Artigo Destaque dos editores

Uma análise do controvertido art. 1830 do CC/02, sob um cotejamento civil-constitucional

Exibindo página 2 de 4
21/05/2010 às 00:00
Leia nesta página:

3. OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Por uma acepção mais ampla, a palavra sucessão nos remete a ideia de afastamento de uma pessoa de uma determinada relação, para que, em seu lugar, outra venha a assumir.

A sucessão decorre por atos entre pessoas vivas (sucessão inter vivos) ou por causa morte (sucessão mortis causa).

Porém, para o Direito Sucessório, só interessa a transmissão advinda da morte. Ou seja, seu objeto de estudo é a transmissão gratuita de bens e obrigações do falecido. Deste modo, assevera Cateb (2003, p. 25):

O Direito das Sucessões tem como fator natural a morte do sujeito e a transferência de seus direitos e obrigações a uma ou mais pessoas vivas, segundo as regras ditadas pelo Código Civil ou por leis específicas que venham a vigorar.

Portanto, o referido ramo do Direito disciplina a transmissão do patrimônio do de cujus [09] aos seus sucessores. Válido ressaltar que, o patrimônio transmissível compreende o conjunto de direitos e obrigações, de créditos e débitos, englobando, assim, o patrimônio ativo e passivo do falecido [10].

Deste modo, podemos destacar como principais pressupostos da sucessão mortis causa, a ocorrência do falecimento de alguém titular de um patrimônio e a sobrevida de outras pessoas, que virão a sucedê-lo na titularidade dos direitos e obrigações por ele deixados (CATEB, 2003).

Quando analisada a sua fonte, exsurge que a transmissão do patrimônio decorrente da morte do autor da herança se dará de duas maneiras: ou decorrerá da manifestação última de vontade do falecido que deixa testamento sobre a quota disponível de bens [11], estabelecendo as pessoas que irão herdar (sucessão testamentária); ou decorrerá dos casos de inexistência, invalidade ou caducidade de testamento e, também, em relação aos bens nele não compreendidos (sucessão legítima). Neste caso, o chamamento dos sucessores respeitará uma ordem de vocação hereditária pré-estabelecida em lei.

Todavia, importante destacar que a sucessão testamentária pode conviver com a legítima, nos casos em que houver herdeiro necessário, a quem a lei assegura o direito à legítima, ou quando o testador dispuser apenas de parte de seus bens.

A Constituição Federal assegura, em seu art. 5º, XXX, o direito de herança, consagrando-o, portanto, como uma garantia fundamental dos cidadãos. Entretanto, o legislador constituinte não estabeleceu as regras a serem aplicadas em relação a tal instituto, deixando a cargo do legislador infraconstitucional tal tarefa.

Neste mesmo diapasão, destacam-se os ensinamentos de Barboza (2005, p. 160):

Indispensável observar que, a garantia do direito à herança pela Constituição Federal (art. 5º, XXX), relaciona-se, primordialmente, com o direito à propriedade privada, assegurando sua transmissão no caso de morte do titular, conforme a lei. Cabe ao legislador ordinário estabelecer a vocação hereditária, indicar os herdeiros necessários, determinar quotas.

Feitas estas breves considerações iniciais acerca dos direitos sucessórios, passa-se para a análise detida do tratamento das normas infraconstitucionais que versam sobre tais direitos em relação aos cônjuges e em relação aos companheiros.

3.2 Direitos sucessórios do cônjuge

3.2.1 Evolução histórica

Durante todo o século XIX e início do século XX, o Brasil foi regido pelo Direito Português, composto, sobretudo, pelas Ordenações Filipinas. Durante todo este período, a ordem de vocação hereditária foi a seguinte: 1º) descendentes; 2º) ascendentes; 3º) colaterais até o décimo grau; 4º) cônjuge; 5º) Fisco. [12] (MONTEIRO, 2003).

