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Responsabilidade penal da pessoa jurídica na lei ambiental brasileira

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01/06/1999 às 00:00
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INTRODUÇÃO

A sociedade moderna, marcada pelo notório avanço científico que, em última análise, confere ao cidadão indiscutível qualidade de vida deve, inevitavelmente, gratidão àqueles que dedicam as suas vidas ao desempenho de actividades voltadas ao incremento tecnológico em sentido amplo  (nas áreas económicas, jurídicas, políticas etc.).

É inquestionável, entretanto, que esse notável aprimoramento técnico-científico (1), idealizado para servir e facilitar o convívio do ser humano em sociedade reflecte-se, invariavelmente, nas formas de concretização dos factos delituosos, quer através do aprimoramento do iter criminis  (cogitação, preparação, execução e exaurimento), quer através da utilização da tecnologia como meio eficaz à concretização dos fins ilícitos planeados pelos comparticipantes, quer, por fim, através da utilização da empresa (2) para aperfeiçoar o ilícito penal  (criminalidade que se projecta do ente colectivo (3)).

Paralelamente a estes dados concretos e reais situa-se o Direito Penal clássico (4), cujos institutos foram nomeadamente forjados e lapidados em formas tradicionais de se perpetrar o facto delituoso, ostensivamente inadequados para fazer frente aos novos modelos de conduta/actividade violadoras de bens jurídicos que estão a merecer das legislações mundiais especial atenção (5).

Nesta linha de princípio, passa-se a questionar, legitimamente, se esses institutos tradicionais poderiam ser aplicados às novas formas de concretização de factos delituosos, até que ponto poder-se-ia conformá-los à nova realidade que se apresenta e, sobretudo, quais as formas possíveis de se enfrentar esta problemática.

No Brasil, o legislador constituinte de 1988, preocupado com o crescente índice de criminalidade na área de Direito Penal Económico a nível nacional e supranacional, em sua maioria concretizado através de um ente colectivo (6), instituiu a responsabilidade penal da pessoa jurídica, nos termos do seguinte dispositivo constitucional:

"Art. 225 – Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à colectividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independente da obrigação de reparar os danos causados" (grifei).

Com o advento da Lei de Protecção Ambiental n.º 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, conferiu-se à norma constitucional supra-colacionada plena aplicabilidade, ante a expressa previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica, na hipótese de violações de bens jurídicos ambientais.

Nos bastidores do mundo jurídico brasileiro, encetaram-se acirradas discussões doutrinárias a respeito da constitucionalidade desse diploma legal. A meu ver, entretanto, a clareza do § 3º do art. 225 não autorizaria a controvérsia instalada (7). Não é este, de qualquer sorte, o tema que proponho debater.

Nas linhas a seguir desenvolvidas, pretendo analisar alguns aspectos da responsabilidade penal da pessoa jurídica no âmbito da Lei Ambiental Brasileira, avaliar os contornos jurídicos de seus dispositivos e, ainda, sugerir algumas intervenções legislativas para torná-la apta aos fins a que se destina, sem se esquecer das garantias constitucionais conquistadas ao longo dos tempos.

Para tanto, será necessário, em carácter antecedente, apresentar a evolução histórica da responsabilidade penal da pessoa jurídica, assim como estabelecer alguns referenciais paradigmáticos em sede doutrinária e legislativa acerca da respectiva aceitação desta nova espécie de imputação para, assim, posicionar-me a respeito e, ao final, enveredar no tema delineado no parágrafo anterior.


EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS JURÍDICAS

Através de uma análise perfunctória e distante de uma verificação de cunho sociológico, constatar-se-á, com clareza, que entre a Idade Antiga e a Idade Média predominaram sanções de cunho colectivo, nomeadamente aquelas impostas às tribos, comunas, famílias, etc. Com o advento do liberalismo, surgido com as ideias iluministas, todas as sanções colectivas foram extintas em prol de liberdades individuais, em reverência às novas ideologias revolucionárias e conflitantes com esta espécie de responsabilidade, no mundo ocidental. Neste compasso, as sanções penais impostas às "colectividades" foram colocadas à margem do sistema punitivo do Estado liberal (8).

