O legislador pátrio, ao inserir na Lei n.º 8.666/93 a obrigatoriedade da fase procedimental de habilitação dos interessados em contratar com a Administração Pública, buscou garantir ao Poder Público a avaliação em relação à reunião, pelos eventuais contratados, das condições mínimas exigidas para a execução do objeto, sendo, desse modo, preservada a segurança jurídica da avença, eis que considerada previamente a capacitação jurídica e técnica do interessado, bem como sua idoneidade.
Os requisitos a serem levados em conta pela Administração foram elencados taxativamente no art. 27 da Lei de Licitações, que assim dispõe:
Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:
I - habilitação jurídica;
II - qualificação técnica;
III - qualificação econômico-financeira;
IV - regularidade fiscal.
V – cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7° da Constituição Federal.
Por se tratar de procedimento que visa à avaliação do interessado no que diz respeito à sua idoneidade e capacidade de assumir obrigações contratuais perante a Administração na execução do objeto por esta almejado, é de se concluir que se trata de fase pré-contratual, pouco importando se o ajuste decorrerá de processo licitatório ou de sua dispensa ou inexigibilidade.
Assim, qualquer que seja o procedimento a ser adotado para a conclusão de uma avença, a Administração não poderá, em regra, dispensar a fase habilitatória, sob pena de nulidade do procedimento.
Ocorre, porém, que o legislador, visando à celeridade e desburocratização de determinados atos administrativos, previu certas exceções à regra, no §1º do art. 32 do ordenamento licitatório, a ver:
Art. 32 (...)
§1º A documentação de que tratam os arts. 28 a 31 desta Lei poderá ser dispensada, no todo ou em parte, nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão.
A esse respeito, a doutrina é uníssona no sentido de que houve um equívoco do legislador quando facultou a dispensa integral da documentação elencada nos artigos citados, haja vista a certeza de indispensabilidade dos documentos relativos à habilitação jurídica em qualquer hipótese de contratação, vez que ninguém é autorizado contratar se não possuir capacidade jurídica para tanto. Nesse sentido é a lição de Marçal Justen Filho [01]:
"O dispositivo induz, ainda, amplitude inocorrente. Podem ser dispensados determinados requisitos (tais como qualificação técnica, qualificação econômico-financeira e regularidade fiscal). Porém, a prova da habilitação jurídica nunca poderá ser dispensada. Logo e no mínimo, esse requisito é obrigatório em toadas as hipóteses, mesmo porque se não estiver presente sequer será válida a proposta apresentada."
De outro lado, também demonstrando o engano do legislador, o doutrinador Jessé Torres Pereira Junior [02] defende a indispensabilidade da prova de regularidade perante a seguridade social (art. 29, IV), a ver:
"Conquanto a lei consinta na dispensa de todos os documentos, pelo menos um não poderá dispensar a Administração: a prova de regularidade perante a seguridade social (art. 29, IV), porque a Constituição não distingue entre modalidades, espécies ou objetos quando proíbe o Poder Público de contratar pessoa jurídica em débito com a Previdência (art. 195, §3º). A dispensa total da documentação é inconciliável com a ordem constitucional, no concernente à prova da regularidade fiscal referente a débito previdenciário."
Nesse mesmo sentido é o posicionamento do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais [03]:
EMENTA: LICITAÇÃO. EXIGÊNCIA DE CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITOS JUNTO AO INSS E CERTIFICADO DE REGULARIDADE DO FGTS DEVEM CONSTAR DO EDITAL CORRESPONDENTE. TRATA-SE DE DOCUMENTO INDISPENSÁVEL.
(...)
"NO MÉRITO, respondo, em tese, à indagação apresentada, reproduzindo, em primeiro lugar, o art. 32, § 1º, da Lei 8666/93, alterada pela Lei 8883/94, que estabelece as hipóteses nas quais poderá ser dispensada a documentação relativa à habilitação jurídica (art. 28), regularidade fiscal (art. 29), qualificação técnica (art. 30) e econômico-financeira (art. 31), ‘verbis’:
‘Os documentos necessários à habilitação poderão ser apresentados em original, por qualquer processo de cópia autenticada por cartório competente ou por servidor da Administração ou publicação em órgão da Imprensa Oficial. § 1º - A documentação de que tratam os arts. 28 a 31 desta Lei poderá ser dispensada, no todo ou em parte, nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta-entrega e leilão.’
Em conformidade com o Dr. Jessé Torres Pereira Júnior, a norma ora enfocada é de caráter geral, por atender aos princípios da impessoalidade e da publicidade.
No tocante ao seu conteúdo, preleciona que ‘- O § 1º entrega à discricionariedade administrativa a dispensa, total ou parcial, da apresentação dos documentos previstos nos arts. 28 a 31, tratando-se de licitação mediante convite, concurso ou leilão, ou quando destinar-se a compra para pronta entrega do objeto. Neste último caso reside a inovação, que se justifica pela inutilidade de maiores cautelas se o material logo passará ao domínio da Administração, operando-se a tradição.’
E, prosseguindo, assevera que, ‘conquanto a lei consinta na dispensa de todos os documentos, pelo menos um não o poderá dispensar a Administração: a prova de regularidade perante a seguridade social (art. 29, IV) porque a Constituição não distingue entre modalidades, espécies ou objetos quando proíbe o Poder Público de contratar pessoa jurídica em débito com a Previdência (art. 195, § 3º). A dispensa total da documentação é inconciliável com a ordem constitucional, no concernente à prova da regularidade fiscal referente a débito previdenciário.
