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Responsabilidade penal da pessoa jurídica na lei ambiental brasileira

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01/06/1999 às 00:00
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LEI AMBIENTAL BRASILEIRA:
ALGUNS ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA

Cumpre ressaltar, a título introdutório, que serão objecto de análise os dispositivos legais directamente ligados à responsabilidade penal da pessoa jurídica ou de seus órgãos, considerando os fins inicialmente delimitados.

Para tanto, torna-se imperioso trazer à colação os dispositivos legais  (52) aplicáveis à espécie:

"Art. 1º -  (Vetado).

Art. 2º - Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.

Art. 3º - As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

Parágrafo único – A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato".

À vista destas disposições, verifica-se que o legislador brasileiro não apenas instituiu a responsabilidade penal da pessoa jurídica no art. 3º como, ainda, pretendeu estabelecer aos superiores hierárquicos desses entes colectivos a posição de garante, nos termos do art. 2º (53). Seguindo a ordem cronológica dos artigos citados proponho, em carácter antecedente, reflectir sobre esta normatividade.

Com efeito, sem embargo da antiga discussão doutrinal acerca da efectiva compatibilização dos crimes omissivos impróprios à regra "nullum crimen nulla poena sine lege" (54), nomeadamente em razão da ausência de imediata adequação da conduta do omitente a um tipo legal, forçoso é reconhecer que o Direito Penal, preocupado em salvaguardar bens essenciais à vida em comunidade, pode e deve equiparar um fazer, enquanto actuar positivo e tendente à efectiva lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico penalmente tutelado, a um não fazer, enquanto inactividade voltada a permitir a concretização de um acontecimento perigoso ou danoso, cuja ocorrência estava o omitente obrigado a impedir (55).

É indiscutível, entretanto, que o dever de agir estabelecido por lei deve ser subjectivamente fundado e objectivamente consubstanciado num facto directamente relacionado com as características do omitente, sob pena de absoluta ausência de legitimidade e ofensa ao princípio da legalidade. Welzel, a propósito, lecciona que "Del Derecho escrito se desprende sólo cabe en consideración como autor de omisión una persona com poder del hecho, que esté ligada com el bien jurídico amenazado por una relación de vida estrecha y especial de la cual resulta esta persona el garante de la integridad del bien jurídico" (56).

Nessa linha de orientação doutrinal, o legislador brasileiro, ao estabelecer a condição de garante ao director, administrador, membro de conselho e de órgão técnico, gerente, preposto ou mandatário de pessoa jurídica  (art. 2º, 2ª parte), esqueceu-se de duas providências indispensáveis: 1ª) limitar o âmbito de vigilância exigível e, principalmente, 2ª) estabelecer um nexo de interdependência entre o dever de vigilância e as actividades desempenhadas por seus empregados  (e não de outrem, conforme consta na lei), no exclusivo desempenho de suas funções laborais.

Sob o primeiro aspecto, não é possível exigir do Director de uma multinacional o controlo das actividades de todos os funcionários existentes na empresa mas, tão somente, daqueles que lhe são imediatamente subordinados  (e, assim sucessivamente). O dever de vigilância deve estar directamente ligado ao âmbito de atribuição de cada qual, para que seja jurídica e facticamente possível o cumprimento do comando legal  (dever de impedir o resultado).

Na 2ª situação, é logicamente inadmissível exigir que os detentores de cargos de direcção de uma pessoa jurídica exerçam qualquer espécie de controlo em face de actividades de seus empregados estranhas às funções que desempenham na empresa, como "sugere" a norma  (é evidente que não compete ao superior hierárquico investigar se um de seus funcionários é portador de qualquer substância entorpecente, no seu bolso, para consumi-la após o trabalho. Essa função compete à Polícia, à toda evidência).

Torio Lopes, através de um raciocínio paralelo entre os delitos de "acção" e "omissão", assinala que "La exigencia de que la prohibición suponga una descripción precisa de la base real o material del delito de acción há de ir paralelamente acompañada de una definición lo más precisa posible de los presupuestos reales  (lógicos) del delito de comisión por omisión. Aunque la causalidad no es, por ej., elemento material del delito de comisión por omisión, es un momento lógico imprescindible de él, que debe precisamente destacar la descripción legislativa de esta clase de delitos com evidencia. En este sentido lógico – y por tanto, real – deve procederse a una precisión legislativa, dentro de lo posible agotadora, de la totalidad de elementos fundamentadores de la responsabilidad del omitente por el resultado sobrevenido (57).

Em idêntico sentido, prossegue o autor em sua linha de argumentação: "La fijación legislativa de los presupuestos lógicos de la comisión por omisión constituye una exigencia indeclinable del Estado de Derecho, ante la cual tampoco deveria claudicar la literatura científica. Correlativamente, a fin de evitar la penetración de criterios moralizadores en este sector, de acuerdo com la actual política criminal debe destacar suficientemente la ley el plano teleológico proprio del delito de comisión por omisión, es decir, la posibilidad de que la acción omitida neutralizase el peligro y, ulteriormente, el resultado lesivo del bien jurídico. Unicamente cuando estos momentos lógico y teleológico de la comisión por omisión estuvieran legislativamente garantizados podrían valorarse el delito de comisión por omisión y el correspondiente delito de acción como realidades jurídicas equivalentes" (58).

É incontestável que as actividades industriais são potenciais fontes geradoras de risco. Por esta razão, é suficientemente legítimo erigir os titulares desta actividade perigosa como garantes da não verificação de factos delituosos no âmbito da empresa e nos limites das actividades por ela desempenhadas (59). Condição necessária dessa função/garantia, todavia, é conferir ao garante o conhecimento dos limites e extensão em que se materializará seu dever de agir, sob pena de absoluta ofensa do princípio da "lex certa", corolário do princípio da reserva legal (60).

Para fins do cumprimento dessa função de garante, caberá aos titulares do dever e, em contrapartida, ao Ministério Público, enquanto instituição incumbida de promover a persecução penal, observar as seguintes diligências, a título de orientação para os primeiros e como uma das formas de extracção dos elementos objectivos e subjectivos do tipo penal para o segundo:

  1. no que tange ao conteúdo dos deveres objectivos de garantia, os órgãos de direcção devem observar e fazer cumprir, através de seus órgãos subordinados, as normas informadoras da actividade empresarial de que se trata   (v. g., na específica situação enfocada, compete às pessoas nominadas no art. 2º pautarem suas actividades de orientação e comando com vistas ao cumprimento das normas editadas pelo Poder Público);
  2. visando concretizar os deveres objectivos explicitados no item 1, deverão os órgãos de direcção não apenas estabelecer um rígido controlo das funções desempenhadas pelos seus imediatos inferiores hierárquicos, pessoalmente, ou em razão de eventual complexidade organizacional da empresa em que desempenhe sua actividade laboral, valer-se do instituto da delegação  (de lege ferenda, na medida em que o Direito positivo brasileiro não admite a delegação da função de garante. Entendo oportuno, entretanto, estabelecer esta forma de distribuição de "poder de fiscalização", ao menos no âmbito da inovadora legislação ambiental). Nesta hipótese, estabelecer-se-á uma nova relação de garante, não liberando o garante originário do dever de vigilância e supervisão das actividades do delegado  (61).
  3. Traçados, em linhas gerais, alguns pontos relevantes a respeito dos delitos comissivos por omissão, levados a efeito no interior da empresa e a partir dela impõe-se, nesta derradeira oportunidade, comentar algumas questões afectas à consagração da responsabilidade penal da pessoa jurídica na Legislação Ambiental Brasileira, nomeadamente estabelecida com o art. 3º supra-citado.

    De início, a leitura da primeira parte desta disposição legal confere ao intérprete duas importantes orientações.

    Primeira - o legislador brasileiro não diferenciou, entre as variadas vestes de uma pessoa jurídica, a qual espécie se aplicaria a nova legislação. Onde este não distingue, não compete ao intérprete distinguir, segundo os postulados básicos de hermenêutica jurídica. Neste diapasão, todas as pessoas jurídicas, públicas ou privadas, que eventualmente venham a praticar factos delituosos previstos na Legislação Ambiental, através de seus órgãos, poderão integrar o pólo passivo de uma relação jurídica processual-penal.

    Na hipótese do infractor da Lei Ambiental vir a ser uma pessoa jurídica de direito público interno, a respectiva sanção penal deverá ser apropriada à sua natureza e ao princípio da continuidade do serviço público. Na eventualidade da sanção aplicada implicar em lesão aos cofres públicos – multa – incumbir-se-á ao Ministério Público ou à Administração instaurar o competente inquérito administrativo para apurar a falta funcional e impulsionar o órgão que praticou o ilícito penal a ressarcir o património público onerado com a condenação levada à efeito, nos termos do art. 15, última parte, do Código Civil Brasileiro (62).