Durante o século XIX, a pessoa colectiva continuou esquecida pela dogmática penal, apenas ressurgindo a preocupação de teorizar a seu respeito com o advento do processo de Industrialização, ainda neste século, na medida em que aqueles entes passariam a influenciar e monopolizar os meios de produção da economia (9).

Em idêntico sentido, no período que se verificou entre as duas grandes guerras, os Estados viram a necessidade de intervir activamente na ordem económica, eis que se tornava imperioso regular a produção e distribuição de produtos e serviços para, desta forma, proporcionar ao cidadão um adequado convívio social. Para tanto, urgia-se estabelecer sanções pelos não cumprimentos das determinações estatais.

As pessoas jurídicas, neste enfoque, passariam a ser objecto de tutela penal de muitos Estados, à vista de sua directa participação e intervenção nos meios de produção.

No primeiro Congresso promovido pela Associação Internacional de Direito Penal, no ano de 1926, realizado em Bruxelas, a responsabilidade penal dos Estados fora suscitada de forma superficial, nas hipóteses de violações de normas internacionais  (situação que acarretaria ao transgressor sanções de natureza penal).

Já no 2º Congresso desta Associação, levado à efeito em Bucareste nos idos de 1929, estabeleceu-se, em carácter conclusivo, o seguinte:

"Constatando o crescimento contínuo e a importância das pessoas morais e reconhecendo que elas representam forças sociais da vida moderna; considerando que o ordenamento legal de qualquer sociedade pode ser lesado gravemente, quando a actividade das pessoas morais viola a lei penal, o Congresso emite o seguinte voto:

1º) que se estabeleçam no direito interno medidas eficazes à defesa social contra as pessoas morais, nos casos de infracções perpetradas com o fim de satisfazer ao interesse colectivo de tais pessoas ou realizadas com meios proporcionados por elas e que engendram, assim, a sua responsabilidade;

2º) que a imposição à pessoa moral de medidas de defesa social, não deve excluir a eventual responsabilidade penal individual, pela mesma infracção, de pessoas físicas que administrem ou dirijam os interesses da pessoa moral, ou que tenham cometido a infracção com meios proporcionados por estas" (10).

Seguindo esta tendência internacional e com vista à teorização de uma nova realidade jurídico-penal que a sociedade contemporânea estava a exigir, outros Congressos passariam a estabelecer similares directrizes. Registem-se, a propósito, suas linhas básicas (11):

- Acordo de Londres, de 08 de agosto de 1945, ao criar um Tribunal Militar Internacional para julgar os crimes cometidos durante a 2ª Guerra Mundial, reconheceu a personalidade jurídica de determinados grupos no campo repressivo internacional, considerando como criminosa determinadas associações   (v.g., GESTAPO, SS e Corpo de Líderes do Partido Nazista);

- VI Congresso Internacional de Roma, realizado em 1953, visou-se ampliar o conceito de autor e de partícipe e, ainda, facultar a aplicação de sanções às pessoas jurídicas;

- VII Congresso Internacional de Direito Penal, realizado em Atenas no ano de 1957, estabeleceu-se que competiria a cada país fixar em sua legislação a correspondente responsabilidade penal da pessoa jurídica;

- Comité de Ministros da Europa editou, em setembro de 1977, Resolução (12) destinada a discutir problemas pertinentes ao meio ambiente, contendo recomendação aos Estados para reexaminarem em suas legislações os princípios ligados à responsabilidade penal, para o fim de admitirem como sujeito activo de delito as corporações, públicas ou privadas,

