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Leis municipais: controle abstrato de constitucionalidade

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O trabalho estuda a Lei nº 9.882/1999, que introduziu no sistema jurídico nacional a viabilidade, ainda que restrita, de controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Escopo do controle abstrato – 3. Objeto do controle abstrato – 4. Escopo da arguição de descumprimento de preceito fundamental – 5. Objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental – 6. Noção de preceito fundamental – 7. Inexistência de outro meio eficaz – 8. A competência municipal – 9. Considerações finais.


1.

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Nos termos da Constituição da República (CR), compete ao Supremo Tribunal Federal (STF), precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal [art. 102, I, a, na redação da Emenda Constitucional (EC) n° 3, de 17.3.1993]. É o que se denomina de controle abstrato (ou concentrado) de constitucionalidade dos atos normativos, através do qual a Suprema Corte analisa e decide sobre sua compatibilidade com as normas constitucionais. A ação direta de inconstitucionalidade (ADIN ou ADI) e a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) são os mecanismos mais empregados para o controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos federais ou estaduais, com primazia para o primeiro deles (a ADIN).

O texto constitucional elegeu a lei ou o ato normativo federal ou estadual como objeto específico da ADIN; quanto à ADC, o objeto é unicamente a lei ou o ato normativo federal. Ele não contempla a lei ou o ato normativo municipal, embora os Municípios formem com os Estados, através de união indissolúvel, a República Federativa do Brasil (CR, art. 1°), aos quais foi atribuída competência própria (CR, art. 30), inclusive de natureza tributária (CR, art. 156).

A jurisprudência do STF é pacífica quanto à impossibilidade de controle abstrato de lei ou ato normativo municipal por via de ação direta de inconstitucionalidade. Sua constitucionalidade apenas pode ser discutida na esfera do controle difuso, "exercido incidenter tantum, por todos os órgãos do Poder Judiciário, quando do julgamento de cada caso concreto" (Reclamação 337, RDA 199/201, RTJ 164/832; ADIN 1.268-2-MG, DJU de 20.10.1995, entre outros).

A Constituição da República estatui, também, que "a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei" (CR, art. 102, § 1°).

Onze anos depois de promulgada a Constituição foi editada a Lei 9.882, de 3.12.1999, dispondo sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Seu art. 1° prescreve que a arguição "terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público". Ela também a admite na hipótese de ser "relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição".

A Lei 9.882, de 1999, introduziu no sistema jurídico nacional a viabilidade, ainda que restrita, de controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais. O escopo destas observações é ressaltar a importância desse novo instrumento processual, que permite o controle abstrato de constitucionalidade de atos do Poder Público municipal, entre eles suas leis e atos normativos.


2. ESCOPO DO CONTROLE ABSTRATO.

As ações de controle abstrato de constitucionalidade não objetivam dirimir conflitos envolvendo pretensões relativas a direitos subjetivos, ainda que esses litígios envolvam a interpretação de normas constitucionais. Elas visam, essencialmente, à preservação da integridade da Lei Magna e, por tal razão, os processos que as veiculam são denominados de objetivos. Como decidido e reiterado pelo STF "não se discutem situações individuais no âmbito do controle abstrato de normas, precisamente em face do caráter objetivo de que se reveste o processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade"; consequentemente, a tutela jurisdicional de situações individuais alicerçadas em controvérsia de natureza constitucional "há de ser obtida na via do controle difuso de constitucionalidade, que, supondo a existência de um caso concreto, revela-se acessível a qualquer pessoa que disponha de legítimo interesse" [ADIN (AgRg) 1.254-1-RJ, RT 747/801, RTJ 170/801]. Dada a natureza e a finalidade do controle abstrato de constitucionalidade, se ocorrer, após o ajuizamento da ação, a revogação do ato normativo por ela questionado, a revogação "realiza, em si, a função jurídica constitucional reservada à ação direta de expungir do sistema jurídico a norma inquinada de inconstitucionalidade", razão que acarreta a prejudicialidade da ação por perda do objeto (ADIN 709-2, RDA 197/180, RTJ 154/401; ADIN 2.515-5-CE, RT 798/181, entre muitos outros julgados).

