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A contribuição previdenciária para inativos e pensionistas em face da EC 20/98

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01/04/1999 às 00:00
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IV - A NATUREZA ATUARIAL DO REGIME

A Lei nº 9.783, de 28 de janeiro de 1999 é, também, inconstitucional, por fixar alíquotas de contribuição sem definição do modelo atuarial do regime de previdência dos servidores públicos, ou seja, sem atentar para o princípio de causa eficiente.

Pela Emenda n.º 20, de 1998, ficou inscrito no art. 40 que o regime previdenciário assegurado ao servidor titular de cargo efetivo, além de seu caráter contributivo, deve observar "critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial."

Repita-se que a Constituição, assim como as leis, não tem palavras inúteis.

Necessário, então, pesquisar o sentido jurídico da expressão. Segundo o Supremo Tribunal Federal (Ac. RE-166772/RS), "o conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos acadêmicos quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios."

Ocorre que, pela primeira vez, a Constituição brasileira tem inserida, em seu texto, a expressão "equilíbrio financeiro e atuarial", como determinante de organização e funcionamento dos sistemas previdenciários (a expressão aparece, também, no art. 201, relativo à previdência geral).

Após a Emenda nº 20, o caráter atuarial dos regimes previdenciários passa a ser um valor constitucional. Até então, era meramente um valor técnico. Antes, o equilíbrio atuarial era uma mera postulação técnica, um objetivo gerencial a ser perseguido na administração dos sistemas previdenciários. Agora, é um mandamento constitucional. A tutela constitucional envolve implicações de segurança jurídica, principalmente aqueles relacionados com a causa eficiente para a cobrança das contribuições.

Para a aprovação da Lei n.º 9.783, de 1999, o Governo divulgou e inseriu na mensagem presidencial números sobre supostos déficits no regime de previdência dos servidores federais, dando a entender que o aumento da taxação dos ativos e a instituição de cobrança dos inativos e pensionistas se justificaria pela necessidade de promover o equilíbrio atuarial. Nisso, cometeu erro palmar.

Com números muito sujeitos a crítica, conseguiu, no máximo, mostrar que a arrecadação das contribuições dos servidores ativos (cuja alíquota, até então, estava unificada em 11%) é, no momento, insuficiente para cobrir a despesa atual, total, com inativos e pensionistas civis e militares.

Ou seja, conseguiu demonstrar, no máximo, um desequilíbrio conjuntural entre receitas e encargos previdenciários. Seria isso um desequilíbrio atuarial?

Absolutamente, não.

Na verdade, a ciência atuarial, que é calcada em técnicas matemáticas, estatísticas e probabilísticas não tem apenas - ou tem muito pouco - a ver com o desequilíbrio presente. No caso de um sistema previdenciário, a atuária se preocupa com o equilíbrio de receitas e despesas a longo prazo. Para isso, leva em conta a massa de contribuintes, sua composição, regras de entrada e saída do sistema, tempo e volume de contribuição, probabilidades de evolução desses fatores, a aplicação e rentabilidade das receitas, enfim, o volume e a evolução do ativo atuarial; em confronto, o volume e a evolução do passivo atuarial que decorre da massa de beneficiários, sua composição, regras de entrada e probabilidades de saída, tempo médio de percepção de benefício, volume do benefício, probabilidades de evolução, etc.

São, enfim, cálculos de extrema complexidade que vão muito além do simples alinhamento de receitas e despesas no último exercício. O Senador Beni Veras, Relator da Reforma da Previdência no Senado Federal chamava a atenção para esse aspecto, em seu Relatório:

"O equilíbrio financeiro e atuarial é necessário não apenas para dar segurança às pessoas que contribuem mensalmente para o sistema, cuja expectativa é usufruir dos benefícios no futuro, mas também para garantir o pagamento dos benefícios àqueles que contribuíram no passado. Os cálculos dos atuários, portanto, são feitos para várias gerações."

A propósito, cabe lembrar a seguinte manifestação do Ministro MOREIRA ALVES, do Supremo Tribunal Federal, no Agravo Regimental em Agravo de Instrumento AGRAG-212515/RJ, datado de 16-06-98 - Primeira Turma:

"Agravo Regimental. Como salientado no despacho agravado, é mister examinarem-se previamente cálculos atuariais que não se traduzem necessariamente a simples confronto de proporções entre aumentos, mas é preciso levar em conta outros fatos como o número de contribuintes e de beneficiários, além do tempo provável de contribuição daqueles e o de percepção dos benefícios por parte destes."

