, sem a assunção pelo tomador de serviços do respectivo ônus econômico.
Não bastasse o aspecto financeiro, a desconsideração da nova realidade em que cumprido o regime sobreaviso, acarreta, ainda, prejuízos à saúde, pelos riscos decorrentes da frustração do repouso, pela inobservância do período máximo de 24h fixado no próprio art. 244, §2º, da CLT.
Sobre a matéria, a Organização Mundial da Saúde – OMS indica como principais fatores de produção de stress no trabalho o cumprimento de jornadas imprevisíveis, fora do horário normal ou em turnos mal concebidos, dando ensejo a comportamentos disfuncionais e não-habituais e, em situações de maior gravidade, causando problemas psíquicos irreversíveis e incapacitantes para o trabalho. [08]
Existe, inclusive, na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde a descrição de inúmeras moléstias geradas por disfunções atinentes ao trabalho, por sua penosidade (Z56.3) e outras dificuldades físicas e mentais daí oriundas (Z56.6). [09]
Inevitáveis, ainda, as perdas humanas e econômicas a toda a sociedade, pelo adoecimento de uma extensa gama de trabalhadores, onerando os cofres públicos, pelo dever do Estado de arcar com o pagamento de benefícios previdenciários, por incapacidades temporárias ou definitivas, na forma estabelecida no art. 195 da Constituição.
Nesta linha, merecem destaque os seguintes precedentes, oriundos de diversos Tribunais Regionais do Trabalho do país:
Caracteriza o trabalho em sobreaviso aquele em que o empregado fica à disposição do empregador, esperando seu chamado - por telefone, BIP, celular, pager ou outro meio - mediante uma escala predeterminada. Nesse período, o empregado fica vinculado à empresa, ainda que possa exercer outras atividades nesse tempo de liberdade restringida. A possibilidade de ser chamado a qualquer momento inviabiliza um descanso eficaz voltado à restauração do vigor físico e mental. Por tais fundamentos, é possível compreender a mens legis do § 2º do art. 244 da CLT, dirigida aos ferroviários e aplicada pela jurisprudência dominante por analogia - com permissivo do art. 8º da CLT - aos demais trabalhadores.Ementa: SOBREAVISO. CARACTERIZAÇÃO.
(TRT 4ª Região, Processo nº 00580-2000-851-04-00-0/RO, 1ª Turma, Relator Juiz José Felipe Ledur, Publicado em 24.4.2007)
Ementa: SOBREAVISO. BIP. TEMPO À DISPOSIÇÃO. CARACTERIZAÇÃO
. A aplicação analógica do artigo 244, parágrafo 2º, da CLT leva em conta a constatação efetiva de que o empregado sofria restrições de locomoção, tinha obrigação de informar os locais para os quais se deslocava e estava sujeito à chamada às desoras. O uso do BIP, por si só, é indiferente a essa situação, mas é um dos elementos que denotam a sujeição do empregado ao poder de controle do empregador nos períodos de descanso.(TRT 2ª Região, Processo nº 01011-2002-044-02-00-0-RO, Relator Juiz Rovirso Aparecido Boldo, 8ª Turma, Publicado em 08.10.2004)
Ementa: SOBREAVISO. BIP. ANALOGIA.
É notório que o uso do BIP implica limitação da liberdade de locomoção, já que o empregado fica impedido de se afastar além do raio de alcance do aparelho. Trata-se, de qualquer forma, de uma vantagem para a empregadora, que pode acionar o empregado a qualquer momento, fora do horário normal do trabalho; a isso deve corresponder uma compensação pecuniária para o empregado, consistente no pagamento das horas de sobreaviso, sob pena de violação ao caráter comutativo e oneroso do contrato de trabalho. Aplicável, por analogia, a norma expressa atinente aos ferroviários.(TRT 2ª Região, Processo nº 19990583504/RO, Relatora Juíza Wilma Nogueira de Araújo Vaz da Silva, 8ª Turma, Publicado em 22.5.2001)
Ementa
: HORAS DE SOBREAVISO. FATO GERADOR. O fato gerador do pagamento do adicional em razão do regime de sobreaviso é a falta de liberdade decorrente do tolhimento da efetiva disponibilidade do tempo do empregado justamente nas horas destinadas ao descanso e lazer, independentemente da forma de sua localização, podendo, nos tempos modernos, ser contactado fora de sua residência através de telebip, telefone celular ou outras inovações tecnológicas.(TRT 12ª Região, Processo nº 009006/1997/RO, Relator Juiz Osvaldo Sousa Olinger, 1ª Turma, Publicado em 09.9.1998)
Assim, admitir-se o tangenciamento da liberdade do trabalhador de livremente fruir seu tempo de descanso sem a contrapartida pecuniária daí advinda, fere, de modo absoluto, o sinalagma contratual, bem como o direito à saúde, pela violação do repouso.
Chancela-se o enriquecimento indevido do ocupante de um dos pólos do negócio jurídico, às custas da recuperação da higidez física e mental do outro, acentuando o notório desequilíbrio entre o hiper e o hipossuficiente da relação capital x trabalho, ferindo a dignidade da pessoa humana e o valor social do próprio trabalho, fundamentos da República.
Por fim, acarreta-se o risco do desencadeamento de moléstias de cunho psíquico, muitas das quais irreversíveis e incapacitantes, onerando emocional e financeiramente toda a sociedade.
Necessária, portanto, se apresenta a releitura do sobreaviso previsto no art. 224, §2º, da CLT, sob o viés das novas tecnologias de comunicação.
4. Conclusões.
Faz-se premente a reavaliação da essência e do fim do regime de sobreaviso, em vista das inovações tecnológicas das últimas décadas dos meios de comunicação, analisando-se os entendimentos majoritários da jurisprudência e da doutrina, no sentido de não configurar tempo à disposição do empregador o período em que o empregado estiver de posse de "BIP" ou de telefone celular.
Impõe-se reconhecer como de sobreaviso o tempo alheio à jornada, pelo qual o trabalhador se coloca à disposição do empregador, mesmo em caráter atenuado e com relativo espectro de circulação, ensejando seu chamamento imediato por qualquer forma.
Do contrário, seguir-se-á legitimando o cerceio da liberdade do empregado, do pleno gozo de seu tempo de folga, sem a contrapartida econômica, em proveito exclusivo do tomador de serviços, pelo sacrifício do direito ao lazer e ao repouso.
Potencialmente, gera-se o risco do desencadeamento de moléstias psíquicas relacionadas ao stress no trabalho, em prejuízo de toda a sociedade.
5. Referências.
* BRASIL. Ministério da Saúde. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, disponível em http://www.datasus.gov.br/cid10/webhelp/cid10.htm, acesso em 05.6.2007.
* CAMINO, Carmen. "Direito Individual do Trabalho". Porto Alegre: Síntese, 2003.
* GIL, Rosângela. e GIANOTTI, Vito. "1º de Maio: dois séculos de lutas operárias". Rio de Janeiro: Núcleos Piratininga de Comunicação/Cadernos de Formação, 2005.
* GRAU, Eros Roberto. "Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito". São Paulo: Malheiros, 2002.
* LEKA, Stavroula. GRIFFITHS, Amanda. COX, Tom. "La organización del trabajo y el estréss. Estrategias sistemáticas de solución de problemas para empleadores, personal directivo y representantes sindicales". Série protección de la salud de los trabajadores, nº 03, OMS, 2004, disponível em http://www.who.int/occupational_health/publications/pwh3sp.pdf, acesso em 04.6.2007.
* LUCCA, Telismar. "O REGIME DE SOBREAVISO E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA", disponível em http://www.direitonet.com.br/textos/x/37/66/376/DN_o_regime_de_sobreaviso_e_a_evolucao_tecnologica.doc, acesso em 04.6.2007.
* PASSINI, Fernanda. "Sistema de sobreaviso frente a utilização de telefones celulares". Revista Justiça do Trabalho. Porto Alegre: Editora HS, nº 259, julho/2005, pp. 35-53.
* PRUNES, José Luiz Ferreira Prunes. CLT comentada. Juris Plenum Trabalhista e Previdenciária, Caxias do Sul: Plenum, n. 9, nov./dez. 2006. 1 CD-ROM.
Notas
- Sobre o tema, a obra de Domênico De Masi. "O ócio criativo". Ed. Sextante.
- A meta dos manifestantes não foi alcançada, tendo por resultado dezenas de mortes, sendo os líderes do levante condenados à forca ou à prisão. Em 1892 o julgamento foi anulado e absolvidos todos os envolvidos. Apenas em 1920, após o final da Primeira Guerra e a criação da Organização Internacional do Trabalho - OIT, é que a limitação da jornada de 8 horas foi reconhecida em escala mundial, sendo adotada no Brasil tão-somente em 1932. (Rosângela Gil e Vito Gianotti. "1º de Maio: dois séculos de lutas operárias". Rio de Janeiro: Núcleos Piratininga de Comunicação/Cadernos de Formação, 2005, p. 09)
- "Direito Individual do Trabalho". Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 191.
- Existem nichos profissionais específicos em cuja normatividade também há regulação do sobreaviso, de modo específico, como petroleiros e aeronautas, na forma das Leis nº 5.811/72 e 7.183/84, respectivamente. Sobre o tema, ver LUCCA, Telismar. "O REGIME DE SOBREAVISO E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA", disponível em http://www.direitonet.com.br/textos/x/37/66/376/DN_o_regime_de_sobreaviso_e_a_evolucao_tecnologica.doc, acesso em 04.6.2007, e PASSINI, Fernanda. "Sistema de sobreaviso frente a utilização de telefones celulares". Revista Justiça do Trabalho. Porto Alegre: Editora HS, nº 259, julho/2005, pp. 35-53.
- Os exemplos em questão são de autoria do professor José Luiz Ferreira Prunes na CLT por este comentada. Juris Plenum Trabalhista e Previdenciária, Caxias do Sul: Plenum, n. 9, nov./dez. 2006. 1 CD-ROM.
- "Direito Individual do Trabalho". Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 395.
- "Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito". São Paulo: Malheiros, 2002, p. 20.
- Acerca do tema, ver LEKA, Stavroula. GRIFFITHS, Amanda. COX, Tom. "La organización del trabajo y el estréss. Estrategias sistemáticas de solución de problemas para empleadores, personal directivo y representantes sindicales". Série protección de la salud de los trabajadores, nº 03, OMS, 2004, disponível em http://www.who.int/occupational_health/publications/pwh3sp.pdf, acesso em 04.6.2007.
- Disponível em http://www.datasus.gov.br/cid10/webhelp/cid10.htm, acesso em 05.6.2007.