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O exame criminológico à luz da jurisprudência do STJ

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Antes do advento da Lei n° 10.792/2003, que alterou a Lei de Execução Penal, três eram os requisitos necessários à concessão da progressão de regime:

a)cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior;

b)ostentar bom comportamento carcerário (comprovado pelo diretor do presídio); e

c)exame criminológico (feito para avaliar a personalidade do criminoso, sua periculosidade, eventual arrependimento e a possibilidade de voltar a cometer crimes) favorável.

Com a alteração do artigo 112 da LEP, o exame criminológico foi retirado do rol de requisitos cumulativos necessários à progressão:

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. (grifos aditados).

A mens legislatoris, ao editar a Lei 10.792/03, foi de uma clareza solar: expurgar da execução penal a necessidade de proceder-se ao exame criminológico para a concessão da progressão de regime.

No entanto, o Superior Tribunal de Justiça, tentando relativizar a desnecessidade do referido exame, considera que, de maneira geral, o exame criminológico constitui um instrumento dispensável, mas, se realizado, deve ser levado em consideração. Vide inúmeras decisões nesse sentido:

EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. LEI 10.792⁄03. PROGRESSÃO AO REGIME SEMI-ABERTO. EXAME CRIMINOLÓGICO DISPENSADO PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO. EXIGÊNCIA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. FUNDAMENTAÇÃO ADEQUADA. IMEDIATO RETORNO AO REGIME MAIS SEVERO. NECESSIDADE. PACIENTE FORAGIDO. ORDEM DENEGADA. LIMINAR CASSADA. 1. O advento da Lei 10.792⁄03 tornou prescindíveis os exames periciais antes exigidos para a concessão da progressão de regime prisional e do livramento condicional, bastando, para os aludidos benefícios, a satisfação dos requisitos objetivo – temporal – e subjetivo – atestado de bom comportamento carcerário, firmado pelo diretor do estabelecimento prisional. 2. O Supremo Tribunal Federal, todavia, no julgamento do HC 88.052⁄DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 28⁄4⁄06, afirmou que "Não constitui demasia assinalar, neste ponto, não obstante o advento da Lei nº 10.792⁄2003, que alterou o art. 112 da LEP – para dele excluir a referência ao exame criminológico –, que  nada impede que os magistrados determinem a realização de mencionado exame, quando o entenderem necessário, consideradas as eventuais peculiaridades do caso, desde que o façam, contudo, em decisão adequadamente motivada" (sem grifos no original). 3. A particularização da situação do sentenciado, pela qual se motiva a necessidade da diligência com os indícios sobre a sua personalidade perigosa, extraídos do caso concreto, constitui fundamentação idônea a justificar a realização do exame criminológico. 4. Na hipótese dos autos, não é possível manter o paciente no regime mais brando até a realização do exame criminológico, haja vista que, consoante informado pela autoridade apontada como coatora, ele se encontra foragido, fato que, em tese, constitui falta grave e obsta, por si só, a concessão da benesse. 5. Ordem denegada. Liminar cassada. (HC 109.811 – SP, Relator Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJ: 01/12/2008).

HABEAS CORPUS – EXECUÇÃO PENAL – PROGRESSÃO DE REGIME – AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA E SOCIAL QUE RECOMENDA A NEGATIVA DO BENEFÍCIO – POSSIBILIDADE – ORDEM DENEGADA, COM RECOMENDAÇÃO. 1. O exame criminológico para fim de progressão de regime é, em tese, dispensável, mas se realizada avaliação psicológica e social, com laudos desfavoráveis ao paciente, elas devem ser consideradas. 2. Ordem denegada, com recomendação. (HC Nº 94.426 – RS, Rel. Min. Jane Silva, DJ: 03/03/2008).

HABEAS CORPUS – EXECUÇÃO PENAL – LIVRAMENTO CONDICIONAL – EXAME CRIMINOLÓGICO QUE RECOMENDA A NEGATIVA DO BENEFÍCIO – PACIENTE COM ATESTADO CARCERÁRIO FAVORÁVEL, MAS COM PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR – NEGATIVA DO BENEFÍCIO -POSSIBILIDADE – ORDEM DENEGADA, COM RECOMENDAÇÃO. 1. O exame criminológico para fim de progressão de regime é, em tese, dispensável, mas se realizado, com conclusão desfavorável ao paciente, deve ser considerado. 2. Se houve instauração de processo administrativo disciplinar contra o paciente, esse deve ser melhor esclarecido antes da concessão do benefício. 3. Ordem denegada, com recomendação. (HC 92.555 - RS, Rel. Min. Jane Silva, DJ: 07/04/2008).

