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A superação do princípio da unicidade da sentença e a nova modalidade de julgamento antecipado da lide

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01/09/2009 às 00:00
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Sumário: Introdução. 1. O sistema processual brasileiro. 1.1. Provimentos judiciais na sistemática do código de processo civil de 1.973. 1.1.1. Sentenças. 1.1.2. Decisões interlocutórias. 1.2. A antecipação de tutela. 2. O julgamento antecipado parcial da lide. 2.1. O § 6º do art. 273 do código de processo civil. 2.2. A decisão definitiva face a incontrovérsia do pedido. 2.2.1. Hipóteses de Cabimento. 2.3. A quebra do princípio da unicidade da sentença. Conclusão.


INTRODUÇÃO

A Lei Federal n. 10.444, de 07 de maio de 2002, dentre outras modificações no Código de Processo Civil, acrescentou ao art. 273 o § 6º, possibilitando ao magistrado antecipar a tutela de mérito quando um ou mais dos pedidos cumulados mostrar-se incontroverso. O acréscimo foi com o propósito de minimizar os prejuízos sofridos pelo autor com a demora da prestação jurisdicional, seja pelo acúmulo de demandas, seja pela defesa meramente protelatória do réu.

Acrescentado o referido dispositivo e diante das discussões já presentes na doutrina, surgiu um novo questionamento: é possível, através da antecipação de tutela de mérito, ser prolatada uma sentença definitiva, sem que isto implique o término do procedimento em primeira instância? É justamente esta questão que se pretende responder no presente estudo. Para tanto, utilizar-se-á na abordagem o método dedutivo, através do qual será feita uma análise comparativa dos possíveis provimentos judiciais previstos pelo sistema processual brasileiro, com a finalidade de demonstrar a plausibilidade técnica de uma sentença parcial de mérito mediante a utilização dos mecanismos processuais existentes.

Assim, no primeiro capítulo, iniciar-se-á fazendo uma análise do sistema processual brasileiro e sua origem romana. Também será tratado do surgimento da relação jurídica e do conceito de processo, como um instrumento tendente à atuação da lei. Uma vez estabelecidas estas premissas, serão abordados os atos judiciais praticados pelo Estado-Juiz para a outorga da tutela jurisdicional, definidos no art. 162 do Código de Processo Civil como sentenças, decisões interlocutórias e despachos, adentrando, desde já, na discussão acerca da viabilidade da sentença parcial e definitiva no nosso ordenamento jurídico. Além disso, discorrer-se-á a respeito do instituto da antecipação de tutela, que possibilita o adiantamento dos efeitos da futura sentença de procedência, e que foi implantado no direito processual brasileiro ainda no ano de 1994, como mecanismo de combate à lentidão do processo.

Por sua vez, o segundo capítulo versará sobre o julgamento antecipado parcial da lide, a sua previsão no direito estrangeiro, e as passagens em que o próprio código de processo civil admite sua existência, ainda que não se forma expressa. Na seqüência, será aludido o § 6º do art. 273 do Código de Processo Civil, como técnica de resolução parcial do mérito da causa, a partir de uma decisão fundada em cognição exauriente e juízo de certeza. Admitido o julgamento antecipado parcial do lide em face da incontrovérsia do pedido, mostrar-se-ão as hipóteses em que se fará possível a aplicação do dispositivo comentado, quais sejam: quando houver o reconhecimento jurídico do pedido, transação, renúncia, revelia, contestação genérica, confissão ou ainda, quando for desnecessária a dilação probatória com relação a um dos pedidos, ou parte destes, observando-se, em todos os casos, a cumulação de pedidos, se existente.

Ao final, demonstrar-se-á a quebra do princípio da unidade e unicidade da sentença, sedimentada pela inserção do § 6º ao art. 273 do Código de Processo Civil, com o que se terá a pretensão da parte autora (ou do réu em situações específicas) satisfeita em diferentes momentos, através de sentenças sucessivas. Esta cisão do julgamento do mérito da causa possibilitará o tratamento diferenciado aos direitos evidentes, concretizando o direito fundamental a uma efetiva tutela jurisdicional.


