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A superação do princípio da unicidade da sentença e a nova modalidade de julgamento antecipado da lide

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01/09/2009 às 00:00
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2 O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DA LIDE

O reconhecimento jurídico de um pedido pode ocorrer de forma total ou parcial, sendo que, a conseqüência direta da primeira hipótese é a extinção do processo, com a resolução do mérito da causa. Por outro lado, se este reconhecimento se der apenas de forma parcial, como pressuposto ter-se-á a existência de um pedido suscetível de fracionamento, de modo que, a exigência de um único julgamento para este pedido mostra-se desnecessária, frente a possibilidade de satisfação da pretensão em diferentes momentos. Outrossim, o mesmo acontece nas demandas em que entre os pedidos cumulados não há qualquer vínculo, ou seja, um pedido não é prejudicial do outro ou dos outros. Nestes casos, se um dos pedidos apresentados pelo autor, ou parcela destes, puder ser apreciado sem a necessidade de dilação probatória, consoante as previsões do art. 330 do Código de Processo Civil [18], não há justificativa para que esta apreciação não seja feita de imediato, apenas porque é imprescindível a instrução dos demais pedidos. Ora, se parcela do direito pleiteado pela parte autora se mostra incontroverso, ou seja, não mais subsiste o litígio, inexiste razão para procrastinar sua resolução (JORGE, 2003, p. 68-70).

Neste sentido, aliás, cumpre observar o Código de Processo Civil Italiano que prevê em seu art. 277, inciso II, a possibilidade da decisão de um colegiado limitar-se apenas a algumas demandas, caso não seja necessário ulterior instrução [19]. O que ocorre na espécie pode ser resumido nas palavras de Luiso (apud DALL’ALBA, 2005, p. 366): "A sentença exaure de maneira completa o pedido de tutela relativo a uma demanda, e no que diz respeito a essa sentença é definitiva, porque a sentença sucessiva, relativa a uma demanda diversa, não absorve a anterior sentença [..]" [20].

Muito embora o Código de Processo Civil vigente não contemple de forma expressa a possibilidade de um julgamento antecipado parcial da lide, já restou demonstrado que não há óbice à sua aplicação. Pelo contrário, como destaca Mitidiero (2004, p. 170), em algumas passagens o próprio código afirma a existência de sentenças sucessivas em um mesmo processo, como ocorre na ação de prestação de contas, em que, primeiramente, se reconhece o dever de prestar contas, o que não extingue a demanda, mas sim, dá início à prestação de contas propriamente dita. De igual modo ocorre nas ações de demarcação e divisão, onde a sentença que declara procedente o pedido demarcatório, ou então, divisório, ordena o prosseguimento do feito (SILVA, 2002, p. 15-6).

Outrossim, freqüentemente o juiz profere uma decisão parcial com fundamento nos incisos do art. 269 [21] do Código de Processo Civil. Nestes casos, o ato do magistrado tem o conteúdo de sentença, na medida em que resolve o mérito da causa, todavia, não extingue necessariamente o processo [22], que prosseguirá seja para a realização de atos executivos, na hipótese de tratar-se de uma ação executiva lato sensu, ou para o julgamento dos demais pedidos (WAMBIER, 2006, p. 60).

A mesma solução observa-se, também, da aplicação do art. 273, § 6º do Código Processual Civil, inserido no nosso ordenamento jurídico, conforme já citado, através da Lei n. 10.444, de 07 de maio de 2002, instituto que faculta ao juiz decidir antecipadamente a parcela da lide que se mostra incontroversa, ou seja, quando inexistir oposição ao(s) ponto(s) suscitado(s) pelo demandante, e cuja análise dar-se-á em momento oportuno.

Assim, tem-se que "[...] a resolução do mérito ou decisão acerca do pedido formulado pela parte autora poderá constar de um provimento final ou antecipatório". (CUNHA, 2004, p. 7). Na primeira situação, ao resolver o mérito, o magistrado encerra ao mesmo tempo, o procedimento em primeira instância, ao passo que no segundo caso, resolve-se parte do mérito, porém, sem extinguir o procedimento adotado na primeira instância jurisdicional, prosseguindo-se a demanda para a realização dos demais atos destinados à solução dos outros pedidos não examinados, o que reforça a idéia de que não é o momento em que a decisão é proferida que tipificará o provimento, mas sim, o seu conteúdo.

