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Limites à competência normativa das agências reguladoras.

Uma análise da fundamentação jurídica

08/08/2009 às 00:00
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Não há previsão constitucional expressa de outorga de poderes normativos mais amplos e com capacidade para inovar no ordenamento jurídico a agências reguladoras, mas tão-somente nas leis instituidoras dessas entidades.

RESUMO

Nos anos 90, em decorrência da reforma administrativa, foram criadas no Brasil autarquias sob regime especial, denominadas, com inspiração no modelo de organização administrativa norte-americana, agências reguladoras. Tais entidades encontram-se envoltas em ampla controvérsia no que pertine à competência normativa por elas desempenhada. A polêmica reside no fato de que não há previsão constitucional expressa de outorga de poderes normativos mais amplos e com capacidade para inovar no ordenamento jurídico a agências reguladoras, mas tão-somente nas leis instituidoras dessas entidades. Com fundamentação jurídica no campo da supremacia especial da Administração Pública, os poderes normativos conferidos às agências reguladoras não significam transferência do poder legiferante a essas entidades, mas apenas a necessidade de disciplinar determinadas matérias de cunho técnico, com vistas a municiar o Estado do instrumental necessário à consecução dos interesses coletivos. É o que se pode inferir da análise das leis instituidoras das agências reguladoras, bem como da doutrina abalizada acerca do desempenho da atividade normativa por parte de tais entidades.

Palavras-chave: Agências reguladoras. Poder normativo.


1 INTRODUÇÃO

As agências reguladoras surgiram no Brasil no contexto da reforma administrativa da década de 90, quando o Estado transferiu à iniciativa privada atividades que antes realizava, em geral, de forma dispendiosa e ineficiente. Todavia, o afastamento do Estado de tais atividades fez surgir a necessidade de que o controle e a fiscalização de seu exercício fossem delegados a entes, em tese, autônomos e independentes, que baseariam suas atuações em critérios eminentemente técnicos na busca de maior eficiência por parte do Poder Público e dos prestadores privados. Entidades com função típica de controle, as agências atuam principalmente no sentido de regular e fiscalizar a execução de serviços e a exploração de bens públicos.

Pela natureza própria das agências reguladoras e pela maior liberdade outorgada pelas leis instituidoras para a expedição de atos normativos, essas entidades vêm sendo objeto de controvérsias, principalmente no tocante à possibilidade de ofensa ao princípio da legalidade e à ideia de tripartição de poderes. No sentido de atenuar a polêmica é que se buscará efetuar um estudo mais detalhado acerca das atividades desempenhadas e do fundamento jurídico para o exercício de sua competência normativa. Para tanto, valer-se-á da análise das leis instituidoras, bem como dos posicionamentos adotados pela doutrina abalizada.


2 Competência normativa da Administração Pública

Em comum com a lei, os atos normativos expedidos pela Administração Pública possuem o caráter de generalidade e abstração. Apresentam como aspecto distintivo o fato de serem emanados de autoridade não pertencente ao Poder Legislativo. O regulamento, em especial, refere-se a atos emitidos pelo chefe do Poder Executivo.

No entanto, em diferentes épocas e sistemas jurídicos, o termo "regulamento" assume diversas significações, não se tratando de uma categoria específica de atos uniformes. Nesse ponto, é importante distinguir o regulamento no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro da compreensão adotada no direito estrangeiro, no qual é comum efetuar-se a delineação das seguintes subespécies: regulamentos executivos, expedidos com o fim de dar cumprimento à lei, e regulamentos autônomos ou independentes, que dispõem sobre assuntos estranhos à concepção de reserva legal. Estes podem, portanto, ser expedidos pelo Poder Executivo independentemente de lei, como forma de expressão de seus poderes naturais.

Alguns doutrinadores consideram as hipóteses previstas no art. 84, VI, da Constituição Federal como possibilidades de emissão de regulamentos autônomos no ordenamento jurídico brasileiro. Com redação dada pela Emenda Constitucional nº 32/2001, o dispositivo confere competência privativa ao Presidente da República para dispor, mediante decreto, sobre "a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos".

Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, pp. 336, 337) considera as hipóteses do art. 84, VI, exceções bastante limitadas que discrepam do regime comum dos regulamentos no Brasil. Assim, com relação à situação prevista na alínea a, dispõe:

Com efeito, se o Chefe do Executivo não pode nem criar nem extinguir órgão, nem determinar qualquer coisa que implique aumento de despesa, que pode ele, então, fazer, a título de dispor sobre ‘organização e funcionamento da Administração Federal’? Unicamente transpor uma unidade orgânica menor que esteja encartada em unidade orgânica maior para outra destas unidades maiores – como, por exemplo, passar um departamento de um dado Ministério para outro Ministério ou para uma autarquia, e vice-versa; uma divisão alocada em certo departamento para outro departamento, uma seção pertencente a determinada divisão para outra divisão; e assim por diante. Pode, ainda, redistribuir atribuições preexistentes em dado órgão, passando-as para outro, desde que sejam apenas algumas das atribuições dele – pois, se fossem todas, isto equivaleria a extinguir o órgão, o que é vedado pela Constituição.

Este é o regulamento previsto no art. 84, VI, ‘a’. Mera competência para um arranjo intestino dos órgãos e competências já criados por lei. Como é possível imaginar que isto é o equivalente aos regulamentos independentes ou autônomos do Direito europeu, cuja compostura, sabidamente, é muitíssimo mais ampla?

No tocante à hipótese do art. 84, VI, b, o autor entende haver possibilidade de o Executivo expedir ato concreto de sentido diverso ao de uma lei, o que configuraria uma exceção bastante limitada aos regulamentos meramente executivos.

O entendimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2008, p. 84) é precisamente no sentido oposto: para a autora, apenas a hipótese prevista na alínea a configurar-se-ia como uma forma de expedição de regulamento autônomo, posto que a alínea b não se trataria de função regulamentar, mas de "típico ato de efeitos concretos".

Não obstantes a alteração introduzida pela EC nº 32 e o peso dos argumentos elencados por diversos doutrinadores no sentido da existência dos regulamentos autônomos no Brasil, para que tal se configurasse seria necessário que esses atos normativos pudessem criar ou extinguir direitos e obrigações de forma originária, o que não é admitido em nosso ordenamento jurídico. Contra essa possibilidade se opõe de forma manifesta o princípio da reserva legal insculpido no art. 5º, II, da Constituição Federal.

Os atos de organização e funcionamento da Administração Federal, ainda que tenham conteúdo normativo, são meros atos ordinatórios, ou seja, atos que se preordenam basicamente ao setor interno da Administração para dispor sobre seus serviços e órgãos, de modo que só reflexamente afetam a esfera jurídica de terceiros, e assim mesmo mediante imposições derivadas ou subsidiárias, mas nunca originárias. Esse aspecto não é suficiente para converter os atos em decretos ou regulamentos autônomos (CARVALHO FILHO, 2008, p. 56).

Diferentemente do que se observa em alguns sistemas jurídicos estrangeiros, a Constituição Federal brasileira só dá margem para a concepção do regulamento como espécie normativa criada para dar fiel execução à lei, consoante expresso no art. 84, IV. É nesse sentido que Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 337) o define como "ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução de lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública".

Além dos regulamentos expedidos pelo chefe do Poder Executivo, o poder normativo conferido à Administração Pública se expressa por meio de portarias, resoluções e instruções para a execução de leis, decretos e regulamentos, sendo estas decorrentes da competência outorgada aos Ministros de Estado pelo art. 87, parágrafo único, II, da Constituição Federal. Ademais, cumpre aos órgãos colegiados expedir regimentos com normas de disposição sobre seu funcionamento interno. A função normativa referente às competências das agências reguladoras apresenta fundamentação jurídica e natureza distintas das desses atos normativos, que, em geral, estabelecem regras com alcance restrito ao âmbito do órgão expedidor.


3 Agências reguladoras e inspiração no modelo norte-americano

As agências reguladoras podem ser definidas como pessoas jurídicas integrantes da Administração Indireta, dotadas de personalidade jurídica própria, criadas por lei com o objetivo de proceder à coordenação da atuação do Estado em setores específicos da economia. Entidades com função típica de controle, atuam principalmente no sentido de regular e fiscalizar a execução de serviços públicos propriamente ditos, a realização de atividades protagonizadas pelo Estado em concorrência com a iniciativa particular e a exploração de bens públicos.