- Comité de Ministros da Europa aprovou a Recomendação n.º 81-12, em 25 de junho de 1981, destinada a incentivar os Estados a instituir a responsabilidade penal das pessoas morais ou criar outras medidas aplicáveis às infracções económicas;

- Congresso sobre responsabilidade penal das pessoas jurídicas em direito comunitário, concretizado em Messina na data de 30 de abril de 1978, cujo documento final recomendava a responsabilização das pessoas jurídicas, especialmente se a infracção penal violasse dispositivo de Estado-membro da Comunidade Económica Europeia;

- VI Congresso para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente, concretizado em Nova York entre 9 e 13 de julho de 1979, incentivou-se os Estados a estabelecerem em suas legislações a responsabilidade penal das sociedades;

- XV Congresso de Direito Penal, levado à efeito no Rio de Janeiro, no mês de setembro de 1994, aprovou-se, por maioria, recomendações dirigidas às comunidades jurídicas internacionais, incentivando a responsabilização penal das pessoas jurídicas no que atine aos delitos perpetrados em face do meio ambiente.

A generalizada tendência de se conferir à pessoa jurídica a correspondente responsabilidade penal, consoante se pôde observar nos Congressos que se seguiram ao longo dos tempos, orientou e forneceu o necessário subsídio às diversas legislações da ordem jurídica supranacional.

Neste sentido, anotem-se algumas referências legislativas:

no direito holandês, a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi introduzida no Direito Penal Económico nos idos de 1950, tendo a lei de 23 de junho de 1976 estendido o princípio a todo o Direito Penal. Nesta legislação, permite-se ao Ministério Público perseguir simultaneamente a pessoa física e a pessoa colectiva, assim como organismos desprovidos de personalidade jurídica e pessoas colectivas de direito público (13);

na Inglaterra, o princípio da responsabilidade penal das pessoas colectivas vigora desde o século passado. Actualmente, no direito britânico, esta espécie de responsabilidade apenas encontra limite nas excepcionais hipóteses que, em razão da natureza do delito, refutam sua admissibilidade  (homicídio, adultério, etc.) (14);

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nos Estados Unidos, assim como nos demais países da Common Law  (Canadá, Austrália, Escócia, etc.), adopta-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica. É importante consignar que naquele país a pessoa moral pode ser responsável por toda infracção penal que sua natureza lhe permita praticar, sendo digno de registro, ainda, que se imputa à empresa as infracções culposas praticadas por um empregado no exercício de suas funções, ainda que não exista qualquer vantagem para o ente colectivo, assim como os crimes dolosos praticados por um executivo de nível médio (15);

na Dinamarca, o Código de 1930 não previu a responsabilidade penal da pessoa jurídica, mas diversas leis posteriores foram admitindo esta espécie de responsabilidade. Incumbe ao Ministério Público optar contra quem oferecerá a acusação  (pessoa física, jurídica ou ambas), conforme as provas carreadas (16);

em França, após a reforma do Código Penal, a responsabilidade penal da pessoa jurídica é plenamente admitida (17);

no Japão, também se admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica, baseado na teoria de Gierke sobre a real responsabilidade dos entes colectivos (18);

no Brasil, o legislador Constituinte previu, expressamente, a responsabilidade penal da pessoa colectiva, nos crimes contra a ordem económica e meio ambiente (19);

em Portugal, em que pese algumas referências legislativas indicarem uma tendência progressista do legislador ordinário, nomeadamente com a edição dos Decretos-lei 630-76 e 187-83, foi a instituição do Decreto-lei 28, de 20 de janeiro de 1984, que consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica (20);

por fim, a Itália, Espanha e República Federal da Alemanha resistem em aceitar a imputação penal do ente colectivo, em que pese adoptarem a responsabilidade destas pessoas em sede administrativa (21).

Em sede doutrinal, entretanto, o assunto ainda é altamente polémico e encontra-se, infelizmente, distante de um consenso.