Destarte, sempre que possível, poderá o magistrado resolver parcialmente o mérito da causa, decidindo definitivamente um ou mais pedidos, da demanda, ou parcelas destes, que estão prontos para serem julgados, com o que estará tratando de forma diferenciada os direitos evidentes, evitando que o autor espere mais do que o necessário para a concretização do seu direito (MARINONI, 1997, p. 107).

2.1 O § 6º DO ART. 273 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Como já expendido, o Estado, detentor do monopólio da jurisdição, procura dirimir os conflitos em que há interesse resistido, ou seja, quando os pontos suscitados pela parte autora em sua petição inicial forem contestados pela parte adversa, de modo que a demanda passa a ter um ponto controvertido que deverá ser solvido na sentença. Desse modo, enquanto houver resistência da parte demandada, mantém-se a necessidade de se obter uma prestação jurisdicional. Banda outra, uma vez cessada a resistência, corolário lógico é a extinção do processo, com a prolação de uma sentença (CUNHA, 2002; DIDIER JR., 2002, p. 718).

Partindo-se destas premissas, Marinoni (2003, p. 130) sustentou por longo período que se um direito, ou parcela deste, mostrar-se incontroverso no curso de um processo em que é imprescindível a instrução probatória para investigar a existência do outro direito, é necessário que este processo seja dotado de uma técnica que, atuando internamente, possibilite a realização imediata deste direito incontroverso [23]. Outrossim, justificava sua reclamação no fato de considerar injusto obrigar o demandante a esperar a realização de um direito não mais resistido, tendo em vista que, uma vez assegurado o direito de acesso à justiça, corolário será que a tutela jurisdicional pretendida seja concedida em um prazo razoável [24].

Neste contexto, foi editada a Lei Federal n. 10.444/02 que, dentre outras inovações, acrescentou o § 6º ao art. 273 do Código de Processo Civil, conferindo-lhe a seguinte redação: "A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso" (BRASIL, 2006, p. 634). Ora, "[...] se o tempo já é um ônus demasiadamente pesado para o processo, ele só se justifica diante da controvérsia" (DORIA, 2003, p. 82). Onde não mais existir questão controvertida, a demanda se reduz à mera aplicação do direito. Segundo Didier Jr. (2002, p. 716-7), foi a melhor alteração legislativa ocasionada pela reforma processual [25], desde que aplicada de acordo com a sua finalidade, qual seja, fracionar a causa, de modo a possibilitar a resolução parcial do mérito quando um pedido, ou parcela deste, mostrar-se incontroverso.

Ao discorrer sobre o tema, Doria (2003, p. 83-4) traça um paralelo afirmando que o instituto analisado trouxe para o processo de conhecimento o que já era possível no processo executivo: a satisfação da parte do crédito não impugnada. Dispõe o § 2º do art. 739 do Código de Processo Civil que prosseguirá a execução em relação à parte que não foi objeto de embargos, haja vista que sobre ela não persiste mais discussão. Inclusive, pode-se verificar a aplicação deste dispositivo na decisão da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, onde foi determinada a expedição de precatório tão somente em relação à quantia incontroversa da execução:

EXECUÇÃO DE SENTENÇA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. VALORES INCONTROVERSOS. LEVANTAMENTO. POSSIBILIDADE. Cabível a expedição de precatório, mesmo após a novel redação, dada pela EC n.º 30/00 ao §1º do art. 100 da CR/88, em relação à parte incontroversa do montante da execução, porquanto deve ser a mesma considerada como correspondente à sentença transitada em julgado. (TRF4, AG 2006.04.00.027263-4, Terceira Turma, Relator Vânia Hack de Almeida, publicado em 11/10/2006) (DORIA, 2003, p. 83).

Consoante se verifica, o preceptivo legal avança um pouco mais em relação à tutela antecipada até então conhecida, haja vista que, embora seja anterior à decisão que extinguirá o procedimento cognitivo em primeiro grau de jurisdição [26], não se trata de tutela fundada em cognição sumária ou em razão de verossimilhança. A cognição é exauriente, visto que a lide foi analisada em toda sua profundidade, não carecendo a matéria de maior elucidação. Haverá a entrega definitiva da pretensão do autor por prestação jurisdicional de mérito específico e limitado, depois de e quando superado o contraditório da fase postulatória (BOLDRINI NETO, 2004, p. 1; JORGE, 2003, p. 69).