Deste modo, sob o regramento das Ordenações Filipinas, os colaterais detinham uma superioridade em relação aos cônjuges no que se refere a sua posição frente à ordem vocacional, visto que estes últimos eram remotamente convocados a sucessão, enquanto os primeiros tinham vocação hereditária até o décimo grau.

Com a lei Feliciano Pena (Lei nº 1839, de 31 de dezembro de 1907) ocorreram profundas modificações no sistema sucessório pátrio. Tal diploma legal, além de limitar o parentesco transversal até o sexto grau, também estabeleceu que o cônjuge sobrevivente passasse a ocupar o terceiro lugar - antecedendo aos colaterais - na ordem de vocação hereditária (CATEB, 2003).

Já sob a vigência do Código Civil de 1916, o cônjuge continuou a ser tratado em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária. Neste sentido, dispunha o artigo 1603 desse Código, in verbis:

Art. 1603 – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes;

II – aos ascendentes;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais;

V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União [13].

Naquele momento, o cônjuge ainda não estava arrolado entre os herdeiros necessários, permitindo-se, assim, que, por exemplo, o marido pudesse afastar sua esposa da sucessão dispondo de seu patrimônio em favor de terceiros através de testamento [14].

Ademais, em seu artigo 1611, o Código Civil de 1916, estabelecia que o cônjuge sobrevivente só seria chamado a suceder se, ao tempo da morte do outro, não estivesse dissolvida a sociedade conjugal. Portanto, a separação judicial tinha o condão de extinguir o direito à herança [15].

Destarte, pode-se sintetizar o exposto, afirmando que o cônjuge só seria chamado a suceder se ocorressem concomitantemente as seguintes situações: a) o de cujus não tivesse ascendentes ou descendentes; b) o falecido não tivesse deixado disposição testamentária excluindo o seu cônjuge da sucessão; c) ao tempo da morte, não estivesse dissolvida a sociedade conjugal.

De considerável relevância, foi a entrada em vigor da Lei nº 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada), que, visando proteger a mulher que poderia ficar desamparada após a morte de seu marido, instituiu o usufruto vidual e o direito real de habitação, inserindo-os, respectivamente, nos §§ 1º e 2º do art. 1611 do Código Civil anterior (TARTUCE & SIMÃO, 2007).

Pode-se concluir que, ao longo do último século, houve um significativo progresso no que se refere ao tratamento dos direitos sucessórios do cônjuge. Entretanto, tal evolução se consagrou verdadeiramente com a entrada em vigor do atual Código Civil brasileiro em 2002, que, finalmente, colocou o cônjuge supérstite em uma posição destacada em relação aos demais sucessores.

3.2.2 Direitos sucessórios do cônjuge atualmente (CC/02)

Nesta seara, sem dúvida, a alteração mais significativa foi a inclusão do cônjuge como herdeiro necessário [16] também nas duas primeiras classes preferenciais, em concorrência, portanto, com descendentes e ascendentes, conforme se extrai do artigo 1829:

Art. 1.829 – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.

Destarte, o cônjuge passou a ter direito à legítima, podendo herdar concorrentemente com descendentes ou ascendentes, ou exclusivamente, caso não haja sucessor em linha reta.

Entretanto, conforme dispõe o artigo supracitado, o cônjuge sobrevivente não concorrerá com os descendentes, caso aquele tenha se casado com o autor da herança sob os regimes da comunhão universal de bens [17], separação obrigatória (legal) de bens [18] ou comunhão parcial de bens, se o falecido não houver deixado patrimônio particular [19].

Assim, em relação aos descendentes, o regime de bens do casamento continua a ser utilizado como critério para se aferir os direitos sucessórios cabíveis ao cônjuge supérstite, ao contrário do que ocorre em relação aos ascendentes.

Além disso, dentre as importantes mudanças originadas no Código Civil de 2002, podemos destacar a extinção do usufruto vidual e o fortalecimento do instituto do direito real de habitação trazido agora no artigo 1831:

Art. 1831 - Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

Como se pode observar, o direito real de habitação foi estendido a qualquer regime de bens. Portanto, qualquer que seja o regime de bens adotado pelos cônjuges na época do casamento, permanecerá válido o direito do cônjuge à habitação do imóvel que era destinado à residência da família, sendo admitido inclusive para o regime da separação legal (CATEB, 2003).

