Artigo Destaque dos editores

Democracia: um resumo

Exibindo página 3 de 4
12/05/2010 às 00:00
Leia nesta página:

7. UM DIREITO FUNDAMENTAL

Este entendimento de que a democracia constitui um complexo harmônico e ideal de valores ganha o amparo de José Afonso da Silva [43], que afirma que a democracia não é por si um valor-fim, mas "meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos humanos".

Disto, é de se questionar se a democracia constituiria, ela mesma, um direito humano ou fundamental, já que, se entrelaçando tão intimamente com valores de liberdade, igualdade e alteridade e respectivas gerações de direitos, não poderia ser ela de natureza tão diversa.

Segundo Paulo Bonavides [44], a democracia seria o ‘regime de garantia geral’ para a realização dos direitos fundamentais do homem, sendo ela mesma um direito fundamental da pessoa humana de quarta geração – juntamente com os direitos à informação e ao pluralismo –, de maneira que os direitos de primeira, segunda e terceira gerações seriam, na verdade, suas infra-estruturas que formariam "a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia".

Comparato [45] acrescenta que da Declaração Universal de 1948 é possível extrair a "afirmação da democracia como único regime político compatível com o pleno respeito aos direitos humanos" (arts. XXI e XXIX, alínea 2), de modo que "o regime democrático já não é, pois, uma opção política entre muitas outras, mas a única solução legítima para a organização do Estado" e – acrescente-se – da sociedade.

O mesmo autor [46], com base no artigo 25 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ainda comenta ser possível afirmar que:

(...) as constituições nacionais que não reconhecem, hoje, as instituições da democracia direita (plebiscito, referendo, iniciativa popular, orçamento participativo) são não apenas ilegítimas como na verdade contrárias à ordem internacional dos direitos humanos.

Assim, ainda que grandes potências mundiais sejam regimes autocráticos, incentivem ou tomem iniciativas autoritárias, hoje, inegavelmente, a democracia configura-se como um direito humano e, no Brasil, também um direito fundamental (art. 14 da CR/1988) [47].


8. PRESSUPOSTOS?

Bobbio certa vez indagou se seria possível a sobrevivência de um Estado democrático numa sociedade não democrática [48]. De maneira genérica, isto leva a questionar se existem pressupostos à democracia – um ponto no qual a atenção com as palavras deve ser redobrada.

Se tomada a ‘democracia’ unicamente como democracia política, como parece fazer Ferreira Filho, há que se convir que "as circunstâncias e a conjuntura evidentemente condicionam o tipo e o grau de democracia que é possível a cada momento" [49], não existindo um modelo imutável e universal de regime democrático. Ou seja, assim como qualquer outra forma de governo, a democracia possível em uma dada realidade depende de questões sociais, econômicas, culturais, institucionais, dentre outras, tornando-se, por isso, verdadeiros requisitos, pressupostos ou condições para o seu real implemento.

Os que se colocam opostos a esta opinião tomam a democracia em termos mais amplos, estando dentre eles José Afonso da Silva, que afirma [50]:

Ora, em verdade a tese inverte o problema, transformando, em pressupostos da democracia, situações que se devem ter como parte de seus objetivos: educação, nível de cultura, desenvolvimento, que envolva a melhoria de vida, aperfeiçoamento pessoal, enfim, tudo se amalgama com os direitos sociais, cuja realização cumpre ser garantida pelo regime democrático. Não são pressupostos desta, mas objetivos. Só numa democracia pode o povo exigi-los e alcançá-los.

Finalmente, os que reclamam que a democracia nunca fora realizada em sua pureza em lugar algum concebem-na como um conceito estático, absoluto, como algo que há que instaurar-se de uma vez e assim perdurar para sempre. Não percebem que ela é um processo, e um processo dialético que vai rompendo os contrários, as antíteses, para, a cada etapa da evolução, incorporar conteúdo novo, enriquecendo novos valores. Como tal, ela nunca se realiza inteiramente, pois, como qualquer vetor que aponta valores, a cada nova conquista feita, abrem-se outras perspectivas, descortinam-se novos horizontes ao aperfeiçoamento humano, a serem atingidos.

Posta a divergência, ambos as posições parecem estar corretas ao mesmo tempo em que se colocam opostas; e a razão desta ambivalência parece simples: são doutrinas muito mais complementares do que divergentes. E isto fica claro quando C. B. Macpherson, em outro contexto (apatia política), debruçou-se sobre a investigação de meios para impulsionar a democracia participativa, vindo ele a deparar-se com a seguinte verificação [51]:

(...) não podemos conseguir mais participação democrática sem uma mudança prévia da desigualdade social e sua consciência, mas não podemos conseguir as mudanças da desigualdade social e na consciência sem um aumento antes da participação democrática.