E como não se trata de provimento antecipatório, a ele não se aplicam os requisitos da antecipação de tutela, prevista no art. 273 caput, e incisos, do Código de Processo Civil: prova inequívoca, verossimilhança das alegações, fundado receio de dano [27], abuso de direito de defesa e manifesto propósito protelatório. Também não se mostra necessário observar o perigo da irreversibilidade [28], já que não se trata de tutela de urgência, e o requerimento da parte. "Os únicos requisitos para a sua aplicação são: a) a incontrovérsia de um pedido formulado, ou de parcela dele; b) a desnecessidade de realização de prova em audiência para determinado pedido, ou de parcela dele" (JORGE, 2003, p. 73).

Além disso, tendo em vista que o regime de formação da coisa julgada está intimamente ligado com a natureza da cognição a respeito das questões postas à apreciação do magistrado (em uma análise sob o aspecto vertical, já exposto), a decisão proferida, já que lastrada em cognição exauriente, estará apta a ser imunizada com o manto da coisa julgada material [29] (DIDIER JR., 2002, p. 718-9).

Muito embora o legislador não tenha acolhido expressamente a hipótese de julgamento antecipado parcial da lide, a técnica é perfeitamente aplicável, tanto que já foi e continua sendo utilizada pelos magistrados gaúchos, atentos à necessidade de alcançar aos que se socorrem do Poder Judiciário uma resposta célere e efetiva, como se verifica da análise das seguintes decisões:

Apelação Cível. Embargos do Devedor. Execução de título judicial. Preliminar. Obstáculo Judicial a inviabilizar à parte o acesso aos autos no decurso do prazo recursal. Reconhecimento da justa causa que implica a restituição integral do prazo, ainda mais porque, no caso concreto, o lapso temporal fixado pelo juiz implicou a redução do prazo para interposição da apelação de quinze para cinco dias. Mérito. Não correspondência entre os valores cobrados pelo embargado e o título executivo. Hipótese de excesso, não de nulidade da execução, a ser dirimido nos próprios embargos. Possibilidade, ademais, de resolução parcial do mérito, nos termos do art. 273, § 6º, DO CPC, relativamente ao contrato de crédito fico, pois já nos autos elementos suficientes para a apuração do valor devido. Cabível a incidência de correção monetária, ainda que não tenha constado no título executivo, por aplicação analógica da súmula n. 254 do STF. Multa reduzida ao percentual contratado. Preliminar rejeitada. Recurso provido. Unânime. (Apelação Cível n 70010713543, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Luiz Pozza, Julgado em 09/06/2005) (RIO GRANDE DO SUL, 2006).

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Ação de indenização por danos materiais e morais. Processual Civil. A não quantificação do pedido, relativamente aos danos morais, não implica a inépcia da inicial, presumindo-se que o autor deixou sua fixação ao arbítrio judicial. Pedidos cumulados. Possibilidade de ser proferida sentença parcial, em caráter definitivo, atacável via apelação, relativamente ao pedido que não demanda dilação probatória. Lições da Doutrina Nacional e Estrangeira e da Jurisprudência. Direito da parte à duração razoável do processo e aos meios de assegurarem. Julgamento imediato do pedido de indenização por danos materiais, com instrução do pedido de danos morais. Pedido apreciado parcialmente procedente. (Processo n 001/1.05.2267650-6, 5ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central, Comarca de Porto Alegre, Juiz Prolator: Pedro Luiz Pozza, 14 de março de 2006) (MULTIJURIS, 2006, p. 57).

Em ambas as decisões proferidas pelo Juiz de Direito Pozza, no primeiro caso, acompanhado por seus pares e, no segundo, de forma singular, vislumbra-se a correlação com a melhor doutrina. As soluções encontradas, não apenas adaptam-se à letra do Código Processual Civil, como também apresentam a melhor solução prática, na medida em que resolvem definitivamente, em cognição plena, o pedido incontroverso. Corolário lógico, prestam uma tutela jurisdicional rápida e efetiva [30] (DALL’ALBA, 2005, p. 368).