1 O Sistema Processual Brasileiro

Na busca da identidade do sistema processual brasileiro é necessário ter em vista a classificação doutrinária dos sistemas contemporâneos, definidos em grandes famílias jurídicas, agrupadas de acordo com os elementos em comum que as identificam. Nesse sentido, René David descreveu os três grandes grupos de sistemas jurídicos: a) a família romano-germânica, da qual faz parte o direito brasileiro; b) o sistema socialista; c) e o sistema ligado a common-law. Estas grandes famílias sofrem recíprocas e profundas influências, a partir da intensificação das relações sociais, econômicas e culturais da população, o que justifica a existência de traços fundamentais que unem o direito processual civil brasileiro à sua origem romana e, ao mesmo tempo, distingue-o por força de influência não-romanas (SILVA, 2006).

Com efeito, o direito romano, em sua formação, era marcado por duas características basilares. A primeira, diz respeito à confusão do direito com o misticismo religioso. A revelação do direito era segredo dos pontífices, a quem cabia o julgamento das lides de natureza privada. Já a segunda particularidade refere-se ao fato de que a intervenção de um terceiro imparcial no litígio só se fazia possível depois que o cidadão que se julgasse com direito já o tivesse exercido privadamente, de forma que ao magistrado cabia ratificar o exercício privado do direito. [01] Nota-se, portanto, uma inversão, que no dizer de Silva, "[...] nada mais é do que a expressão particular de um fenômeno de índole geral que tem marcado, como uma espécie de princípio superior, imanente ao fenômeno jurídico processual, toda a evolução do direito, até nossos dias" (2006, p. 13).

Contudo, as raízes romanas do nosso direito processual civil não são ligadas a este direito clássico, mas sim ao direito romano tardio, dominado pelos imperadores cristãos do Oriente no período em que o cristianismo se consolidou como religião universal da Europa. Este novo direito valia-se das categorias e instituições próprias do direito romano clássico, porém, dava-lhes outro sentido, tomando por base os princípios romano-cristãos, principalmente a idéia de moderação e clemência [02] (SILVA, 2006).

Esta nova concepção trouxe mudanças significativas nas instituições processuais, introduzindo novas categorias que encontravam albergo nos ideais cristãos, como a idéia de que o devedor encontrava-se em situação de inferioridade. Com isso se observa que a seriedade com que eram tratados os devedores no direito romano primitivo mudou de tal forma que este demandado passou a ser protegido contra as investidas privadas dos titulares de direito.

O processo de conhecimento surge, pois, como o pilar de sustentação do sistema, sendo que o direito do autor só pode ser exercido depois de exaustivamente provado sua existência, prevalecendo o princípio da precedência da cognição sobre a execução.

Assim, a partir do conflito de interesses entre titulares de um direito tutelado pelo Estado, surge a relação jurídica. Uma vez afastada a defesa privada, que era levada a efeito pelo próprio ofendido e que nem sempre resultava na vitória do real titular do direito, já que prevalecia o interesse do mais forte, o titular deste direito passou a exigir do Estado, através da instituição criada para este fim – o Poder Judiciário – a satisfação da pretensão resistida. E, desta relação surgida entre aquele que exige a proteção estatal, afirmando ser titular de um direito, e o próprio Estado, constituiu-se a então relação processual. Portanto, pode-se concluir que a relação processual civil é a relação jurídica de Direito Público formada entre o pretenso titular do direito reclamado e o Estado, posteriormente completada com a convocação do demandado (SILVA, 1998, p. 14).

Nesta seara, observa-se que ao titular do direito interessa que este conflito de interesses, qualificado por uma pretensão resistida, seja solvido pelo Estado. A composição da lide ocorrerá, então, pela incidência da lei reguladora da espécie de conflito, norma geral e abstrata, ao caso concreto. Para tanto, o Estado utiliza-se do processo, definido como uma série de atos coordenados, tendentes à atuação da lei, e que objetiva a composição da lide. Ao ente estatal cumpre, portanto, assegurar a ordem jurídica, compondo as lides ocorrentes por meio da atuação da lei. Trata-se da função jurisdicional do Estado, exercida caso a caso pelos órgãos jurisdicionais (SANTOS, 1998).

