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ICMS e substituição tributária para frente

01/03/2000 às 00:00
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          PERFIL DO ICMS – O Imposto, de que ora se cuida, incide sobre circulação de mercadorias e sobre a prestação de alguns serviços, conforme dispõe o artigo 155, II da Constituição Federal.

A partir de uma análise mais detida do Sistema Tributário Constitucional, percebe-se, que, na verdade, quando a CF/88 trata do ICMS, prevê a existência de 5 impostos diferentes, a saber: a) o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias; b) o imposto sobre serviços de transporte interestadual e intermunicipal; c) o imposto sobre serviços de comunicação; d) o imposto sobre produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos e de energia elétrica; e) o imposto sobre a extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais.

Afirma-se que são impostos diferentes, justamente porque possuem hipóteses de incidência distintas, sendo certo que tal assertiva confirma-se a partir da análise dos diversos elementos, que compõem a norma abstrata, sendo eles: material, espacial, temporal e quantitativo.

No presente estudo, deteremo-nos com o ICMS, incidente sobre a circulação de mercadorias.

Para entender esse imposto, vislumbrando, tanto quanto possível, a realidade do seu fenômeno fático, mister o estudioso debruçar-se sobre os vários aspectos ou elementos, quer de sua ontogenia, razões de ordem política que o conceberam, quer de sua hipótese de incidência.

Por não ser objeto do presente estudo empreender tais reflexões, fiquemos com a idéia de que o ICMS, incidente sobre circulação de mercadorias, é um imposto que tem como fim a tributação da circulação de coisas ou bens móveis, caracterizados como "mercadoria", sendo a circulação uma operação jurídica de transferência de propriedade, e mercadoria objeto de valor econômico suscetível da prática de mercancia. É um imposto não cumulativo, já que se compensa o que for devido em cada operação relativa à circulação, com o montante do ICMS cobrado nas operações relativas a circulações anteriores, pelo mesmo ou outro Estado.


          FATO GERADOR – O fato gerador de um tributo é a ocorrência, no mundo dos fatos, de uma situação descrita em uma norma geral abstrata – hipótese de incidência, que dá origem à obrigação tributária.

Alguns autores preferem a expressão "fato imponível", para se referirem à citada ocorrência fática. Geraldo Ataliba(1), assim, expressou-se: "Fato imponível é o fato concreto, localizado no tempo e no espaço, acontecido efetivamente no universo fenomênico, que - por corresponder rigorosamente à descrição prévia, hipoteticamente formulada pela h.i. legal – dá nascimento à obrigação tributária".

Dessa forma, a partir do instante em que a pessoa, física ou jurídica, salvo as hipóteses legais e constitucionais, empreende a transferência de propriedade de uma mercadoria, automaticamente, dá azo ao aparecimento de uma relação jurídica com o Estado, consubstanciada em uma obrigação tributária.

Entretanto, e aqui deve residir maior atenção, não significa que o sujeito passivo de tal obrigação já está apto para cobrá-la. Necessário se faz todo um procedimento administrativo, legal e vinculado, no sentido de promover a liquidação da obrigação. Tal procedimento, que envolve, muitas vezes, obrigações acessórias, culmina com o lançamento tributário. No caso do ICMS, o lançamento é feito por homologação, porque o próprio contribuinte, a par de sua escrituração fiscal, recolhe o tributo, que é devido desde o instante da ocorrência do fato gerador, ficando, o seu pagamento, sujeito à condição resolutiva, ante a verificação da regularidade de tal procedimento a ser feita pela fazenda cobradora.

Assim, obrigação tributária e débito fiscal, nesse caso, são simultâneos, porém, como dito, fica a definitividade do débito sujeita à homologação estatal.


CONTRIBUINTE – A par do aqui já expendido, fácil é apreender-se a noção de contribuinte. É todo aquele que pratica, no mundo dos fatos, os eventos descritos na hipótese de incidência tributária. Assim, se aufiro acréscimo em meu patrimônio, sou contribuinte do imposto sobre a renda, se detenho o domínio ou a posse de um imóvel urbano, sou devedor do IPTU, se sou empresário, sou devedor das contribuições sociais para financiamento da seguridade social e daí por diante. Então, contribuinte é o sujeito passivo da obrigação tributária, que nasceu com a ocorrência do fato gerador ou do fato imponível.


          SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA – Somos da opinião de que é a substituição do contribuinte de direito e de fato, por um contribuinte apenas de direito. Ou seja, a norma tributária, de caráter especial em relação à regra matriz de incidência, transfere a obrigação fiscal do sujeito que pratica o fato gerador para uma outra pessoa. Tal fenômeno é autorizado pelo Código Tributário Nacional, no seu artigo 128, quando verbera que: "...a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação".

Note-se que essa norma do CTN é dirigida ao legislador e impõe certas exigências para a implementação da responsabilidade tributária por substituição. Assim, o responsável ou substituto tributário, que não participará do fato gerador, deve, ao menos, com este, guardar certo vínculo, ou seja, o substituto tributário não pode ser alguém totalmente alheio ao fato jurígeno desencadeador da obrigação tributária.

De ver-se também que, ao contrário do que afirmam alguns, a substituição tributária não implica em subrogação do substituto em relação ao substituído pela obrigação tributária adimplida, vez que, entre substituído e substituto, nenhuma relação surge. É que tal modalidade de sujeição tributária advém expressamente da lei, cabendo, tão somente ao substituto cumprir sua obrigação.


          SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA NA CONSTITUIÇÃO – Sabe-se que a Constituição Federal, em matéria tributária, precipuamente, distribui as competências para instituição dos tributos, que prevê e impõe limitações para o exercício dessa tarefa pelos entes políticos da Federação. Também dispõe a Constituição acerca da repartição das receitas tributárias, sendo tal, uma imposição do modelo federativo adotado.

Assim é que, incluída entre as limitações ao poder de tributar trazidas pela Constituição, está a regra inscrita no artigo 150, § 7.º, a qual foi acrescentada pela reforma tributária empreendida pela EC 03 de ....de 1993: "A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição...".

Aqui, constata-se que a substituição tributária é um fenômeno previsto no CTN e que, a partir da EC 03/93, passou a ter assento constitucional, de modo que se conclui ser ele evento, indiscutivelmente, harmônico com o sistema constitucional tributário e todas as suas diretrizes ou princípios.


          SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA FRENTE – A substituição tributária para frente significa atribuir a terceira pessoa a responsabilidade concernente a uma obrigação tributária, cujo fato gerador ainda não ocorreu.

Nessa hipótese, temos dois fenômenos de ordem estritamente fictícia: de um lado, considera-se nascida uma obrigação tributária antes mesmo da ocorrência do fato jurígeno, que justifica a sua existência e, de outro lado, atribui-se a responsabilidade, relativa a essa obrigação, a uma terceira pessoa que, não participou, nem participará, efetivamente, do referido fato jurígeno, que, como dito, ainda nem mesmo aconteceu. Assim, "A", atacadista, na saída de seus produtos para o varejista "B", tanto recolhe o ICMS em relação à operação que promove – a saída dos produtos do seu estabelecimento – como o ICMS devido por "B" na futura saída dos produtos do estabelecimento deste último para o consumidor final.


          SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA FRENTE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – Eis a redação completa do parágrafo 7.º do artigo 150 anteriormente citado: "A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido."

Bem se vê que dúvida não há quanto a previsão constitucional desse fenômeno tributário.

Entretanto, como se trata de norma constitucional acrescentada pelo constituinte não originário, tal regra ainda poderá ter sua constitucionalidade questionada, em face dos princípios constitucionais originários. Tal, entrementes, não se verifica, como analisaremos mais adiante.

Por outro lado, note-se que a previsão constitucional referida é dirigida ao legislador infraconstitucional, de modo que, ao ser instituída no âmbito da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, relativamente aos seus respectivos impostos e contribuições, deverá ser feita em consonância com todo o sistema constitucional, tanto sob o aspecto formal, quanto sob o aspecto material.


          SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA NA LC 87/96 – Como medida de política fiscal, no sentido de ver diminuída a sonegação, a Lei Complementar do ICMS, adotando a técnica da substituição tributária, diz em seu artigo 6.º: "Lei estadual poderá atribuir a contribuinte do imposto ou a depositário a qualquer título a responsabilidade seu pagamento, hipótese em que o contribuinte assumirá a condição de substituto tributário. § 1.º A responsabilidade poderá ser atribuída ao imposto incidente sobre uma ou mais operações ou prestações, sejam antecedentes, concomitantes ou subseqüentes, inclusive ao valor decorrente da diferença entre alíquotas interna e interestadual nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, que seja contribuinte do imposto."

A LC 87/96 prevê, especificamente para o ICMS, o fenômeno da substituição para frente, autorizada pela Constituição Federal, conforme vimos linhas atrás.


          O PROBLEMA DO PREÇO FINAL DA MERCADORIA – Pela própria estrutura da substituição tributária para frente, vê-se logo que pode existir um descompasso entre a base de cálculo do ICMS recolhido antecipadamente e o preço real da mercadoria oferecida ao consumidor final. Ora, se se trata de fato gerador fictício, as condições da realidade, refletindo uma situação de mercado qualquer, podem, deveras, alterar o preço das mercadorias, quando da ocorrência efetiva do fato imponível.

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Sendo assim, que referencial teria a fazenda estadual para estabelecer a base de cálculo do imposto antecipado?

Segundo se depreende da LC 87 /96, três são as formas de estabelecer-se a base de cálculo:

  1. Caso exista preço fixado por órgãos governamentais para a operação subseqüente, este será tomado como base de cálculo;
  2. Caso não exista preço fixado, mas exista preço recomendado pelo fabricante do produto, este poderá ser adotado como base de cálculo;
  3. Caso não exista nem preço fixado nem preço recomendado, a base de calculo será feita por estimativa, tendo-se por base os preços usualmente praticados no mercado considerado, obtidos por levantamento, ainda que por amostragem ou através de informações e outros elementos fornecidos por entidades representativas dos respectivos setores, adotando-se a média ponderada dos preços coletados, devendo os critérios para sua fixação serem previstos em lei;

No primeiro caso, o problema se apresenta mitigado, vez que teremos preços previamente estabelecidos pelo Poder Público, no exercício da intervenção estatal na economia, de modo que o preço da operação final será antecipadamente conhecido.

No segundo e no terceiro caso, o problema surge com mais ou menos intensidade, podendo haver a disparidade relatada linhas atrás. Com efeito, se, por exemplo, a base de cálculo utilizada for X e, na ocorrência efetiva do fato gerador, a mercadoria for vendida por X – Y, terá ocorrido uma disparidade entre a base ficta e a base real.

A partir de tal constatação, os contribuintes estão a reivindicar um certo direito de repetição ou compensação das quantias, porventura, pagas "a maior".

Para dar sustento a tal reivindicação, os contribuintes alegam que o dever de pagar o tributo como conseqüência da substituição tributária para frente não se confunde com a efetiva ocorrência, no futuro, do fato gerador da efetiva obrigação tributária. Assim, se quando da saída do produto do estabelecimento do contribuinte substituído para consumidor final – efetiva ocorrência do fato gerador – o preço da mercadoria for inferior ao tido como base de cálculo pelo fisco, quando da substituição, haverá aí uma disparidade.

A razão inolvidavelmente, nesse ponto, está com os contribuintes. Ora, se o Estado tributa levando em conta uma base de cálculo estimada, justamente por que o fato gerador é futuro, não tendo, assim, ainda ocorrido, e, num momento posterior, quando da efetiva ocorrência deste, vê-se que a base de cálculo foi inferior à considerada pelo fisco para o estabelecimento do montante do imposto, é evidente que está havendo disparidade e que haverá de ser repetido o valor pago a maior.

O que não pode ser confundido é quem é o contribuinte. Ou seja, quem é o sujeito passivo da relação jurídico tributária. Se, o substituto ou o substituído.

Não pode ser confundida repercussão jurídica do tributo e repercussão econômica do tributo, de molde a viciar o pensamento do jurista na hora de apontar o contribuinte na substituição tributária para frente. Nesse ponto, esclarecedor magistério de Alfredo Augusto Becker, leitura obrigatória para todos que se aventuram na seara tributária.

Também não se pode laborar sobre a falsa premissa de que o dever de recolher o tributo nasce quando da ocorrência efetiva do fato gerador. Isso não é verdade.

O dever de recolher o tributo nasce quando da ocorrência da operação efetivada pelo substituto tributário. A norma que descreve a substituição incide desde esse momento, sendo certo que a ocorrência efetiva do fato gerador, no futuro, evento esse praticado pelo substituto tributário, tem o condão apenas de ratificar uma situação juridicamente já implementada. São, sim, momentos diferentes, mas a obrigação nasce desde o momento previsto na norma, que estabelece a substituição tributária para frente, não da ocorrência efetiva do fato gerador.

O caso é excepcional, é verdade. Difere do que normalmente ocorre em sede de direito tributário, mas, por isso mesmo, que é chamado substituição tributária para frente. Como vimos, tem assento constitucional e legal.

Não há como entender que a obrigação surgiria somente com a ocorrência efetiva do fato gerador, nem muito menos que o contribuinte substituído teria qualquer relação com a obrigação tributária oriunda da substituição tributária. Isso seria negar a própria lógica do instituto, além de negar-se a dogmática, sobretudo a constitucional.

Hugo de Brito Machado, em artigo publicado no RJ-IOB n.º 12775, discordando desse ponto de vista, afirma: "Não se há de confundir o fato gerador do ICMS, ou fato cujo acontecimento faz nascer o dever de pagar dito imposto, vale dizer, no caso, a operação, ou as operações posteriores, apenas previstas para o efeito do recolhimento do imposto pelo substituído, com o fato gerador do dever jurídico de fazer o pagamento antecipado. Este último é também fato gerador do ICMS incidente na operação de venda feita pelo substituto, mas isto nada tem a ver com a questão que estamos aqui examinando. No que importa à questão em tela, aquela venda, feita pelo substituto, é fato que faz nascer, além da dívida de imposto, própria, quanto ao ICMS incidente naquela operação, também, a obrigação de cobrar do substituído o ICMS da operação, ou das operações posteriores, e fazer o respectivo recolhimento aos cofres do Estado. Indevidos que o ICMS correspondente às operações posteriores somente se torna devido quando da ocorrência destas. Por isto mesmo, se não acontecem, é cabível a imediata e preferencial restituição da quantia paga antecipadamente."

Com base nesse raciocínio, alguns levantam a bandeira no sentido de ser devida a diferença do imposto, ocasionalmente, pago a maior, sempre que ocorrer divergência entre a base de cálculo ficta e o efetivo preço de venda na operação praticada pelo contribuinte substituído.

Pergunta-se: a quem seria devida tal diferença?

Ao contribuinte substituído? – Não. O contribuinte substituído, como dito, não faz parte da relação jurídica, estabelecida entre o fisco e o contribuinte substituto, visto ser este último o contribuinte "de jure".

Com a precisão que lhe era peculiar, Alfredo Augusto Becker conclui: "Não existe qualquer relação jurídica entre substituído e Estado. O substituído não é sujeito passivo da relação jurídico tributária, nem mesmo quando sofre a repercussão jurídica do tributo em virtude do substituto legal tributário exercer o direito de reembolso do tributo ou de sua retenção na fonte.".

Imaginar a legitimidade do substituto tributário é raciocinar com base na classificação entre impostos diretos e indiretos, tendo-se em vista que o substituído teria sofrido a repercussão econômica do imposto, o que não é aceitável.

De outro lado, o substituo tributário, este sim contribuinte "de jure", poderá utilizar-se de todos os mecanismos que a lei lhe disponibiliza, para recuperar o crédito pago a maior. Quanto a isso, não restam dúvidas. Não há mesmo como aceitar a tese de que o fato gerador da substituição tributária é definitivo, pois isso, além de contrariar regras lógicas, já que a ficção jurídica tem limite, ocasionaria uma arrecadação ilícita por parte do Estado. Isso não significa que a obrigação nascerá apenas com a ocorrência efetiva do fato gerador, mas, como dito, nascerá no exato instante previsto pela norma instituidora da substituição tributária, ficando, tal obrigação, é certo, sujeita à condição resolutiva.

Dessa forma, já que vivemos em um Estado de Direito, o que significa dizer que nem mesmo a organização estatal está imune às regras que produz, é indiscutível o direito do contribuinte "de jure" de reaver a importância paga a maior, seja por que meio for.


NOTA

  1. ATALIBA, Geraldo – Hipótese de Incidência Tributária, Ed. Malheiros, 5.ª ed.
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Sobre o autor
Bianor Arruda Bezerra Neto

procurador da Fazenda Nacional chefe substituto da PFN na Paraíba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BEZERRA NETO, Bianor Arruda. ICMS e substituição tributária para frente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 40, 1 mar. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1402. Acesso em: 6 mai. 2024.

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