O STJ equivoca-se ao admitir o laudo do exame criminológico como prova apta a criar óbice ao direito de progressão de regime. Isso porque os requisitos impostos pela Lei de Execução Penal são as únicas exigências legais necessárias e aptas a permitir a concessão, ou não, do benefício. Somente a lei em sentido estrito (reserva legal) pode ampliar ou reduzir tais requisitos. A jurisprudência, em o fazendo, estará estendendo dificuldades à eficácia do princípio da progressividade da pena (reflexo da garantia constitucional da individualização da pena, insculpido no art. 5°, XLVI, da Constituição Federal), ferindo, ainda, o princípio da legalidade, este último essencial à sobrevivência material do Estado Democrático de Direito. Sobre a violação ao princípio da legalidade, vide as precisas palavras de Luis Flávio Gomes:

No âmbito das ciências criminais, as quatro dimensões do princípio da legalidade, que constitui limite formal do ius puniendi, são:

1.Princípio da legalidade criminal: "não há crime sem lei anterior que o defina (CP, art. 1°)(...).

2.Princípio da legalidade penal: "não há pena sem prévia cominação legal (CP, art. 1°). (...).

3.Princípio da legalidade jurisdicional ou processual: não há processo sem lei, leia-se, ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (nulla coatio sine lege – CF, art. 5°, LIV)(...).

4.Princípio da legalidade execucional: "A jurisdição penal dos juízes ou tribunais de justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal" (LEP, art. 2°, caput) – nulla executio sine lege. (grifos nossos). (Direito Penal – Parte Geral: volume 2/ Luis Flávio Gomes, Antônio García-Pablos de Molina - 2ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 32/33).

É, de igual forma, importante trazer à colação os ensinamentos dos professores Paulo Queiroz e Antônio Vieira:

(...), aqui, mais do que no processo de conhecimento, importa respeitar o aludido princípio [da legalidade] , pois é na execução penal em que se verifica, ordinariamente, o maior déficit de proteção jurídica (menor grau de garantismo), tal é a relativização ou inexistência mesma das garantias (contraditório, defesa técnica por advogado etc.) que o informam. E onde há maior vulnerabilidade, maiores devem ser os níveis de tutela legal (maior grau de garantismo), conforme o princípio da proporcionalidade. (Disponível em: http://pauloqueiroz.net/retroatividade-da-lei-processual-penal-e-garantismo/).

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Perceba-se, ainda, que o Superior Tribunal de Justiça, ao adotar esse posicionamento, está negando, por via oblíqua, eficácia à nova lei que extinguiu a exigência do exame criminológico para a concessão da progressão de regime (Lei 10.792/03). A construção hermenêutica feita pela Corte Superior – "o exame é dispensável, mas, se requisitado, não pode ser desprezado" - é uma tentativa de continuar aplicando o art. 112 da LEP com sua antiga redação, ou seja, autorizando que progressões de regime sejam negadas com base no exame criminológico desfavorável, utilizando como justificativa o princípio do livre convencimento motivado (CF, art. 93, IX).

O livre convencimento não significa, todavia, que o juiz pode fazer o que bem entender, desde que lastreie sua decisão. No momento em que a lei cria requisitos para a concessão, ou não, de um direito subjetivo, o livre convencimento motivado pode (e deve!) cingir-se àqueles requisitos legais, estritamente. Ultrapassá-los em sua análise equivale ao arbítrio. E arbítrio é oposto do Estado Democrático de Direito.

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Sobre o autor
Matheus Augusto de Almeida Cardozo

Advogado, Pós-Graduando em Ciências Criminais pelo JusPodivm

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOZO, Matheus Augusto Almeida. O exame criminológico à luz da jurisprudência do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2399, 25 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14224. Acesso em: 23 abr. 2024.

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