Macpherson, de certa forma, atingiu o mesmo paradoxo existente na oposição entre os discursos de Ferreira Filho e José Afonso: o primeiro verifica existirem condições materiais para a democracia e o segundo afirma serem improváveis tais pressupostos sem a prévia existência de uma verdadeira democracia (política e social). Segundo Macpherson, um ‘círculo vicioso’ [52] no qual não se poderia esperar a mudança em um dos termos sem pressupor a mudança no outro, vindo a concluir [53]:

Desse modo, devemos procurar saídas em outra parte do círculo, isto é, procurar mudanças já visíveis ou em perspectiva [...]. Se verificarmos mudanças que sejam não só já perceptíveis mas que sejam, atribuíveis a forças ou circunstâncias que tenham probabilidade de operar com efeito cumulativo, então podemos ter alguma esperança de uma ruptura. E se as mudanças forem de natureza a incentivar mudanças recíprocas nos demais fatores, tanto melhor.

Os dois requisitos de ordem material apontados pelo canadense (maior igualdade social e consciência política) são, no fundo, uma colocação genérica daquilo que Ferreira Filho pôs como pressupostos da democracia; já o movimento recíproco a ser implementado entre estes pressupostos e a maior participação democrática tem clara correspondência com o processo dialético apontado por José Afonso.

Com isso, a relação entre condições sócio-econômicas mínimas e consciência política como pressuposto para a participação político-democrática ressalta de sobremaneira a interdependência entre a democracia social e a democracia política. Uma imagem que reforça a atual ideia de que a democracia envolve necessariamente a participação constante do povo em termos mais amplos do que a simples participação periódica no processo eleitoral.

Concluindo, não há que se falar necessariamente em pressupostos para a democracia, pois constitui ela, sob seu aspecto histórico-evolutivo, um processo dialético contínuo e equilibrado entre a democracia social e a democracia política. A democracia só existe em movimento, o qual só é obtido com a contínua participação política do povo tanto na esfera propriamente política quanto na esfera social, sendo certo que, de maneira ideal, ambos, democracia política e democracia social, devem evoluir conjuntamente, sem grandes disparidades, a fim de que se garanta a solidez e o equilíbrio de seu processo evolutivo.


9. DICOTOMIAS DA DEMOCRACIA

Por fim, é possível ainda afirmar que este processo de evolução da democracia, enquanto sistema, parece vir se operando principalmente sobre quatro eixos autônomos, embora complementares, de ideias, que se revelaram à medida que a teoria democrática foi sendo historicamente posta em prática nas sociedades. São eles:

a. Poder Impessoal vs. Poder Pessoal:

Em verdade, trata-se da dicotomia feita entre o ‘governo de homens’, que se dá através de impulsos e ordens de natureza pessoal e arbitrária, e o ‘governo de leis’, que procede através de normas gerais e impessoais dotadas de validade consoante adequação à ordem jurídica pré-estabelecida [54]. Em suma: o Rule of Law [55] (Supremacia do Direito), composto de três princípios básicos ao Estado de Direito: legalidade, isonomia e devido processo legal.

Cuida-se, ademais, do diferencial existente entre a democracia e a ‘ditadura da maioria’, posto que aquela, diferentemente desta, submete-se a um Estado de Direito, e não só aos desejos de uma maioria eventual. A propósito, Bobbio [56], sob um prisma formal, conclui que "a democracia é o governo das leis por excelência", posto que se traduz exatamente no "conjunto de regras (as chamadas regras do jogo) para a solução dos conflitos sem derramamento de sangue".

Contudo, atente-se que, como já visto, o paradigma legal vem sendo paulatinamente evoluindo para um outro, de índole ético-normativa, passando-se as discussões do espaço da estrita legalidade para o universo da juridicidade (legalidade + legitimidade) [57].

b. Poder Ascendente vs. Poder Descendente:

É o cerne da teoria democrática enquanto essência, constituindo a ideia de que o Estado e o governo legítimos são frutos da lei legítima (Rule of Law), e esta resultado da convenção na qual os detentores do poder soberano (o povo [58]) dispõem igualmente sobre suas liberdades de modo voluntário e consciente com vistas à consecução de um bem comum. Um processo autônomo de normogênese que, embora pareça se revestir de um caráter meramente procedimental, tem no respeito à dignidade da pessoa humana o seu fundamento último.

c. Poder Distribuído vs. Poder Concentrado:

Trata-se da teoria pluralista segundo a qual a sociedade não é homogênea, não estando o poder, a opinião ou a vontade política concentrados no Estado, e sim distribuídos e em constante movimento e transformação por todo o tecido social [59]. Aliás, na lição de Bobbio [60]:

A teoria democrática e a teoria pluralista têm em comum o fato de serem duas propostas diversas mas não incompatíveis (ao contrário, convergentes e complementares) contra o abuso de poder; representam dois remédios diversos mas não necessariamente alternativos contra o poder exorbitante. A teoria democrática toma em consideração o poder autocrático, isto é, o poder que parte do alto, e sustenta que o remédio contra este tipo de poder só pode ser o poder que vem de baixo. A teoria pluralista toma em consideração o poder monocrático, isto é, o poder concentrado numa única mão, e sustenta que o remédio contra este tipo de poder é o poder distribuído.

Contemporaneamente, seu surgimento operou-se em dois momentos: inicialmente, ampliando a base da democracia política com a extensão dos direitos políticos substanciais, especialmente o de sufrágio (quem vota?), gerando o pluripartidarismo das atuais sociedades de massa; e, posteriormente, ampliando as bases da democracia com a extensão de estruturas e sistemas democráticos para fora do edifício jurídico-político estatal (onde vota?), reconhecendo o teor político naquilo que não é propriamente estatal [61], atribuindo relevância política à sociedade, seus aparelhos e instituições sociais (e.g., a família, a escola, a empresa, a comunidade, o mercado etc.) e configurando as atuais democracias participativas.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

d. Poder Cognoscível vs. Poder Incognoscível:

Cuida-se da teoria publicista, segundo a qual não existe república e nem representação política sem que haja sua visibilidade (cognoscibilidade [62]) por parte daqueles que teoricamente lhe dão legitimidade e fundamento [63]. E que, portanto, tudo aquilo que tanger aos direitos destes homens e não for passível de tornar-se de seu conhecimento – sem que haja justificação plausível e limitação no tempo [64] – são indignas de serem referentes a tais direitos, ou seja, são injustas ou, se preferir, ilegítimas [65].

É uma ideia óbvia para uma democracia direta na qual o povo deve saber sobre o quê delibera, mas que tem importância acentuada na democracia representativa onde se exige que os representantes ajam publicamente, mostrando que atendem ao interesse público.

Sem transparência e sem uma ética comunicante a coisa pública torna-se privada, restrita a um grupo privilegiado, deslegitimando o sistema e tudo que dele decorre. E apesar da simulação e dissimulação serem próprias das relações políticas, o Estado Democrático de Direito tem como um grande desafio hoje justamente esta cognoscibilidade do poder público, como condição à formação de uma opinião pública autêntica, consciente de seu papel participativo, de controle e de fomento [66] (de auto-afirmação dir-se-ia até) – veja-se, a propósito, a valorização da transparência, da ética, da consciência, da informação, da linguagem e comunicação, da interatividade etc. nas atuais ‘sociedades de controle’.


10. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O presente trabalho científico buscou trazer de maneira bastante sucinta e objetiva ao menos parte do conteúdo cultural adquirido pela ideia de democracia ao longo dos seus séculos de história, visando extrair dela uma ‘imagem conceitual geral’ apta a contribuir à melhor compreensão do elemento democrático, especialmente o contido na fórmula Estado Democrático de Direito, estabelecida no Brasil através da Constituição de 1988.

Neste exercício, verificou-se que definir o vetor sob a qual a democracia é enfocada (forma de governo, regime de governo, sistema de governo, ideologia, complexo de valores ou direito fundamental – dentre outros eventualmente possíveis) constitui requisito essencial à maior cientificidade dos estudos sobre este conceito que, definitivamente, não é unívoco.

Viu-se que não há que se falar necessariamente em pressupostos para a democracia, mas antes em um equilibrado processo dialético desenvolvido entre democracia política e democracia social e impulsionado pela participação política no Estado e nos mecanismos de poder que existem fora, abaixo e ao lado dele. Aliás, processo este que parece amparar-se e progredir sobre eixos de legalidade, legitimidade, pluralismo e cognoscibilidade.

Por fim, impende ainda asseverar que a principal conclusão obtida neste estudo é a de que a democracia constitui conceito que, em última análise, floresce da própria condição humana, sendo possível e necessário aferi-la em todas as relações traçadas entre os membros da ‘família humana’ como condição sine qua non à consecução do ambiente que favoreça o desenvolvimento integral do homem, tanto individual quanto socialmente.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Diego Nassif da Silva

Advogado, graduado pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, campus da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), pós-graduado (especialização) em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Diego Nassif. Democracia: um resumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2506, 12 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14837. Acesso em: 18 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos