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Democracia: um resumo

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12/05/2010 às 00:00
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6. UM COMPLEXO DE VALORES

Neste ínterim, vale ressalvar que a democracia, apesar de empregar valor, não constitui um valor em si, mas um complexo de valores que a circundam e a permeiam e que nela buscam um equilíbrio ideal, sem que com eles se confunda ou deles se torne autônoma.

Rousseau [26] afirma que o maior de todos os bens, e finalidade profícua de todas as legislações, resume-se a liberdade e igualdade. Bobbio [27], que "liberdade e igualdade são os valores que servem de fundamento à democracia". Tem-se, assim, ao menos a princípio, os valores que mantém a mais íntima relação com a democracia – e que são objeto de análise.

6.1. Democracia e Liberdade

Benjamin Constant [28] distinguiu duas formas de liberdades: a) A dos antigos (ou negativa), que é a liberdade do indivíduo para agir em prol do gozo privado dos bens sem a intervenção estatal, correspondendo às liberdades civis ou individuais, sendo entendida por Bobbio como a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, configurando assim uma ‘qualificação da ação’, diga-se: ação livre; b) A dos modernos (ou positiva), que é a liberdade do indivíduo no Estado enquanto sujeito participante, correspondendo às liberdades políticas ou públicas, sendo entendida por Bobbio como a situação na qual o sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer, configurando uma ‘qualificação da vontade’: diga-se vontade livre, autonomia ou autodeterminação.

Eis a razão pela qual Kelsen e tantos outros atrelaram à democracia a ideia de governo de maior liberdade política, pois, como se percebe, é nela que cada indivíduo tem a maior possibilidade de conceber e manifestar livremente sua vontade, influindo de maneira potencialmente decisiva nas convenções políticas das quais derivam as leis. Neste sentido, Rousseau [29] definiu liberdade como "a obediência às leis que cada um se determinou".

É de se questionar, contudo, se existe alguma relação entre as duas liberdades e se isso gera efeitos face ao governo democrático. Segundo Canotilho, seria um dos princípios básicos do liberalismo político clássico que "o ‘homem civil’ precederia o ‘homem político’, o ‘burguês estaria antes do cidadão’" e que, por isso, "as liberdades políticas teriam uma importância intrínseca menor do que a liberdade pessoal e de consciência" [30]. O autor português ainda cita John Rawls: "Se alguém for forçado a escolher entre as liberdades políticas e as restantes liberdades, o governo do bom soberano que reconhecesse estas últimas e que garantisse o domínio da lei seria preferível" [31]. Bobbio [32], contudo, discorda:

Na história do pensamento moderno, as duas liberdades são estreitamente ligadas e interconectadas, tanto que, quando uma desaparece, também desaparece a outra. Mais precisamente: sem liberdades civis, como a liberdade de imprensa e opinião, como a liberdade de associação e de reunião, a participação popular no poder político é um engano; mas sem participação popular no poder, as liberdades civis têm pouca probabilidade de durar. Enquanto as liberdades civis são uma condição necessária para o exercício da liberdade política, a liberdade política – ou seja, o controle popular do poder político – é uma condição necessária para, primeiro, obter e, depois, conservar as liberdades civis.

Ou seja, Bobbio, ao contrário de Rawls, estabelece uma relação de mútua dependência entre as duas liberdades. Opinião compartilhada por Comparato [33], que acrescenta:

A liberdade política, sem as liberdades individuais, não passa de engodo demagógico de Estados autoritários ou totalitários. E o reconhecimento das liberdades individuais, sem a efetiva participação política do povo no governo, mal esconde a dominação oligárquica dos mais ricos.

Assim, percebe-se, de fato, que falar em democracia é necessariamente falar em liberdade política, a qual não se instaura nem sobrevive sem as liberdades civis. Todavia, embora democracia e liberdade possuam vínculos viscerais, não constituem tautologia, sendo certo que a igualdade também integra a noção de democracia.

6.2. Democracia e Igualdade

Liberdade indica um estado, igualdade, uma relação. Relação esta que se estabelece necessariamente entre uma pluralidade de entes e que deve adotar um liame específico entre os mesmos. Desta forma, é necessário dizer quais elementos são iguais e em quê esta igualdade se estabelece. Somente depois de traçado o liame conforme o critério eleito se é possível estabelecer um juízo de valor acerca da relação configurada, podendo esta ser materialmente mantida ou remodelada através de uma regra de justiça.

As mais importantes relações de igualdade que se podem estabelecer numa democracia são as que tangem a aquisição e gozo de direitos políticos. Quanto a isso, são muitos os critérios possíveis, podendo-se estabelecer graduações que vão da impossibilidade de sua aquisição até a sua existência, gozo e exercício plenos, sendo ainda possível estipular critérios de suspensão, perda ou mesmo cassação de tais liberdades.

Em Atenas, a ideia de igual liberdade política foi estabelecida legalmente tendo por base um jus sanguinis: só era considerado cidadão ateniense o homem maior de 18 anos cujo pai fosse ateniense e cuja mãe fosse filha de pai ateniense. A certo ponto, passou-se a exigir também que os cidadãos deliberantes tivessem se afastado de qualquer atividade econômica; medida tomada para garantir que não votariam por interesses particulares, mas com vistas à melhor gestão dos interesses da coletividade e da coisa pública.

Previa-se, assim, não apenas uma igualdade formal-legal, mas também uma mínima igualdade material a fim de se garantir a idoneidade e, então, a legitimidade e das votações. Uma atitude realçada na observação feita, séculos depois, por Rousseau [34]:

Quereis dar consciência ao Estado? – aproximai tanto quanto possível os graus extremos, não suportai nem os opulentos nem os mendigos. Estes dois estados, naturalmente inseparáveis, são igualmente funestos ao bem comum – de um saem os fautores da tirania e de outro os tiranos. É sempre entre eles que se faz o tráfico da liberdade pública; um a compra e o outro a vende.

Como se nota, o genebriano via na relativa igualdade material entre os cidadãos um elemento fundamental à democracia, justamente para garantir a legitimidade do ordenamento jurídico resultante, colaborando com a índole e a integridade do próprio corpo político.

Este é o motivo pelo qual muitos democratas do Estado Liberal negavam a extensão do voto às mulheres, aos jovens, aos escravos e aos operários, uma vez que estes, no mais das vezes, encontravam-se numa relação de dependência social, econômica e ideológica perante seus maridos, pais, senhores e patrões. O resultado desta postura foi a concentração dos bens políticos nas mãos de poucos privilegiados, tornando ainda mais excluídos os que assim já se encontravam política e socialmente, retirando-lhes a chance de fazer valer na prática as liberdades e igualdades que as liberais declarações de direitos haviam lhes conferido.

Apesar de tudo, as liberdades civis ao menos eram respeitadas, dentre elas o de imprensa, sendo por via destas que Marx, Engels, Saint Simon e outros deram início aos movimentos proletários, fazendo renascer o igualitarismo e a luta pelos direitos sociais e pela extensão dos direitos políticos. Neste ponto, quanto ao igualitarismo e o liberalismo, Bobbio [35] observa que "a proposição normativa ‘a igualdade é um bem digno de ser perseguido’ não deriva sub-repticiamente, neste caso, do juízo de fato ‘os homens nasceram ou são por natureza iguais’, mas do juízo de valor ‘a desigualdade é um mal’".

De fato, tanto Hobbes quanto Rousseau partiram do ‘estado de natureza’ embora tenham chegado a conclusões diferentes: Hobbes concebeu o homo homini lupos, Rousseau, o ‘bom selvagem’. Marx, em seu comunismo científico, não parte do estado de natureza, mas chega ao igualitarismo tal qual Rousseau através daquilo que seus olhos viam: a desigualdade social do século XIX – que certamente era um grande mal a ser combatido por um Estado que tomasse a justiça distributiva como instrumento.

Obviamente era preciso garantir uma certa igualdade material entre todos os homens além daquelas formalmente reconhecidas. Mas, em que grau? Se é verdade que nem mesmo os socialistas utópicos pregavam que todos os homens deviam ser iguais em tudo, também é verdade que os liberais não negavam um mínimo de igualdade dentre os mesmos homens. Assim, se existe uma medida mínima de igualdade (aceita inclusive pelos mais liberais) e que pode e deve ser materializada, são as previstas nas declarações de direitos humanos, que são continuamente revistas à medida que novos critérios de justiça surgem.

Como defende Bobbio [36], muito embora haja a diversidade de posicionamento entre liberalismo (individualista, conflitualista e pluralista) e igualitarismo (totalizante, harmônica e monista), a mesma não vem a constituir empecilho a uma proposta de síntese teórica e solução prática entre liberdade e igualdade, na medida em que esses valores fundamentais à democracia são, além de não-antinômicos necessariamente, parcialmente complementares, como bem se exige tanto em tese quanto na prática dos governos democráticos.

Diante disso, a questão que resta a resolver entre liberdade e igualdade é: se a desigualdade é um mal, até que ponto a igualdade é um bem? Como afirma Comparato [37], "é o princípio da solidariedade que constitui o fecho da abóbada de todo o sistema de direitos humanos", de forma que, hoje, se há um Estado que busca harmonizar liberdade e igualdade, este é o Estado Democrático de Direito, cuja gênese deu-se com a soma dos direitos de primeira dimensão (liberdades civis e públicas) e de segunda geração (direitos sociais) aos de terceira geração (direitos de solidariedade) visando estabelecer entre eles o equilíbrio ideal com base na dignidade inerente à condição humana.