Além disso, o novo Código não repetiu a expressão "enquanto viver e permanecer viúvo", permitindo-se aferir que tal direito não mais se submete à condição resolutiva de superveniência de casamento ou união estável do cônjuge sobrevivente, sendo somente a morte deste último a causa para extinção.

Por outro lado, o novo Código não apenas manteve uma restrição ao gozo destas prerrogativas pelo cônjuge sobrevivente, como ampliou tal limitação. Ocorre que, o novo Código estabeleceu em seu artigo 1830 que o direito sucessório do cônjuge supérstite se encerra não mais apenas com a dissolução da sociedade conjugal, mas também quando o casal estiver separado de fato a mais de dois anos, salvo se provar que a convivência se tornou impossível sem culpa do sobrevivente.

No que se refere à exclusão pela separação judicial não há o que se criticar, visto que, realmente não faz sentido atribuir direitos sucessórios a uma pessoa que já não mais mantinha vínculo matrimonial com o autor da herança à época de seu falecimento.

De outro modo, não há uma harmonia na doutrina no que tange a inclusão da separação de fato como mais uma possibilidade de se vir a excluir a vocação hereditária do cônjuge supérstite. Além disso, o fato do novo Código Civil trazer o questionamento da culpa pela extinção da convivência também é matéria que gera posicionamentos conflitantes.

3.2.2.1 Culpa: o verdadeiro motivo para o fracasso da relação?

A introdução da possibilidade de discussão de culpa, no âmbito do processo de inventário, para apuração das causas da separação de fato vai de encontro aos progressos que vinham sendo alcançados no trato da matéria. Condenando tal retrocesso, diversos juristas sustentam a necessidade de se afastar tal aferição de culpa até mesmo no âmbito da separação judicial. Corroborando tal tendência ora afirmada, destacam-se neste sentido os dizeres de Tartuce & Simão (2007, p. 193-194):

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Diante da emergência da valorização da dignidade da pessoa humana, amparada no Texto Maior, a tendência dos nossos Tribunais, balizada nos entendimentos dos juristas que compõem o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), é justamente de afastar a discussão da culpa em ações dessa natureza.

Nesse diapasão, encontra-se o entendimento jurisprudencial:

Separação judicial. O exame da culpa deve ser evitado sempre que possível. Quando termina o amor, é dramático o exame da relação havida, pois, em regra, cuida-se apenas da causa imediata da ruptura, desconsiderando-se que o rompimento é resultado de uma sucessão de acontecimentos e desencontros próprios do convívio diuturno, em meio também às próprias dificuldades pessoais de cada um. Se o varão alega abandono do lar pela mulher e esta disse que foi expulsa do lar, além de ser ofendida pelo marido, descabe questionar a culpa, mormente porque existem indícios de adultério pela mulher e também de que ela foi forçada a sair do lar (BRASIL, TJRS, 2008:a) [20].

Interessante notar que a despeito dos posicionamentos jurisprudenciais mais atualizados que já vinham reconhecendo a dificuldade de se determinar de quem seria a culpa pelo fracasso da relação, o legislador acabou optando por manter a culpa como causa para a dissolução da sociedade conjugal.

Se nem mesmo os cônjuges em grande parte das vezes são capazes de determinar o os motivos para o fim da relação, seria uma tarefa extremamente difícil atribuir tal ônus ao juízes.

A dissolução da sociedade conjugal já representa um grande fardo para aquela entidade familiar, sendo desnecessário um desgastante processo judicial que venha a reascender dores e questionamentos quanto à determinação do motivo da dissolução daquele vínculo.

O vínculo conjugal se desfaz, portanto, não simplesmente porque um dos cônjuges descumpriu deveres que estava legalmente obrigado a cumprir [21], mas por ausência de afeto, o que independe da aferição da culpa.