No Brasil, René Ariel Dotti "et alii" são absolutamente contrários à responsabilidade penal da pessoa jurídica, por razões já conhecidas dos estudiosos do assunto: incapacidade de: acção (22); de mensuração da culpabilidade; de extracção do dolo ou da culpa e outros fundamentos que reputo desnecessário enunciá-los nesta oportunidade (23).

Hans Welzel (24), Maurach (25), Jescheck (26) e Klaus Roxin (27), em idêntico sentido, excluem a possibilidade da pessoa jurídica ser sujeito activo do delito, na medida em que o crime, segundo suas lentes, trata-se de um facto a ser concretizado pelo ser humano, em carácter de exclusividade.

José Cerezo Mir (28), Miguel Bajo Fernandes (29), Luis Gracia Martín (30), além das argumentações registadas, salientam e propõem: na hipótese de se acolher esta nova teorização, certamente se propiciará a concretização de uma responsabilidade objectiva  (Garcia Martín) à pessoa colectiva; de outro turno, poder-se-ia criar um "Derecho sancionador  (penal) de las personas jurídicas", para que se resguardasse os princípios garantísticos e de defesa social inerentes ao Direito Penal clássico ou em sentido estrito.

Manoel António Lopes Rocha, sintetizando as orientações contrárias à responsabilidade penal da pessoa jurídica, regista: não há responsabilidade sem culpa. Uma pessoa colectiva é desprovida de inteligência e vontade próprias, logo é incapaz de, por si, exercer uma actividade, necessitando de intermediários, ou seja, do concurso de pessoas singulares que lhe sirvam de órgãos; princípio da personalidade das penas. A condenação de uma pessoa colectiva seria injusta, uma vez que teria como efeito atingir os membros inocentes do grupo, por exemplo os accionistas de uma sociedade que não participassem na infracção ou mesmo os membros minoritários do conselho de administração que, na hipótese, tivessem votado contra a decisão que esteve na origem de sua prática; certas penas seriam praticamente inaplicáveis a uma pessoa colectiva – é o caso das penas privativas de liberdade como a prisão; enfim, uma pessoa colectiva é incapaz de arrependimento, não pode ser intimidada nem emendada ou reeducada. Quer dizer, nenhum dos fins tradicionais atribuídos às penas criminais poderia ser atingido através da aplicação de uma sanção desse tipo a uma pessoa colectiva que não sente, não compreende e não quer (31).

Em sentido oposto, alinham os defensores uma série de argumentos resposta, sendo oportuno destacar, em linhas gerais, os seguintes: o direito moderno possui sanções não pessoais que, por este facto, atingem inocentes e culpados   (razão de não se poder falar em violação do princípio da personalidade das penas); as penas de prisão estão, a passos largos, colocadas à margem do sistema punitivo Estatal: por maior razão, poder-se-á e dever-se-á estabelecer penas apropriadas às pessoas colectivas; há pura utopia pensar que as pessoa colectivas não podem ser intimidadas, visto que seus órgãos, enquanto pessoas físicas que são, certamente sentir-se-ão atemorizados ante as penas abstractamente cominadas ao ente colectivo de que fazem parte  (v.g. interdição profissional, encerramento do estabelecimento ou suspensão de suas actividades); a ressocialização, enquanto um dos fins da pena, não possui sensível importância em sede de criminalidade económica, haja visto que o delinquente de colarinho branco trata-se de pessoa que, em verdade, é altamente socializado, gozando de prestígio social e intelectual no seu meio em que vive; por derradeiro, a culpabilidade, enquanto construção do Direito Penal para legitimar a punição de comportamentos desviados, pode ser adaptada para a nova realidade que se apresenta  (Cf. Manoel Rocha, ibidem).


RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS JURÍDICAS: FUNDAMENTAÇÃO

Sem a pretensão de esgotar a indicação dos argumentos contrários ou favoráveis (32) à responsabilidade penal da pessoa jurídica, apenas apresentei alguns referências doutrinárias existentes, para possibilitar ao leitor uma visão geral da controvérsia em torno do assunto. Não advogarei a favor ou contra as orientações levadas à efeito, não apenas porque distanciaria do fim proposto neste trabalho como, principalmente, considerar que a sede da questão não está em discutir, infinitamente, se a pessoa jurídica é capaz de praticar acção ou de se aferir sua culpabilidade, mesmo porque a resposta estaria directamente ligada ao paradigma estabelecido: partindo dos conceitos de acção-culpabilidade lapidados pelo Direito Penal clássico, a negativa seria a lógica do sistema; em sentido inverso, estabelecendo novos contornos jurídicos àqueles institutos, a resposta restaria alterada. Por esta razão apresento, sinteticamente, meu posicionamento a respeito, ao tempo em que registo que o Direito Penal deve estar sempre voltado à protecção de bens jurídicos fundamentais, quer individual, quer meta-individual, mesmo que, para tanto, tenha de adaptar e "revolucionar" alguns conceitos preestabelecidos.

Com efeito, a razão forte para se teorizar e construir esta nova espécie de responsabilidade penal deve ligar-se, segundo meu sentir, à seguinte indagação: a política criminal está a exigir mudança ou, noutras palavras, os meios tradicionais de se imputar um facto delituoso, nomeadamente às pessoas individuais, em carácter de exclusividade, têm sido satisfatórios para a sociedade que se visa tutelar, mormente quando determinadas espécies de criminalidade estão a projectar-se e desenvolver-se, principalmente, a partir de ente colectivo? A pessoa colectiva, sempre e sempre, é utilizada para perseguir fins lícitos antecipadamente estabelecidos em seus estatutos ou, em muitas vezes, tem servido de manto protector de pessoas individuais, associadas para perpetrarem fins ilícitos?

As respostas a estas questões certamente não poderiam ser engendradas neste curto espaço. Vejo, entretanto, a necessidade de tentar apresentá-las, ao menos sucintamente.

Deste modo, ao lado de bens jurídicos de valores eminentemente individuais, protegidos pelo Direito Penal clássico e por tipos penais tradicionais há, em contrapartida, outra espécie de criminalidade apropriadamente denominada por Luiz Flávio Gomes como macro-delinquência económica  (v.g., delitos de naturezas económicas, tributárias, ecológicas, etc.). Nesta espécie de delito, a actividade criminosa incide, preferencialmente, sobre valores supra-individuais, cujo mal social causado, no mais das vezes, é infinitamente maior do que nas formas tradicionais de se empreender condutas delituosas  (v.g., actividades criminosas contra a previdência social; falsificação de medicamentos; lançamento de produtos químicos/nucleares nos mares etc.).

Schünemann, após traçar um perfil dos sujeitos activos desta crescente criminalidade nas sociedades modernas constatou que "...no toda la delincuencia económica es una delincüencia de empresa, pero hay que convenir asimismo en que ésta última clase de criminalidad constituye la parte mas importante de la criminalidad económica. Y ello no sólo desde el punto de vista práctico, sino también desde la perspectiva político-criminal y dogmática" (33).

"En este sentido, cabe recordar que en un estudio empírico realizado en Alemania sobre delitos económicos cometidos entre 1974 y 1985 se ilegó a la conclusión de que el 80% de ellos eran delitos perpetrados en el marco de una actividad empresarial" (34).

A empresa constitui, na maioria dos países, a pedra angular dessa macro-delinquência, por variados factores. Um deles e, talvez, o fundamental, reside na impunidade gerada pela aceitação, na maioria das legislações, do dogma societas delinquere non potest, consoante lecciona García-Pablos de Molina e Bajo Fernández (35).

É inquestionável que a sociedade actual é marcada por super estruturas económicas, cujos modelos de organização são altamente complexos e hierarquizados, com uma notável divisão de funções para melhor desempenho das actividades sociais. Os factos delituosos eventualmente perpetrados no interior dessas estruturas ou, ainda, a partir delas, não possibilitam ao Direito Penal um adequado sistema de punição, quer pela débil aplicação da lei penal, caracterizada pela extrema dificuldade de se individualizar os autores do facto ilícito, quer pela falta de aparato legislativo para fazer frente às novas formas de se praticar o ilícito penal   (ausência, a título de exemplo, de tipos comissivos por omissão, em que os superiores hierárquicos devam assumir a condição de garante da não verificação de factos delituosos no exclusivo âmbito de suas competências). Volumosos processos tramitam durante anos para, ao final, resultarem em absolvições calcadas na fragilidade das provas carreadas por um Ministério Público tornado estéril e inoperante diante do poderio material colocado à disposição da sofisticada criminalidade.

As pessoas colectivas, muitas vezes, constituídas por seus próprios processos de aprendizagem e uma especial escala de valores, em muito não coincidentes com os demais interesses da comunidade  (v.g. poluições; sonegações fiscais; produtos defeituosos e geradores de riscos, etc.), incentivam actividades de seus empregados em benefício da empresa, valorando e promovendo acções que, individualmente, estas pessoas não seriam capazes de concretizar. Passa a formar-se, neste compasso, uma mentalidade empresarial colectiva capaz de gerar uma "actividade criminal colectiva", parafraseando Schünemann (36).

A eficácia preventiva do sistema penal voltado a modelos de conduta individual passa a ser bastante reduzida e questionável, à vista de um espírito de grupo estabelecido para fins ilícitos (37). De igual modo, para o ente colectivo, a condenação de um ou vários empregados pela prática de actividades ilícitas no seu interesse não alterará ou influenciará a política empresarial: substituir-se-ão, tão-somente, aqueles por outros, com novas ideias e com uma revigorada força de trabalho capaz de tudo fazer para se projectar nos níveis superiores de comando.

Oportunas são as palavras de Beatriz de la Gándara Vallejo, ao afirmar que "aunque el Consejo de Administración en pleno resultase condenado por la comisión de un delito, ello no impediría que la empresa, en cuanto tal, pudiera seguir adelante sinvariar ni un ápice su política, simplemente poniendo a otras personas en lugar de las condenadas, personas fáciles de hallar, puesto que nuestra sociedade no se cannsa de alentar a los individuos dispuestos a triunfar prefesional y económicamente aun a costa de negar la vigencia de determinadas normas que, al menos aparentemente, el Estado tampoco se cansa de sancionar haciendo uso del Derecho penal" (38).

O quadro apresentado  (complexidade organizacional da empresa que dificulta ou impossibilita a individualização de condutas ilícitas; formação de uma mentalidade empresarial colectiva idealizada, no mais das vezes, para cometer ilícitos; ineficácia preventiva do sistema penal em face das pessoas colectivas) responde, suficientemente, a indagação formulada linhas atrás, no sentido de que há a necessidade de estabelecer, em sede de política criminal, novos modelos de combate ao crime, apropriados às acções humanas e institucionais, quer através da conformação dos institutos de Direito Penal tradicional quer, por fim, através da reconsideração da máxima societas delinquere non potest.

Conforme afirma Franco Bricola, "referido princípio não tem um valor ontológico, senão que é simplesmente expressão da força das leis do poder económico..." (39). Pode-se, desta forma, lutar contra essa nefasta influência de grandes grupos económicos interessados na manutenção do status quo   (principalmente na permanência do princípio da irresponsabilidade penal do ente colectivo).

Por esta razão e considerando a possibilidade que o Direito possui de conformar seus institutos às novas alterações vigentes nesse momento histórico, é que o subsistema penal pode e deve adaptar-se à responsabilidade penal da pessoa jurídica.

É digno de registo, nesta ordem de valores, que não são os institutos de Direito Penal que devem nortear a sua aplicação mas, em sentido inverso, é o Direito Penal que deve estabelecer o significado apropriado que aqueles estão a merecer, em conformidade com a razão de ser de sua existência – tutelar os valores de maior importância de determinada sociedade.

Preconceber, portanto, conceitos de acção e/ou culpabilidade não estariam na ordem lógica das coisas. Regista Figueiredo Dias, neste compasso, que "se, em sede política criminal, se conclui pela alta conveniência ou mesmo imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em Direito Penal secundário, não vejo então razão dogmática de princípio a impedir que elas se considerem agentes possíveis dos tipos-de-ilícito respectivos. A tese contrária só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do conceito de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo tipo de ilícito exigências normativas que o conformem como uma certa unidade de sentido social" (40).

Para se ampliar o conceito de acção/culpabilidade às pessoas colectivas, basta que o Direito Penal, calcado nos factores político criminais já salientados e, sobretudo, na defesa de bens jurídico-materiais tuteláveis  (sempre em atenção aos pressupostos jurídico-constitucionais que lhe conferem legitimidade), estabelecer premissas, mutáveis ou imutáveis, de imputação penal.

Faria Costa regista, com habitual propriedade, que se pode encontrar na racionalidade material dos lugares inversos a fundamentação para esta nova teorização (41).

Com efeito, basta verificar que o Direito Penal estabelece certos axiomas ou, em outro sentido, verdades que podem ou não serem questionadas, como pressupostos lógicos e necessários à reprovação ou não reprovação de um agir humano. Neste sentido, o menor de 18 anos não possui desenvolvimento intelectivo e emocional para tornar-se responsável pela prática de factos delituosos, sendo, portanto, considerado pela generalidade dos povos como inimputável (42). É indiscutível, todavia, que existem menores de 18 anos que possuem discernimento mais desenvolvidos que muitos adultos plenamente responsáveis que, por imposição e conveniência do sistema, torna-se irrelevante para o direito, à vista do dogma estabelecido (43).

Nesta óptica e seguindo esta ordem de argumentação, pode e deve o Direito Penal estabelecer, na sua codificação ou fora dela  (leis extravagantes), os contornos jurídicos da responsabilidade penal da pessoa jurídica, sem esquecer-se dos princípios garantísticos plasmados na Carta Política do país.

Neste momento é que o Direito Penal, procurando conformar os seus institutos ao novo modelo de responsabilidade que se apresenta, estabelecerá uma das premissas de actuação: a pessoa colectiva expressará a sua vontade, consoante costuma ocorrer há muito noutros ramos de direito extrapenal  (civil, administrativo, tributário), através de seus órgãos de direcção ou representantes, com reflexos e valorações jurídico-penais, apenas admitindo demonstração em contrário em via de excepção  (entendo absolutamente oportuno não se instituir, nessa seara, uma verdade incontestável – dogma – sob pena de incorrer-se em injustiças e responsabilizações das pessoas colectivas pelo simples acto-facto, em muitas ocasiões).

As pessoas físicas, enquanto criadoras intelectuais do ente colectivo, estão plenamente cientes que os órgãos por esta instituídos, para perseguir os fins sociais predefinidos a nível estatutário, expressarão a vontade do ente moral a terceiros e à sociedade em geral, ao realizar actos jurídicos e lhes conferir efeitos, na seara civil (44). Agora, ainda mais, serão estes actos valorados pelo Direito Penal.

Pode-se perguntar, neste momento, como se deverão extrair os elementos do tipo penal; quer-se dizer, levando em consideração a natureza do ente colectivo, como se investigará a objectividade e subjectividade inerentes às construções jurídico penais?