Do exposto verifica-se que a idéia de processo está intimamente ligada à atividade desenvolvida perante os tribunais para a obtenção da tutela jurídica estatal, com o fito de reconhecer e realizar a ordem jurídica e os direitos individuais por ela estabelecidos e protegidos. O processo judicial faz-se necessário, desse modo, para que os titulares de direitos ou de outros interesses legalmente protegidos pelo ordenamento jurídico estatal obtenham a realização do seu próprio direito, já que vedada a reação instantânea, em regime de autotutela, em face da formação do Estado e, conseqüentemente, do monopólio da jurisdição (SILVA, 1998).

Segundo Rocha (1996), processo é, então, uma série de operações praticadas pelos órgãos judiciários e pelas partes, imprescindíveis à concretização do direito ao caso concreto. E este instrumento da jurisdição apresenta como características fundamentais a complexidade, a dimensão temporal, a interdependência entre seus atos e a progressividade. Ampliando, é uma atividade complexa porque se compõe de mais de um ato; o que, por conseguinte, implica no seu desenvolvimento no transcorrer tempo; outrossim, essa sucessão de atos é interdependente, ou seja, o ato antecedente é pressuposto do conseqüente, pelo que se evidencia a progressividade em busca do resultado final. O processo é, pois, uma seqüência de atos preordenados à produção de um determinado resultado, com o que se cumprirá a função jurisdicional.

1.1 PROVIMENTOS JUDICIAIS NA SISTEMÁTICA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973

Integrante da relação processual como representante do Estado e condutor do processo, cabe ao juiz a outorga da tutela jurisdicional. Para tanto, pratica atos de diversa natureza, ordenando a marcha procedimental e a solução das questões incidentes, até o pronunciamento definitivo sobre a lide posta (WAMBIER, 2002, p. 169-70). Segundo Chiovenda (2000, p. 35) estes atos dividem-se em atividades de tomada de material de cognição, especialmente provas e atos administrativos, e provimentos. Estes, são atos decisórios, classificados pelo legislador brasileiro em sentenças, decisões interlocutórias e despachos, sendo que da própria redação do art. 162 do Código de Processo Civil pode-se extrair os respectivos conceitos.

De acordo com Wambier (2002, p. 173), a natureza do ato proferido pelo juiz é definida unicamente pelo seu conteúdo. Portanto, não é o momento em que o ato é praticado, nem tampouco o efeito que produz que definirá o tipo de provimento utilizado. [03]

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Os despachos, ou despachos de mero expediente, como costumeiramente chamados, caracterizam-se por não possuírem conteúdo relevantemente decisório. São atos de impulso e encaminhamento do processo, que não envolvem o direito discutido, nem os interesses dos litigantes, razão pela qual são irrecorríveis. Por conseguinte, caso haja controvérsia entre as partes em relação à prática ou realização de algum ato, o provimento não será mais um mero despacho [04], mas sim uma decisão interlocutória passível de ser atacada por meio de recurso [05] (WAMBIER, 2002, p. 172; SILVA, 1998, p. 202).

Partindo de tal afirmação, chega-se ao segundo ato praticado pelo magistrado, elencado no § 2º do art. 162 do Código de Processo Civil e denominado de decisão interlocutória. O citado provimento é definido como o "[...] ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente" (BRASIL, 2006, p. 623). Assim, é um ato provido de conteúdo decisório, e que consiste num pronunciamento jurisdicional tendente a solver um impasse momentâneo que impede o normal prosseguimento do processo (WAMBIER, 2002, p. 171).

Por fim, consiste a sentença, de acordo com a alteração trazida pela Lei n. 11.232/05 [06], em todo "[...] o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei" (BRASIL, 2006, p. 622). Tem-se assim que a sentença, julgando ou não o mérito do causa, é o ato que extingue o procedimento em primeira instância, seja com ou sem resolução de mérito (WAMBIER, 2006, p. 31).

De todo expendido observa-se que tanto as sentenças quanto as decisões interlocutórias e os despachos possuem um ponto em comum de convergência: o conteúdo decisório do ato, que é praticamente irrelevante no despacho, e basilar na sentença. Portanto, todos os provimentos jurisdicionais têm esta característica que proporciona à relação processual um desenvolvimento regular, com o intuito de findar a atuação no primeiro grau de jurisdição, que se dará com a sentença (ARAGÃO, 1976, p. 51).

1.1.1 Sentenças

O Código de Processo Civil de 1939 separava em duas categorias os provimentos finais, de acordo com a análise ou não do mérito da causa. Considerava-se sentença definitiva, contra a qual cabia o recurso de apelação, quando decidida as questões meritórias. Por outro lado, tratava-se de sentença terminativa, comportando o extinto recurso de agravo de petição as decisões que colocam fim à relação processual sem adentrar na análise do mérito. Já o Código de Processo Civil de 1973 assumiu uma postura pragmática e conceituou sentença simplesmente como o ato que encerra o processo, com ou sem resolução de mérito, tornando-se sempre apelável (ARAGÃO, 1976, p. 43; MITIDIERO, 2004, p. 168).

Outrossim, ainda que não haja a distinção legal quanto aos tipos de provimento final, doutrinariamente ainda se observa a classificação das sentenças em definitivas e terminativas. Silva definiu sentença como sendo o ato jurisdicional por excelência, através do qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa, de tal forma que se terá uma sentença terminativa, na hipótese em que a relação processual for extinta sem decisão acerca do mérito da causa, ou então, uma sentença definitiva, quando o mérito for analisado (SILVA, 1998, p. 200).

Todavia, a definição de sentença estabelecida pelo Código de Processo Civil demonstrou-se equivocada, na medida em que este ato encerra o procedimento em primeiro grau de jurisdição, se que isto importe em extinção do processo. Aliás, o equívoco mostra-se evidente nas hipóteses de ações executivas lato sensu [07], já que, a sentença, ao invés de findar o processo, dá início a uma nova fase processual, direcionada à atuação executiva do direito declarado. Além disso, com a reforma realizada pela Lei n. 11.232/05 o princípio da autonomia entre processo de conhecimento e executivo foi praticamente eliminado do direito processual civil brasileiro, na medida em que, havendo condenação ao pagamento de quantia certa, a teor do disposto no art. 475-J do Código de Processo Civil, o seu cumprimento depende apenas do requerimento do credor, com o que se dará início às atividades executivas no mesmo processo. Desta forma, o fato de não haver recurso contra a sentença apenas implicará na extinção da fase cognitiva do processo [08] (MITIDIERO, 2004; WAMBIER, 2006).

Por tais razões, a definição de sentença contida no art. 162, § 1º do Código de Processo Civil foi alterada também pela Lei n. 11.232/05, de tal forma que a sentença passou a ser identificada tão somente pelo seu conteúdo, que vem disposto nos art. 267 e 269 do Código de Processo Civil. A referida alteração acabou de vez com a concepção errônea de que a sentença extingue o processo [09] (WAMBIER, 2006).

Não obstante a recente inovação, Silva (2002, p. 20) ao debater acerca das decisões interlocutórias e sentenças liminares já havia concluído que sentença é o provimento que se pronuncia sobre o direito, pondo fim ao procedimento, ou então, encerrando a controvérsia a respeito de uma das ações cumuladas, prosseguindo-se o feito para tratamento da porção da lide não apreciada pela sentença parcial. Outrossim, citando Chiovenda, para o qual sentença definitiva é a que se pronuncia sobre a demanda judicial, enfatizou que o contrário desta sentença definitiva não será sentença provisória, mas sim sentença parcial. Portanto, toda vez em que o magistrado se manifestar sobre o mérito da causa, seja acolhendo ou rejeitando o pedido, estará proferindo uma sentença parcial, embora sem encerrar inteiramente o procedimento [10].