    Segunda – conforme dispõe o art. 3º, as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente pela violação da legislação ambiental. Infere-se desta disposição, com efeito, que as sociedades de facto, irregulares ou meras associações de facto não estão abarcadas pela lei em apreciação. Observem-se as regras utilizadas para esta conclusão.

    Dispõem os arts. 16; 18 e 20, § 2º do Código Civil Brasileiro o seguinte:

    "Art. 16. São pessoas jurídicas de direito privado:

    I - as sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as fundações;

    II – as sociedades mercantis..

    § 1º . As sociedades mencionadas no n. I só se poderão constituir por escrito, lançado no registro geral  (art. 20, § 2º) e reger-se-ão pelo disposto a seu respeito neste Código, Parte Especial.

    § 2º. As sociedades mercantis continuarão a reger-se pelo estatuído nas leis comerciais.

    "Art. 18. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição dos seus contratos, atos constitutivos, estatutos ou compromissos no seu registro peculiar, regulado por lei especial, ou com a autorização ou aprovação do Governo, quando precisa.

    Parágrafo único. Serão averbadas no registro as alterações que esses atos sofrerem".

    "Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.

    §1º. Não se poderão constituir, sem prévia autorização, as sociedades, as agências ou os estabelecimentos de seguros, montepio e caixas econômicas, salvo as cooperativas e os sindicatos profissionais e agrícolas, legalmente organizados.

    Se tiverem de funcionar no Distrito Federal, ou em mais de um Estado, ou em territórios não constituídos em Estados, a autorização será do Governo Federal; se em um só Estado, do governador deste.

    §2º. As sociedades enumeradas no art. 16, que, por falta de autorização ou de registro, se não reputarem pessoas jurídicas, não poderão acionar a seus membros, nem a terceiros; mas estes poderão responsabilizá-las por todos os seus atos"  (grifei).

    Através dos textos apresentados, forçoso é reconhecer que no Código Civil Brasileiro, o legislador exigiu o registo dos contratos, actos constitutivos, estatutos ou compromissos da pessoa jurídica no órgão competente, para considerá-la como tal  (art. 20, § 2º, supra-grifado). Nestes termos e considerando que na Lei Ambiental não existe equiparação de sociedades e associações de facto às pessoas jurídicas, consoante determina o princípio da legalidade, é absolutamente impossível atribuir responsabilidade penal a esses entes de facto. Resta, tão-somente, a viabilidade de oferecer-se acção penal em face da pessoa que efectivamente praticou o delito ambiental, nos moldes do Direito Penal clássico.

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    Apenas a título de ilustração e, quiçá, orientação, observe-se o dispositivo legal português pertinente à matéria enfocada (63):

    Art. 3º.   (Responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas)

    1. As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo"  (grifei).

    2. A responsabilidade é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.

    3. "omissis".

    De "lege ferenda", é oportuna nova intervenção legislativa, através da expressa inclusão das sociedades e meras associações de facto como possíveis sujeitos activos dos delitos ambientais  (art. 3º), sob pena de não se conferir à nova legislação a eficácia desejada pelo diploma.

    Ainda tendo como paradigma a legislação portuguesa, verifica-se que se admitiu, nesta legislação, que a pessoa colectiva demonstre, objectivamente, que o agente infractor actuou contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.

    A ausência desta possibilidade na Legislação Ambiental estudada propiciará, muitas vezes, flagrante injustiça e ofensa ao princípio da ampla defesa garantido na Carta Magna brasileira (64).

    É indiscutível que o sistema da responsabilidade derivada ou por ricochete, claramente albergado pela Lei Ambiental Brasileira, consoante salientado anteriormente, condiz com a realidade das coisas. O "ser colectivo", enquanto tal, é destituído de vontade e de acção; precisa, para comunicar-se com o mundo, de pessoas que o represente e fale em seu nome. Para tanto, confere poderes a terceiros, quer através de previsão estatutária, quer através de outorga de mandato para, no interesse e fim buscado pela colectividade, realizar negócios e aperfeiçoar relações jurídicas.

    Pode ocorrer, entretanto, que um representante ou órgão de direcção da empresa X, previamente conluiado com uma empresa concorrente  (Y), pratique uma conduta delituosa relacionada à actividade empresarial que, em tese, beneficiará a pessoa jurídica em que desempenha suas funções. Nesta hipótese e considerando as provas objectivamente demonstradas  (a prova de conluio entre o representante da empresa X e o proprietário da empresa Y, para fins de destruir a imagem da concorrente X), seria justo a legislação penal brasileira, nos termos do art. 3º, fechar os olhos para esta realidade? Penso que não!!!

