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A preservação da vítima e das testemunhas no pórtico da ação penal

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02/09/2009 às 00:00
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A informação ao réu sobre o rol de testemunhas da acusação como requisito da denúncia (art. 41 do Código de Processo Penal) pode colocar vítima e testemunhas de forma desprotegida perante réus.

1. INTRODUÇÃO

        A cada dia, com o aumento da criminalidade, a legislação processual penal procura dar proteção às vitimas e testemunhas. Instrumentos normativos foram criados com esta finalidade, em especial, a Lei nº 9.807, de 13 de Julho de 1999.. Programas de governo são implementados para dar exequibilidade a essa lei. No entanto, o avanço protetivo, sensível inclusive na novel modificação do Código de Processo Penal pelas leis nº 11.690 e 11.719, ambas de 2008, olvidou-se de um "detalhe" de ordem mais prática do que teórica: a informação ao réu sobre o rol de testemunhas da acusação como requisito da denúncia, constante no artigo 41 do Código de Processo Penal. Tal exigência legal pode colocar vítima e testemunhas de forma desprotegida perante réus. Por essa razão, necessária a adoção de medidas que, sem afetar o direito ao contraditório e à ampla defesa, restrinjam o acesso a dados pessoais da vítima e das testemunhas.


2. DA DENÚNCIA E SEUS REQUISITOS

        A denúncia é a peça portal que, uma vez recebida, desencadeia a ação penal pública ou ação penal pública condicionada à representação. É a peça motriz do procedimento judicial penal [01]. É "peça sucinta, de acusação direta e objetiva. Nela o Promotor de Justiça narra a conduta delitiva do agente, sem discussão ou análise dos elementos informativos contidos no expediente que lhe servem de sustentação, nem referência às alegações do indiciado, vítima e testemunhas. É uma peça processual afirmativa. Deve, portanto, conter uma síntese dogmática de um fato punível extraído do inquérito policial ou de outra fonte idônea de informação" [02].

        Na definição de TOURINHO FILHO [03], é o ato processual por meio do qual o Estado-Administração, por seu órgão competente, que é o Ministério Público, se dirige ao juiz, dando-lhe conhecimento de um fato que reveste os caracteres de infração penal e manifestando a vontade de ser aplicada a sanctio juris ao culpado.

        Seus requisitos estão descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal, in verbis:

        Art. 41.  A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.

        Como lembra TOURINHO FILHO, "sendo caso de denúncia, o Promotor faz uma petição que deve conter: a) o Juiz a quem é dirigida; b) a exposição do fato criminoso com todas as circunstâncias e sua qualificação jurídico-penal (classificação); o nome e a qualificação do réu; o pedido para sua citação; c) o pedido de condenação; e, finalmente, f) a indicação das provas que pretenda produzir para demonstrar a veracidade da imputação, inclusive o rol de testemunhas. Em seguida, deve o Promotor datá-la e assiná-la" [04]. (grifos não originais)

        Esclarecem os doutrinadores que a denúncia deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, atentando para o esclarecimento das expressões latinas quis (sujeito ativo do crime), quibus auxiliis (os autores e os meios empregados), quid (o mal produzido), ubi (o lugar do crime), cur (os motivos do crime), quo modo (a maneira pela qual foi praticado) e quando (o tempo do fato).

        MARCELLUS POLASTRI LIMA classifica os requisitos da denúncia como essenciais ou necessários, os quais, não podem faltar na peça narrativa, sob pena de sua inépcia. São eles o sujeito ativo, devidamente qualificado, a exposição do fato criminoso, sendo que a conduta, seja na forma ativa ou omissiva, deve espelhar o verbo do tipo penal, podendo apresentar elementos circunstanciais e normativos deste, o bem jurídico lesado ou resultado e o tipo subjetivo, dolo ou culpa. [05]. Para o autor, a indicação dos dispositivos da lei penal em que o denunciado esteja incurso, o procedimento adequado, o pedido de condenação e o rol de testemunhas, em que pese deverem constar da segunda parte da denúncia, que é especificamente técnica, não são essenciais, porque o juiz pode dar nova definição jurídica ao fato e a prova testemunhal pode ser substituída por outros meios de provas, podendo, inclusive, o juiz ouvir as testemunhas por iniciativa própria. Quanto ao pedido de condenação, este seria implícito, pois se foi ofertada a denúncia, somente esta poderia ser a providência almejada, sendo que tal pedido será ratificado em fase de alegações finais [06].


3. DO ROL DE TESTEMUNHAS

        Como já visto, de acordo com a dicção do artigo 41 do Código de Processo Penal, a denúncia, quando necessário, deverá conter o rol de testemunhas. Significa dizer que tal rol não é elemento obrigatório da peça portal, pois poderão ser utilizados todos os meios probatórios permitidos em Direito, sendo que há crimes que dispensam a prova testemunhal, podendo ser demonstrados por outros meios probatórios.

        Como ressalta HÉLIO TORNAGHI, "a prova da acusação pode ser feita por todas as maneiras previstas em lei. Não vigora qualquer limitação, a não ser no que respeita ao estado das pessoas, que se prova de acordo com a lei civil", [Código de Processo Penal, art. 155, parágrafo único [07]] "mas se o autor quiser apresentar prova testemunhal, o momento oportuno para arrolar testemunhas é o da denúncia ou queixa" [08].

        Usualmente, o rol de testemunhas é colocado no corpo da denúncia, ao final da peça, após o pedido de recebimento e condenação e antes da data e da assinatura do Promotor de Justiça. Isto porque o momento processual para arrolar testemunhas, pelo autor da ação penal, é no momento do oferecimento da denúncia [09]. Vencido este, não pode mais o fazer, em respeito ao princípio da preclusão consumativa.

        Neste sentido, GUILHERME DE SOUZA NUCCI, ao comentar o artigo 41 do Código de Processo Penal, afirma que o rol de testemunhas é facultativo, ressaltando que "a obrigatoriedade, que vincula o órgão acusatório, é o oferecimento do rol na denúncia, razão pela qual, não o fazendo, preclui a oportunidade de requerer a produção de prova testemunhal" [10].

        Apenas em relação aos peritos e assistentes poderá o Promotor de Justiça requerer a oitiva em momento posterior, cuidando para que o mandado, a final expedido, observe o decêndio legal exigido antes da audiência de instrução e julgamento. Desta forma, tais profissionais não precisam estar arrolados desde o oferecimento da peça portal [11], podendo sua indicação dar-se ainda que ultrapassadas as fases da denúncia e da resposta à peça acusatória,quando, a rigor, é feito o arrolamento de pessoas que serão inquiridas em Juízo [12].

        Por pertinente, cabe a transcrição do artigo 159, §5º, inciso I, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008:

        Art. 159.  O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior.

        § 5º  Durante o curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia: 

        I – requerer a oitiva dos peritos para esclarecerem a prova ou para responderem a quesitos, desde que o mandado de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas sejam encaminhados com  antecedência  mínima de 10 (dez) dias, podendo apresentar as respostas em laudo complementar; 

        Destarte, segundo o Código de Processo Penal, o rol de testemunhas deverá estar contido na denúncia. Não faz menção, contudo, a seus requisitos intrínsecos, como qualificação das vítimas e testemunhas, com fornecimento de endereço e profissão. Só que a qualificação destas passou a ser a orientação dada a Promotores de Justiça, inclusive externada em Manuais de Atuação, provavelmente por analogia ao artigo 407 do Código de Processo Civil, que exige contenha o rol, para ações civis, o nome, profissão, residência e local de trabalho das testemunhas.