Desta forma, pode-se dizer que existe a possibilidade de ser prolatada uma sentença definitiva sem que isto implique o término do procedimento em primeiro grau, o que, aliás, é trazido por Chiovenda: "[...] se a prestação principal do juiz pode satisfazer-se em vários momentos, como na hipótese de cumulação de ações, toda sentença que se pronuncia sobre uma das demandas, ou sobre parte da demanda, é definitiva, conquanto parcial" (2000, p. 279), de modo que se vislumbra a superação do princípio da unidade e unicidade do julgamento, um dogma do direito positivo [11].

Cumpre destacar, outrossim, que esta sentença denominada parcial produz coisa julgada e somente se distingue da sentença definitiva por não encerrar inteiramente o procedimento em primeiro grau de jurisdição. Tanto na sentença definitiva, quanto na parcial, o juiz profere uma decisão sobre o mérito da causa, de tal forma que o ponto decidido não mais poderá ser discutido pelos litigantes e nem o juiz poderá sobre ele emitir novo julgamento, já que todo e qualquer provimento definido como sentença é definitivo (SILVA, 2002, p. 21).

De todo expendido, verifica-se que em nosso ordenamento jurídico a noção de sentença definitiva se coaduna com a idéia de sentença parcial, desde que compreendido que a sentença não é o ato que extingue o processo, mas sim, o provimento jurisdicional pelo qual o juiz diz o direito [12], pondo fim ao procedimento ou, ao menos, encerrando a controvérsia a respeito de um dos pedidos cumulados (DALL’ALBA, 2005, p. 366).

1.1.2 Decisões Interlocutórias

Partindo-se da concepção de que o processo é uma série temporal de atos entre si conjugados, visando um objetivo comum, é natural que no curso desta relação processual surjam inúmeras questões que demandem a resolução imediata pelo magistrado. Tais pronunciamentos não representam o encerramento do processo ou do procedimento em primeiro grau de jurisdição, mas apenas possibilitam o desenvolvimento regular do processo, impulsionando-o até o seu término, com a sentença. Tratam-se, pois, de decisões interlocutórias, que resolvem questões incidentes e, por isso, são dotadas de cunho decisório, o que implica conseqüentemente na possibilidade de serem atacadas por meio de recurso (SILVA, 1998; WAMBIER, 2002).

Para Aragão (1976, p. 48-9) decisão interlocutória nada mais é do que um despacho, sendo inócua a classificação dos atos jurisdicionais trazida pelo Código Processual Civil em vigor. Esclarece o jurista que se os pronunciamentos fossem divididos apenas em sentenças e despachos lograria melhor êxito já que, tomando por base o julgamento da lide, sentença é o ato que põe termo ao procedimento, enquanto os despachos são todos os demais provimentos que têm por escopo encaminhar o processo para a sentença. Outrossim, estes despachos variam somente de intensidade, sendo que em alguns casos o magistrado soluciona incidentes que poderiam ou não impedir a regular marcha do processo, tratando-se das então chamadas decisões interlocutórias; em outras situações, apenas impulsiona o feito, o que seriam os despachos de mero expediente.

Todavia, conforme justifica Mitidiero (2004, p. 171-2), da análise do sistema adotado pelo Código de Processo Civil é imprescindível a diferenciação entre despachos e decisões interlocutórias. A interlocutoriedade pressupõe a necessidade de um passo adiante, seguindo-se o curso do processo após a sua prolação.

A esse respeito, Silva, analisando a obra de Freitas, destaca que decisão interlocutória era tida como a sentença que apenas decidia questão relativa à ordem processual, de modo que era chamada sentença interlocutória. Ainda, subdividia-se em simples, quando estava limitada ao ponto sobre o qual era proferida; ou então, mista, caso prejudicasse a questão principal. Com efeito, a partir desta afirmação verifica-se que o conceito estava intimamente ligado ao fato desta decisão preceder a sentença definitiva, desimportando a natureza da matéria (SILVA, 2002, p. 4).

Impende ressaltar, outrossim, que o conceito de decisão interlocutória vai além do esboçado no Código de Processo de Civil em vigor, que a descreve como "[...] o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente" (BRASIL, 2006, p. 622). A definição está atrelada a um princípio basilar do direito processual civil, o princípio da oralidade. Isso se explica fundamentalmente pelo fato de que, sendo impossível concentrar-se numa única audiência o inteiro tratamento da demanda, a freqüência com que as questões incidentes aparecem, num dado sistema processual, só tendem a aumentar, já que escassa a comunicação verbal. Portanto, este aumento ocorre na mesma proporção em que o sistema se afasta da oralidade e da concentração dos atos, tornando-se ordinário (SILVA, 2002, p. 3).

As decisões interlocutórias vêm a solver, desse modo, as divergências momentâneas que impedem o regular andamento do feito, variando de acordo com as peculiaridades do litígio, do procedimento e da fase procedimental (WAMBIER, 2002).

1.2 A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

A inserção do instituto da antecipação de tutela no direito processual brasileiro foi sugerida por Silva durante o 1º Congresso Nacional do Direito Processual Civil, realizado em Porto Alegre/RS, em julho de 1983. Entretanto, a inovação somente foi implantada em nosso ordenamento jurídico através da reforma processual trazida pela Lei n. 8.952, de 13 de dezembro de 1994. Antes disso, já integrava ordenamentos jurídicos de vários países europeus, como Itália, França, e Portugal, com o fim precípuo de desencorajar os litigantes que buscavam procrastinar o processo (CARNEIRO, 2002).

Com efeito, pode-se afirmar que a sua introdução no ordenamento vigente serviu não só para evitar o abuso do direito de defesa, mas também e principalmente, para impedir que a demora na prestação jurisdicional, decorrente do alongamento do processo no tempo, ocasionasse o perecimento das pretensões do autor. A morosidade processual sempre implicou em prejuízos tanto na esfera patrimonial como na de direitos personalíssimos, de tal forma que o combate à demasiada duração do processo tornou-se uma necessidade, ou melhor, como afirmou Baptista (2003, p. 245), "[...] o empenho pela adequação do processo à sua função instrumental de realização do Direito" (CARNEIRO, 2002).

Sendo assim, com o fito de tornar a prestação jurisdicional efetiva, satisfazendo de imediato os interesses do demandante, o legislador deu nova redação ao art. 273 do Código de Processual Civil de 1973, criando o instituto denominado antecipação da tutela, que nos dizeres de Passos é a possibilidade de "[...] obter-se decisão de mérito provisoriamente exeqüível, mesmo antes de cumpridos todos os trâmites do procedimento que a ensejara em condições normais" (1998, p. 9).

O instrumento é, portanto, uma forma de antecipar os efeitos da futura sentença de procedência. E antecipar os efeitos da tutela, como bem explica Zavascki (1997, p. 82-5), é adiantar no tempo as eficácias potencialmente contidas na sentença de mérito. O que é antecipado é tão só o efeito, seja executivo ou mandamental, da futura sentença que acolher a pretensão inicial, assim entendido como aquele que tem aptidão para produzir efeito no plano real, de modo que não se trata de julgamento antecipado da lide [13]. Na tutela antecipada o mérito do pedido é apreciado pelo juiz, mas na forma de uma decisão interlocutória, passível de modificação ou de revogação e que apresenta, ainda, como elementos caracterizadores a sumariedade, a urgência e a satisfatividade fática (SALVADOR, 1995).

O primeiro caractere refere-se ao nível vertical de cognição [14]: "[...] a tutela provisória é formada à base de cognição sumária, no que diz respeito à profundidade. Enquanto na tutela definitiva se busca juízo de certeza, aqui a tutela jurisdicional é conferida à base de juízos de verossimilhança" (ZAVASCKI, 1997, p. 30). E esta cognição sumária, por ser superficial, é sempre provisória, passível de revisão, razão pela qual não produz coisa julgada material (CUNHA, 2004, p. 10).

Outrossim, justifica-se esta decisão fundamentada em um juízo de probabilidade na urgência da medida, que objetiva não só dar efetividade ao processo, como também salvaguardar os interesses da parte autora, evitando-se com isso, um prejuízo com a demora ou até mesmo, o perecimento o bem visado na demanda (PASSOS, 1998).

Uma vez concedida a antecipação de tutela com base em uma cognição superficial, em razão da urgência da medida, corolário lógico será a necessidade deste provimento ser reversível e revogável, considerando-se, principalmente, que no decorrer do processo a situação fática pode sofrer alterações e os motivos que ensejaram a concessão da medida podem não mais subsistirem. Sendo assim, admitindo-se a antecipação do que será irreversível [15], estar-se-á transformando em definitiva uma decisão que dessa natureza não se pode revestir, sob pena de comprometer quase que por inteiro o próprio instituto da antecipação de tutela, já que se tornaria inútil o prosseguimento do próprio processo. E frente a esta preocupação, o legislador estabeleceu no § 2º do art. 273 do Código Processual Civil que "[...] não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado" (BRASIL, 2006, p. 634), do que se conclui que tanto para a concessão quanto para a execução da medida antecipatória deve-se atentar para a segurança jurídica da parte oposta, de modo que seja garantida a possibilidade de reversão ao status quo (PASSOS, 1998, p. 44; ZAVASCKI, 1997, p. 97-8).

E partindo-se da idéia de que a decisão deve ser passível de reversão, o que se tem é a faculdade do provimento que antecipar os efeitos da tutela poder ser modificado ou revogado a qualquer tempo, desde que o juiz fundamente seu ato, consoante dispõe o § 4º do art. 273. Assim, caso desapareçam os pressupostos da manutenção da medida concedida, poderá o magistrado, proferindo outra decisão, alterar o provimento inicial, com o que é ratificada a característica provisória da medida (WAMBIER, 2002, p. 336).

Destaca-se, outrossim, que para a concessão da tutela antecipada é imprescindível o requerimento da parte, entendendo como tal àquela que postula a tutela definitiva, podendo ser autor, reconvinte, opoente, substituto processual, ou ainda, o réu nos casos de ação dúplice, sendo vedado ao magistrado conceder de ofício. Outrossim, o requerimento poderá ser feito na própria exordial ou no curso do processo, inclusive perante os Tribunais, caso em que o pedido será dirigido ao relator (ZAVASKI, 1997).

Além do requerimento da parte, são pressupostos concorrentes para o deferimento da medida a prova inequívoca e a verossimilhança do direito alegado. Carneiro (2002, p. 21) citando Alvim, conceitua prova inequívoca como aquela que apresenta um alto grau de convencimento, ou seja, cuja autenticidade é provável. Ainda, Watanabe (apud Carneiro, 2002, p. 22) acrescenta que prova inequívoca é diferente de fumus boni iuris do processo cautelar: "O juízo fundado em prova inequívoca, [...] que não apresenta dubiedade, é seguramente mais intenso que o juízo assentado em simples ‘fumaça’, que somente permite a visualização de mera silhueta ou contorno sombreado de um direito. Já o "[...] juízo de verossimilhança repousa na forte convicção de que tanto as ‘quaestiones facti’ como às ‘quaestiones iuris’ induzem a que o autor, requerente da AT, merecerá prestação jurisdicional em seu favor" (CARNEIRO, 2002, p. 26) [grifo do autor].

Portanto, para que seja possível o deferimento da medida antecipatória, é necessário que "[...] existam condições para uma possível decisão de mérito no processo em que ela é postulada, [...] ou já exista decisão de mérito, à qual se deseja acrescentar o benefício da antecipação, para que se torne, de logo, provisoriamente exeqüível" (PASSOS, 1998, p. 26).