Principalmente, a projeção do equilíbrio atuarial exige regras estáveis e a definição clara do modelo previdenciário adotado. Com base nesse modelo previdenciário, pode, enfim, ser configurado um plano atuarial, que no caso discutido, no mínimo tem que ser aprovado em lei formal. Se a Constituição determina que haja equilíbrio atuarial, e esse equilíbrio atuarial é decorrência de uma série de fatores predeterminados, tudo isso tem que ser definido em lei. Não pode ficar ao sabor do governo de cada momento que ache necessário aumentar ou criar novas alíquotas de contribuição para o atingimento de um "equilíbrio atuarial" cujos cálculos (se é que existem) ele guarda misteriosamente...

A busca do equilíbrio atuarial da previdência interessa não apenas às finanças públicas e à solvência do sistema, mas também ao direito subjetivo dos segurados. Num regime de benefícios definidos, como é a previdência dos servidores, a incorreta ou nenhuma definição do plano atuarial irá forçosamente produzir uma de duas conseqüências opostas:

1 - fixação de contribuições abaixo do necessário para sustentar o regime a longo prazo, levando-o à insolvência, ou

2 - fixação de contribuições acima do necessário para sustentar o regime a longo prazo, acarretando prejuízo aos segurados por pagarem mais que o necessário para a percepção dos benefícios, e assim desvirtuando o nexo causal entre contribuição e benefício

.

A definição do modelo previdenciário leva em conta, basicamente, os seguintes quesitos:

1 - contribuições definidas e benefícios variáveis, ou contribuições variáveis e benefícios definidos;

2 - regime de repartição simples ou regime de capitalização.

A previdência dos servidores, por regra constitucional, já tem resolvido o primeiro quesito, pois trata-se de um regime de benefícios definidos, para cujo equilíbrio atuarial as contribuições devem, então, se ajustar.

Todavia, não há definição sobre o segundo quesito. O regime próprio de previdência dos servidores federais é de repartição simples ou de capitalização? A Lei nº 9.717, de 27 de novembro de 1998, que "dispõe sobre regras gerais para a organização e o funcionamento dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos Militares dos Estados e do Distrito Federal e dá outras providências", não oferece essa definição, apenas indicando confusamente ora num, ora noutro sentido.

Assim é que, no art. 1º, sinaliza com o regime de capitalização, ao determinar, no inciso VII, "registro contábil individualizado das contribuições de cada servidor e dos entes estatais, conforme diretrizes gerais." O registro individual somente faz sentido em regime de capitalização, não tendo, no entanto, qualquer importância para o de repartição simples.

Entretanto, no art. 2º, § 1º, dispõe sobre limite de despesa com pessoal inativo e pensionistas, o que somente faria sentido em regime de repartição simples pois, em regime de capitalização, a despesa decorre dos direitos individuais dos segurados, apurados em sua conta individual e não pode ser limitada.

Portanto, não existindo lei que previamente defina o modelo e os parâmetros atuariais do regime previdenciário, é inelutável a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 9.783, de 1999, ou de qualquer outra lei que institua ou aumente alíquotas de contribuição, simplesmente porque, sem tais modelo e parâmetros, é impossível estabelecer a relação custo-benefício, isto é, a causa eficiente para a cobrança de contribuições.

Há dois aspectos adicionais de suma importância para a busca do equilíbrio atuarial do regime previdenciário, o qual, por força da Emenda nº 20 passou a ter valor constitucional.

O primeiro diz respeito às tábuas biométricas (ou tábuas de mortalidade), que são fundamentais e indispensáveis para o cálculo e projeção atuarial da previdência. A partir delas calculam-se as probabilidades de morte dos segurados e, principalmente, médias estatísticas de tempo de contribuição e de fruição de benefícios.

Acontece, simplesmente, que não existem tábuas biométricas calculadas segundo as peculiaridades da população brasileira, com índices de mortalidade e de esperança de vida aferidos em razão das condições étnicas, sanitárias, alimentares etc. do Brasil.

A propósito de regulamentar a Lei nº 9.717, de 1998, e de ditar parâmetros para a organização de regimes de previdência para os servidores públicos, o Senhor Ministro da Previdência baixou a Portaria nº 4.992, de 5 de fevereiro de 1999 (DOU de 08-02-99) em cujo Anexo I - Das Normas de Atuária, manda aplicar, para cálculo atuarial de mortalidade geral, tábuas biométricas norte-americanas (CSO - 58, CSO - 80, AT - 49, AT - 80, EB7 - 75).

Ora, como tudo indica que os índices de esperança de vida nos Estados Unidos da América sejam muito maiores que os do Brasil, da aplicação dessas tábuas biométricas resultam alíquotas contributivas mais altas que necessárias às peculiaridades brasileiras. Está, aí, caracterizada a cobrança sem causa eficiente.

O segundo aspecto diz respeito às condições para equilíbrio atuarial do regime de previdência dos servidores federais em modelo de repartição simples.

Nesse modelo, tem-se uma massa de contribuintes (os servidores ativos) e uma massa de beneficiários (aposentados e pensionistas). Cada uma dessas massas tem suas regras e tendências de ingresso, de fluxo e de saída. Em situação normal, a massa de contribuintes tende a ser bem maior que a dos beneficiários, pela simples razão de que a grande maioria dos contribuintes permanece trinta anos ou mais nessa condição, enquanto que os beneficiários permanecem no máximo em torno de quinze a vinte anos, na média (a idade média de aposentadoria, segundo estatísticas oficiais, situa-se na casa dos cinqüenta e sete anos).

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A despesa com inativos e pensionistas da União, que hoje situa-se em 42% do total das despesas com pessoal, era de pouco mais de 20% até 1990. Diversos fatores, desde então, promoveram o atual desequilíbrio conjuntural, contando-se aí a implantação do Regime Jurídico Único e a política de pessoal do Governo Collor, bem como a própria reforma da Previdência, as quais estimularam a efetivação de milhares de aposentadorias represadas. O mais importante, todavia, foi o fato de que o Estado brasileiro optou por uma linha de encolhimento, deixando de repor integralmente os quadros, de tal sorte que, na década de noventa a massa de contribuintes perdeu pelo menos duzentos mil elementos que, evidentemente, foram-se somar à massa de beneficiários. A médio prazo a tendência seria a de retorno à situação de equilíbrio anterior, inclusive em face das novas e mais rigorosas regras de aposentadoria, contagem de prazo, idade mínima, etc.

Acontece que estão em curso novas políticas de organização do Estado, como decorrência da Emenda Constitucional nº 19 (Reforma Administrativa) e de gestão de pessoal que tornarão simplesmente impossível qualquer equilíbrio atuarial em regime de repartição.

Informe oficial do Governo (Cadernos MARE da Reforma do Estado, nº 11, pág. 11) apregoa:

"A reorganização das atividades do Estado tem um rebatimento no que diz respeito à composição do quadro de pessoal. Os profissionais atuando em setores voltados para a produção de bens e serviços para o mercado, setor que será transferido do Estado para o setor privado por meio do processo de privatização, serão administrados com base em regras vigentes para o setor privado, não constituindo-se em funcionários públicos. O mesmo se aplica para os profissionais atuando na área de serviços sociais e científicos, que será transferida mediante o processo de publicização para entidades de direito privado sem fins lucrativos integrantes do setor público não-estatal.

Os servidores públicos, e portanto integrantes de carreiras de Estado, serão apenas aqueles cujas atividades estão voltadas para as atividades exclusivas de Estado relacionadas com a formulação, controle e avaliação de políticas públicas e com a realização de atividades que pressupõem o poder de Estado. Esses servidores representarão o Estado enquanto pessoal. Para a realização de atividades auxiliares como manutenção, segurança e atividades de apoio diversas será dada continuidade ao processo de terceirização, transferindo-as para entidades privadas."

Coerentemente, o Governo remeteu ao Congresso Nacional projeto de lei (que tramita na Câmara dos Deputados sob o nº 4.811, de 1998) instituindo o regime celetista para todos os novos servidores federais, à exceção apenas dos integrantes das carreiras jurídicas, policiais e que sejam compostas de cargos privativos de brasileiros natos.

A menção, aqui, dessas políticas de governo, não envolve qualquer juízo de valor quanto a elas. Apenas se deseja chamar atenção para o fato de que, se a massa de contribuintes não vai mais receber componentes, e se a massa de beneficiários vai continuar recebendo componentes (à medida que se forem aposentando os atuais servidores ativos) será impossível alcançar o equilíbrio atuarial exigido pelo art. 40 da Constituição Federal, na redação da Emenda nº 20, a não ser que as alíquotas sejam sucessivamente elevadas até representar confisco quase total da remuneração dos remanescentes servidores ativos. Ou que se defina claramente que o regime não é de repartição, mas de capitalização.

A interpretação e a aplicação da Constituição não podem levar ao absurdo.

A política de encolhimento do Estado não pode ser contestada, mas os servidores públicos não podem pagar o ônus decorrente. A política de encolhimento é uma decisão da sociedade, através de seus representantes; logo, o ônus há de ser suportado por ela própria.

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Sobre o autor
Roberto Barbosa de Castro

auditor fiscal do Tesouro Nacional aposentado, ex-diretor-geral da ESAF, ex-coordenador-geral de Recursos Humanos do Ministério da Fazenda

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Roberto Barbosa. A contribuição previdenciária para inativos e pensionistas em face da EC 20/98. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 30, 1 abr. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1456. Acesso em: 6 mai. 2024.

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