6.3. Democracia e Fraternidade

Bobbio [38] diz que a fraternidade pertence a uma outra linguagem, mais religiosa que política. Todavia, em verdade, além de possível, é necessário compreender que a fraternité constitui o fio primeiro e um valor fundamental da democracia, como se passa a examinar.

Tal postura evidencia-se em Atenas: como dito antes, só gozavam de direitos políticos os homens cujo pai fosse ateniense e cuja mãe fosse filha de pai ateniense. Um jus sanguinis que invariavelmente remete o estudo às origens mitológicas da civilização helênica.

Conforme a mitologia grega, Deucalião e Pirra – equivalentes a Noé e sua esposa na Bíblia cristã – teriam sido os responsáveis por repovoar a Terra após o grande dilúvio provocado pela ira de Zeus sobre a humanidade. Dentre os filhos deles estaria Helen, considerado o pai de todos os gregos. Por esse motivo os gregos haveriam chamado sua terra de Hélade (terra de Helen) e a si próprios de helenos (filhos de Helen).

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Assim, a origem comum (isogonia) e, portanto, a literal fraternidade entre os cidadãos atenienses, determinava a aquisição de direitos políticos e a igualdade legal (isonomia) entre os mesmos. Neste sentido, as palavras de Sócrates em trecho do Menêxenos, de Platão [39]:

Nós e os nossos – conclui –, nascidos irmãos da mesma mãe, não pretendemos ser entre nós servos e senhores, mas a igualdade de nascimento nos obriga a buscar também a igualdade legal e a não a ceder a ninguém mais, a não ser no apreço da virtude e da inteligência (239a).

O relato se confirma pelo fato de que, realmente, a Ecklésia de modo excepcional tinha o poder de conferir a qualidade de cidadão a quem não preenchesse os requisitos consanguíneos ou sociais. Ressalte-se, aliás, que Bobbio [40] não ignora esses elementos:

(...) não falta ao pensamento grego a idéia de que o ponto de partida da melhor forma de governo seja a igualdade de natureza ou de nascimento, a isogonia, que fez todos os indivíduos iguais e igualmente dignos de governar. (...). Para o [seu] ulterior enraizamento no pensamento político ocidental contribuiu a idéia cristã dos homens irmãos enquanto filhos de um único Deus (...).

A esta colocação, junte-se ainda o fato de que, para além da doutrina e do império cristãos, a ideia de fraternidade serviu inclusive para criticar a Igreja e o absolutismo. Tarefa esta muito bem retratada em irônica passagem do Contrato Social, de Rousseau [41]:

Nada disse o rei Adão, nem o imperador Noé, pai dos três grandes monarcas que dividiram entre si o universo, [...]. Espero que apreciem minha moderação, pois, descendendo diretamente de um desses príncipes, e talvez do ramo mais velho, quem sabe se não chegaria, depois da verificação de títulos, à conclusão de ser eu o legítimo rei do gênero humano?

Hoje, a fim de se traçar uma ligação entre a antiga ideia de isogonia/fraternidade e a atual noção de solidariedade, poder-se-ia tranquilamente entender como fundamento desta e como forma análoga daquela um liame muito mais fundamental e nítido: a condição humana. Eis a razão última da solidariedade e forma mais atualizada de isogonia enquanto fundamento de legitimidade e titularidade de direitos mínimos por todos os seres humanos. Direitos que, para além daqueles ditos humanos e fundamentais, se traduzem num conceito muito mais fluído, abrangente e substancialmente aferível denominado ‘dignidade da pessoa humana’.

Além disso, hoje a solidariedade não se liga só à noção de doação, mas também à de reciprocidade: o compartilhar e o participar baseados na (co)existência essencial estabelecida com ‘o outro’ na construção do indivíduo e da sociedade (alteridade). Ideia que se manifesta em elementos atuais, como direito à diferença, consciência social, sustentabilidade ambiental e na própria Internet – já proclamada ‘ágora digital da aldeia global’.

Esta solidariedade, contudo, também não é irrestrita – a exemplo dos demais valores informadores da democracia – já que deve encontrar um ponto de equilíbrio com a auto-superação do homem através da promoção de uma competição ética e saudável (fair play) com vistas ao desenvolvimento integral dos indivíduos em sociedade.

Assim, inevitável é a conclusão: o frágil equilíbrio entre liberdade e igualdade só pode ser obtido através de um terceiro elemento, fundamental à sobrevivência de um sistema democrático e inerente à própria dignidade da pessoa humana: a solidariedade entre os membros da ‘família humana’ [42].

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Sobre o autor
Diego Nassif da Silva

Advogado, graduado pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, campus da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), pós-graduado (especialização) em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Diego Nassif. Democracia: um resumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2506, 12 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14837. Acesso em: 19 abr. 2024.

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