Mais incoerente ainda, seria estabelecer tal aferição como requisito para se determinar a exclusão ou não do cônjuge supérstite da ordem de vocação hereditária, conforme estabelece o artigo 1830 do CC/02.

Em suma, ao se analisar a tendência contemporânea doutrinária e jurisprudencial verifica-se a impertinência na manutenção da aferição da culpa nestes casos.

Concluindo o que foi trazido no presente tópico, notáveis são os dizeres de Pereira (2001, p.1):

A dor da separação parece ser integrante de nossa vida e nos acompanha desde o nascimento: a primeira é o corte do cordão umbilical e o ir desfazendo-se da simbiótica relação mãe-e-filho. Depois, o eterno tornar-se adulto significa separar-se dos pais, ainda que simbolicamente. Separamos de amigos, irmãos, colegas de trabalho, namoradas, amantes e em diversas, outras circunstâncias. Separação seja qual for o motivo, não é fácil e está sempre acompanhada de dor e sofrimento. A separação em razão da morte, não tem remédio. Nada se pode fazer a não ser elaborar o luto, dando tempo ao tempo. Talvez uma das mais difíceis formas de separação seja a da conjugalidade. Separação de casais significa muito mais que isso. Significa desmontar uma estrutura e perder muita coisa. Perder estabilidade, padrão de vida, status de casado etc., etc. A dor maior nessas separações é o defrontarmos com a nossa solidão e a constatação de que não temos mais aquele outro que pensávamos nos completar. Embora saibamos pela razão, de que somos seres de falta e que o outro pode ser apenas o tamponamento de nossa solidão, insistiremos sempre na completude do ser. Pura ilusão! Uma das características básicas do ser humano é a falta, e também o erro em pensar que podemos atingir a completude. Completo, só Deus! É nesta dificuldade com a separação que muitas vezes se instala o litígio conjugal. E aí, apoiados pelo Direito, procura-se atribuir ao outro a culpa pelo fracasso da relação. Claro! É multo mais fácil achar que o outro é o culpado, pois assim nos isentamos de responsabilidades e ficamos justificados para nós mesmos, como se fosse unilateral a responsabilidade pelo fim da relação(...)É preciso separar as questões da objetividade, da subjetividade. (sem grifo no original)

3.3 Direitos sucessórios do companheiro

3.3.1 Concubinato e União Estável - Diferenças entre amantes e companheiros

Inicialmente, é válido ressaltar a atual diferença conceitual entre concubinato e união estável, já que por muito tempo se utilizou tais expressões como sinônimas.

Antes da CF/88 não se falava em união estável, havendo apenas a diferenciação entre concubinato impuro, que seriam as relações adulterinas e incestuosas, e concubinato puro, que corresponderia ao atual conceito de união estável. "Assim, a concubina seria a companheira. Entretanto, não se pode fazer tal confusão, principalmente no que diz respeito à pessoa que vive em união estável" (TARTUCE, 2007, p. 256).

Portanto, atualmente entende-se que o concubinato é uma relação extra-oficial, paralela ao casamento ou à união estável. Estariam os concubinos em uma situação de adultério.

Já a união estável trata-se de uma relação pública, estável, duradoura e com intenção de constituir família.

Logo, o que anteriormente a promulgação da Constituição Federal, era denominado de concubinato puro, é o que chamamos hoje de união estável, reconhecida como entidade familiar, conferindo-lhe uma série de direitos.

3.3.2 Evolução histórica

De uma forma geral, durante muito tempo, o legislador brasileiro tratou as relações extraconjugais de maneira muito restritiva em virtude de tais serem consideradas como sendo imorais.

Dessarte, por inegável influência religiosa, em virtude da concepção de que o casamento era o único meio legítimo para a formação da família, nosso ordenamento jurídico proscrevia tais relações extraconjugais, impondo-lhes muitas vezes uma série de sanções, tais como restrições a doação [22] e a vedação a participação testamentária (WALD, 2005).