Banda outra, são pressupostos alternativos, que se agrega, aos concorrentes acima expostos, o receio de dano irreparável ou de difícil reparação, previsto no inciso I do art. 273 do Código de Processo Civil, e o abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu, inciso II do referido dispositivo legal. O primeiro pressuposto consiste no risco concreto, iminente e lesivo de ocorrer para o autor danos que serão eliminados se antecipada a tutela de mérito. O risco é objetivo e independente do comportamento do ré (PASSOS, 1998, p. 32; ZAVASCKI, 1997, p. 76-7).

Já o abuso de direito de defesa é a demonstração que o réu utiliza indevidamente o processo, na tentativa de alongá-lo no tempo. Neste caso, a antecipação de tutela é desvinculada dos requisitos da urgência e do dano, e ligada tão-somente à idéia de que a aparência do bom direito exsurge das afirmações do autor, aliada à desvalia evidente e à falta de consistência na defesa apresentada pelo demandado. Por fim, manifesto propósito protelatório por parte do réu corresponde a sua atuação infundada, que vai além do abuso de direito, revelando-se, por exemplo, na provocação de incidentes manifestamente improcedentes e na injustificada resistência ao regular andamento do processo. A conduta do demandado é temerária, passível de condenação por litigância de má-fé (CARNEIRO, 2002, p. 33-4; PASSOS, 1998, p. 33-4).

E a soma de todos estes requisitos: o pedido da parte interessada, a prova inequívoca da verossimilhança da alegação e o fundado receio de dano ou abuso de direito da parte contrária, conduzem à antecipação dos efeitos da tutela, permitindo-se, assim, a fruição, ainda que parcial, do bem da vida reclamado pelo autor da demanda, o que se pode chamar de satisfatividade fática (ZAVASCKI, 1997, p. 97).

Não obstante a complexidade da medida antecipatória, a reforma processual ocasionada pela Lei n. 10.444, de 07 de maio de 2002, veio a aperfeiçoar este instituto, ao alterar a redação do § 3º do art. 273, e acrescentar os §§ 6º e 7º. A primeira modificação fez um ajuste terminológico ao dispositivo, substituindo a expressão execução pelo termo efetivação, reforçando a idéia de que a medida antecipatória se opera no mesmo processo em que é proferida, por provimentos mandamentais ou executivos, podendo o magistrado, inclusive, valer-se das dispositivos referentes à tutela específica das obrigações de fazer, não fazer, de forma que é prescindível o processo executivo [16] (DIDIER JR., 2002, p. 712-3; WAMBIER, 2005, p. 165).

Outrossim, a reforma processual ora analisada atendeu ao clamor da doutrina pela fungibilidade das medidas de urgência, trazendo economia e racionalidade ao processo. Que as medidas cautelares e as medidas antecipatórias da tutela são diversas não há dúvidas. Enquanto na decisão que toma por base o art. 273 do Código de Processo Civil o juiz antecipa, de forma total ou parcial, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, na medida cautelar é concedida uma providência destinada a conservar uma situação fática até o provimento final, sendo que a referida providência não corresponde àquela que será outorgada pela decisão final. Entretanto, com a inclusão do § 7º não mais se mostra necessária a instauração de um processo para obtenção de um provimento acautelatório, é possível agora a concessão de medidas cautelares no bojo de processos de conhecimento, incidentalmente [17] (DIDIER JR., 2002, p. 721-3; WAMBIER, 2002, p. 330-1; ZAWASCKI, 1997, p. 46).

Todavia, a maior alteração trazida pela Lei n. 10.444/02 não se restringiu ao aperfeiçoamento do instituto, mas implicou na criação de uma nova técnica que permite ao magistrado antecipar a tutela pretendida na inicial em razão da incontrovérsia parcial do objeto do processo. Trata-se da inserção § 6º ao art. 273 do Código de Processo Civil, com o seguinte teor: "[...] a tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso" (BRASIL, 2006, p. 634), que será objeto de estudo no próximo capítulo.

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Sobre a autora
Mariana Helena Cassol

Bacharel em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASSOL, Mariana Helena. A superação do princípio da unicidade da sentença e a nova modalidade de julgamento antecipado da lide. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2253, 1 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13427. Acesso em: 24 abr. 2024.

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