    Ainda com referência a este dispositivo legal, estabeleceu-se que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, "...nos casos em que a infracção seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da entidade. Não se preceituou, entretanto, o indispensável nexo de interdependência entre a actividade social da empresa e a eventual acção perpetrada pelo seu representante ou órgão colegiado (65). A simples referência a "interesse ou benefício da entidade"  (cf. art. 3º) é demasiado genérico e não confere segurança jurídica aos prováveis sujeitos activos do delito ambiental  (pessoa jurídica). Registe-se, a propósito, o seguinte exemplo:

    um gerente de uma madeireira que vem a auxiliar o proprietário de uma empresa de materiais de construção a comercializar motossera sem licença da autoridade competente, praticam crime ambiental, em comparticipação  (ou concurso de agentes, segundo a ordem jurídica brasileira), nos termos do art. 51 da Lei n.º 9.605-98. Apesar de ser interessante à pessoa jurídica que possui como objecto social a compra e venda de madeiras, que o maior número de motosseras sejam vendidas, penso que atribuir responsabilidade penal a este ente colectivo, nesta hipótese, seria alargar e muito a responsabilidade penal da pessoa jurídica, em notória contradição com os fins visados pelo sistema.

    Em novo enfoque, no parágrafo único do art. 3º, consigna-se expressamente que a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo facto. Esta disposição possui dois significados: de um lado, consagra o sistema de dupla imputação, através do qual a responsabilidade penal do órgão ou representante legal não exclui a responsabilidade penal da pessoa jurídica, pela prática da mesma infracção; de outro, deixa aberto a plena admissibilidade de concurso ou comparticipação entre pessoa jurídica e física, enquanto órgão ou representante legal desta  (que, segundo a dicção do "caput" do art. 3º, exige a verificação de co-autoria necessária (66)) e terceiras pessoas. Observe algumas considerações acerca desta última conclusão.

    Com efeito, no art. 3º, "caput" da Lei Ambiental Brasileira, o legislador vinculou a responsabilidade penal das pessoas jurídicas na exclusiva hipótese de se concretizar uma infracção cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou do seu órgão colegiado. Desta forma, para imputar-se o facto delituoso à pessoa jurídica, seu órgão ou representante legal deverá tê-lo praticado, por si só, ou através de comparticipação ou concurso de agentes com terceiros  (co-autoria, participação, autoria mediata). Alguns reflexos deste dispositivo legal devem ser cuidadosamente verificados.

    Por hipótese, imagine-se que o representante legal ou órgão colegiado da empresa, ao tempo em que praticou, sozinho, um facto delituoso, ligado à actividade empresarial, estivesse acobertado por uma causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade  (coacção, doença mental, erro). Seria responsável a pessoa jurídica pela prática deste ilícito penal? (67) Deve, nesta situação, voltar-se a atenção ao pressuposto de imputação, ou seja, a partir do momento em que a pessoa jurídica somente é responsável se o representante legal/contratual ou órgão colegiado também o for, eventuais causas que excluam a antijuridicidade ou culpabilidade do facto favoráveis a este devem comunicar àquela. Em idêntico sentido e fundamento, entendo não ser admissível afirmar que a pessoa jurídica será, sempre e sempre, autora mediata de um facto delituoso perpetrado no âmbito empresarial (68).

    Ainda utilizando a imaginação, pense-se na seguinte situação: o funcionário X, pratica uma infracção penal, directamente ligada à actividade da empresa em que trabalha e em benefício desta. Pergunta-se: deverá ser responsabilizada a pessoa jurídica? Sendo negativa a resposta, em que situação se concretizará esta responsabilidade penal?

    Realizado um facto delituoso por um empregado de determinada empresa, deve, imediatamente, investigar se agiu sozinho ou com "contribuição"   (em sentido amplo, quer através da divisão de trabalho, quer através de instigação ou determinação, quer, por fim, através de coacção ou erro, caso em que se verificará autoria mediata) de um representante legal, contratual ou órgão colegiado. No 1º caso, apenas responderá o funcionário, na medida em que ele não possui atribuições legais para expressar a vontade da empresa. Na 2ª situação, imputar-se-á o facto delituoso à pessoa colectiva, visto que o seu representante legal/contratual ou órgão colegiado contribuiu  (contribuíram), de qualquer forma, para o aperfeiçoamento do evento.