O primeiro aspecto digno de registo é que a responsabilidade penal da pessoa jurídica terá como antecedente lógico e necessário a actuação de seu órgão/representante legal/ou contratual, que aja no interesse e em nome da pessoa colectiva, ao tempo da concretização do facto delituoso. Infere-se desta afirmativa, portanto, que a imputação jurídico penal do ente colectivo possuirá como "conditio sine qua non" a existência de um "substratum humanus", que encarna a pessoa jurídica, intervindo por ela e em seu nome" (45). Os elementos do tipo penal, portanto, deverão ser extraídos deste substrato humano, através do instituto conhecido pelo direito francês como responsabilidade subsequente, por ricochete ou por empréstimo (46).

Esta responsabilidade por reflexo é ostensivamente avalizada pela doutrina francesa. H. Donnedieu de Vabres, ao escrever sobre o tema, asseverou que "a pessoa jurídica poderia vir a ser responsável graças ao substratum de um indivíduo que a representa e que pratica a infracção em seu lugar" (47).

MM. R. Merle e A Vitu, em idêntico sentido, afirmaram que "para que a pessoa jurídica seja responsável, é preciso que sejam estabelecidos, na cabeça da pessoa física, todos os elementos materiais e intelectuais da responsabilidade" (48).

Não é possível, entretanto, que o Direito Penal, enquanto ciência voltada à busca incessante da verdade, aplique a responsabilidade penal da pessoa jurídica, por ricochete ou subsequente, sem as necessárias adaptações.

Quero dizer: em raras hipóteses, objectivamente demonstráveis, deve admitir-se, em sede legislativa, que o ente colectivo comprove que o seu órgão ou representante legal/contratual agiu por conta própria, apesar de realizar acto de ofício e no interesse da colectividade (49).

Nesta ordem de valores, à pessoa jurídica incumbiria o ónus de provar o descompasso entre a actividade ilícita praticada pelo seu representante legal-contratual, frente à linha de actuação empresarial. Consigne, a propósito, o seguinte exemplo: em determinada sociedade anónima, decide-se em assembleia que a empresa investirá em capital permanente de carácter não poluente, deliberando, nesta esteira, que os recursos seriam imediatamente repassados aos directores, para os fins pretendidos; verificou-se, entretanto, que um dos directores, a fim de propiciar à S/A considerável economia, não apenas não empregou as quantias referidas em entidades de protecção ambiental  (cf. estabelecido) como, ainda, deixou de comprar filtros despoluentes, no ano que se seguiu à mencionada reunião, situação que ensejou a instauração de investigação policial, para apurar a concretização do crime de poluição, aparentemente perpetrado pela pessoa colectiva (50).

Responsabilizar a pessoa jurídica, nesta hipótese, seria flagrante injustiça, ante a notória e comprovada política institucional absolutamente diversa e contrária à conduta delituosa de seu director. A responsabilidade penal, nesta situação, deveria ser individual.

Paralelo à responsabilidade por ricochete ou indirecta, situa-se uma tese contrária e não muito aceite em França, denominada Culpa autónoma da pessoa jurídica, cuja orientação consagra a teoria da realidade do ente colectivo, ao considerar que este, por ter vida própria, pode cometer um crime mediante culpa ou dolo distintos do elemento subjectivo das pessoas físicas (51).

Falar em elemento subjectivo do ente colectivo seria, a meu ver, "legalizar" o artifício e render homenagens à aparência, em absoluto conflito com a lógica e o bom senso que devem nortear os operadores do direito.

As questões afectas à culpabilidade da pessoa jurídica, em idêntico sentido e linhas gerais, deverão ser extraídas dos órgãos ou representantes legais/contratuais que tenham actuado em nome e no interesse da sociedade, conforme demonstrado nas linhas anteriores.

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Sobre o autor
Renato de Lima Castro

promotor de Justiça da Comarca de Assaí (PR), ex-procurador do Estado do Paraná, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Renato Lima. Responsabilidade penal da pessoa jurídica na lei ambiental brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 32, 1 jun. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1715. Acesso em: 1 mai. 2024.

Mais informações

Dissertação apresentada pelo autor na ocasião de sua Pós-Graduação em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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