Embora denominada de ação direta de inconstitucionalidade e, em regra, quem a propõe tenha por finalidade obter a declaração de inconstitucionalidade do ato normativo impugnado, ela serve à declaração de sua constitucionalidade. É o que sucede quando o tribunal, rejeitando o pedido, julga-a improcedente, ou seja, declara que o ato normativo questionado não contraria a Lei Magna. O mesmo ocorre em relação à ação declaratória de constitucionalidade. Por esta objetiva seu autor a proclamação da compatibilidade do ato legislativo com a Constituição, mas se a decisão for pela improcedência do pedido o tribunal estará, efetivamente, declarando a inconstitucionalidade do ato normativo que constitui seu objeto. Tratando da representação de inconstitucionalidade prevista na Constituição de 1967/1969, Gilmar Ferreira Mendes observa que ela "tinha, em verdade, caráter dúplice ou natureza ambivalente, permitindo ao Procurador-Geral (então o único legitimado para sua propositura) submeter a questão constitucional ao Supremo Tribunal quando estivesse convencido da inconstitucionalidade da norma ou, mesmo quando convencido da higidez da situação jurídica, surgissem controvérsias relevantes sobre sua legitimidade" [01]. Por tal razão, certamente, prescreve o § 2° do art. 102 da Constituição que "as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal". Ao referir-se às decisões definitivas de mérito, o preceito compreende as que julgam procedente ou improcedente as ações diretas de inconstitucionalidade e as ações declaratórias de constitucionalidade, isto é, as que decidem pela incompatibilidade ou pela compatibilidade com a Lei Suprema dos atos normativos que constituem seu objeto.

A finalidade dessas ações é, portanto, preservar a integridade das normas constitucionais quando ocorrentes dúvidas a respeito de atos normativos que suscitem controvérsia sobre sua conformidade com a Constituição.


3. OBJETO DO CONTROLE ABSTRATO.

O art. 102, inciso I, letra "a" da Constituição restringe o objeto da fiscalização abstrata de constitucionalidade. A ação direta de inconstitucionalidade pode versar, apenas, sobre lei ou ato normativo federal ou estadual; a ação declaratória de constitucionalidade unicamente sobre lei ou ato normativo federal. Compreende-se como lei a medida provisória e a emenda constitucional.

O ato normativo, aí inclusa a lei formalmente editada pelo Poder Legislativo, deve, no entanto, ser dotado de generalidade. Vale dizer, deve ser de aplicação geral, abstrato, aplicável a qualquer pessoa que se encontre na situação jurídica nele prevista.

Ainda que formalmente veiculado por lei, a jurisprudência do STF não admite o controle abstrato de atos de efeitos concretos, "como sucede com as normas individuais de autorização que conformam originariamente o orçamento da despesa e viabilizam sua alteração no curso do exercício" (ADIN 1.716-DF, RTJ 170/438). Como tal também se qualifica, em geral, a "lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, assim sem generalidade abstrata" (ADIN 2.484-DF, DOU de 3.12.2003). Da mesma forma os atos, ainda que sob a forma de lei, relativos a reestruturação de empresa pública (RTJ 173/466), ou "emenda parlamentar que encerra tão-somente destinação de percentuais orçamentários, visto que destituída de qualquer carga de abstração e de enunciado normativo" (RTJ 173/483). Mas as leis relativas à criação, ao desmembramento ou à alteração de limites de municípios são passíveis de controle abstrato (ADIN 733-5-MG, RTJ 158/34; ADIN 1.262-TO, RTJ 178/606, ADIN 2.632-1-BA, DOU de 31.3.2004).

Atos normativos editados sem a vestimenta formal de leis (ou de medidas provisórias ou emendas constitucionais) também podem ser objeto de controle concentrado. O tribunal admitiu o controle abstrato de parecer da Consultoria Geral da República, que "assumiu caráter normativo, por força dos arts. 22, §§ 2° e 23 do Decreto n° 92.889, de 7.7.1986, e, ademais, foi seguido de circular do Banco Central, para o cumprimento de legislação anterior à Constituição de 1988" (ADIN 4, RDA 195/85). Também o admitiu em relação a portaria, quando "vem a estabelecer prescrição em caráter genérico e abstrato" [ADIN (MC) 962-1, DJU de 11.2.1994; ADIN (MC) 1.088-PI, RTJ 155/430], bem assim quanto a assento regimental de tribunal estadual (ADIN 29, RTJ 129/955, objeto de embargos infringentes in RTJ 133/955), resolução administrativa de tribunal regional eleitoral (ADIN 666-PE, RTJ 152/444), decisão administrativa de tribunal regional do trabalho (ADIN 683-SC, RTJ 150/50), resolução administrativa de tribunal de contas (ADIN 870-DF, RTJ 151/423) e outros atos de natureza similar sempre que neles vislumbrou caráter normativo genérico [02].

O tribunal também admitiu o controle abstrato de dispositivos de decreto regulamentar quando revestidos de "contornos de verdadeiro ato normativo autônomo" (ADIN 1.396-SC, RTJ 167/397) e quando "o decreto impugnado não é de caráter regulamentar de lei, mas constitui ato normativo que pretende derivar o seu conteúdo diretamente da Constituição" (ADIN 1.282, RTJ 185/437). No entanto, não é admissível o controle abstrato de decretos e de outros atos de estatura inferior à lei quando a controvérsia diz respeito aos limites do poder regulamentar, porque quando esses atos ultrapassam o conteúdo da lei ou se afastam de seus limites, comete-se "ilegalidade e não inconstitucionalidade, pelo que não se sujeita, quer no controle concentrado, quer no controle difuso, à jurisdição constitucional" (RE 189.550-SP, RTJ 166/611; RE 154.027-SP, RTJ 166/584; ADIN 763-SP, RTJ 145/136).

Esses precedentes referem-se a atos normativos federais ou estaduais e não a atos normativos municipais, porque, quanto a estes, é pacífica a jurisprudência do STF quanto à impossibilidade de controle abstrato de lei ou ato normativo municipal por via de ação direta de inconstitucionalidade. Essa interpretação decorre da letra do art. 102, inciso I, letra "a" da Constituição, que lhe atribui competência para o processamento e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, não contemplando, portanto, os editados pelos municípios. A constitucionalidade destes apenas podia ser discutida na esfera do controle difuso, "exercido incidenter tantum, por todos os órgãos do Poder Judiciário, quando do julgamento de cada caso concreto" (Reclamação 337, RDA 199/201, RTJ 164/832; ADIN 1.268-2-MG, DJU de 20.10.1995, entre outros). É inquestionável que essa exegese, considerada a competência legislativa constitucional própria dos municípios, inclusive quanto ao direito tributário, impediu o controle abstrato de inúmeros atos normativos. No entanto, ela encontra amparo no texto constitucional e este, quiçá propositadamente, não incluiu os atos normativos municipais entre os objetos possíveis desse controle diante da imperiosa necessidade de impedir que a Suprema Corte, na composição que a Lei Maior que conferiu, viesse a tornar-se um tribunal impossibilitado de desempenhar, com um mínimo desejável de eficiência, suas relevantes funções. Essa motivação, aliás, consta de veto presidencial a dispositivo da Lei 9.882, de 1999, que permitia a propositura da arguição de descumprimento de preceito fundamental a qualquer pessoa e não apenas aos legitimados para a propositura da ação direta. Sustenta o veto que "a admissão de um acesso individual e irrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais", fazendo "presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal", não havendo dúvida de que "a viabilidade funcional do Supremo Tribunal Federal consubstancia um objetivo ou princípio implícito da ordem constitucional, para cuja máxima eficácia devem zelar os demais poderes e as normas infraconstitucionais" [03].

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O tribunal também não considera viável o controle abstrato, por via da ação direta de inconstitucionalidade, de atos normativos, inclusive federais e estaduais, anteriores à Constituição. Vale dizer, os atos normativos editados antes da Constituição não constituem objeto idôneo de controle abstrato pela via da ação direta, embora sua constitucionalidade, aferível à luz da Lei Magna revogada sob a qual foram editados, possa ser discutida no âmbito do controle difuso. Gilmar Ferreira Mendes [04] relembra o debate travado a respeito do tema já na vigência da Constituição de 1988 (ADIN 2, RTJ 169/763). O Ministro Paulo Brossard, relator da referida ação, sustentou a inviabilidade, enquanto o Ministro Sepúlveda Pertence advogou a tese oposta. Segundo o Ministro Brossard, "as leis anteriores à Constituição não podem ser inconstitucionais em relação a ela, que veio a ter existência mais tarde. Se entre ambas houver inconciliabilidade, ocorrerá a revogação, dado que, por outro princípio elementar, a lei posterior revoga a lei anterior com ela incompatível e a lei constitucional, como lei que é, revoga as leis anteriores que se lhe oponham". Em outro julgado o tribunal reafirmou esse entendimento, declarando que a ação direta "não se revela instrumento juridicamente idôneo ao exame da legitimidade constitucional de atos normativos do Poder Público que tenham sido editados em momento anterior ao da vigência da Constituição sob cuja égide foi instaurado o controle normativo abstrato", eis que necessária a existência "de uma relação de contemporaneidade entre o ato estatal impugnado e a Carta Política sujo cujo domínio normativo veio ele a ser editado" (RTJ 145/339).

Dessa resenha quanto ao objeto do controle abstrato de constitucionalidade, destaca-se, para a finalidade destas notas, a orientação jurisprudencial do STF que não o admitia em relação às leis e atos normativos municipais e às leis e atos normativos anteriores à promulgação da Constituição vigente, ainda que federais ou estaduais.


4. ESCOPO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.

A finalidade da disposição contida no art. 102, § 1° da Constituição, é a integridade dos preceitos fundamentais da Constituição. Como explicitado pelo caput art. 1° da Lei 9.882, de 1999, esse instrumento tem "por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público". Embora a norma constitucional não tenha estabelecido qualquer restrição quanto à origem do descumprimento de preceito fundamental, a lei limitou o objeto da arguição a lesão resultante de ato do Poder Público.

A Lei 9.882 estabelece que "caberá também" a ADPF "quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição" (art. 1°, § único, I). Ambas as hipóteses têm por pressuposto comum a lesão a preceito fundamental.

Tendo a ADPF por finalidade a preservação do conteúdo normativo dos preceitos constitucionais fundamentais, nela também não se discutem pretensões relativas a direitos intersubjetivos. A arguição, como modalidade de controle abstrato de constitucionalidade, destina-se a evitar ou a reparar lesão a preceito fundamental e a decisão proferida pelo tribunal deve fixar "as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental" (Lei 9.882/1999, art. 10). Por força dessa peculiaridade é que "a decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público" (Lei 9.882/1999, art. 10, § 3°). Se o ato do Poder Público ofender direitos subjetivos de qualquer pessoa, sua reparação terá de ser demandada pelo legitimado ativo contra o Poder responsável através de ação própria. É evidente que no julgamento dessa demanda, em sendo o caso, o juiz deve atentar para o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental estabelecido pela decisão do STF.


5. OBJETO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.

De acordo com o caput do art. 1° da lei, a arguição é cabível contra ato do Poder Público que cause lesão a preceito fundamental. O inciso I, do parágrafo único, diz que "caberá também" a arguição "quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição".

O ato do Poder Público hábil à propositura da arguição não precisa ser de índole normativa. Podendo ser de outra natureza, cabível, em tese, a arguição contra, por exemplo, ato administrativo. Essa possibilidade inexistia no ordenamento jurídico nacional. Dessa lacuna decorria que qualquer ato administrativo, ainda que ostensivamente afrontoso de preceitos fundamentais de magna envergadura, somente podia ter sua constitucionalidade apreciada e decidida no âmbito do controle difuso. É inequívoco que o desrespeito às normas constitucionais, aí inclusos os preceitos fundamentais, não é apanágio dos atos de natureza normativa. No desempenho da atividade administrativa, o Poder Público, notadamente o Poder Executivo, graças à multiplicidade de sua ação e à plêiade de seus agentes, transgride-as inúmeras e reiteradas vezes. Os tribunais estão abarrotados de ações propostas contra o Poder Público onde se questiona a compatibilidade de atos administrativos com as normas constitucionais.

