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A soberania da América do Sul e Pinochet

01/02/1999 às 00:00
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          A discussão apaixonada sobre a atuação de Pinochet, enquanto governou o Chile, tem deixado de lado aspecto de extrema relevância, que a declaração dos presidentes dos países membros ou associados do Mercosul realçou, sem a devida cobertura da imprensa.

De início, para que o meu artigo não seja mal interpretado, reafirmo o que tenho dito toda minha vida, ou seja, de que sou contra todas as ditaduras, pois, nas ditaduras, os arbítrios se multiplicam e a tortura e as condenações à morte sem defesa são o lamentável colorário da eliminação do direito de defesa. Este direito é, em verdade, o bem maior de uma democracia. Fidel Castro, Hitler, Mussolini, Stalin, Pinochet, Saddan Houssein e outros, neste particular, disputam doloroso concurso para saber quem mais pisoteou sobre a dignidade humana - para não falarmos dos espanhóis, que, durante a guerra civil, só de sacerdotes, religiosos e religiosas assassinaram mais de 6000, ou dos ingleses, que mantiveram sangrento domínio sobre a Ásia e sobre a África, além de terem utilizado processos censuráveis para não conceder, até hoje, a liberdade à Irlanda do Norte, que há 200 anos por ela luta.

O problema que se coloca, todavia, é outro. Pode um membro do poder legislativo de um país ser julgado, num país estrangeiro, por fatos ocorridos em seu país de origem, sem que a soberania seja atingida?

Em outras palavras, se os 3 poderes de um país democrático representam seu governo, poderá a autoridade de um deles ser julgada em outra nação, sem que se quebre o respeito que deve haver nas relações entre os países e sem que se viole sua soberania?

Em Cuba, Fidel Castro representa o único poder, porque Cuba é uma ditadura, triste reminiscência de um período em que grande parte dos países latinos ou eram ditaduras de direita ou de esquerda. O Chile, todavia, hoje é uma democracia com três Poderes e todos os 3 Poderes são relevantes para sua manutenção. A prisão de um membro de um dos três Poderes chilenos (Senador Vitalício), na Inglaterra, para ser julgado na Espanha, por denunciados "crimes" cometidos no Chile, é uma brutal violência ao direito internacional e ao respeito que as nações entre si devem ter. O curioso é que a extradição do Senador Vitalício chileno foi pedida no dia em que o ditador de Cuba estava na Espanha, ambos acusados de milhares de violências contra seus cidadãos, inclusive com torturas e execuções sem defesa, como nos "paredões" fidelistas ou nos "calabouços" chilenos.

Tenho para mim que esta violência jurídica à soberania chilena, jamais seria feita, se o parlamentar não fosse sul-americano, mas norte-americano, italiano, francês ou alemão. Ainda recentemente, Clinton determinou o bombardeio de presumíveis fábricas de armas químicas em país islâmico, independentemente de declaração de guerra, causando a morte de muitos inocentes, sem que nenhuma autoridade espanhola ou inglesa se lembrasse de criticar a "fishing exploration" do Presidente americano.

Estou convencido de que o preconceito aristocrático dos países europeus em relação à América do Sul permanece, apesar de seu desumano colonialismo, praticado dos séculos XVI ao começo do século XX, já não ter espaço nos dias atuais. Continuam, todavia, agindo como se o mundo fosse dividido entre a raça superior, que são os europeus e os norte-americanos e a plebe inferior que reside na América do Sul, na África e na Ásia. Não acredito que, espanhóis e ingleses, agiram por amor aos direitos humanos, que, de resto, no curso de sua história, nunca respeitaram. Nem me impressiona o reexame pela Casa dos Lordes do processo, por falha procedimental. Creio que espanhóis e ingleses se uniram para esconder, com um pretenso "gesto de grandeza" na prisão do "ex ditador", a imensidão de gestos pequenos, tão condenáveis quanto os atribuídos a Pinochet, que conformaram a história de ambos os países, pelo menos neste milênio.

Bem agiram, pois, os Chefes de Estado do Mercosul em condenar o preconceituoso atentado de ingleses e espanhóis contra a soberania das nações sul-americanas.

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Sobre o autor
Ives Gandra da Silva Martins

advogado em São Paulo (SP), professor emérito de Direito Econômico da Universidade Mackenzie, presidente do Centro de Extensão Universitária, presidente da Academia Internacional de Direito e Economia, presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Ives Gandra Silva. A soberania da América do Sul e Pinochet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 28, 1 fev. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1640. Acesso em: 25 abr. 2024.

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