Desse modo, tem-se que, se a decisão tomou por base o reconhecimento parcial do pedido, ou então, na hipótese de cumulação de ações, o reconhecimento integral de uma das demandas, este provimento judicial concessivo de efeitos fáticos, não obstante interlocutório de mérito, não será provisional, mas sim, satisfativo e definitivo, sendo vedado, por conseguinte, ao magistrado modificar o conteúdo decisório, quando prolatar a decisão subseqüente. "Nesse caso, estamos diante, na realidade, não de tutela antecipada, mas de verdadeiro julgamento antecipado e fracionado da lide, com execução imediata da decisão em sua parte incontroversa [...]" (FIGUEIRA JUNIOR apud CUNHA, 2004, p. 16).

Nesta seara, tendo em vista que não haverá encerramento de toda a atividade jurisdicional em primeira instância, já que restará a parcela do mérito não decidida, surge o questionamento quanto ao recurso cabível contra esta decisão. Neste ponto, os doutrinadores dividem opiniões entre o cabimento de agravo de instrumento, apelação, ou então, de uma nova modalidade a ser implementada no sistema recursal brasileiro: a apelação por instrumento (JORGE, 2003, p. 79).

Didier Jr. (2002, p. 719), embora defenda que ocorre na espécie um verdadeiro julgamento antecipado parcial da lide, entende que o recurso cabível será o de agravo, de instrumento ou retido. Além disso, compreende que é possível, inclusive, que a resolução parcial do mérito seja feita por relator, em grau de recurso, quando então caberá o agravo interno, dirigido ao colegiado. Também Cunha (2004, p. 13-4) defende que a sentença que julga antecipadamente o mérito, através da aplicação do § 6º do art. 273 do Código de Processo Civil, desafia o agravo, mas tão-somente na forma retida. Acrescenta o jurista que esta decisão, por não encerrar o procedimento como um todo, tem os contornos de uma decisão interlocutória, e que, não sendo a inconformidade da parte submetida desde logo ao conhecimento do Tribunal, será iniciada a execução do julgado, de modo que não terá qualquer utilidade a insurgência interposta na forma retida.

Já Paulo Afonso de Souza Sant’Anna (2.008, p. 442) sustenta que as questões de mérito devem ser reexaminadas por meio de apelação, ainda que resolvidas no curso processo. Dessa forma, a solução que se apresenta é a apelação por instrumento, utilizada por analogia do art. 525 do Código de Processo Civil.

Neste diapasão, necessário que se diga que não há violação ao princípio da taxatividade recursal, na medida em que os recursos existentes são apelação e agravo. Não há dois agravos, mas sim, duas formas de interposição, ou seja, por instrumento e retido. Logo, não há necessidade de alteração legislativa para interposição de recurso de apelação por instrumento, mas tão somente utilização analógica da forma já prevista para o recurso de agravo.

Dessa forma, garantir-se-á o prazo de 15 dias para interposição do recurso e a possibilidade de embargos infringentes, assim como a existência de revisor no julgamento e a faculdade de sustentação oral pelo procurador do recorrente. Preserva-se, assim, o princípio da igualdade, já que a mesma decisão (de mérito) não pode ter tratamento recursal diverso apenas em razão do momento procedimental em que foi proferida.

Banda outra, não havendo recurso, ou esgotado todos os recursos possíveis, sobrevirá o trânsito em julgado da decisão, com o que poderá ser executada definitivamente. Tem-se, pois, uma nova espécie de título executivo judicial. Entretanto, como ressalta Didier Jr. (2002, p. 721) pode restar alguma dificuldade operacional de executar tal decisão, já que o processo terá seu curso normal quanto ao restante do mérito não analisado. Nesse caso, sugere o jurista que deve ser extraída uma "carta de decisão", a ser autuada em apartado, como nos casos de execução provisória, observando-se, contudo, o rito do cumprimento de sentença, hoje disposto no art. 475-J do Código de Processo Civil.

2.2 A DECISÃO DEFINITIVA FACE A INCONTROVÉRSIA DO PEDIDO

Prescreve o dispositivo em comento que é possível julgamento antecipado parcial, ou então, como denomina Didier Jr., a resolução parcial do mérito, quando houver incontrovérsia de um pedido ou de parcela dele. Ressalta-se, porém, que a incontrovérsia aqui examinada difere daquela prevista no inciso III do art. 334 do Código de Processo Civil [31], que diz respeito apenas aos fatos e tem por efeito a dispensa de dilação probatória. Aqui, a incontrovérsia diz respeito ao objeto do processo (DIDIER JR., 2002, p. 718).

A redação do dispositivo justifica-se em razão de que nem sempre sobre os fatos incontroversos incidem as conseqüências jurídicas pretendidas pela parte autora. Mesmo não havendo controvérsia acerca da situação fática, poderá o pedido, por ausência de fundamento legal, não estar apto a gerar um decreto de procedência, o que impossibilita a antecipação pretendida. Por outro lado, se além de incontroverso o fato, sobre ele repousar regra de direito material que autorize um decreto de procedência, estará autorizado o julgamento parcial e antecipado (VAZ, 2006, p. 130-1).

Além disso, para que seja possível a aplicação deste instituto, é imprescindível que o pedido, quando único, possa ser cindido, ou então, que os pedidos cumulados admitam satisfação em diferentes momentos. Não se mostrando viável a fruição do bem da vida, objeto da pretensão, em momentos diversos, resta desautorizada a cisão ou decomposição da demanda (VAZ, 2006, p. 131).

Voltando à análise da incontrovérsia parcial da procedência da ação e capaz de autorizar o julgamento antecipado, impende destacar que a situação pode surgir nos casos em que há autocomposição em relação a parcela do pedido, como ocorre no reconhecimento jurídico do pedido, na transação e na renúncia ao direito, todos de forma parcial, e respectivamente previstos nos incisos I, III e V, do art. 269 do Código de Processo Civil. De igual modo, é possível solver parcialmente o mérito da causa na hipótese do julgamento antecipado do art. 330 do Código de Processo Civil: a) quando ocorrer a revelia, contestação genérica ou confissão total e puder ser decidida de logo parte do mérito; b) quando um dos pedidos já puder se julgado, ainda que haja controvérsia fática, em razão da desnecessidade de dilação probatória (DIDIER JR., 2002, p. 718) [32].

Passa-se, então, a análise pormenorizada das situações em que se fará possível a aplicação do dispositivo comentado.

2.2.1 Hipóteses de cabimento

A demanda, à evidência, é a conjugação de três elementos: a) as partes, que são as pessoas que propõem a demanda e aquela contra quem esta demanda é proposta; b) a causa de pedir, que é o conjunto dos fatos constitutivos que podem vir a caracterizar o direito de que a parte autora se julga titular; e, c) o pedido, que constitui a pretensão formulada pela parte autora. Outrossim, os pedidos podem ser classificados em unitários, quando na petição inicial houver um único objeto almejado pelo demandante, decomponível ou não; e, cumulados, quando na exordial constar mais de um pedido (CUNHA, 2004, p. 4-5).

Tratando-se exclusivamente dos pedidos cumulados, vislumbram-se duas situações: cumulação própria e cumulação imprópria. A primeira, diz respeito à hipótese de mais de um pedido, sendo que o primeiro é somado aos demais. O que ocorre é a reunião de duas ou mais pretensões que poderiam ter ensejado processos autônomos. Ainda, poderá ser a cumulação própria subdividida em duas espécies diversas: simples e sucessiva. Será simples quando cada um dos pedidos formulados puder ser atendido de forma isolada. Já a sucessiva é aquela em que há vinculação entre os pedidos, de tal forma que somente poderão ser acolhidos os posteriores em caso de acolhimento dos pedidos imediatamente anteriores (ASSIS, 2002; TJÄDER, 1998, p. 34).

Banda outra, a cumulação imprópria verifica-se quando o autor formula mais de um pedido, sabendo que nem todos serão atendidos. Por sua vez, divide-se em alternativa, quando pela natureza da obrigação o devedor puder cumpri-la de mais de uma forma; e, eventual, ou subsidiária, quando os pedidos são formulados em seqüência para que, na hipótese de não atendimento do primeiro, seja acolhido o próximo. Em ambos os casos, "[...] os pedidos não se acrescentam uns aos outros, mas não são opções que substituem uma pela outra, operando a exclusão da substituída, o que não ocorre nas cumulações próprias" (TJÄDER, 1998, p. 36-8).

Observando-se as classificações supra infere-se que o § 6º do art. 273 do Código de Processo Civil aplica-se tão somente aos casos de cumulação própria, não alcançando as hipóteses de cumulação imprópria, já que para a cisão processual é imprescindível que os pedidos possam ser analisados de forma individual [33]. Caso se trate de pretensão única, o pedido deverá ser passível de decomposição, com o que poderá o juiz conceder apenas parte dele (CUNHA, 2004, p. 5-8).