    Seguindo as linhas de raciocínio apresentadas, penso ser possível revolver os problemas afectos ao concurso de agentes ou comparticipação ligados à responsabilidade penal da pessoa jurídica, em geral.

    Há uma derradeira questão a ser tratada neste trabalho, ligada à possibilidade, fáctica e jurídica, de aplicar-se a sanção penal à pessoa jurídica, após a consumação do fato delituoso.

    Com efeito, pode a pessoa jurídica optar pela sua dissolução, após a prática do fato delituoso. Pode, ainda, alterar o seu "status" jurídico, através de fusão ou incorporação.

    A legislação penal brasileira é absolutamente silente a respeito destas hipóteses. A título de paradigma, veja o que diz o Código Penal Francês, no art. 133-1, no que concerne à 1ª situação: "a dissolução da pessoa jurídica [...] impede ou paralisa a execução da pena. Não obstante, ela pode ser obrigada ao recolhimento da multa e das custas judiciais e mesmo ter seus bens confiscados [...] após a dissolução das pessoa jurídica até o término das operações de liquidação" (69).

    Ante a ausência de previsão na legislação penal brasileira, entendo que não poderá impedir-se que uma pessoa jurídica opte pela dissolução, na medida em que "ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", nos termos do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil. A meu ver, seria inaplicável o disposto no Código Comercial brasileiro, por disciplinar situação diversa. Veja:

    "Art. 335 - As sociedades reputam-se dissolvidas:

    1 - Expirando o prazo ajustado da sua duração.

    2 - Por quebra da sociedade, ou de qualquer dos sócios.

    3 - Por mútuo consenso de todos os sócios.

    4 - Pela morte de um dos sócios, salvo convenção em contrário a respeito dos que sobreviverem.

    5 - Por vontade de um dos sócios, sendo a sociedade celebrada por tempo indeterminado.

    Em todos os casos deve continuar a sociedade, somente para se ultimarem as negociações pendentes, procedendo-se à liquidação das ultimadas" (grifei).

    A restrição legal para se dissolver a sociedade restringe-se a uma única situação, clara e expressamente discriminada: término de negociações pendentes. Entendo, por esta razão, ser impossível interpretar em sentido diverso, mormente quando esta interpretação viria em confronto com os interesses do cidadão.

    Verificando-se fusão  (sociedade A e sociedade B transformam-se em sociedade C) ou incorporação  (sociedade D incorpora sociedade E), há que se questionar, inicialmente, qual a natureza jurídica do ente fusionado ou incorporado. Cria-se nova pessoa jurídica ou subsiste a anterior?

    Através de uma atenta interpretação, concluir-se-á que o Código Tributário Nacional Brasileiro, em seu art. 132, adopta a tese da existência de uma nova pessoa jurídica, senão vejamos:

    "Art. 132 - A pessoa jurídica de direito privado que resultar de fusão, transformação ou incorporação de outra ou em outra é responsável pelos tributos devidos até a data do ato pelas pessoas jurídicas de direito privado fusionadas, transformadas ou incorporadas.

    Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se aos casos de extinção de pessoas jurídicas de direito privado, quando a exploração da respectiva atividade seja continuada por qualquer sócio remanescente, ou seu espólio, sob a mesma ou outra razão social, ou sob firma individual"   (grifei).

    Bem, constatado a existência de nova pessoa jurídica, certamente este novo ente não poderá responder pela prática de um fato delituoso que não lhe diz respeito. Questiona-se, nesta ordem: pode o Direito Penal, enquanto ramo defensor dos valores de maior importância de uma comunidade, simplesmente pactuar com artifícios jurídicos utilizados para escapar das malhas da justiça? Penso que não, razão pela qual entendo oportuno nova intervenção legislativa, a fim de que limite qualquer alteração voluntária da situação jurídica de uma empresa, enquanto estiver em tramitação qualquer investigação policial ou acção penal, para apurar eventual prática de facto delituoso praticado pelo ente colectivo.

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    Sobre o autor
    Renato de Lima Castro

    promotor de Justiça da Comarca de Assaí (PR), ex-procurador do Estado do Paraná, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    CASTRO, Renato Lima. Responsabilidade penal da pessoa jurídica na lei ambiental brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 32, 1 jun. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1715. Acesso em: 15 mai. 2024.

    Mais informações

    Dissertação apresentada pelo autor na ocasião de sua Pós-Graduação em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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