Nesse exato sentido, decidiu o Tribunal de Contas do Estado do Paraná, no processo relatado pelo Conselheiro João Feder, em 20.06.95. Senão vejamos:
‘Certificado de Regularidade do FGTS. Indispensável apresentação do documento exigido no inciso IV, do art. 29 da LF 8666/93, em todas as modalidades licitacionais bem como nas situações de dispensa e inexigibilidade, excepcionadas, tão-somente, as modalidades de concurso, leilão e concorrência para alienação de bens’ (RTCE/PR nº 144, abril/jun/95, p. 223, APUD Conselheiro Antônio Roque Citadini, IN "Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Públicas’, São Paulo: Editora Max Limonad Ltda., 1996, p.p. 224/5).
Em resumo, mesmo que a Administração, utilizando de seu poder discricionário, dispense os documentos concernentes à habilitação jurídica (art.28), à qualificação técnica (art.30) e à econômico-financeira (art.31), a documentação referente à regularidade fiscal (art.29) poderá ser dispensada, somente em relação aos incisos I a III, posto que a prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei (inciso IV), deverá ser feita, obrigatoriamente, nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão, haja vista a vedação constitucional constante do art. 195, § 3º, da Carta Federal, devendo tal exigência, consequentemente, ser inserida no Edital correspondente
." (grifos nossos)
Defendendo posição mais conservadora, Renato Geraldo Mendes [04] e Nyura Disconzi da Silva [05] afirmam que, mesmo sendo posicionamento isolado, consideram indispensáveis, ainda, as certidões comprobatórias de regularidade fiscal.
Segundo os autores do artigo "A habilitação nos procedimentos da dispensa e inexigência de licitação" [06], o fundamento está no princípio da igualdade, a ver:
"A exigência de demonstração da regularidade fiscal não é inconstitucional, tampouco representa forma de cobrança indireta de tributos, consoante argumentam alguns. Ao contrário, o fundamento reside no princípio da igualdade.
O cumprimento das exigências de ordem fiscal não é faculdade atribuída aos administrados. É imperativo que atinja a todos, gostem ou não. Daí o qualificativo ‘imposto’.
Por outro lado, é mister reconhecer que a carga tributária repercute no preço final dos bens e serviços. É óbvio que os que sonegam não estão sujeitos a essa carga tributária na formação dos seus preços. Não estando sujeitos, por serem sonegadores, a agregar nos preços o ônus tributário, podem praticar preços e condições mais vantajosos do que os que assumem o ônus e contribuem, regularmente, para a formação da receita pública.
(...)
Pode-se, inclusive, ir mais adiante no raciocínio e dizer que a prova da regularidade fiscal deve ser exigida, também, nos casos de dispensa e inexigência, não se restringindo apenas ao procedimento da licitação. Com base na argumentação acima exposta, essa providência tem pertinência direta com o disposto no art. 26, parágrafo único, I, da Lei de Licitações e Contratos.
Ora, se o fundamento da regularidade fiscal é, sem prejuízo de outros aspectos (tais como os de natureza patrimoniais que a questão enseja), o princípio da igualdade, pouco importará o procedimento pré-contratual adotado." (grifos nossos)
Em que pese a propriedade das assertivas supracitadas, há que se reconhecer um entendimento um pouco mais flexível que esta última e um tanto quanto mais conservador que o da Corte de Contas Mineira e o posicionamento dos mestres Marçal Justen Filho e Jessé Torres Pereira Junior.
Muito embora seja possível a dispensa das certidões relativas à regularidade fiscal elencadas nos incisos I a III do art. 29 da Lei n.º 8.666/93 e documentos comprobatórios de capacidade técnica e econômico-financeira nos casos de convite, concurso e leilão, no que diz respeito às aquisições com previsão de pronta-entrega, sua dispensa mostra-se viável apenas nas contratações de pequeno valor ou, nas chamadas "despesas miúdas".
Isso porque em muitas contratações de maior vulto encontra-se atrelada à avença a garantia do objeto, que na maioria dos casos é válida por doze meses. Assim, é necessária maior segurança por parte da Administração, no que diz respeito à idoneidade e capacidade do contratado, para que sejam evitados problemas futuros.
De outro lado, ressaltamos a imprescindibilidade de apresentação da documentação relativa à capacidade jurídica e certidões negativas de débitos perante a seguridade social e FGTS (inciso IV do mencionado art. 29) em qualquer ajuste, por força do art. 195, §3º da Constituição Federal, que assim determina:
Art. 195 (...)
(...)
§ 3º - A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.
Assim, considerando posicionamentos doutrinários e jurisprudencial, mostra-se obrigatória a exigência de apresentação de documentação relativa à regularidade perante a seguridade social e FGTS em todas as contratações realizadas pela Administração Pública, com fulcro no art. 195, §3º, da Constituição Federal.
De outro lado, no que diz respeito às certidões negativas de débito junto às Fazendas Públicas, conclui-se pela possibilidade de dispensa de sua apresentação pelos interessados em contratar com a Administração em hipóteses de convite, concurso, leilão e em avenças com previsão de entrega imediata do bem, por força do §1º do art. 32 da Lei n.º 8.666/93. No entanto, esta última hipótese, deve contemplar apenas contratações de pequeno valor.
Por fim, há que se ressaltar que a dispensa em questão é facultativa, devendo a Administração, no uso de seu poder discricionário e capacidade de avaliação, julgar as hipóteses em que a mesma não poderá configurar abalo na segurança jurídica de suas avenças.
Notas
- JUSTEN FILHO, Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 8 ed. Dialética. São Paulo - 2000
- PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública. 5 ed. Renovar. Rio de Janeiro – São Paulo - 2002
- Consulta n.º 453.071, Relator Conselheiro Simão Pedro, sessão de 19/9/97
- Coordenador-geral do ILC e da Consultoria Zênite
- Advogada e supervisora da Consultoria Zênite
- Artigo publicado no ILC – seção Doutrina/Parecer – 250/62/abr/1999