        Nesse sentido, diz o Manual de Atuação para Promotores de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) o seguinte:

        "A vítima e as testemunhas devem ser qualificadas de modo a facilitar sua identificação, devendo constar o local onde poderão ser encontradas. Em se tratando de policiais, civis ou militares, mais importante do que a residência é indicar a repartição ou unidade em que servem" [13].

        Dessa forma, quando o réu recebe a cópia da denúncia para fins de defesa escrita, nela usualmente estão o nome da vítima, seu endereço, sua qualificação, o mesmo ocorrendo em relação às testemunhas.


4. DA PROTEÇÃO DE VÍTIMAS E TESTEMUNHAS EM PROCESSOS CRIMINAIS

        A recente reforma do Código de Processo Penal procurou proteger o ofendido, protegendo sua intimidade, vida, honra e imagem. Para tanto, inclusive, através da Lei nº 11.690/ 2008, inseriu o §2º no artigo 201 do Código do Rito Penal, no sentido de que  o ofendido fosse comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem. 

        Muito foi elogiado o dispositivo, pela especial atenção à vitima, até então relegada a segundo plano. Tanto que, para RÔMULO MOREIRA [14], citando García-Pablos, "o Direito Penal contemporâneo acha-se unilateralmente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual".

        A finalidade de tal informação seria prevenir-lhe e possibilitar-lhe cautelas pessoais ante a liberação do autor da ofensa a seu bem jurídico [15], se fosse o caso, e o conhecimento da sentença, para que, querendo, fizesse uso da apelação, nos crimes de competência do Tribunal do Júri ou do juiz singular, mesmo que não tivesse se habilitado como assistente, na ausência de tal recurso pelo Ministério Público, como possibilita o artigo 598 do Código de Processo Penal [16].

        A reforma processual penal, efetuada pela Lei nº 11.690/2008, determinou, igualmente, que o Juiz de Direito tomasse "as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação." Segundo explica RODRIGO DE ABREU FUDOLI, "os abusos da imprensa foram o mote evidente para a inclusão de tal norma, eis que os meios de comunicação social às vezes elegem as notícias que divulgam não pelo seu interesse social, mas pela sua potencialidade de incremento de venda de jornais e de índices de audiência televisiva, nem sempre se preocupando com a intimidade dos envolvidos na relação processual penal, seja o réu, seja a vítima".

        Contudo, não há efetiva proteção do ofendido se não houver proteção deste também contra o infrator. Por tal razão, sustenta FUDOLI que ‘embora a lei não tenha trazido essa previsão de forma expressa, é evidente que o Juiz poderá também determinar o segredo de justiça em relação a dados que possam comprometer a segurança da vítima, determinando, por exemplo, seja extraída cópia de todas as peças das quais conste o endereço da vítima, colocando-se-as em envelope próprio guardado no Cartório, sendo que, na cópia que permanecerá nos autos, tais endereços serão riscados. Trata-se de medida extremamente conveniente quando há notícia de intimidações feitas pelo réu ou sua família à vítima, ou quando o réu é pessoa notoriamente perigosa. O fundamento para tal é o direito do cidadão (no caso, vítima) de exigir do Estado segurança e respeito à sua dignidade humana (Preâmbulo, art. 1º, III; art. 5º, "caput"; art. 6º, "caput"; e art. 144, "caput", todos da Constituição da República) [17].

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        Em relação a testemunhas, a pontual reforma do Código de Processo Penal, realizada pela Lei nº 11.690/2008, previu, no artigo 217, o sistema de teleconferência, se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo a prejudicar a verdade do depoimento. Na impossibilidade dessa forma, o réu será retirado da sala, prosseguindo-se na inquirição, com a presença do seu defensor, devendo tais providências e os motivos que as determinaram constar do termo de audiência.

        Como explica FUDOLI "esse abrandamento é legítimo, porque os auxiliares da Justiça (vítima e testemunhas) também merecem, ao lado do réu, a proteção do Direito Penal e do Direito Processual Penal, registrando-se não ser razoável que se exija de tais pessoas, que muitas vezes ficaram sob o jugo de uma arma de fogo empregada pelo réu, a prática de atos de heroísmo, sendo obrigadas a ficar frente e frente com esse réu sem qualquer anteparo a lhes proteger". Para o autor, a razão jurídica dessa norma é evitar que o réu influencie o depoimento da testemunha ou as declarações da vítima, o que se tornaria um obstáculo à produção probatória eficiente por parte da acusação e da defesa [18].

        A proteção do Código de Processo Penal, contudo, abrange o momento da oitiva da vítima e da inquirição das testemunhas, mas não abrange o momento compreendido entre recebimento de cópia da denúncia e realização da audiência de instrução e julgamento. Significa dizer que o denunciado recebe a cópia da denúncia com o rol de testemunhas, passando a conhecer seus nomes, endereços, qualificações profissionais. Ou seja, mesmo que não seja caso de inserção em sistema de proteção legal a vítimas e testemunhas, porque até então o réu não efetuou ameaças, não há garantias de que, antes da audiência de instrução, não procure por elas e, com muito mais ênfase, após a audiência de instrução e julgamento. Imagine-se a situação de alegações finais orais convertidas em memoriais. O réu já ouviu todas as testemunhas e sabe quais podem ter peso na sua eventual condenação. Ou mesmo depois da sentença condenatória em audiência, com o direito de recorrer em liberdade. Tratando-se de réu preso, o que revela risco à ordem pública, outras formas de acesso indireto poderá ter para aproximar-se das vítimas e testemunhas.

        BRUNO CEZAR DA LUZ PONTES adverte que "atenção especial devem ter os crimes de ação penal privada, sobretudo os casos de estupro e o [antigo] atentado violento ao pudor, onde a coação para que a vítima não demonstre interesse na persecução penal é até uma atividade ‘normal’ do criminoso, especialmente quando há confronto de vítima e agente em diferentes níveis econômicos e sabendo que o depoimento da vítima, nestes crimes, vale quase como um testemunho, como tem deixado claro a jurisprudência, se comparado com outros indícios probatórios" [19].

        Por tal razão, MARCELO MEZZOMO sustenta que a qualificação por demais pormenorizada acaba por expor a testemunha, aconselhando, a fim de preservá-la e não comprometer o direito de defesa, a menção somente a dados essenciais, como nacionalidade, estado civil, nome e filiação, mencionando-se o endereço com alusão à página do inquérito ou termo circunstanciado em que se encontra [20].

        Esta pode ser uma alternativa, mas ainda não é suficiente. A retirada do rol de testemunhas da denúncia, com sua transferência para a cota, poderá auxiliar no intento de proteção de vítimas e testemunhas. Isto porque a cota não é encaminhada ao réu com o mandado de citação. Fica contida nos autos. Para acesso, o réu já terá constituído defensor, que poderá, inclusive, para fins da defesa escrita, valer-se exclusivamente da peça portal, sem necessidade de verificar o nome das testemunhas e vítima. Ou poderá tomar anotações de seus dados diretamente em consulta aos autos, mas não será, então, o Estado, aqui compreendidos o Poder Judiciário e o Ministério Público, que entregará a ficha completa das vítimas e testemunhas a réus perigosos e que contra elas podem atentar.

        Cabe recordar que a conduta criminosa atinge também a liberdade da vítima [21], mostrando-se um contrassenso a existência, de um lado, de uma lei de proteção a vítimas e testemunhas que cataloga, como medidas protetivas, a ocultação do endereço daquelas, mediante a transferência de residência ou acomodação provisória em local compatível, e a preservação da identidade, imagem e dados pessoais (Lei nº 9.807, art. 7º, incs. III e IV) e, de outro lado, a exigência de fornecimento ao réu do rol de testemunhas, com seus nomes, endereços e outros dados qualificatórios.