A criação, no Brasil, da denominação das agências reguladoras foi inspirada no modelo norte-americano de organização administrativa. Neste, as agências possuem funções de naturezas semelhantes à judicial, ao dirimir conflitos de interesses instaurados no âmbito de suas competências (com submissão ao controle exercido pelos Tribunais), e à legislativa, ao dispor normativamente acerca de determinadas matérias técnicas. A função normativa, porém, vem sendo objeto, naquele país, de constantes críticas e contestações, tal como ocorre no Brasil, tendo em vista a indelegabilidade de poder inerente à idéia de organização tripartida das funções estatais.

O modelo norte-americano, em que pese tenha adquirido grande relevância no Brasil, não pode simplesmente ser transplantado ao país, tendo em vista as peculiaridades e a complexidade da organização administrativa brasileira. Algumas das características que mais se destacam nas agências norte-americanas, tais quais a maior independência com relação aos demais poderes e a função regulatória, devem ser analisadas à luz do regime constitucional pátrio.

Assim, não se pode afirmar que no Brasil existe independência das agências reguladoras em relação ao Poder Judiciário. Embora tais entidades possam solucionar conflitos em última instância administrativa, não poderá será excluído do Judiciário o controle sobre suas decisões. Além disso, as agências não são independentes do Poder Legislativo, tendo em vista a necessidade de observância do princípio da legalidade, segundo o qual os atos normativos por elas produzidos não poderão conflitar com normas constitucionais ou legais. Ademais, estão sujeitas ao controle exercido pelo Congresso Nacional, previsto no art. 49, X, da Constituição Federal, e ao controle financeiro, orçamentário e contábil exercido pelo Poder Legislativo com o auxílio do Tribunal de Contas, consoante o disposto no art. 70 e seguintes da Carta Magna. O que se observa é apenas uma maior independência das agências reguladoras em relação ao Poder Executivo, ainda assim, nos limites estabelecidos em lei.

A maior independência e a função regulatória não constituem novidades introduzidas exclusivamente pelas agências reguladoras, tendo em vista que tais características já vinham sendo atribuídas, no Direito brasileiro, a outras entidades, como o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. Além da denominação, antes raramente utilizada para designar entes da Administração Pública, a inovação observada nos últimos anos no ordenamento jurídico pátrio refere-se à assunção, pelas agências, de papéis antes desempenhados pela Administração Direta, quais sejam os de concessão, permissão e autorização de serviço público ou de concessão para exploração de bem público, em especial o petróleo. Essas atribuições conferem às agências reguladoras determinados poderes, como de direção e controle sobre a execução dos serviços, de alterar unilateralmente as cláusulas regulamentares, de fixação de limite para cobrança de tarifas e sancionatórios. Dessa forma, além da atribuição de regular e controlar as atividades que são objeto de concessões, permissões e autorizações, algumas agências reguladoras recebem, de suas leis instituidoras, atribuições de típico poder de polícia, impondo limitações administrativas previstas em lei, fiscalizando atividades e reprimindo determinados atos. Nesse sentido, a lei nº 9.472/97, instituidora da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), confere, no art. 9º, XV, atribuição para realizar busca e apreensão de bens no âmbito de sua competência, e, no inciso XVIII, para reprimir infrações aos direitos dos usuários.

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4 Regime jurídico especial DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

No ordenamento jurídico brasileiro, apenas a Anatel e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) possuem previsão expressa no texto constitucional. Os artigos 21, XI, e 177, § 2º, III, da Constituição Federal, alterados, respectivamente, pelas Emendas Constitucionais nºs 8/95 e 9/95, prevêem a promulgação de leis que disponham sobre a exploração das atividades de telecomunicações e de petróleo e a instituição dos respectivos órgãos reguladores. Com fundamento nesses dispositivos, foram promulgadas as leis nº 9.472/97, instituidora da Anatel, e nº 9.478/97, criadora da ANP.

Seguindo o mesmo modelo dessas agências, leis ordinárias instituíram outras autarquias com competência normativa, como a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), criada pela lei nº 9.427/96, Agência Nacional de Águas (ANA), criada em 2000 pela lei nº 9.984, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), instituída pela lei nº 9.782/99, Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS), prevista na lei nº 9.961/2000 e a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), instituída pela lei nº 11.182/2005.