Entretanto, a evolução da instituição familiar, com o reconhecimento de outras formas de constituição familiar, trouxe modificações significativas, fazendo com que o tratamento conferido a tais relacionamentos começasse, paulatinamente, a ser abrandado pela doutrina e pela jurisprudência.

Gradualmente uma série de direitos começaram a ser conferidos à companheira, dentre os quais podemos exemplificar o seu reconhecimento como beneficiária da indenização no caso de acidente de trabalho (Decreto-lei nº 7036/44; Lei nº 6367/75 e Lei nº 8213/91), a inserção daquela como dependente do contribuinte falecido (Lei nº 4297/63 e Lei nº 6194/74) [23] e a possibilidade da companheira usar o sobrenome do seu companheiro [24] (TEPEDINO, 2001:b).

Todavia, a jurisprudência não reconhecia direito a companheira quando da dissolução da sociedade conjugal. Entretanto, com o aumento do número de entidades familiares baseadas em uniões estáveis, os tribunais começaram a atuar no sentido de reconhecer uma maior gama de direitos às pessoas que se unem pelo vínculo do companheirismo quando da dissolução desta sociedade.

Surgiram assim, no âmbito jurisprudencial, duas soluções para amparar a companheira. A primeira se referia ao ajuizamento de Ação de Reconhecimento e Dissolução de Sociedade de Fato, para que assim se procedesse à partilha dos bens adquiridos por esforço comum, a exemplo do que ocorria na liquidação de uma sociedade de fato [25]. Já a segunda consistia em atribuir indenização à companheira à título de serviços domésticos prestados.

Ou seja, aplicavam-se às pessoas que se unem pelo vínculo do companheirismo regras relativas ao Direito das Obrigações.

Como já visto no presente trabalho, a união estável veio a ser reconhecida como entidade familiar através da promulgação da CF/88 que, em seu art. 226, § 3º, a reconheceu como entidade familiar merecedora de proteção Estatal.

Neste momento, houve pronunciamentos na jurisprudência no sentido de atribuir direitos à sucessão causa mortis àqueles que viviam sob o regime da união estável. Este entendimento era seguido por autores e juízes que defendiam a auto-aplicabilidade do dispositivo constitucional supracitado, estendendo para os companheiros os direitos conferidos aos cônjuges (SANTOS, 2005).

Como exemplo, destaca-se o voto da Desembargadora Maria Berenice Dias:

(...) o reconhecimento da ocorrência deste fenômeno, por si só evidencia independer de qualquer regramento infraconstitucional a imediata eficácia da norma constitucional. O exaustivo material legislativo que disciplina os direitos e deveres das relações decorrentes do casamento, sua dissolução, as obrigações alimentares, bem como as conseqüências no âmbito sucessório, autoriza a imediata aplicação destes institutos com referência às nominadas uniões estáveis, proclamadas pela Carta Magna como entidades familiares, dentro das disposições que trata da família, à qual outorga especial proteção. (BRASIL, TJRS, 2008:b).

Por outro lado, existem aqueles que partilham o entendimento de que a união estável não seria uma entidade exatamente igual ao casamento. Os adeptos de tal posicionamento fundamentam seu entendimento afirmando que, ao permitir a conversão da união estável em casamento, o constituinte deixou clara a existência de diferenças entre as duas entidades, visto que, coisas iguais não se convertem uma na outra.

Sendo assim, justamente por isso, não seria possível estender o tratamento conferidos as pessoas ligadas pelos laços do matrimônio também às pessoas ligadas pelo vínculo do companheirismo (TARTUCE & SIMÃO, 2007).

Porém, a verdadeira inovação no trato dos direitos sucessórios dos companheiros se deu com a promulgação das Leis 8971, de 29 de dezembro de 1994, e a de nº 9278, de 10 de maio de 1996, que em consonância com a nova perspectiva constitucional no reconhecimento das uniões estáveis, passaram a outorgar direitos a companheiros até então desconhecidos em nossa legislação. (CATEB, 2003).