Com efeito, partindo-se de tais concepções, tem-se que, uma vez interposta e recebida a ação, com pedido único ou cumulado, é a parte demandada citada para respondê-la, quando deverá rebater os pontos com os quais discorda e que serão objeto de análise pelo magistrado para então serem destrinchados e decididos por ocasião da sentença (CUNHA, 2004, p. 5).

Todavia, mesmo diante da citação válida, poderá o demandado não contestar a ação, quedando-se inerte, com o que incidirá o disposto no art. 319 do Código de Processo Civil, isto é, será o réu reputado revel e os fatos alegados pela parte autora presumir-se-ão verdadeiros. Ressalta-se, por oportuno, que a revelia não induzirá este efeito, consoante expressamente elencado no art. 320 do mesmo diploma legal, caso um dos litisconsortes passivos contestar a ação; o direito posto em análise for indisponível; ou, a inicial não trouxer documento indispensável à propositura da demanda. Sendo assim, somente nas hipóteses em que se verificar os efeitos da revelia em relação a parte da demanda, é que este direito (ou parcela deste) poderá ser julgado imediatamente (MARINONI, 2003).

Outrossim, situação similar ocorre quando o réu comparece em juízo e, contudo, não apresenta contestação. Ora, se o réu vem a juízo e não contesta a ação, assume uma posição que, a princípio, pode ser definida como ativa. Bem se sabe, um dos princípios que orienta o processo civil moderno é o que impõe aos litigantes um dever de colaboração com o juízo. Nesta seara, a parte que opta por não contestar, não só despreza este princípio, mas também coloca em risco a validade do princípio que diz caber ao réu manifestar-se precisamente sobre os fatos levantados pelo autor [34]. Desse modo, à semelhança do que ocorre na hipótese de revelia propriamente dita, deve o juiz conceder a tutela (MARINONI, 2003).

Por outro lado, poderá o réu contestar a demanda. Neste caso, deverá o demandado manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na exordial, sob pena de presumirem-se verdadeiros os fatos não impugnados [35]. Se o réu não contestar alguns dos fatos constitutivos de um direito alegado pelo autor, é inegável que estes fatos devem ser tidos como verdadeiros. Por conseguinte, não tendo o réu se desincumbido do ônus da impugnação específica dos fatos e o juiz entenda que dos fatos narrados decorre o direito pretendido, tal direito pode e deve ser realizado desde logo, inexistindo razão para aguardar-se a instrução probatória para o julgamento em conjunto com os outros pedidos, ainda controversos (CUNHA, 2004, p. 5; MARINONI, 2003).

Além destas situações já expostas, cabe o julgamento antecipado do mérito no caso de contestação genérica, a qual é equiparada por grande parte da doutrina à não-contestação para fins de aplicação deste instituto. Isso se dá pelo fato de que a regra contida no art. 302 do Código de Processo Civil determina que ao réu cabe manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial, o que afasta em definitivo a possibilidade de contestação genérica. E a inobservância da proibição de contestação por negação geral obviamente deve ser sancionada com a presunção de veracidade dos fatos afirmados pela parte autora [36] (MARINONI, 2003).

Poderá ocorrer também que a parte confesse como verdadeiros um ou mais fatos que lhes são desfavoráveis. A confissão, por evidente, diz respeito somente aos fatos, razão pela qual o juiz não fica adstrito a julgar contra o confesso, haja vista que nem sempre a um fato incontroverso decorrem os efeitos jurídicos pretensos, como já exarado (FORNACIARI JUNIOR apud MARINONI, 2003).

Por fim, terá aplicação o preceptivo legal quando houver o reconhecimento jurídico do pedido. Neste caso, o reconhecimento é do direito, o que impede o juiz de julgar propriamente o mérito do processo, visto que o processo deverá ser encerrado com resolução de mérito exclusivamente em virtude da admissão pelo réu, ainda que parcial, que ao autor assiste razão [37] (MARINONI, 2003).

Sem embargo, pode-se afirmar que, em havendo incontrovérsia ou confissão, ou ainda, dispensada a dilação probatória, o magistrado estará habilitado a proferir pronunciamento definitivo acerca da lide (ou parcela desta) posta a seu crivo, em decisão baseada em cognição exauriente, isto é, a decisão foi examinada em toda sua profundidade. (CUNHA, 2004; DORIA, 2003).

2.3 A QUEBRA DO PRINCÍPIO DA UNICIDADE DA SENTENÇA

A idéia de julgamento de todo o mérito da demanda em um único momento parte da premissa de que a instrução e o julgamento são concomitantes, com o que se observa que o julgador teve contato direto com as partes e testemunhas. Entretanto, como já afirmado, este princípio basilar do processo civil moldado por Chiovenda, o princípio da oralidade, esvaziou-se tanto na Itália como no Brasil. Isto ocorreu principalmente pela falta de estrutura do Poder Judiciário que, para dar conta das inúmeras demandas propostas, tornou impossível a concentração dos atos processuais, o que, por sua vez, gerou uma grande dificuldade para a implementação do princípio da identidade física do juiz, reduzindo os benefícios que poderiam ser trazidos pela imediatidade (MARINONI, 2004).

Nesta seara, ainda que o abandono da oralidade seja lamentado, não é crível manter intocado o princípio da unidade e da unicidade do julgamento. Ora, este ideal de julgamento único não pode, pela simples falência da oralidade, agravar a morosidade do processo civil, indo de encontro ao princípio da economia processual, que incentiva a cumulação de demandas. O acentuamento da demora da prestação judicial e o surgimento de demandas que exigem a pronta solução confortam a tese de que há direito fundamental à tutela jurisdicional tempestiva, de modo que, a concessão deste direito não pode ser adiada em virtude de dilações indevidas (MARINONI, 2004, p. 142-3).

Sendo assim, verifica-se que a prática forense demonstrou a necessidade de cisão do julgamento de mérito, e foi a inserção do § 6º ao art. 273 do Código de Processo Civil que sedimentou esta possibilidade de resolução definitiva e fracionada da causa, autorizando o magistrado a proferir uma sentença parcial de mérito, apta a produzir coisa julgada. O legislador pátrio, ao redigir este dispositivo, nada mais fez do que cumprir o seu dever de estruturar técnicas processuais aptas à realização do direito fundamental a uma efetiva tutela jurisdicional [38] (MARINONI, 2004, p. 473; MITIDIERO, 2005, p. 178-9).

Poderiam, ainda, os juristas contrários à cisão processual questionar o porquê de não ter o legislador ousado mais e contemplado expressamente o julgamento antecipado parcial da lide, preferindo acrescer o instituto ao art. 273 do Código de Processo Civil, que alberga a antecipação de tutela. Com efeito, é cediço que a antecipação de tutela e o julgamento antecipado da lide são institutos bem diferentes. Todavia, o que deve ser privilegiado neste caso é a exegese sistemática e teleológica dos dispositivos em comento, não se podendo considerar o caráter topográfico como elemento definitivo para desfigurar o instituto criado. Se assim não fosse, que utilidade teria o § 6º do art. 273 do Código Processual? O próprio caput da referida norma dispõe acerca de uma tutela antecipada atípica, genérica e inominada, sendo suficiente o preenchimento dos seus requisitos para a sua concessão, de modo que, a situação em análise enquadar-se-ia perfeitamente na hipótese de abuso do direito de defesa, prevista do inciso II. E como bem destaca Dinamarco, o que é o princípio da unidade e unicidade do julgamento senão apenas um dogma estabelecido no direito positivo que, inclusive, já foi desmistificado na sua origem, qual seja, o direito italiano (DINAMARCO apud, DORIA, 2003, p. 119; JORGE, 2003, p. 74-5; VAZ, 2006, p. 138).

Em vista do exposto, a outra conclusão não se pode chegar: a tutela jurisdicional pode ser prestada em diferentes momentos, ou seja, a pretensão da parte autora poder ser alcançada por meio de duas ou mais sentenças, por meio da aplicação do preceptivo legal analisado [39]. Por conseguinte, conseqüência inafastável da autorização legal para o julgamento antecipado parcial da lide é a superação do princípio da unidade e unicidade da decisão que resolve o mérito da causa (VAZ, 2006, p. 131).

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Mariana Helena Cassol

Bacharel em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASSOL, Mariana Helena. A superação do princípio da unicidade da sentença e a nova modalidade de julgamento antecipado da lide. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2253, 1 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13427. Acesso em: 6 mai. 2024.

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