Levando-se em consideração o regime jurídico dessas autarquias, a doutrina costuma identificar as agências reguladoras como entidades sob regime especial, às quais seriam atribuídas prerrogativas próprias em consonância com a natureza de suas atribuições. O regime especial, diferenciado do comum aplicado à generalidade de autarquias no ordenamento jurídico brasileiro, tem menção expressa em diversos dispositivos das leis instituidoras das agências. Como exemplo, pode-se citar a lei instituidora da Anatel, que em seu art. 8º, §2º, dispõe que " a natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira". A lei instituidora da Anvisa, de forma semelhante, estabelece, no art. 3º, parágrafo único, que "a natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada pela independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira." Assim, não obstante a disciplina jurídica das agências seja tratada em leis esparsas, podem-se delinear alguns caracteres comuns a essas entidades, sendo observado um modelo específico de instituição.

Uma dessas características diz respeito à autonomia decisória, tendo em vista que os conflitos administrativos se desencadeiam e são solucionados pelos próprios órgãos da entidade autárquica de regime especial. Segundo José dos Santos Carvalho Filho (2008, p. 449), "o poder revisional exaure-se no âmbito interno, sendo inviável juridicamente eventual recurso dirigido a órgãos ou autoridades da pessoa federativa à qual está vinculada a autarquia". Os conflitos podem envolver as entidades sob seu controle direto, como concessionários e permissionários entre si, ou os usuários dos serviços públicos por elas regulamentados. Nesse sentido é que a lei da ANP estatui, no art. 20, que o seu regimento interno "disporá sobre os procedimentos a serem adotados para a solução de conflitos entre agentes econômicos, e entre estes e usuários e consumidores, com ênfase na conciliação e no arbitramento". A lei instituidora da ANS, ademais, confere à agência, no art. 1º, parágrafo único, "autonomia nas suas decisões técnicas". A autonomia decisória das entidades autárquicas sob regime especial, no entanto, não exclui a possibilidade de apreciação, pelo Poder Judiciário, de qualquer ameaça ou lesão a direito, em consonância com o texto constitucional.

Outra característica observada no regime especial das agências reguladoras é a estabilidade conferida aos dirigentes dessas entidades, o que confere maior independência administrativa a suas atuações. Os dirigentes, em geral, são nomeados para atuar por períodos fixados em lei. Tais prazos não devem, no entanto, ultrapassar o do mandato do Presidente da República que procedeu à nomeação, a qual está sujeita a aprovação pelo Senado.

A estabilidade outorgada aos dirigentes das agências confere maior independência, não muito comum na maior parte das entidades da Administração Indireta, em que os dirigentes, por ocuparem cargos de confiança do Chefe do Poder Executivo, acabam por curvar-se a interferências, mesmo que ilícitas. (DI PIETRO, 2008, p. 446)

A maior autonomia de atuação no regime especial, no entanto, encontra limites no controle administrativo exercido pelo Ministério a que estão vinculadas essas entidades, sob a forma de supervisão ministerial, e na "direção superior da administração federal" prevista no art. 84, II, da Constituição Federal.

Não obstante a relevância das características elencadas, entre os elementos diferenciadores do regime especial destaca-se, como de maior relevância e ensejador de maior número de controvérsias, o poder normativo de caráter técnico. Este consiste na delegação, conferida pelas leis instituidoras dessas autarquias, de competência para editar normas técnicas específicas, capazes de inovar, em certa medida, no ordenamento jurídico e insertas no âmbito próprio das finalidades das agências reguladoras. Dessa forma, essas entidades passam a deter competência para ditar normas com força de lei e com base apenas nos conceitos vagos contidos na legislação.

Nesse sentido, a lei criadora da Anvisa estabelece, no art. 7º, III, entre suas competências, a de "estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária". A lei da ANA determina, no art. 4º, II, que compete à agência "disciplinar, em caráter normativo, a implementação, a operacionalização, o controle e a avaliação dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos". A lei criadora da Anac, no art. 8º, XXX, dispõe que compete à agência "expedir normas e estabelecer padrões mínimos de segurança de voo". À Aneel foi outorgada, no art. 2º de sua lei instituidora, a finalidade de "regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal". O que diferencia as autarquias de regime especial das de regime comum é, assim, justamente o poder regulamentar mais amplo conferido àquelas, o que constitui uma exigência dos tempos modernos.


5 PODER normativO das agências reguladoras

Pode-se afirmar que o fundamento jurídico atributivo do poder de agir das agências reguladoras está inserido no campo da supremacia especial da Administração Pública, também denominada relação especial de sujeição. Com base nos ensinamentos das doutrinas alemã, italiana e espanhola sintetizados por Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 811), a Administração goza de poderes que não são extraídos diretamente da lei, mas que decorrem das relações específicas nas quais que se envolve. Nesse aspecto, diferem dos inerentes à supremacia geral, consoante a qual a Administração não dispõe de poderes de agir que não lhe sejam conferidos pela legislação.

Entre os fundamentos para a existência da supremacia especial, podem-se destacar as relações de sujeição a que se submetem grupos específicos de pessoas, de modo a criar um vínculo jurídico distinto do que atine à generalidade dos indivíduos. Tais relações demandam poderes específicos a serem exercitados, dentro de certo limite, pela Administração Pública, com vistas à consecução do interesse público. É o que ocorre, por exemplo, nos casos dos concessionários de serviços públicos. Observa-se a necessidade de estipulação de determinadas normas no âmbito estrito dessas atividades como condição para seu funcionamento e viabilidade.

Existem situações, por outro lado, em que seria praticamente inviável, ou mesmo impossível, em virtude de suas especificidades, que todas as disposições devessem ser emanadas unicamente do Poder Legislativo, com exclusão de qualquer fonte normativa distinta. Seria o mesmo que pretender que o Legislativo dispusesse de forma extremamente detalhada e particularizada acerca de situações peculiares e mutáveis, o que dificultaria ou mesmo seria capaz de paralisar o exercício de algumas atividades públicas.

Há que se destacar, porém, que o exercício de poderes em sede de supremacia especial deve encontrar seu fundamento último em lei, em vista do princípio da legalidade, e restringir-se ao estritamente necessário para o alcance das finalidades específicas das relações de sujeição especial. Por conseguinte, não podem tais poderes estabelecer direitos ou deveres que contrariem normas constitucionais ou legais ou que atinjam terceiros não submetidos à relação de sujeição especial em que se fundamentam.

5.2 Especificidade da competência normativa das agências reguladoras

Sabe-se, de início, que a função normativa exercida pelas agências reguladoras não se equipara à desempenhada pelo chefe do Poder Executivo na expedição de decretos regulamentares, não podendo esta servir de fundamento para aquela. Assim, de um lado, depara-se com a necessidade de se reconhecer poder normativo a órgãos e entidades da Administração Pública, aplicando-se o princípio da especialidade. De outro, questionam-se quais os limites desse poder normativo, tendo em vista que a Constituição Federal especifica as competências para expedição de regulamentos sem deixar margens a interpretações ampliativas.

Na prática, é de se reconhecer que as agências reguladoras exercem poder normativo próprio, peculiar às atividades que exercem e diferenciada da delegada constitucionalmente ao chefe do Poder Executivo e aos Ministros de Estado, neste caso para expedição de instruções normativas. O problema está justamente no fato de que não se encontra fundamento constitucional expresso para o exercício, pelas agências reguladoras, de poderes normativos mais amplos que os delegados a outras entidades da Administração. Segundo uma interpretação mais restritiva do texto constitucional, portanto, as resoluções técnicas expedidas pelas agências reguladoras caracterizariam desvio de finalidade.

Consoante essa linha de pensamento, mais conservadora, a lei, ao criar a agência reguladora, estaria tirando do Poder Executivo todas as atribuições a este conferidas para o controle de determinada atividade para colocá-las nas mãos das agências.

As atribuições das agências reguladoras, no que diz respeito à concessão, permissão e autorização de serviço público resumem-se ou deveriam resumir-se às funções que o poder concedente exerce nesses tipos de contratos ou atos de delegação: regulamentar os serviços que constituem objeto da delegação, realizar o procedimento licitatório para escolha do concessionário, permissionário ou autorizatário, celebrar o contrato de concessão ou permissão ou praticar ato unilateral de outorga da autorização, definir o valor da tarifa e da sua revisão ou reajuste, controlar a execução dos serviços, aplicar sanções, encampar, decretar a caducidade, intervir, fazer a rescisão amigável, fazer a reversão de bens ao término da concessão, exercer o papel de ouvidor de denúncias e reclamações dos usuários, enfim exercer todas as prerrogativas que a lei outorga ao Poder Público na concessão, permissão e autorização. (DI PIETRO, 2008, pp. 446, 447)

Em outras palavras, as agências reguladoras não poderiam, sob pena de inconstitucionalidade, exercer função normativa maior que a exercida por outros órgãos ou por entidades da Administração Indireta. Argumenta-se, para tanto, que a delegação da função normativa das agências reguladoras estaria sendo feita pela própria lei instituidora dessas entidades, sem embasamento próprio na Constituição Federal. Ademais, se por um lado as agências reguladoras não poderiam fixar normas sobre matérias não reguladas em lei porque o regulamento autônomo não encontra sede constitucional, por outro também não estariam aptas a expedir regulamentos em complemento à lei, porque essa competência é privativa do chefe do Poder Executivo e só por este poderia ser delegada.

Como acentuador da polêmica, destaca-se o fato de que inexiste um marco regulatório único para as agências reguladoras dispondo acerca de sua função normativa. Por conseguinte, torna-se muito dificultosa a aceitação de que as próprias leis esparsas que instituem essas entidades sejam capazes de conferir-lhes poderes não outorgados expressamente pela Lei Maior. Segundo o entendimento doutrinário mais conservador, os poderes normativos das agências reguladoras são, ou deveriam ser, bastante limitados à expedição de normas de efeitos internos, sem produzir qualquer inovação na ordem jurídica. Qualquer ato que contrarie esse entendimento será considerado, sob essa ótica, invasão da competência legislativa.

Ademais, mesmo nas agências reguladoras cujas criações são previstas no texto da Constituição, Celso Antônio Bandeira de Mello (2998, p. 177) denuncia o que considera uma tentativa de fugir das formas licitatórias previstas na lei 8.666/93. Nesse sentido é que a lei nº 9.478/97, que cria a ANP, estabelece:

Art. 23. As atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e de gás natural serão exercidas mediante contratos de concessão, precedidos de licitação, na forma estabelecida nesta Lei.

§ 1º A ANP definirá os blocos a serem objeto de contratos de concessão.

§ 2º A ANP poderá outorgar diretamente ao titular de direito de lavra ou de autorização de pesquisa de depósito de carvão mineral concessão para o aproveitamento do gás metano que ocorra associado a esse depósito, dispensada a licitação prevista no caput deste artigo.

Mais adiante, o art. 36 estabelece que "a licitação para outorga dos contratos de concessão referidos no art. 23 obedecerá ao disposto nesta lei, na regulamentação a ser expedida pela ANP e no respectivo edital". Dessa forma, a ANP estará submissa, nas concessões para o desempenho das atividades por ela reguladas, às regras estabelecidas pela própria agência e às dispostas em sua lei criadora, a qual "em relação ao procedimento licitatório e suas cautelas para garantia da isonomia entre licitantes praticamente nada dispõe" (MELLO, 2008, p. 177).

Mais recentemente, a lei nº 11.909, de 2009, incluiu no artigo 23 hipótese de dispensa de licitação, configurando nova tentativa de burla às formas licitatórias previstas na legislação própria. O art. 67 da lei criadora da ANP, ademais, estabelece que "os contratos celebrados pela Petrobrás, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República".

Assim como a lei instituidora da ANP, a lei da Anatel prevê, no art. 89, que a licitação será disciplinada pela agência, observados os princípios constitucionais e as disposições de sua lei criadora. No art. 54, estabelece que, à exceção dos casos de contratação de obras e serviços de engenharia civil, a agência poderá utilizar procedimentos próprios de contratação, nas modalidades de consulta e pregão. Essas novas figuras licitatórias que, consoante o art. 55, serão disciplinadas pela própria entidade, apareceram no ordenamento jurídico brasileiro pela primeira vez na lei que criou a Anatel. O pregão hoje encontra-se regulado pela lei nº 10.520 de 2002, tendo aplicabilidade em todo o País, ao passo que a consulta ainda não foi disciplinada em lei. Tal modalidade apenas foi estendida às demais agências reguladoras federais pelo art. 37 da lei 9.986, de 2000.

Entendemos, em consonância com o esposado por Celso Antônio Bandeira de Mello, que delegar a disciplina do processo licitatório ao Poder Executivo ou às próprias agências reguladoras pode dar margem a favoritismos, além de contrariar o disposto no art. 37, XXI, da Constituição Federal, o qual pressupõe lei, e não atos administrativos, para disposições acerca das licitações.

O que cumpre distinguir, nesse ponto, é o combate à invasão da competência legislativa, que se configura como legítimo face ao ordenamento jurídico brasileiro, da tentativa de engessamento da atividade das agências reguladoras, que representa um entendimento ultrapassado e pouco condizente com a necessária evolução da organização administrativa. Sabe-se que existe grande dificuldade prática em se restringir, como buscam os defensores da corrente de pensamento mais conservadora, o campo de atuação das agências reguladoras à expedição de normas de efeitos limitadamente internos. Isso representaria, em inúmeros casos, óbice à atuação dessas entidades na regulação de determinados setores da economia.

Os poderes normativos mais amplos conferidos às agências reguladoras não significam, como poderia parecer em análise superficial, transferência do poder legiferante a entidades da administração pública, mas tão-só a necessidade de tratamento normativo, por parte de agências especializadas, de matérias de cunho técnico.

Observa-se, a título de exemplo, que a competência normativa da Agência Nacional de Saúde Suplementar é de ordem estritamente técnica, consoante o disposto no art. 4º, IX, da lei nº 9.961/2000, segundo o qual compete à ANS "normatizar os conceitos de doença e lesão preexistentes". Outro exemplo consta do inciso XVIII do mesmo artigo da lei da ANS, segundo o qual a ela compete "expedir normas e padrões para o envio de informações de natureza econômico-financeira pelas operadoras, com vistas à homologação de reajustes e revisões". No mesmo sentido, a lei nº 11.182/2005, instituidora da Anac, estabelece:

Art. 8º Cabe à ANAC adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento e fomento da aviação civil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária do País, atuando com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade, competindo-lhe:

[...]

XXX – expedir normas e estabelecer padrões mínimos de segurança de vôo, de desempenho e eficiência, a serem cumpridos pelas prestadoras de serviços aéreos e de infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária, inclusive quanto a equipamentos, materiais, produtos e processos que utilizarem e serviços que prestarem.

Diante do exposto, entendemos que os atos normativos praticados pelas agências reguladoras não encontram óbice no ordenamento jurídico brasileiro, à medida que seria inviável ao Poder Legislativo disciplinar pormenorizadamente matérias de cunho técnico. Ademais, a morosidade comumente observada no processo legislativo tornaria muito difícil, quando não impediria o tratamento tempestivo das matérias particularizadas que são objeto das agências reguladoras.

Ao considerar-se que os atos normativos expedidos pelas agências reguladoras são capazes, de certa maneira, de inovar no ordenamento jurídico, não se quer defender que essas entidades legislam de forma originária, em substituição ao Poder Legislativo, mas simplesmente que lhes cabe o tratamento de matérias técnicas e específicas não anteriormente tratadas em lei, sem que possam, sob nenhum aspecto, contrariar o disposto de forma geral e abstrata no texto legal. Cumpre-lhes, por conseguinte, especificar e explicitar conceitos vagos ou imprecisos trazidos pela lei, sem que haja qualquer ofensa ao princípio constitucional da reserva legal.

Nesse sentido, importante destacar a manifestação do Superior Tribunal de Justiça, proferida em decisão monocrática, no sentido de que:

A prerrogativa de baixar normas pelos órgãos de regulação, as ditas agências, segundo seu peculiar modelo teórico-normativo, tem por característica alhear-se da tutela administrativa [...]. Com essa nota característica, emerge uma opção ideológica do legislador: a intangibilidade da função regulatória aos diferentes titulares da soberania. Pensou-se em um modelo que primasse pela visão do equilíbrio econômico-financeiro e pela não-transitoriedade do planejamento dos serviços regulados. Os humores políticos, as maiorias legislativas, as intenções momentâneas de agradar o eleitorado deveriam ser variáveis excluídas da equação regulatória. As relações entre o regulador e o regulado deveriam ser estatuídas com suporte na segurança jurídica, na estabilidade dos pactos e na previsibilidade das ações. Assim o fazendo, eliminar-se-iam os custos gerais econômicos do serviço, o que, em última análise, favoreceria a todos os usuários. [...]

O poder normativo da Anatel tem caracteres de autonomia. Ao regular, a Anatel ocupa um limbo legislativo deixado propositadamente pelo regime constitucional das agências, como uma metafórica renúncia de soberania em nome das vantagens advindas do controle técnico dos serviços de infra-estrutura. [...] Essa delegação legislativa para os órgãos regulatórios justifica-se pela necessidade típica de setores específicos relacionados à infra-estrutura, energia e comunicações, que demandam regras eminentemente técnicas, cuja atualização pudesse ser freqüente e periódica, de maneira a evitar que a obsolescência normativa não prejudicasse a prestação dos serviços. [01][...]

Cumpre ressaltar, mais uma vez, que a atividade cometida às agências reguladoras não representa usurpação da função legislativa, posto que o poder normativo possui caracteres diferenciados do poder de legislar. De forma distinta deste, portanto, as agências reguladoras exercem função disciplinadora, de caráter complementar, sempre em consonância com os limites estabelecidos na lei instituidora. Em que pese o poder normativo exercido pelas agências seja capaz de inovar, em certa medida, no ordenamento jurídico, trata-se de simples delegação para edição de normas de caráter técnico e complementar, e não de normas básicas de política legislativa.

É necessário analisar o poder normativo exercido pelas agências reguladoras com fundamento no princípio da especialidade e com vistas às finalidades com que foram instituídas. De nada adiantaria, outrossim, a criação de tais entidades se não houvesse delegação de competência para normatizar as atividades cujas regulações lhes foram atribuídas. Diante das novas realidades surgidas no âmbito da necessidade de regulação de atividades técnicas e em constante evolução, cabe ao Estado munir-se do instrumental necessário à atuação eficiente e condizente com a satisfação do interesse da coletividade.


6 Conclusão

Entendemos, com base nos argumentos explicitados, que o poder normativo exercido pelas agências reguladoras não caracteriza desvio de finalidade por parte dessas entidades. Com base em uma interpretação sistêmica da Constituição Federal e propugnando pela adoção do princípio da especialidade, compreendemos como legítimo o exercício de poder normativo pelas agências, o que não lhes faculta a atuação de forma ilimitada. É preciso ponderar que, na regulação de um determinado setor, essas autarquias de regime especial devem obediência aos comandos constitucionais e legais, do que se infere que estão submissas a todas as formas de controle político e administrativo previstas na Constituição Federal. Ademais, cumpre destacar que os atos normativos expedidos pelas agências reguladoras devem cingir-se estritamente a matérias de sua competência técnica.

Se, por um lado, os poderes conferidos a essas entidades não se devem confundir com os das agências americanas, as quais exercem funções quase-legislativas, por outro não podem ser compreendidos de forma tão restritiva que leve ao comprometimento do regular exercício de suas funções. A solução para o questionamento acerca do fundamento jurídico do poder normativo exercido pelas agências reguladoras passa pela consonância entre o que é permitido constitucionalmente e as exigências de acompanhamento da dinâmica social. Trata-se, dessa forma, de uma evolução necessária no processo de gestão, pelo Estado, dos interesses públicos.


REFERÊNCIAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 20. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

COSTA, Ana Paula Montenegro. A alteração imposta pela EC32/01: a reintrodução do decreto autônomo. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/1260/A-alteracao-imposta-pela-EC32-01-A-reintroducao-do-decreto-autonomo>. Acesso em: 2 abr. 2009.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

MARQUES, Marcelo Henrique Pereira. O decreto autônomo da jurisprudência do STF. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2837/O-decreto-autonomo-da-jurisprudencia-do-STF>. Acesso em: 2 abr. 2009.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2008.

PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura. Poder regulamentar da Administração Pública: os regulamentos autônomos como ferramentas de atenção à dinâmica social. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2005.


Nota

  1. STJ. Resp 1.095.135. T2. Min. Humberto Martins. J. 24/11/2008. DJ. 28/11/2008.
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Sobre a autora
Lianne Pereira da Motta Pires

Estudante de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Lianne Pereira Motta. Limites à competência normativa das agências reguladoras.: Uma análise da fundamentação jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2229, 8 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13293. Acesso em: 21 nov. 2024.

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