A Lei nº 8971, além de estabelecer o direito da companheira a alimentos, passou também a atribuir direitos à sucessão causa mortis àqueles que viviam sob o regime da união estável. O artigo 2º desse diploma legal prevê:

Artigo 2º - As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:

I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste ou comuns;

II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;

III – na falta de descendentes ou ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.

Entretanto, conforme disposto no artigo 1º do mesmo diploma legal [26], tais direitos só seriam conferidos caso o homem fosse solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo e tivesse formado união estável com a mulher com duração mínima de cinco anos ou houvesse filho proveniente dessa união.

Os dois primeiros incisos do art. 2º da Lei nº 8971 estabelecem que o companheiro sobrevivente teria direito ao usufruto de parte dos bens deixados pelo autor da herança enquanto não constituísse nova união.

Neste caso, o companheiro supérstite teria direito ao usufruto da quarta parte dos bens deixados pelo falecido, se houvesse filhos deste ou comuns, ou a metade dos bens, se não houvesse filhos, mas existissem ascendentes.

Nesta seara, interessantes são os dizeres de Pereira (2007, p. 540):

A lei não restringiu o direito ao usufruto apenas sobre bens adquiridos com esforço comum. Portanto, os percentuais relativos à "quarta parte" ou "metade" acima referidos deveriam ser calculados sobre todos os bens que compunham a herança.

Por fim, o inciso III do artigo sob análise trazia a possibilidade de, não havendo ascendentes e descendentes, o companheiro sobrevivente ter direito à totalidade da herança, respeitado o direito do de cujus de testar a parte disponível.

Para parte dos juristas, por força deste inciso III, o companheiro foi colocado ao lado dos cônjuges em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, sendo considerado um herdeiro legítimo, subsidiário aos descendentes e ascendentes.

Para outra corrente que defendia a diferenciação entre os institutos do casamento e da união estável, não seria possível atribuir direitos iguais aos cônjuges e companheiros não sendo possível, portanto, a inclusão do convivente na terceira posição na ordem de vocação hereditária (SANTOS, 2005).

Porém, entende-se que seria o posicionamento mais coerente reconhecer o companheiro ao lado do cônjuge na ordem de vocação hereditária, visto que, como já dito, a discriminação dos conviventes contraria o preceito constitucional de garantir proteção à todas entidades familiares reconhecidas.

Posteriormente, sobreveio a Lei nº 9278/96 que se destacou por regulamentar o art. 226, § 3º da CF/88, introduzindo um novo conceito de união estável, mais amplo e flexível do que o da lei anterior, passando a caracterizá-la independentemente do prazo de convivência. A partir de tal diploma bastava apenas para o reconhecimento da união estável que a relação fosse pública, duradoura, contínua e dotada de um elemento finalístico: objetivo de constituição de uma família.

Além do direito ao usufruto vidual, previsto na lei de 1994, uma vez dissolvida a união, por morte de um dos conviventes, o companheiro teria direito real de habitação enquanto vivesse ou não constituísse nova união ou casamento, porém, somente em relação ao imóvel destinado à residência da família (art. 7º, § único).

Por fim, o legislador de 96 estabeleceu um regime de bens básico para as pessoas ligadas pelo vínculo do companheirismo, optando por um regime semelhante ao da comunhão parcial de bens. Por força do art. 5º, caput e § 1º, o companheiro passa a ser meeiro dos bens adquiridos onerosamente durante a convivência, presumindo-se que tais são havidos como decorrência do esforço comum.

Com a promulgação do Código Civil de 2002 houve uma alteração na disciplina jurídica da sucessão do companheiro, revogando-se em parte as leis anteriores, visto que, por se tratarem de leis especiais, as matérias não tratadas ou que não sejam contrárias as novas disposições do Código Civil devem permanecer como aplicáveis.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
João Gabriel Villela Machado

Advogado, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG, pós-graduando em Direito Processual Penal pela Universidade Gama Filho/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, João Gabriel Villela. Uma análise do controvertido art. 1830 do CC/02, sob um cotejamento civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2515, 21 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14901. Acesso em: 27 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos