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Repercussão geral versus arguição de relevância

06/10/2009 às 00:00
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"O direito a um processo justo traduz-se em uma cláusula geral, técnica legislativa de todo aperfeiçoada ao constitucionalismo contemporâneo, cujos contornos exatos não podem ser vislumbrados a priori, desligados de casos concretos. Abstratamente, porém, conta com algumas bases mínimas, sem as quais não se pode reconhecer a sua existência. Seguramente, pois, não está diante de um processo justo, do devido processo legal processual brasileiro, se o formalismo processual não se configurar como um ponto de encontro de direitos fundamentais, albergando o direito à tutela jurisdicional efetiva, direito ao juiz natural, o direito à paridade de armas, o direito ao contraditório, o direito à ampla defesa, o direito à prova, o direito à publicidade do processo, o direito à motivação das decisões judiciais e o direito ao processo com duração razoável."

Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero na Obra Repercussão Geral no Recurso Extraordinário, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

No intuito de estabelecer a diferenciação entre a repercussão geral e a arguição de relevância, faz-se necessário observar, inicialmente, alguns correspondentes similares àquele primeiro instituto.

Consoante afirma Arruda Alvim, esta sistemática, doravante denominada de "filtragem de recursos", encontra institutos análogos em diversos países, a exemplo da Alemanha (Die Zullasung der Revision), dos Estados Unidos (writ of certiorari, previsto na Rules of the Supreme Court of the United States), da Argentina (gravidad institucional) e do Japão (instituto análogo ao writ of certiorari norte-americano) [01].

No Brasil, concebeu-se método semelhante quando da edição, no ordenamento constitucional anterior, da "relevância da questão federal no recurso extraordinário". Inclusive, pode-se acrescentar, ainda, um instituto do direito processual trabalhista ainda vigente, denominado de transcendência, requisito político de exame prévio de recurso de revista, previsto no art. 896-A da Consolidação das Leis do Trabalho [02].

De fato, a preocupação em estreitar a via dos recursos nos Tribunais Superiores e nas Cortes Constitucionais não é exclusividade do sistema judiciário brasileiro. A diminuição de acesso às Cúpulas dos Poderes Judiciários na ordem internacional é uma tendência recorrente da atualidade, tendo em vista o abarrotamento das pautas de julgamento em diversos países.

A "crise do Supremo Tribunal Federal" ou "crise do recurso extraordinário", fenômeno este que já perdurava antes mesmo do advento da Constituição Federal de 1988 [03], pôde ser vislumbrada ante o excesso de demanda suportada pelo Supremo Tribunal Federal nas últimas décadas. O recurso extraordinário, que deveria ser a materialização do controle de constitucionalidade concreto, acabou se tornando conhecido como o último meio de defesa da parte vencida, convolando uma habitualidade estimulada pelo nosso próprio sistema processual [04].

Neste contexto, sobretudo com vistas a suprimir essa crise do Poder Judiciário brasileiro, foram criados instrumentos de contenção de recursos, como a repercussão geral. Criada pela Emenda Constitucional n.º 45 de 8 de dezembro de 2004, que implementou a denominada "Reforma do Judiciário", a repercussão geral, apesar de instituto recente, ainda é objeto de comparação com outro instituto não mais vigente, a arguição de relevância.

Não obstante se considerar que a repercussão geral foi inspirada na arguição de relevância, instituída no antigo sistema processual, no sentido de reintroduzir filtros recursais no sistema processual brasileiro hodierno [05], é imprescindível observar que os dois institutos não podem ser confundidos [06].

A arguição de relevância foi criada com o escopo de permitir a interposição do recurso extraordinário nas hipóteses em que tal providência era vedada pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal [07]. Com efeito, a arguição de relevância caracterizava-se como "instituto que visava a possibilitar o conhecimento deste ou daquele recurso extraordinário a priori incabível, funcionando como um instituto com característica central inclusiva" [08]. A arguição de relevância, inclusive, chegou a ser comparada ao writ of certiorari quando ainda se especulava que esta seria a solução para se preservar o "Direito Nacional contra atentados graves por sua repercussão jurídica, moral, social, política ou econômica." [09]

Entretanto, as expectativas quanto ao sucesso da arguição de relevância restaram frustradas, haja vista que tal sistemática, contemplada pela emenda regimental n.º 2/85 do STF, dispunha de nítido caráter administrativo, no qual se criticava a falta de definição, a ausência de fundamentação das decisões, bem como o julgamento discricionário, sem participação das partes [10]. Sobre esse tema, inclusive, manifestou-se Evandro Leite no sentido de não ser justificável, "por mais alto que seja o grau de subjetividade do julgamento, a dispensa de motivação das decisões da Corte nas argüições de relevância (RISTF, art. 96), o que infirma a garantia do litigante de saber por que foi repelido." [11]

Nessa esteira, é pelo fato de a arguição de relevância ter sido objeto de diversas críticas no antigo sistema processual brasileiro que o instituto da repercussão geral buscou, em suas deficiências, aprimorar o sistema de filtragem recursal, proporcionando uma maior democratização e publicidade quando da análise de inexistência da repercussão geral. É, inclusive, nesse sentido que os dois institutos não podem ser considerados análogos.

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Em que pesem os objetivos remotos de unificação jurisprudencial nacional serem similares, a repercussão geral retrata, além disso, a necessidade de se evitar provimentos judiciais idênticos sobre a mesma questão constitucional, provendo, assim, uma maior racionalização judicial. Essas tônicas de eficiência, economia e celeridade processual são indicativas dos anseios da própria Reforma do Judiciário, proposta pela Emenda Constitucional n.º 45/2004.

Além disso, a repercussão geral "visa excluir do conhecimento do Supremo Tribunal Federal controvérsias que assim não o caracterizem" [12], uma vez que o quórum qualificado funda-se na questão constitucional que não tem repercussão geral [13], ao contrário da característica central inclusiva da arguição de relevância, que pretendia possibilitar o conhecimento do recurso extraordinário [14].

Quanto à finalidade, a arguição de relevância se prestava a debater matérias de recurso especial absorvidas, na época, pelo recurso extraordinário [15], temas, hoje, de competência do Superior Tribunal de Justiça. A repercussão geral, por outro lado, está afeta tão-somente à relevância da controvérsia constitucional, quando observada cumulativamente à transcendência dos interesses subjetivos [16]. Para a configuração da repercussão geral não há análise de relevância quanto à questão federal.

Quanto ao formalismo processual, a repercussão geral é apreciada em sessão pública, sendo obrigatório o julgamento motivado, previsão contida no art. 93, IX, da Constituição Federal, contrariamente à sessão secreta e com dispensa de motivação prevista pela arguição de relevância.

Por último, verifica-se que a exigência de quórum qualificado para deliberação e a irrecorribilidade acerca da decisão de existência ou não de repercussão geral também são diferenciais únicos e inovadores deste instituto [17].


NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. ALVIM, Arruda. A Emenda Constitucional 45 e a repercussão geral. Revista de Direito Renovar, n.31, p. 75-130, jan/abr 2005, p.85-91.
  2. ALVIM, Arruda, op. cit., p.85-91.
  3. PASSOS, José Joaquim Calmon de. "Da argüição de relevância no recurso extraordinário". Revista Forense. Tomo 5. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.593-594.
  4. MACEDO, Elaine Hazheim. Repercussão geral das Questões Constitucionais: nova técnica de filtragem do recurso extraordinário. Revista Direito e Democracia, v.6, n.1, Canoas, Editora Ulbra, 2005, p.86.
  5. MACEDO, Elaine Hazheim, op. cit, p.102.
  6. MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.30.
  7. MACEDO, Elaine Hazheim, op. cit., p.102.
  8. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel, op. cit., p.31.
  9. LEITE, Evandro Gueiros. A Emenda 2/85 (RISTF) e a boa razão. Revista dos Tribunais. São Paulo, 1987, V.615, p.10 Apud MACEDO, Elaine Hazheim. Repercussão geral das Questões Constitucionais: nova técnica de filtragem do recurso extraordinário. Revista Direito e Democracia, v.6, n.1, Canoas, Editora Ulbra, 2005, p.102.
  10. MACEDO, Elaine Hazheim, op. cit., p.103.
  11. LEITE, Evandro Gueiros, op. cit,, p. 15 Apud MACEDO, Elaine Hazheim, op. cit., p. 102.
  12. MANCUSO,Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 9.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.192.
  13. DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. Vol. 3. 3.ed. Salvador: JusPodivm, 2007, p.268.
  14. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel, op. cit., p.31.
  15. MACEDO, Elaine Hazheim, op. cit., p. 104.
  16. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel, op. cit., p.31.
  17. DIDIER JÚNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da, op. cit., p.270.
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Sobre a autora
Luciana Lombas Belmonte

Advogada e consultora jurídica em Brasília. Especialista em Direito Processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UniSUL e pós-graduanda em Prestação Jurisdicional pelo Instituto dos Magistrados do Distrito Federal IMAG/DF. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BELMONTE, Luciana Lombas. Repercussão geral versus arguição de relevância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2288, 6 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13622. Acesso em: 6 mai. 2024.

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