O ato impugnável pode ser de natureza normativa. Exige-se, em tal caso, que seja relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre a lei ou ato normativo. Não basta, portanto, que o ato normativo atente contra preceito fundamental. Segundo a lei, é indispensável que haja controvérsia constitucional a respeito do ato normativo impugnado e, pior ainda, que seja relevante seu fundamento. A contrário, ainda que o ato normativo viole preceito fundamental, se sobre ele não houver controvérsia constitucional ou se esta não repousar sobre fundamento relevante, descaberia a arguição.

Em tese, concebe-se um ato normativo que, apesar de infringente de preceito constitucional fundamental, não tenha suscitado controvérsia constitucional. A incompatibilidade do ato normativo com a Constituição nem sempre é aferida de imediato. A lei, apesar de vigente, pode demorar a produzir efeitos. Ainda que os gere desde logo, aqueles que os sofrem nem sempre dispõem de condições de avaliação de sua constitucionalidade, ou, até mesmo, podem não ter se apercebido de sua invalidade. A controvérsia constitucional pode emergir exatamente com a arguição de descumprimento de preceito fundamental, não havendo amparo para ser erigida à condição de pressuposto de sua propositura. Essa exigência é inconstitucional: afronta o § 1°do art. 102, da Constituição, e também o devido processo legal substancial (CR, art. 5°, LIV).

Difícil, no entanto, é conceber ato normativo, que tenha ensejado controvérsia quanto a sua conformidade com preceito fundamental, cuja polêmica não seja relevante. Se a controvérsia sobre a higidez constitucional de ato normativo tiver por suporte sua (in) compatibilidade com preceito fundamental, a divergência instaurada é, por sua própria natureza, de relevância inegável. Ou, então, não se trata de dissenso relacionado a preceito constitucional substancial. Se o dissenso não envolver interpretação e aplicação de preceito fundamental, a arguição será incabível por não caracterizado como tal o preceito tido por vilipendiado e não pela irrelevância de seu fundamento.

A ADPF encontra campo fértil para tornar-se um instrumento eficaz de controle abstrato de constitucionalidade, sempre que algum ato administrativo de qualquer dos Poderes Públicos, inclusive municipais, atente contra preceito fundamental da Constituição. Ela é o remédio para evitar ou reparar lesão a preceito dessa natureza, sempre que a ameaça ou a efetiva lesão resulte de ato do Poder Público, consoante deflui do caput do art. 1° da Lei 9.882, de 1999.

A ADPF foi erigida pelo constituinte como instrumento de controle da obediência a preceitos fundamentais constitucionais, sempre que inviável a propositura da ação direta de inconstitucionalidade. Sua finalidade é o respeito à integridade desses preceitos, tidos como normas essenciais do arcabouço jurídico. Se o legislador merece aplausos ao eleger como objeto da ADPF ato do Poder Público capaz de causar lesão a preceito fundamental, ele deve ser censurado, quando, tratando-se de ato normativo, pretende submeter seu cabimento à existência de controvérsia constitucional sobre referido ato e à relevância de seu fundamento.

Não se pode olvidar que atos do Poder Público, ainda que não normativos, irradiam seus efeitos sobre significativa parcela do contingente dos administrados. A arguição prevista no § 1°, do art. 102 da Constituição, e regulada pela Lei 9.882, de 1999, na medida em que deve evitar que esses atos venham a consolidar lesões a preceito fundamental ou deve reparar as que eventualmente tenham se verificado, é contribuição valiosa para a tão almejada redução do número de processos judiciais.

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Sobre o autor
Antonio Joaquim Ferreira Custódio

Advogado. Procurador do Estado de São Paulo aposentado. Autor de "Constituição Federal Interpretada pelo STF" (Juarez de Oliveira, 9ª edição).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Leis municipais: controle abstrato de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2231, 10 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13295. Acesso em: 23 abr. 2024.

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