        Dir-se-á que a proteção a vítimas e testemunhas restringe-se àquelas que estão sendo coagidas ou expostas a grave ameaça em razão de colaborarem com a investigação ou processo criminal. Contudo, o comportamento preventivo do aparelho estatal, evitando o contato do réu com as vítimas e testemunhas, é sempre mais eficiente e menos oneroso do que as medidas adotadas a posteriori, quando a ameaça e a coação já se concretizaram. Ou ainda, bem mais grave, quando a pessoa esteja correndo sério risco de vida sem mesmo haver nenhuma ameaça ou coação, situação em que o simples perigo poderia funcionar como fundamento maior da proteção [22].

        Veja-se a situação que pode surgir a partir do artigo 367 do Código de Processo Penal, a revelia do acusado. Citado ou intimado pessoalmente, com cópia de denúncia e rol de testemunhas, deixa de comparecer, sem motivo justificado ou muda de residência sem comunicação do novo endereço ao juízo. O réu desaparece, em princípio, do raio de visão do aparelho repressor estatal, mas leva consigo a listagem com nome e endereço das vítimas e testemunhas, sem que estas tenham qualquer garantia inibitória, por parte do Estado, em relação à conduta de vindita daquele.

        Dessa forma, sugere-se que, na denúncia, quando do momento da indicação das provas que serão utilizadas pela Promotoria de Justiça, faça-se menção da existência de rol de testemunhas em anexo e que este venha a ser lançado na cota de oferecimento da peça portal. A cota deve ser distribuída concomitantemente com a denúncia. Com isto, estará atendida a exigência temporal: o rol de testemunhas foi apresentado no momento do oferecimento da denúncia. Igualmente, estará atendida a exigência formal da denúncia, pois na peça haverá menção ao rol, estando indicada a intenção promotorial de uso de prova testemunhal.

        Note-se que no processo cível, onde mais raramente há casos de atentados ou ameaças aos colaboradores da justiça, não há necessidade de indicação do rol de testemunhas na ação, somente a indicação das provas que serão usadas, tradicionalmente expressa pelo "protesto por utilização de todas as provas permitidas e admitidas em Direito, inclusive prova testemunhal". O rol pode ser ofertado, caso o juiz não fixe outro prazo, em até dez dias antes da audiência, no rito ordinário (Código de Processo Civil, art. 407). Não é comunicado ao réu, fica integrante do processo, contudo, à sua disposição. Nunca se sustentou que isto diminua a ampla defesa, impeça a contradita ou atente contra o contraditório.

        Razão teleológica não há para expor, em nome do princípio da ampla defesa e do contraditório, vítimas e testemunhas em processos criminais. O réu preso tem direito de conhecer a identificação dos responsáveis pela sua prisão ou por seu interrogatório policial (CF, art, 5, inciso LXIV), mas isto não significa que devam tais pessoas ser arroladas como testemunhas. Podem ser ou não. Logo, não há garantia constitucional que assegure ao réu preso conhecer as testemunhas, mediante o recebimento do rol ofertado pelo Ministério Público. Com o rol constante da cota, com as cautelas, ainda, de menção mínima de dados qualificatórios, desejavelmente nome completo e número de folha das peças informativos ou expedientes policiais em que eventualmente tenham prestado depoimento, cria-se um mecanismo a mais de proteção de sua identificação e, por conseguinte, de proteção a esses colaboradores da justiça, que não podem se furtar de depor (Código de Processo Penal, art. 206).

        Por outro lado, preservar-se-á a simetria do contraditório, atualmente rompida. Se a exigência de conhecimento do rol de testemunhas é para facilitar possível contradita, tem-se que a acusação não recebe cópia da defesa escrita, muito menos o rol de testemunhas da parte adversa. Se pretender conhecer o rol, deverá consultar os autos. Não há tratamento equivalente entre acusação e defesa se mantida a exigência de arrolamento no corpo da denúncia, sem que se exija do réu o fornecimento, ao órgão acusador, do próprio rol de testemunhas.

        De outra banda, a contradita, nos termos do artigo 214 do Código de Processo Penal, pode ser feita pelas partes, não sendo exclusiva do réu. Assim, por paridade de armas e em respeito ao princípio da igualdade das partes no processo penal, que é uma conseqüência do princípio do contraditório [23], o acusador deveria receber o rol de testemunhas da parte adversa, com toda qualificação a que foi obrigado a fazer constar no próprio rol ofertado. Afinal, como sustenta FUDOLI, "não se deve esquecer que o direito ao contraditório assiste não só ao réu, mas também ao autor, seja ele o Ministério Público - representando a sociedade -, seja ele o querelante" [24].

        Ainda, o interesse individual do réu de defesa de sua liberdade não pode preponderar sobre o interesse coletivo de descoberta da verdade [25], tampouco sobre o direito da vítima e da testemunha de proteção de sua vida e intimidade.

        Destaca-se que principia ser discutida a responsabilidade civil do Estado pela divulgação de dados pessoais em sites de Internet. Em 2003, em Heredia, na Costa Rica, representantes de diversos países da América Latina reuniram-se para discutir o tema "Sistema Judicial e Internet", para analisar as vantagens e dificuldades dos sites dos poderes judiciais na rede, os programas de transparência e a proteção dos dados pessoais. As conclusões foram expostas na Carta de Heredia, que aponta regras para o aprimoramento da Justiça Eletrônica, sob pena de causar sérios prejuízos aos jurisdicionados.

        Transcrevem-se, por oportuno, as regras 3 e 5 da Carta de Heredia:

        Regra 3. Será reconhecido ao interessado o direito de opor-se, mediante petição prévia e sem gastos, em qualquer momento e por razões legítimas próprias de sua situação particular, a que os dados que lhe sejam concernentes sejam objeto de difusão, salvo quando a legislação nacional disponha de modo diverso. Em caso de decidir-se, de ofício ou a requerimento da parte, que dados de pessoas físicas ou jurídicas estejam ilegitimamente sendo difundidos, deverá ser efetuada a exclusão ou retificação correspondente.

        Regra 5. Prevalecem os direitos de privacidade e intimidade, quando tratados dados pessoais que se refiram a crianças, adolescentes (menores) ou incapazes; ou assuntos familiares; ou que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a participação em sindicatos; assim como o tratamento dos dados relativos à saúde ou à sexualidade; (3) ou vítimas de violência sexual ou doméstica; ou quando se trate de dados sensíveis ou de publicação restrita segundo cada legislação nacional aplicável (4) ou tenham sido considerados na jurisprudência emanada dos órgãos encarregados da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais.

        Neste caso considera-se conveniente que os dados pessoais das partes, coadjuvantes, aderentes, terceiros e testemunhas intervenientes sejam suprimidos, anonimatizados [26] ou inicializados, salvo se o interessado expressamente o solicite e seja pertinente de acordo com a legislação. (grifos não originais)

        A vítima e a testemunha, em caso de publicação da denúncia, por exemplo, terão expostas sua identidade e endereço, sem que tenham solicitado sua divulgação. O mesmo poderá acontecer com a publicação da sentença, que permita revelar a identidade daquelas pela narração dos fatos. A busca de uma forma de harmonizar os institutos da intimidade e privacidade com a publicidade das decisões judiciais passa a ser um dos desafios dos Direitos Humanos na Era Digital [27].

        Recorda-se que a falta de oferecimento de rol de testemunhas não leva à inépcia da denúncia nem é causa de sua rejeição. Neste sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, ao proferir que a falta do rol de testemunhas, é falha grave, por certo, mas que não induz a inépcia. [28]

        Cabe referir o contido no artigo 395 do Código de Processo Penal a respeito da rejeição da denúncia ou queixa:

        Art. 395.  A denúncia ou queixa será rejeitada quando:

        I - for manifestamente inepta; 

        II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou  

        III - faltar justa causa para o exercício da ação penal. 

              Não há definição legal do que seja denúncia inepta. Trazendo-se subsidiariamente os ensinamentos do artigo 295, parágrafo único, da lei processual civil, considera-se a petição inicial inepta quando: a)I – faltar-lhe pedido ou causa de pedir; b)II - da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão; c)III - o pedido for juridicamente impossível; d)IV - contiver pedidos incompatíveis entre si.

        Logo, o oferecimento do rol de testemunhas na cota de oferecimento da denúncia não é causa de sua inépcia, se a própria oferta da denúncia sem rol de testemunhas não a torna inepta.

        O rol de testemunhas também não é pressuposto processual. Como sustenta AFRANIO SILVA JARDIM, os pressupostos para a constituição e regular desenvolvimento do processo são os mesmos, tanto no processo penal, como no civil ou do trabalho porque, ontologicamente, o processo é um só. Então, valendo-se da teoria geral do processo, verifica-se que os pressupostos processuais são de existência e de validade do processo. Sem os primeiros, o processo não chegaria a existir no mundo jurídico. Já os de validade condicionam o regular desenvolvimento do processo. Divididos, também, em subjetivos e objetivos, dizem respeito ao juiz (órgão investido de jurisdição, juiz competente e juiz imparcial) e relativos às partes (capacidade de ser parte, capacidade processual e capacidade de postular em juízo). Já os pressupostos objetivos são subdivididos em extrínsecos (inexistência de fatos impeditivos, como coisa julgada e litispendência) e os segundos referem-se à subordinação do procedimento às normas legais.

        Para que exista um processo penal, deve haver uma pretensão punitiva ou de liberdade, um órgão investido de jurisdição e partes que tenham personalidade jurídica, ao menos formal, no plano do processo. Para que seja válido, devem estar conforme a norma e não ter eficácia retirada por decisão judicial. O rol de testemunhas não é incluído como pressuposto processual nem de existência nem de validade, porque pode ser dispensado da denúncia, caso o Promotor não queira produzir prova oral. Logo, sua oferta na cota não pode ser tida como causa de rejeição da denúncia por falta de pressuposto processual.

        Por outro lado, a denúncia não poderá ser rejeitada, sob a alegação de falta das condições da ação, pelo único motivo do rol de testemunhas estar em anexo, na cota de oferecimento da peça proemial. As condições da ação penal são, em princípio, as mesmas do direito de ação civil, quais sejam: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade ad causam. Existem, porém, as condições específicas de procedibilidade, como, por exemplo, a representação do ofendido e a requisição do Ministro da Justiça na ação penal pública condicionada. Portanto, o rol de testemunhas não é condição da ação penal.

        Por fim, a justa causa como embasadora da rejeição da peça portal. Como sustentado por AFRANIO SILVA JARDIM, é necessário que a denúncia seja lastreada em um mínimo de prova, em um suporte probatório mínimo que contenha indícios de autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade [29]. Por evidente, a circunstância de estar o rol de testemunhas na cota de oferecimento da denúncia não retira o lastro probatório mínimo que autoriza a promoção da ação penal, já que os testemunhos que auxiliaram a formação da opinio delicti estarão no inquérito ou nas peças informativas que acompanham a denúncia.

        Dessa forma, a alteração locacional do rol de testemunhas não depõe contra a perfeição formal da denúncia, não a torna inepta, não retira pressuposto processual nem implica em falta de condições da ação penal. Sua presença, anexa à denúncia, ampara a justa causa da ação e traz contribuições para a proteção das vítimas e testemunhas, pela preservação de seus dados em espaço mais restrito de consultas.

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Sobre a autora
Karina Gomes Cherubini

Promotora de Justiça do Estado da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialista em Gestão Pública pela Faculdade de Ilhéus. Especialista em Direito Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHERUBINI, Karina Gomes. A preservação da vítima e das testemunhas no pórtico da ação penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2254, 2 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13428. Acesso em: 18 abr. 2024.

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